• Nenhum resultado encontrado

VIDA E MORTE: UM ESTUDO PSICANALÍTICO A PARTIR DA FOTOGRAFIA DE SEBASTIÃO SALGADO EM GÊNESIS

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2021

Share "VIDA E MORTE: UM ESTUDO PSICANALÍTICO A PARTIR DA FOTOGRAFIA DE SEBASTIÃO SALGADO EM GÊNESIS"

Copied!
15
0
0

Texto

(1)

VIDA E MORTE: UM ESTUDO PSICANALÍTICO A PARTIR DA FOTOGRAFIA DE SEBASTIÃO SALGADO EM GÊNESIS

Camila Luciane Nunes (*) (Mestrado - Programa de Pós-Graduação em Psicologia, Universidade Estadual de Maringá, Maringá-PR, Brasil); Mauricio Cardoso da Silva Jr. (Doutorado – Programa de Pós-Graduação em Psicologia, Universidade Estadual de Maringá, Ex-professor da Escola de Psicoterapia Psicanalítica de Maringá, Maringá-PR, Brasil); Paulo José da Costa (Programa de Pós-Graduação em Psicologia, Universidade Estadual de Maringá).

Contato: clucianenunes@gmail.com

Resumo: No presente trabalho nos propomos discutir algumas questões referentes à vida e à morte,

através da dualidade pulsional proposta por S. Freud, utilizando recortes da obra Gênesis, do fotógrafo Sebastião Salgado. Visando contextualizar nosso objeto de estudo, primeiramente retomamos alguns dados biográficos do fotógrafo. Posteriormente explicitamos os conceitos de pulsão de vida, pulsão de morte e de sublimação, discorrendo ainda acerca das relações entre psicanálise, arte e estética. Nosso estudo evidenciou que a produção artística, no presente caso a fotografia, é rica em expressar elementos profundos da constituição psíquica humana, tais como aspectos relacionados à vida e à morte que se imbricam, ora opondo-se, ora fusionando-se.

Palavras-chave: Pulsão de vida. Pulsão de Morte. Psicanálise.

1. INTRODUÇÃO

No presente trabalho propomos uma aproximação psicanalítica com recortes da obra

Gênesis, de Sebastião Salgado (2013), visando discutir algumas questões referentes à vida e à

morte, através da dualidade pulsional proposta por S. Freud, sendo que a escolha da referida obra se deu intencionalmente, partindo do impacto que vivenciamos após o contato inicial com ela. Certamente que isto motivou também o contato com outros trabalhos do fotógrafo, bem como da busca de conhecer sua biografia.

Foi possível constatar que nas suas obras anteriores à Gênesis (Salgado, 2013), na maioria das vezes, são retratadas grandes tragédias da humanidade, como, por exemplo, a fome, as guerras, as migrações, transformadas pelas lentes fotográficas de Sebastião Salgado em expressão artística que destacam profundas manifestações de dor, morte e sofrimento, mas também parecem indicar elementos vitais que se contrapõem às realidades retratadas com tanta contundência. Entretanto, com a nova obra, Gênesis, o autor expõe que teve por objetivo “mostrar a dignidade, a beleza da vida em todas as suas facetas” (Salgado, 2014, p. 104).

(2)

Salgado (2014) também discorre que, antes desse trabalho, havia fotografado apenas a espécie homem, o que o motivou a realizar viagens durante oito anos para fotografar a natureza intocada. O interesse nesse tipo de registro, segundo o fotógrafo, surgiu do seu projeto ambiental, denominado Instituto Terra, o qual tem por finalidade reflorestar a Mata Atlântica, aqui no Brasil (Salgado, 2014).

Progressivamente, o contato com a obra de Sebastião Salgado e a sua história, foi mobilizando sentimentos relacionados à morte, mas também à vida, por vezes alternados, por vezes amalgamados, despertando-nos o interesse em compreender um pouco mais acerca dessa dualidade e da capacidade da produção artística, no presente caso – a fotografia, em expressar elementos tão profundos da alma humana.

2. ALGUNS FUNDAMENTOS

Tendo em vista o que foi exposto acima, apresentaremos a seguir alguns pontos que julgamos fundamentais para a nossa discussão, apresentando uma resumida biografia do fotógrafo/artista, bem como um apanhado teórico sobre os conceitos de pulsão de vida e de morte, de sublimação, bem como trazer à luz algumas ideias sobre a relação entre a arte e a psicanálise.

2.1 – O fotógrafo/artista

Sebastião Salgado nasceu em 1944, em Aimorés-MG, “em uma fazenda [propriedade de seu pai] situada em um grande vale, o chamado Vale do Rio Doce, que leva o nome do rio que o irriga”. (Salgado, 2014, p. 15). Sua cidade natal era a mais próxima da fazenda em que morava, onde estudou até que, aos 15 anos, mudou-se para Vitória-ES, onde terminou o ensino médio (Salgado, 2014).

Iniciou a faculdade de Direito, mas acabou migrando para a faculdade de Economia. Aos 20 anos, conheceu Lélia, com quem casou, em 1967. Depois mudaram-se para São Paulo, onde Sebastião buscou o seu mestrado. Em 1969, partiram para a França, em função da ditadura militar que vigorava no Brasil. (Salgado, 2014).

(3)

Na Europa, entrou para a Organização Internacional do Café, exercendo a sua profissão de economista. Tinha como atribuição financiar e organizar projetos de desenvolvimento econômico na África, juntamente com o Banco Mundial e a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO). Isso o fez viajar muito pelos países do continente africano. Em suas viagens, além de trabalhar, tirava fotografias por onde passava. Percebeu que as fotografias o deixavam mais feliz do que o seu trabalho como economista, que abandonou em 1979 e começou a investir na carreira de fotógrafo independente. (Salgado, 2014).

Sebastião Salgado realizou muitas exposições fotográficas, publicou livros, bem como ganhou vários prêmios pelo seu trabalho. Em 2014, foi lançada sua biografia, intitulada Da

minha terra à Terra, produzida a partir de uma entrevista concedida para Isabelle Francq.

(Salgado, 2014). Em 2015, um documentário dirigido por Wim Wenders e por seu filho Juliano Ribeiro Salgado, O Sal da Terra, também retratou a sua biografia e contou a história de suas viagens para a produção de suas obras.

2.2 - Sublimação

Segundo Laplanche e Pontalis (2001), a sublimação foi um processo inserido por Sigmund Freud com o intuito de esclarecer as “atividades humanas” que tem como motor a pulsão sexual, mas que não demonstram essa ligação com a sexualidade, sendo as principais atividades que utilizam desse mecanismo as artísticas e as intelectuais. Deste modo, a sublimação ocorre de forma eficiente quando a pulsão sexual consegue encontrar um destino que não tenha caráter sexual e, além disso, seja estimado socialmente.

Em Sobre o narcisismo: uma introdução, Freud (1914/1996d) afirma que a sublimação é um processo em que a libido objetal do sujeito desvia a finalidade natural da sexualidade para outro objeto, de modo que a pulsão se torna capaz de se afastar da satisfação sexual. Tal mecanismo de defesa seria uma saída em que o sujeito se permite atender as exigências do seu ideal de ego sem passar pela repressão. Para que isso seja possível, é necessário que o sujeito faça um desinvestimento libidinal do objeto sexual, de forma a investir em si mesmo, para, posteriormente, redirecionar em um novo objeto que não tem finalidade sexual.

(4)

Em O ego e o id, Freud (1923/1996h) expõe a ideia de dessexualização do objeto, em que há um direcionamento da libido para o eu, ou seja, a libido narcísica. Considerando que o indivíduo estaria desviando a finalidade da sexualidade para o eu, Freud supôs que esse deslocamento da libido era fruto do mecanismo de sublimação. Tendo isto em vista, teorizou que antes de a pulsão desviada da sexualidade ser conduzida a um objeto externo, passaria pela mediação do ego.

No texto O mal-estar na civilização, Freud (1930/1996j) aponta que a sublimação é importante para que o sujeito possa viver em sociedade e também para que possa produzir cultura, já que esta é fruto do desvio sexual da pulsão. Segundo o autor, o objetivo é que a pulsão possa ser deslocada, evitando a frustração do mundo externo. Nesse movimento, o sujeito direciona a sua pulsão para trabalhos psíquicos e intelectuais, possibilitando uma produção intensificada de prazer, sem ligação direta com satisfação sexual, mas a partir de, por exemplo, criações artísticas, soluções ou descobertas científicas e, desta maneira, proporcionando o desenvolvimento da cultura. Freud (1930/1996) descreve a sublimação como uma satisfação “mais refinada” (p. 87), porém não acessível para todas as pessoas.

Mediante o que foi exposto, percebemos que a sublimação, no caso de um artista, está a serviço do desenvolvimento de sua arte, tendo em vista que esse mecanismo é necessário para que o sujeito construa uma produção artística. Tal mecanismo é um dos aspectos que explicam a relação da psicanálise com a arte.

2.3 – As Pulsões: de vida e de morte

No idioma alemão, segundo Portela (2007), o termo pulsão aparece nos escritos de Freud como Trieb e é entendida como “uma pressão no campo interno” (p. 9), sendo encarregada de fazer com que o aparelho psíquico trabalhe. E, de acordo com Laplanche e Pontalis (2001), a primeira aparição do termo na obra freudiana foi no texto Os três ensaios sobre a teoria da

sexualidade (Freud, 1905/1996a), onde Trieb tem sua gênese como uma noção energética e está

coadunada com o princípio da constância, o qual se caracteriza pela necessidade de o indivíduo se manter em um estado de não excitação, havendo duas maneiras para isso: descarregar a excitação ou evitar o estímulo que a provoca.

(5)

Em Os instintos e suas vicissitudes, Freud (1915/1996e) apresentou a pulsão como sendo composta por quatro elementos: pressão, meta, objeto e fonte. Nesse sentido, a pulsão, segue um caminho que passa por esses quatro elementos, tendo seu início na fonte. Afirma que a origem desse processo é somática e posteriormente representada na mente pela pulsão. Esta, por sua vez, sempre tem por finalidade a satisfação e para isso necessita de um objeto para que seja possível o cumprimento de tal meta, podendo ser este objeto algo externo ou até mesmo parte do próprio corpo do indivíduo. Já a pressão está ligada ao movimento, isto é, quanto de força é despendida para que a pulsão possa se deslocar, é a medição do trabalho exigido para que tal processo aconteça. Então, até esse momento da teoria, Freud entendia a pulsão como uma força que tinha a sua origem no corpo, sendo o seu funcionamento regido pelo princípio de prazer, já que a busca era a satisfação. Outro fator importante nesse ponto da teoria, segundo Zimerman (2001), é que a pulsão era dividida em pulsões do ego e pulsões libidinais. A primeira referia-se aos interesses do ego e a segunda à preservação da espécie.

Em Além do princípio de prazer, Freud (1920/1996g) muda a divisão das pulsões acima indicada para a dualidade pulsão de vida e pulsão de morte, sendo que a primeira abrangeria as pulsões do ego e as libidinais, e a segunda era um novo conceito que estava sendo introduzido. Freud (1920/1996g) descreve alguns exemplos que começam a instigá-lo sobre a existência da pulsão de morte. Tais situações lhe mostravam que o sujeito humano tinha uma compulsão à repetição de situações vivenciadas em seu passado. Porém, Freud notou que o sujeito não repetia apenas aquilo que lhe trazia prazer, mas também repetia experiências que não incluíam possibilidade alguma de reviver situações prazerosas. Ou seja, algo que iria além do princípio de prazer. A análise realizada levou a um entendimento de que a compulsão à repetição tinha por finalidade fazer com que o sujeito humano voltasse a um estado anterior, um estado inorgânico; vale dizer, tinha por objetivo o de conduzir o sujeito à morte. Assim, o sujeito apresentava impulsos destrutivos e agressivos, compondo a pulsão de morte (Freud, 1920/1996g). Segundo Portela (2007), Freud relaciona o princípio de nirvana com a pulsão de morte, explicitando que tal princípio se define pela tendência a diminuir a excitação, tentando buscar a sua extinção.

Pensando na interação entre as pulsões de vida e de morte e em como isso ressoava na constituição do sujeito, Freud (1920/1996g) discorre como sendo conflituosa, porém era o que permitia a construção da vida. Conflituosa, pois uma pulsão trabalharia com a finalidade de

(6)

preservar a vida e a outra com o intuito de levar o sujeito a estados inorgânicos, anteriores à vida. Contudo, ambas funcionam no psiquismo fusionadas, em maior ou menor grau, com o predomínio de uma delas.

2.4 – Arte e Psicanálise

É amplamente conhecido que Freud utilizou da arte como um dos esteios para a construção da psicanálise. Dentro dessa perspectiva, o pensamento freudiano faz referências entre a arte e a psicanálise das seguintes maneiras: analisando o artista da produção, o processo artístico, a própria obra ou até mesmo o que a produção artística provoca em quem a aprecia. Salienta que dentro da teorização freudiana sobre a arte há ambiguidade e, por vezes, até um desencontro de ideias, porém ideias que não se excluem e que serão descritas a seguir.

Segundo Autuori e Rinaldi (2014) aparecem quatro tipos de pensamentos na concepção freudiana no que tange à arte e à psicanálise. O primeiro, indicado por tais autores, se refere ao fato de Freud entender que a produção de uma obra está ligada diretamente com as vivências do artista. Para esta compreensão, utilizava-se da dedução, mediante o que aparecia no resultado da obra de arte, para entender o que supostamente se passava no psiquismo do artista no momento da criação, como nos textos Leonardo da Vinci e uma lembrança de sua infância (1910/1996c) e

Dostoievski e o parricídio (1928/1996i).

Para exemplificar o que foi exposto acima, vejamos um trecho em que aparece o exercício freudiano de análise:

Poderia ser que Leonardo tivesse ficado fascinado pelo sorriso de Mona Lisa, por lhe ter despertado alguma coisa que há muito habitava sua mente - provavelmente uma antiga lembrança. Esta lembrança era de suficiente importância pois, uma vez despertada, nunca mais dela se libertou; sentia-se sempre forçado a dar-lhe novas formas de expressão. (Freud, 1910/1996c, p. 118)

A segunda abordagem sobre a arte na teoria freudiana, identificada por Autuori e Rinaldi (2014), é que a produção de um artista se equivale ao brincar de uma criança, ou seja, a realização imaginária seria possível por meio da criação artística. Assim, o artista apresenta a realidade da maneira que lhe agrada através da arte, do mesmo modo como a criança o faz pelo brincar. Em ambas as situações é investida emoção e realizado “um acordo momentâneo de insanidade, já que a realidade está presente, mesmo que em suspenso”. (p. 308) Segundo esses

(7)

autores, para Freud, o brincar no mundo infantil é regido pela vontade de tornar-se adulto, pois há a crença que nesta fase as fantasias serão saciadas. No entanto, a criança, chegando a fase adulta, perde essa ilusão e a arte se apresenta como uma possibilidade de fantasiar.

O terceiro pensamento freudiano sobre arte mencionado por Autuori e Rinaldi (2014) se define por tal autor conceber que as criações artísticas foram as primeiras a descobrirem a fantasia mediante a ficção. Freud, então, faz uma aproximação entre a fantasia do homem com a ficção, por exemplo, de uma obra literária e afirma que muitas vezes a arte antecede os conhecimentos psicanalíticos.

E por fim, a última compreensão citada por Autuori e Rinaldi (2014) nos escritos de Freud sobre a aproximação da arte com a psicanálise, tange ao processo de criação das obras pelos artistas. Para isso, segundo os autores, Freud se propôs a entender o processo de fantasiar por meio da ficção encontrada nas obras literárias, bem como aproximou a fantasia do sonho. Freud (1908/1996b) partia do pressuposto que o desejo presente na fantasia só é permitido a sua aparição de forma distorcida, podendo ser presente em uma obra de arte, tal qual em um sonho.

Outro conceito comumente tratado quando se fala de arte e psicanálise, é o da estética. Kauffmann (2008) explicita que o termo “estética” se refere ao estudo do belo e do sublime. Freud (1919/1996f), por sua vez, discorre que a estética não pode ser entendida apenas como a teoria do belo, mas também como estudo da qualidade do sentir, isto é, como o objeto manifesta a sua sensibilidade/emoção e como isso é captado por quem o aprecia.

Meltzer e Williams (1988/1994) trazem a sua contribuição discorrendo sobre o conflito estético, entendendo-o como primordial para o processo de desenvolvimento mental. Pontuam que o bebê quando nasce é inserido em um mundo desconhecido, ou seja, um lugar que ainda não sabe o que esperar e esse sentimento também é estendido para o vínculo mãe-bebê. Nesse encontro, no recém-nascido, são despertados sentimentos de confusão, pois ainda não consegue decifrar o significado dos comportamentos de sua mãe: “a mãe lhe é enigmática; ela exibe um sorriso de Gioconda a maior parte do tempo, e a música de sua voz fica constantemente mudando de tom maior para tom menor” (p. 44).

De acordo com os autores acima citados, as mensagens que chegam da mãe para o bebê são dúbias, como por exemplo, na amamentação. Mesmo sendo um momento de grande satisfação por meio do toque do mamilo na boca do bebê, é também de confusão quando percebe

(8)

que “[a mãe] fornece uma coisa que explode que ele precisa expelir” (Meltzer & Williams, 1988/1994, p. 44). Então, os autores explicitam que o bebê ainda não sabe o que esperar do mundo interno de sua mãe e é importante que ele tenha a capacidade de permanecer na incerteza sem procurar explicações racionais. Essa capacidade é o cerne do conflito estético e estimula a imaginação criativa do bebê, já que precisa lidar com ambiguidade da figura materna. Nesse sentido, os autores asseguram que o recém-nascido tolerar a incerteza dos sentimentos emergidos na relação com a mãe seria um processo de maturação. (Meltzer & Williams, 1988/1994)

Rea (2009) afirma que a experiência clínica traz a possibilidade de um encontro entre a estética e a psicanálise. Isso porque, a prática analítica espera que aquele que está na função de ouvinte – considerando uma dupla analítica – possa dar forma àquilo que está além da representação. E, desta forma, a psicanálise se aproxima da arte por estar inserindo no mundo algo inédito, tal qual uma obra de arte. Nesse sentido, segundo a autora, ao entrar em contato com uma obra de arte, pode-se utilizar uma escuta psicanalítica, tendo em vista que há algo invisível que é suscitado pela parte visível da obra, ou seja, algo atinge o inconsciente de quem aprecia a obra por meio da transferência depositada pelo artista em sua produção. Na opinião de Rea (2009), Freud possibilitou uma relação entre o olhar do espectador e a obra de arte e, diante disso, a oportunidade de o espectador se inserir no campo da criação, construindo uma psicanálise na área da estética da recepção. Assim, cria-se um espaço para aquele que aprecia uma obra de arte realizar uma análise psicanalítica, considerando a manifestação única da obra sobre e no espectador.

Tendo em vista esses aportes psicanalíticos, podemos concluir que uma aproximação entre a psicanálise e a obra do fotógrafo Sebastião Salgado é possível, mediante essa escuta psicanalítica direcionada para a obra.

4. MÉTODO

Para o desenvolvimento do presente trabalho empregamos o método psicanalítico, o qual pode ser denominado de psicanálise extramuros, clínica extensa ou psicanálise aplicada, quando utilizado fora do contexto clínico (Kobori, 2013), sendo constituído por três aspectos: observação, investigação e interpretação (Herrmann, 1983). Desse modo, quando o analista se

(9)

propõe a estudar uma obra de arte, a sua atenção flutuante é o que vai proporcionar a interação com a obra, sendo que a atenção estará interligada ao olhar (Mezan, 1988). Uma obra de arte não disponibiliza associações livres tal qual um paciente, de forma que a contratransferência ocorre por meio do contato com o objeto de estudo.

No presente trabalho, tomamos a obra Gênesis, de Sebastião Salgado (2013), a partir da qual esboçamos alguns comentários gerais, bem como fizemos um recorte, selecionando três fotografias, pois se tomássemos todo o conjunto não haveria espaço suficiente, considerando os limites para um trabalho que visa ser apresentado como comunicação oral em um evento científico. Também salientamos que as análises que apresentaremos são frutos de nossa leitura e compreensão no contato com o trabalho do fotógrafo. Contudo, até pela especificidade deste estudo, outros analistas poderão, diante das mesmas fotografias, realizar outros tipos de análises, partindo de outras perspectivas.

5. ANÁLISE

Salgado (2014) afirma que durante a sua trajetória profissional presenciou diversas tragédias da humanidade e imaginava estar imune a elas. No entanto, percebeu que estava profundamente abalado com o que tinha vivido no processo de construção de suas produções anteriores. Então, Salgado (2013), para explicar o nascimento de Gênesis, remonta essa sua história pregressa, relatando que, no final da década de 1990, percorreu o mundo fotografando diferentes histórias: de imigrantes saindo da área rural, de refugiados fugindo da guerra, de pessoas buscando esperança longe de suas terras natais. Nessas viagens afirma que encontrou muito sofrimento, bem como muita coragem, mas salienta que o que mais lhe ficou marcado foi a “violência e a brutalidade” despendida de um ser humano a outro, a ponto de afirmar: “... a minha esperança no futuro da humanidade havia se perdido” (p. 5)

Nessa mesma época, o seu pai havia lhe pedido para que tomasse conta da fazenda de gado em que havia sido criado. Ele e sua esposa aceitaram, porém com relutância e se depararam com uma fazenda diferente da qual estava na sua lembrança infantil. Na sua infância, aos arredores da fazenda, havia rica vegetação tropical e fauna. Mas, devido ao desmatamento e às

(10)

erosões, a floresta deixou de existir. Lélia, esposa de Salgado, teve a ideia de reflorestar a área e, assim, surgiu o Instituto Terra. (Salgado, 2013)

Salgado (2013) percebeu com o reflorestamento que a natureza tinha a capacidade de se regenerar, pois, conforme iam plantando a flora nativa da região, a fauna voltava espontaneamente para a floresta que estava renascendo. Tal experiência fez reavivar a esperança e o fez partir para uma nova viagem e um novo trabalho, o qual foi intitulado de Gênesis, com o objetivo de fotografar a natureza intocada. De acordo com Salgado (2013), foram 32 viagens em oito anos para a construção dessa obra. Nessa época, o artista chegou à compreensão de que o ser humano não poderia mais ser entendido como separado da natureza e que uma possível ruptura poderia trazer ameaças à humanidade.

Sebastião Salgado parece ter reencontrado a vida e a esperança quando direcionou a sua lente e as suas reflexões para o encontro do ser humano com a natureza, que isto podia explicar a nossa existência, bem como trazer equilíbrio. Percebemos diante o que fotógrafo expõe, o desejo de construção da vida (literalmente) após trafegar pelo sofrimento humano, decorrentes da violência e da destruição. Isto nos parece remontar à dualidade intrínseca do ser humano descrita por Freud (1920/1996g) quando explicita sobre as pulsões, de vida e de morte. Sebastião Salgado parece conseguir traduzir em fotografias o que é necessário para que se haja vida, bem como demonstrar como tal dualidade se manifesta de maneira artística, o que tentaremos discutir abaixo.

(11)

A primeira foto acima indicada é de uma iguana-marinha, a qual, segundo Salgado (2013) tem por nome científico Amblyhynchus cristanus e é um animal ectotérmico, ou seja, regula a sua temperatura corporal conforme a temperatura do ambiente. O fotógrafo encontrou tal animal na Ilha de Galápagos, um dos lugares visitados por Charles Darwin para a construção de sua teoria sobre a evolução das espécies por meio da seleção natural. Salgado (2013) relata que tal iguana é um ótimo exemplo da evolução, pois essa espécie do animal adaptou-se, apenas nessa ilha, a ser um animal marítimo, capaz de nadar, alimentar-se e inclusive desenvolveu uma glândula correspondente para a excreção de excesso de sal consumido.

O pensamento suscitado, ao nos depararmos com a imagem acima, é de semelhança, onde a pata da iguana marinha, tal como fotografada, por analogia faz lembrar uma mão humana. A sensação e o pensamento gerados, despertando essa noção de similaridade entre o aspecto animal e o humano, parecem refletir, a partir do que aparece em primeiro plano na fotografia e do que desperta no espectador, um plano subjacente que seria da ordem da proximidade entre a natureza e o ser humano, evidenciando ao mesmo tempo a diferença e algo como um elo comum.

Com isto em vista, ao analisar a foto, podemos pensar que não foi somente a iguana marinha que se adaptou ao ambiente que a circunda, mas também o ser humano. Este parece ter esquecido, nesse processo adaptativo, aspectos de si mesmo buscando o equilíbrio com a sua “natureza”, vale dizer, o de um ser dual: ser da natureza e ser da civilização, ser pulsional (de morte e de vida). E nessa dualidade pulsional, precisa aprender a lidar com os seus sentimentos agressivos e destrutivos para que não precise idealizar o que é bom, ou o que é ruim, e dessa forma não se sentir compelido a cindir com um dos lados, mas construir uma integração entre os diferentes aspectos que possibilite a predominância dos elementos vitais.

Salgado (2013) explicita que os retratos entre as páginas 254 e 261 são de comunidades do Sul do Sudão, mais especificamente, os dincas. Conta que durante a estação chuvosa, tais comunidades residiam em aldeamentos cultivando cereais. Também tinham gado que pastavam o capim que se apresentava em grande quantidade nessa estação. No entanto, durante a estação seca, os aldeamentos eram deixados e os dincas iam à procura de pasto para o gado. De acordo com Salgado (2013), tal comunidade é inseparável do gado, de forma que usam a urina das vacas para lavar o rosto e para a conservação do leite. Também utilizam o estrume seco ao sol e

(12)

queimado para afastar mosquitos e as cinzas para a esterilização de possíveis picadas. Vejamos a foto abaixo.

Fonte: Salgado, S. Gênesis, 2013, p. 261.

Supomos que na história desse registro está a busca do fotógrafo por registrar a vida, a qual está sendo entendida pelo o artista como a união entre o ser humano e a natureza, retratada pelo homem dinca e seu gado. Pelo conjunto dos elementos expressos na foto, parece-nos demonstrar aspectos de contato, de aproximação, de relação, entre homem, animal e ambiente, onde evidenciam-se a busca pelas condições possíveis de manutenção da vida, embora se confrontando com a animalidade e a destrutividade da natureza, mas encontrando meios não somente de sobrevivência, mas também de convivência.

E, por fim, a última foto selecionada, retratando a Floresta Amazônica:

Fonte: Salgado, S. Gênesis. 2013, p. 492-493.

De acordo com Salgado (2013), tal retrato apresenta a serra Curicuriari com o Rio Negro ao fundo, na região norte da Amazônia brasileira. Tal fotografia impacta e recorda toda a história

(13)

de construção da obra Gênesis relatada pelo o fotógrafo. Parece de fato o encontro com a vida buscado pelo artista quando começou essa jornada com o Instituto Terra. Percebemos que a sua chegada até esse ponto desta obra não dependeu apenas de satisfações vivenciadas por meio da sua busca pela vida (pulsão de vida), mas também de muita dor e destrutividade (pulsão de morte). A alternância dessas pulsões fez com que fosse possível a construção de expressões da vida por meio do seu trabalho e, por fim, um presente dado à natureza pela arte, que é, para Sebastião Salgado, o seu significado de vida, como o encerramento, quem sabe, de um processo sublimatório.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Tendo em vista o que foi analisado na trajetória da produção fotográfica até a chegada de

Gênesis, bem como nas fotografias selecionadas dessa obra, podemos supor algum tipo de

elaboração por parte do artista. A trajetória de construção de suas obras ocorreu em meio ao sofrimento da humanidade, tendo o seu ápice em Êxodos. Vivenciar esse contexto o fez construir o seu sentido de vida através do processo de construção de uma outra obra, Gênesis.

Após a análise, foi possível perceber que a obra do fotógrafo percorre um caminho de construção de vida, assim como as pulsões em seu aspecto fusional, com predomínio da de vida. Isso não é feito diante apenas de satisfações encontradas; ao contrário. É a dualidade entre a destrutividade e a conservação que fazem o sujeito poder descobrir o caminho para a vida, a satisfação e a construção.

O olhar do fotógrafo parece se voltar para a vida, sendo transformada em arte, em fotografia. Isso nos faz pensar no jogo dual das pulsões inerente à existência humana. Dos sentimentos suscitados no fotógrafo, considerando suas obras anteriores à Gênesis, com o impacto da destrutividade, violência, agressividade, esgotamento e, por fim, descrença na humanidade, parece suscitar a necessidade de um novo olhar, que culmina na construção de uma obra onde o intocado, o encontro, a restauração, a vida, são captadas pelo olhar do fotógrafo, na própria fotografia (arte) e na beleza das fotos.

Em Gênesis (Salgado, 2013) há o encontro direto com a vida diante da busca de uma integralização entre o homem e a natureza. Ao mostrar a natureza intocada (fauna e flora), bem

(14)

como a harmonia do homem em contato com a natureza, o artista faz-nos lembrar da pulsão de vida, da construção que pode ser elaborada a partir de experiências vinculadas à destrutividade, buscando novos recursos que se transformem em motor da vida.

Referências

Autuori, S. & Rinaldi, D. (2014). A arte em Freud: um estudo que suporta contradições. Boletim

Academia Paulista de Psicologia, 34(87), 299 – 319.

Freud, S. (1996a). Três ensaios sobre a teoria da sexualidade. In: In: Edição standard brasileira

das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (Vol. 7, pp 117 – 231). Rio de Janeiro:

Imago. (Original publicado em 1905)

Freud, S. (1996b). Escritores criativos e devaneios. In: In: Edição standard brasileira das obras

psicológicas completas de Sigmund Freud (Vol. 9, pp 131 – 143). Rio de Janeiro: Imago.

(Original publicado em 1908)

Freud, S. (1996c). Leonardo da Vinci e uma lembrança da sua infância. In: Edição standard

brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (Vol. 11, pp 67 – 142). Rio de

Janeiro: Imago. (Original publicado em 1910)

Freud, S. (1996d). Sobre o narcisismo: uma introdução. In: Edição standard brasileira das obras

psicológicas completas de Sigmund Freud (Vol. 11, pp 75 – 108). Rio de Janeiro: Imago.

(Original publicado em 1914)

Freud, S. (1996e). Os instintos e suas vicissitudes. In: Edição standard brasileira das obras

psicológicas completas de Sigmund Freud (Vol. 14, pp 115 – 144). Rio de Janeiro: Imago.

(Original publicado em 1915)

Freud, S. (1996f). O estranho. In: Edição standard brasileira das obras psicológicas completas

de Sigmund Freud (Vol. 17, pp 231 – 267). Rio de Janeiro: Imago. (Original publicado em 1919)

Freud, S. (1996g). Além do princípio de prazer. In: Edição standard brasileira das obras

psicológicas completas de Sigmund Freud (Vol. 18, pp 17 – 72). Rio de Janeiro: Imago, 1996.

(Original publicado em 1920)

Freud, S. (1996h). O ego e o id. In: Edição standard brasileira das obras psicológicas completas

de Sigmund Freud (Vol. 19, pp 13 – 87). Rio de Janeiro: Imago. (Original publicado em 1923)

Freud, S. (1996i). Dostoievski e o parrício. In: Edição standard brasileira das obras

psicológicas completas de Sigmund Freud (Vol. 21, pp 181 – 206). Rio de Janeiro: Imago.

(15)

Freud, S. (1996j). O mal-estar na civilização. In: Edição standard brasileira das obras

psicológicas completas de Sigmund Freud (Vol. 21, pp 73 – 151). Rio de Janeiro: Imago.

(Original publicado em 1930)

Herrmann, F. (1983). O que é Psicanálise: para iniciantes ou .... (13ª ed.). São Paulo: Psique. Kauffmann, A. L. (2008). Sobre a contemplação reflexiva estética na sessão psicanalítica.

Revista Brasileira de Psicanálise, 42(4), 29-39.

Kobori, E. T. (2013). Algumas considerações sobre o termo psicanálise aplicada e o método psicanalítico na análise da cultura. Revista de Psicologia da UNESP, 12(2), 73-81.

Laplanche, J. & Pontalis, J. B. (2001). Vocabulário da psicanálise. (4ª ed.). (P. Tamem, Trad.). São Paulo: Martins Fontes. (Original publicado em 1967)

Meltzer, D. & Williams, M. H. (1994). A apreensão do belo: o papel do conflito estético no

desenvolvimento na violência e na arte. (P. C. Sandler, Trad.) Rio de Janeiro: Imago. (Original

publicado em 1988).

Mezan, R. (1988). A vingança da Esfinge. São Paulo: Brasiliense.

Portela, M. M. (2007). Sobre a pulsão de morte na teoria freudiana. 2007. Monografia, Pontíficia Universidade Católica, São Paulo, SP, Brasil.

Rea, S. (2009). Resenha de Frayze-Pereira, J. A. Arte, dor: inquietudes entre estética e psicanálise. São Paulo: Ateliê Editora, 2006. Revista Brasileira de Psicanálise, 43(3), 191-194. Salgado, S. (2013) Gênesis. São Paulo: Taschen.

Salgado, S. (2014). Da minha terra à Terra – Sebastião Salgado com Isabelle Francq. (J. da R. Simões, Trad.). São Paulo: Paralela. (Original publicado em 2013)

Referências

Documentos relacionados

Para Gil (2010) a pesquisa descritiva apresenta como objetivo inicial a elucidação das características de uma população específica, um determinado fenômeno ou

Nessa situação temos claramente a relação de tecnovívio apresentado por Dubatti (2012) operando, visto que nessa experiência ambos os atores tra- çam um diálogo que não se dá

É primeiramente no plano clínico que a noção de inconscien- te começa a se impor, antes que as dificuldades conceituais envolvi- das na sua formulação comecem a ser

favorecida), para um n´ umero grande de poss´ıveis lan¸ camentos, esperamos que a frequˆ encia de cada face seja parecida. • Em outras palavras, esperamos que a frequˆ encia

O objetivo principal deste estudo de caso era verificar o grau de valorização da medicina popular de plantas entre o próprio povo, tendo por base uma comunidade com diferentes

Indices (1) to verify the agreement between soil depth values where penetration resistance is equal to 1.5 MPa, based on the proposed penetrometer (Hatô) and the

Discutir os benefícios alcançados até o momento (físico, econômico, social, etc); discutir as estratégias que os usuários vêm utilizando para lidar com a

No caso dos dispositivos para testes de rastreio do sangue (à excepção dos testes de HBsAg e anti-HBc), todas as amostras verdadeiras positivas devem ser identificadas como