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Ceará "Terra da luz"? Limites e contradições da abolição e pós-abolição no Ceará ( )

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Academic year: 2021

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(1883-1888)

Edson Holanda Lima Barboza1 (UNILAB, Brasil)

RESUMO: A pesquisa analisa o processo de abolição e pós-abolição no Ceará, Província que ficou conhecida pelo pioneirismo na libertação dos escravizados, fato que impulsionou o movimento abolicionista em todo o Império do Brasil. O protagonismo cearense levou José do Patrocínio a homenagear a terra alencarina com a denominação de “Terra da luz”, contudo, contraditoriamente, apesar da vanguarda em relação ao contexto imperial, a libertação dos escravizados representou em discursos e memórias oficiais o silenciamento da presença negra a partir do período pós-abolição, como se, ao findar a escravidão, a presença e as culturas negras também desaparecessem. Deste modo, a partir da perspectiva metodológica da História Social, a investigação realiza uma leitura a contrapelo dos discursos produzidos pela imprensa cearense, abordando suas vertentes abolicionistas/liberais e conservadoras. No campo abolicionista, destaca-se o jornal “Libertador”, editado pela Sociedade Cearense Libertadora, principal mecanismo de denúncia dos limites em processos e projetos de lei para a emancipação escrava, evidenciando ainda fugas e perseguições a escravizados de outras Províncias que passaram a buscar refúgio na Província do Ceará, a partir a intensificação do movimento abolicionista entre 1883 e 1884. Ainda no espectro liberal, dialoga com os jornais “Cearense” e “Gazeta do Norte”, menos comprometidos com o movimento abolicionista, mas importantes para uma abordagem mais densa dos embates ocorridos naquele contexto. No campo Conservador, destaca-se o periódico “Constituição” e sua preocupação com a defesa da propriedade privada local ou da classe senhorial das Províncias vizinhas, incomodadas com o impacto causado pela abolição na “Terra da luz”, ao passo que visavam obstar a inclusão dos libertos e negros livres na sociedade ou ainda buscavam a manutenção da escravidão em algumas localidades do Ceará, como ocorreu em Milagres, cidade localizada no Cariri cearense, onde, em 1887, há registros de proprietários que se negaram a libertar os escravizados, mesmo após a abolição promovida pela Província do Ceará, em 1884. Para a análise de dados, junto aos materiais produzidos pela imprensa, consideramos relatórios oficiais do Presidente da Província. O corpo documental possibilita avaliar que as reações senhoriais, tais como: a tentativa de manutenção da escravidão em Milagres, os esforços para perseguir e impedir a entrada de escravizados em fuga das Províncias vizinhas, as limitações impostas aos libertos através de alforrias condicionais ou não reconhecidas por determinadas autoridades e a ausência de projetos de integração, são eventos que permitem problematizar as sombras que ofuscaram uma compreensão mais ampla das repercussões decorrentes da abolição da escravidão no Ceará.

1 Professor Adjunto I lotado no Instituto de Humanidades da Universidade da Integração Internacional da

Lusofonia Afro-Brasileira (UNILAB), Redenção Ceará. Líder do Grupo de Pesquisa “Trabalho, Cultura e Migrações no Ceará” (CNPa/UNILAB)

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Palavras-Chave: Escravidão, Abolição, Ceará, Fuga, Liberdade.

Ceará, Terra da Luz?

A presença africana e afro-brasileira no Ceará e sua inserção ou diásporas no contexto da escravidão, abolição e do pós-abolição são temas oportunos à investigação. Necessários para mobilizar um posicionamento diante de temas do presente, como as críticas às políticas afirmativas dos governos, que buscam reparar, ainda de forma limitada, séculos de exploração contra parcela significativa de nossos antepassados. Consideramos ainda o esforço de consolidação da Lei 10.369/03, que propõe o ensino da cultura africana e afrodescendente na educação básica, iniciativa que requer a contribuição do ensino superior na formulação de novas pesquisas com teor crítico em relação às perspectivas tradicionais que forjaram distorções ou invisibilidades em torno da temática.

Ceará “Terra da Luz”, a expressão remete ao fato do Ceará, em 1884, ter sido a primeira Província do Império brasileiro a abolir a escravidão. Motivo de exaltação durante o processo de construção da identidade local, o pioneirismo abolicionista merece, apesar do entusiasmo inicial, uma análise mais profunda, pois ao mesmo tempo em que evoca a exaltação da memória de homens ilustres que promoveram de forma benevolente e voluntária o fim do escravismo, é acompanhado por vozes que afirmam no Ceará “não existem mais negros”. É como se 1884, representasse para o Ceará não somente a abolição da escravidão, mas também o desaparecimento dos negros de nossa formação social.

As bases de um abolicionismo letrado e elitista começaram a ser construídas nas últimas décadas do século XIX. Desde a década de 1870, surgiram em Fortaleza instituições como a Academia Francesa (1872) e o Gabinete Cearense de Leitura (1875), aglutinando em torno de si intelectuais da Província. As temáticas levantadas pelas referidas agremiações representavam a passagem de uma abordagem romântica

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para a introdução do cientificismo evolucionista. A agitação de ilustrados influenciou a produção da historiografia local, preocupada em adotar o rigor cientificista. Tal repercussão pode ser percebida com a fundação do Instituto Histórico, Geográfico e Antropológico do Ceará, em 1887, instituição responsável por elaborar as teorias de invenção de uma história, cultura e identidade cearense. Ao analisar um dos artigos publicados na primeira edição da revista do Instituto do Ceará, Almir Leal observou que:

Considerando o caboclo cearense como um autêntico indígena, Paulino Nogueira descartou a mestiçagem entre índios e negros no Ceará, reafirmando uma tese recorrente entre outros historiadores do Instituto Histórico do Ceará, qual seja, a mestiçagem ser restrita somente a brancos e índios(OLIVEIRA, 2001, 119)

Desta forma, desde o inicio da produção da identidade cearense a presença do negro foi negligenciada. Já a temática da abolição de 1884 surgia como elemento de autopromoção dos valores de civilização e progresso por parte das elites letradas. Assim, a escravidão deveria ser uma instituição a ser eliminada para permitir o ingresso do Ceará na modernidade, não por solidariedade ou preocupação com a inclusão na sociedade de negras e negros libertos, tratando os principais interessados em meros expectadores do espetáculo abolicionista cearense

A perspectiva elitista a respeito da escravidão e da abolição, comprometida com o processo de modernização e progresso e negligente com a participação ativa de negras e negros, também esteve presente na atuação das sociedades abolicionistas cearenses. A primeira sociedade libertadora de Fortaleza, a Perseverança e porvir, fundada por comerciantes e “homens ilustres” do cenário político no ano de 1879, teve por objetivo “alforriar escravos, bem como cuidar de interesses comerciais de seus membros.” Tinham interesses para além da questão abolicionista: a recuperação da economia após a terrível seca que assolou o Ceará entre os anos de 1877 e 1879. Seus diretores “foram responsáveis pelo planejamento e criação da Sociedade Cearense Libertadora, instalada e inaugurada no dia 8 de dezembro de 1880, no salão de honras da Assembleia Legislativa da província”. Os membros “pertenciam ao meio urbano, faziam parte da

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elite letrada” e utilizavam da imprensa e da publicidade como sua principal arma para divulgação de ideias. Para tanto, em 01 de janeiro de 1881, começou a circular quinzenalmente o jornal Libertador (CAXILÉ, 2009. p.188-196). A composição da

Cearense Libertadora não fora muito diferente de sua patrona, a Perseverança e Porvir,

majoritariamente formada por comerciantes, a nova sociedade incluía entre seus membros jornalistas, poetas e advogados. “Os membros da Sociedade Cearense Libertadora eram considerados brancos. Os únicos homens de cor foram Marinho Rodrigues de Sousa [advogado e poeta] e o mulato Francisco José do Nascimento - Dragão do Mar”(MILES, 2011. p.176). A estratégia de uma abolição gradual, adotada pelo movimento abolicionista, entrava em contradição com a disposição de “lutar agressivamente” para obter os objetivos de conquista da liberdade.

Limites e contradições do abolicionismo cearense

Havia muitas contradições entre os próprios abolicionistas. A manutenção da posse de escravizados através da alforria tardia ou sob condição demonstra que os diretores e sócios da Cearense Libertadora não assumiam um perfil radical: “Mesmo depois de iniciada a campanha abolicionista alguns sócios e membros da diretoria da Libertadora Cearense, ainda, mantinham escravos em cativeiro; João Cordeiro, presidente da S.C.L., concedeu liberdade as suas escravas Camila, acompanhada de três filhos ingênuos e Francisca, em abril de 1881; Antonio Bezerra de Meneses, 2º secretário (...) somente veio a libertar seus escravos João e Maria, no dia 17 de abril de 1882; Guilherme Sarmente Theóphilo, sócio, alforriou o escravo João, no dia 14 de novembro de 1881; Rodolpho Theophilo, sócio, libertou sua escrava Constancia, ‘sob a condição de servir durante quatro anos a Levy Fréres que pagaram 300$000’”( CAXILÉ, 2004. p.7).

De fato, em um momento em que a escravidão em todo Império estava em falência com o crescimento de fugas de escravizados, insubordinações e declínio do domínio senhorial (CHALHOUB, 1990), muitos proprietários cearenses endividados encontraram no Fundo de Emancipação, que destinava recursos para indenização aos

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senhores em caso de alforrias, e nas campanhas de arrecadações realizadas pelas Sociedades Abolicionistas, garantias certas de remuneração, mais seguras que o risco de perder todos os investimentos em casos de fugas.

Devemos ainda questionar, se há registros de que até figuras de cimeira do abolicionismo cearense, como foi o caso de Rodolfo Teófilo, concederam alforrias condicionais, podemos supor que, além da alforria condicional, obstáculo ao exercício pleno da liberdade, outros arranjos contratuais impostos por proprietários prevaleceram em cidades e sertões cearenses.

Neste contexto, a cidade de Milagres, localizada ao Sul do Ceará, merece destaque. Eduardo Campos apontou diversos documentos que indicam a manutenção da escravidão na referida cidade: “Milagres irritava os libertadores do Ceará, que não se conformavam em ter ainda a Província uma parcela do seu território com criaturas padecendo os efeitos nefastos da escravidão.” (CAMPOS, 1984, p. 80). Sobre a questão Conrad argumentou que “na realidade, a escravatura não deixara inteiramente de existir no Ceará a 25 de março de 1884. Em fevereiro de 1886, o Jornal do Commercio informou que ainda havia 298 escravos no município de Milagres e, mais de dois anos depois, um relatório do Ministério da Agricultura, datado de um dia após a abolição da escravatura brasileira, colocou a população cativa em 108” (CONRAD, 1978, p.229).

Para as autoridades provinciais outra questão incomodava, a entrada de escravizados de províncias vizinhas que procuravam o Ceará em busca da liberdade. Mesmo após 1884, as autoridades provinciais cearenses continuavam a trocar correspondências com autoridades de outras províncias e da Corte para evitar a introdução de “fujões” no território cearense. Além da ação da polícia cearense, em 1887, havia a circulação no Ceará de capitães do mato perseguindo homens e mulheres escravizados de províncias vizinhas. Como é o caso relatado pelo Chefe de Polícia ao Presidente da Província do Ceará a respeito do suicídio “de um escravo fugido de outra

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província, que enforcou-se com um relho em um sitio do termo da Telha, vendo-se perseguido por um capitão de campo por ordem do senhor”2.

Vale ressaltar que, as medidas oficiais abolicionistas do Ceará adotadas a partir de 1883, quando várias cidades do Ceará iniciaram a declarar a emancipação do trabalho escravo (Acarape - 01 de janeiro; Pacatuba e São Francisco [Itapajé] - 02 de fevereiro; Canoa [Aracoiaba] - 04 de março; Baturité e Icó – 25 de março; Fortaleza – 24 de maio, etc...), eram limitadas somente aos escravizados matriculados no Ceará, os cativos registrados nas províncias vizinhas continuavam subjugados pelas regras escravocratas na “Terra da Luz”, ainda após a abolição provincial, em 1884.

As questões que levantamos até aqui destacam que o processo de abolição e a condição de vida de negras e negros libertos ou que lutavam por suas liberdades nos anos imediatos ao fim da escravidão no Ceará representa um processo bem mais complexo do que supõe as formulações consolidadas pela produção realizada pelo Instituto do Ceará e divulgada por setores da elite local, sempre destacando a necessidade de progresso e a ilustração como motores do festejado protagonismo abolicionista cearense. Assim, destacamos as experiências que ficaram durante tanto tempo nas sombras da historiografia oficial.

Os embates pela Liberdade na Imprensa Cearense

O Libertador, órgão da Sociedade Cearense Libertadora, foi criado em 1º de janeiro de 1881 com o lema: “Ama o teu próximo como a ti mesmo_ Jesus”. O jornal traz uma linguagem expressiva e crítica em repressão à propriedade escrava refletindo os movimentos abolicionistas que pressionam as autoridades e senhores no período anterior a abolição na Província do Ceará, principalmente até fins de 1883.

2 CEARÁ, Fala dirigida á Assembléa Legislativa Provincial do Ceará na segunda sessão da 26.a

legislatura pelo presidente da provincia, dr. Enéas de Araujo Torreão. Fortaleza, Typ. Economica, 1887. p. A2-9.

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A pesquisa e análise no jornal libertador, tem apontado para uma intensa pressão do movimento denominado “Perseverança e Povir” pelo abolicionismo no ano de 1884, ao mesmo tempo em que apresenta diversas falhas nos processos governamentais e projetos de lei para a emancipação escrava, nesse sentido, alguns fragmentos de matérias apresentam denúncias de fraudes no fundo de emancipação escrava, por exemplo, a mudança de registro na coletoria de outras províncias com datas forjadas de períodos anteriores a lei de 28 setembro de 1871.

Além disso, são identificados processos de ações de liberdade e embates no âmbito do poder judiciário divulgados pela imprensa abolicionista, destacamos a seguir um desses casos:

Há dias o Sr. Dr. chefe de polícia da província fez recolher à cadeia publica, como escravos do Senador liberal Nunes Gonçalves, e sem a menor formalidade legal, a preta Francisca, escravizada por Euzebia e quatro filhos, seus companheiros de tormento. Mas estando Francisca, - vendida com o suposto nome de Euzebia, - depositada judicialmente e tendo na tesouraria de fazenda o pecúlio de 200$ réis para a sua liberdade, o respectivo depositário pediu por petição ao Juiz de Direito da 1ª vara, que a fizesse restituir o poder. 3

A edição discorre sobre o desfecho do caso da preta livre Francisca noticiado em edições anteriores do jornal. A matéria tem por título: “Para onde vamos?” narrando como Francisca foi presa junto aos quatro filhos e vendida com outro nome ao Senador Marcelino Nunes Gonçalves. O caso finalmente é esclarecido quando a mesma consegue comprovar em juízo sua liberdade.

Referências bibliográficas citadas

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CAMPOS, Eduardo. Revelações da condição de vida dos cativos do Ceará. Fortaleza: SECULT, 1984.

CAXILÉ, Carlos Rafael Vieira. Olhar que Enxerga além das Efemérides: o movimento Abolicionista na Província do Ceará (1871-1884). Anais do XVII Encontro Regional de História. Campinas: UNICAMP, 2004.

__________________________. “Abolição do Ceará.” In: HOLANDA, Cristina Rodrigues. (org.) Negros no Ceará, história, memória e etnicidade. Fortaleza: Museu do Ceará, 2009. p.181-198.

CHALHOUB, Sidney. Visões da Liberdade: uma história das últimas décadas da escravidão na corte. São Paulo: Cia das Letras, 1990.

CONRAD, Robert. Os últimos anos da escravatura no Brasil. 1850-1888. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978.

MILES, Tshombe L. A luta contra a escravidão e o racismo no Ceará. Fortaleza: Fundação Demócrito Rocha, 2011

OLIVEIRA, Almir Leal de. O Instituto Histórico, Geográfico e Antropológico do Ceará- Memória, representações e pensamento social (1887-1914). Tese de doutorado em História Social - PPGHS, PUC-SP. São Paulo, 2001. 280f.

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