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Anthony Burgess. A laranja mecânica. Edição restaurada. Tradução de Vasco Gato

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Anthony Burgess

A laranja mecânica

Edição restaurada

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Introdução

de Andrew Biswell

Em 1994, menos de um ano após a morte de Anthony Burgess aos 76 anos de idade, a BBC Scotland encomen-dou ao romancista William Boyd uma peça radiofónica de homenagem à sua vida e obra. A peça foi emitida durante o Festival de Edimburgo a 21 de Agosto de 1994, aliada a um concerto com música de Burgess e a uma gravação da sua Glasgow Overture. O programa chamava-se An Airful

of Burgess, tendo o actor John Sessions interpretado os

papéis tanto de Burgess como do seu alter ego fictício, o poeta F. X. Enderby. No mesmo dia, o Sunday Times publicou uma reportagem de primeira página sobre a peça radiofónica, com o título «BBC em Alvoroço Por Cena de Violação Violenta em Peça de Festival». Afirmava o jornal que a emissão incluía «uma reconstituição ao vivo de uma cena de violação baseada na controversa obra de Anthony Burgess, A Laranja Mecânica». O filme de Stanley Kubrick, que segundo o artigo fora «responsável por crimes decalcados», foi igualmente criticado pelo seu «retrato explícito de violação, violência e homicídio gratuitos». No entanto, quem quer que tenha sintonizado a emissão radiofónica, na expectativa de obter o tipo de satisfação indecente que o Sunday Times prometera, terá ficado completamente desiludido. A peça de William Boyd, que incluía menos de dois minutos de elementos

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retirados de A Laranja Mecânica, foi um digno tributo à longa vida de criatividade musical e literária de Burgess. Nem mesmo na morte, segundo parecia, Burgess (que bastas vezes parodiara na sua ficção o estilo pragmático dos colunistas de direita) se livrava de ser alvo de um jor-nalismo mal-informado e apocalíptico.

Para compreendermos o desenrolar da controvér-sia que acabaria por envolver A Laranja Mecânica nas suas diversas manifestações, teremos de recuar mais de cinquenta anos até 1960, ano em que Anthony Burgess estava a planear uma série de romances sobre futuros imaginários. No plano mais antigo que sobreviveu de

A Laranja Mecânica, Burgess esboçou um livro com cerca

de duzentas páginas, que se dividiria em três secções de 70 páginas e que decorreria no ano 1980. O anti-herói do romance, cujos títulos provisórios incluíam «O Argueiro no Teu Olho» e «Uma Larva na Cereja», era um criminoso chamado Fred Verity. A primeira parte lidaria com os seus crimes e a sua consequente condenação. Na segunda parte, já encarcerado, Fred seria sujeito a uma nova técnica de lavagem cerebral antes de ser libertado da prisão. A ter-ceira parte abordaria a inquietação entre políticos liberais preocupados com a liberdade e igrejas preocupadas com o pecado. No final do romance, Fred, já curado de tal tratamento, regressaria à sua vida criminal.

O outro romance que Burgess planeava nessa época era «Deixai Prosperar a Cópula» (publicado em Outubro de 1962, como The Wanting Seed), outra fábula futurista sobre um futuro sobrepovoado no qual a religião é ile-galizada e a homossexualidade se tornou a norma, pro-movida oficialmente através de medidas governamentais para controlar a taxa de natalidade. No futuro imaginário

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de Burgess, os homens são forçados a entrar para o exército para participar em jogos de guerra. O verdadeiro objec-tivo destes conflitos é transformar os corpos dos mortos em carne enlatada para dar de comer a uma população esfomeada. O que The Wanting Seed e A Laranja Mecânica partilham é uma ideia basilar da política como pêndulo em constante movimento, com os governos de ambos os romances a alternar entre a disciplina autoritária e o laissez‑faire liberal. Apesar dos seus talentos enquanto romancista cómico, e do optimismo cultural que demons-trara durante os anos em que trabalhara como professor, Burgess era no fundo um católico agostiniano, não con-seguindo desenvencilhar-se por completo da crença no pecado original (a propensão da humanidade para fazer o mal e não o bem) que lhe fora inculcada pelos Frades Franciscanos de Manchester, nos seus tempos de liceu. Semelhante fascínio pelo mal poderá ser encontrado nas obras do seu amigo e correligionário Graham Greene, cujo romance Brighton Rock (1938) apresenta uma mistura comparável de decadência social e delinquência adoles-cente.

Antes de enveredar pela escrita dos seus próprios romances distópicos, Burgess passara quase trinta anos a ler outros exemplos do género. No seu estudo crítico The Novel

Now (publicado na forma de panfleto em 1967 e alargado

a livro em 1971), Burgess dedicou um capítulo a utopias e distopias ficcionais. Os escritores literários do século xx, afirmava, tinham rejeitado por inteiro o utopismo socialista de H. G. Wells, que recusava o pecado original e depositava a sua fé no racionalismo científico. Burgess interessava-se muito mais pela tradição anti-utópica de Aldous Huxley, que desafiava a crescente pretensão de que o progresso

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científico arrastaria automaticamente consigo a felicidade, presente em romances especulativos como Admirável

Mundo Novo (1932) e After Many a Summer (1939).

Do mesmo modo, impressionava-o o distopismo político do romance It Can’t Happen Here (1935) de Sinclair Lewis, uma profecia melancólica sobre o advento de uma ditadura de direita nos Estados Unidos, e The Aerodrome (1941), a fábula de Rex Warner sobre o encanto de belos e jovens pilotos com inclinações fascistas em tempos de guerra. Burgess lera Mil Novecentos e Oitenta e Quatro de George Orwell logo após a sua publicação (a página de rosto do seu diário de 1951 tem o título: «De Mão Dada com o Grande Irmão»), embora tendesse a rebaixar o romance de Orwell como sendo a profecia de um moribundo, exces-sivamente pessimista quanto à capacidade de resistência dos trabalhadores aos seus opressores ideológicos. No seu livro híbrido entre o romance e a crítica, 1985, Burgess aventou que Orwell estivera simplesmente a caricaturar tendências que ele próprio testemunhava à sua volta em 1948. «Quiçá todas as visões distópicas sejam um retrato do presente», escreveu Burgess, «com certos aspectos acen-tuados e exagerados por forma a apontar uma conclusão moral e um aviso».

A ficção distópica britânica estava a atravessar um pequeno renascimento no início da década de 1960 e Burgess, que fazia a recensão de novos romances para o Times Literary Supplement e para o Yorkshire Post, encon-trava-se bem posicionado para reparar nesse fenómeno e reagir ao mesmo através da sua própria escrita imagi-nativa. Em 1960, Burgess leu Facial Justice de L. P. Hartley e When the Kissing Had to Stop de Constantine Fitz gibbon. Porém, o romance que, acima de qualquer outro, lhe

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chamou a atenção foi The Unsleep (1961) de Diana e Meir Gillon, uma dupla escritora composta por marido e mulher que colaboraram igualmente numa série de livros de não-ficção política. Na recensão ao livro para o Yorkshire

Post em 6 de Abril de 1961, Burgess escreveu:

[The Unsleep é], muito ao meu gosto, uma obra de FF (futfic ou ficção futurista) que, naquele jeito pós-orwelliano que é no fundo uma reversão a Admi‑

rável Mundo Novo Sem Regresso, não nos aterroriza

com o pesadelo totalitário supremo mas com um sonho de liberalismo a enlouquecer. Na Inglaterra dos Gillon, quiçá não tão distante assim, com uma estabilidade (sem guerra, sem criminalidade) garan-tida através de técnicas psicológicas avançadas, a vida é para se viver. O maior inimigo da vida é o sono; o sono deverá, portanto, ser liquidado. Bastam umas quantas estocadas de Sta-Wake para recuperarmos 30 anos à escuridão.

Porém, as coisas não correm propriamente como seria de esperar. Há demasiado ócio na vigília: des-pontam a criminalidade e a delinquência, e impõe-se a necessidade de haver polícia. Sobrevém então uma epidemia de inconsciência, inicialmente atribuída a um vírus vindo de Marte. A natureza reage vio-lentamente ao Sta-Wake, avisando o homem, tal como já o avisara anteriormente, em relação a um excesso de mau comportamento ou liberalismo.

O outro livro que Burgess leu enquanto se preparava para escrever A Laranja Mecânica foi Regresso ao Admirável

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ao seu anterior romance. Através de Huxley, Burgess ficou a saber das tecnologias emergentes de modificação com-portamental, lavagem cerebral e persuasão química. Não há indícios de que Burgess tivesse lido Science and Human

Behaviour do psicólogo B. F. Skinner, embora tivesse

encontrado um resumo das teorias de Skinner nas páginas do livro de Huxley:

E hoje ainda deparamo-nos com um eminente psicólogo, o Professor B. F. Skinner da Universidade de Harvard, a insistir que «à medida que a explica-ção científica se torna cada vez mais compreensível, o contributo que o próprio indivíduo poderia rei-vindicar parece aproximar-se de zero. As vangloriosas capacidades criativas do ser humano, as suas realiza-ções na arte, na ciência e na moral, a sua faculdade de escolha e o nosso direito a responsabilizá-lo pelas consequências das suas escolhas — nada disto é evi-dente no novo auto-retrato científico».

Tal como Jonathan Meades observara, «Skinner esta ria completamente esquecido hoje em dia se não fosse o ódio que Burgess lhe tinha», expresso em forma fic-cional através da personagem do Professor Balaglas em

The  Clockwork Testament (1974). Na sua época, Skinner

ficou bastante conhecido graças ao seu romance utópico,

Walden Two (1948), no qual imaginava um radioso futuro

tecnocrático de abstémia conformidade, de educação comunitária das crianças (as palavras «mãe» e «pai» per-diam o seu signi ficado), roupas utilitárias e convivência harmoniosa em dormitórios unissexo. As luzes intensas e os cartazes garridos da publicidade viram-se abolidos

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na comunidade ideal de Skinner e a História deixou de ser vista como digna de estudo. Em Science and Human

Behaviour, Skinner rejeita a genética, a cultura, o ambiente

e a liberdade de escolha individual por considerá-los fac-tores insignificantes no que diz respeito à determinação da personalidade humana. Para Burgess, que acreditava na primazia do livre arbítrio (e cuja persona pública era quase totalmente autocriada), esse era o disparate mais repug-nante. Um dos objectivos do seu próprio romance distó-pico era propor um contra-argumento ao determinismo mecanicista de Skinner e dos seus seguidores. O capelão da prisão em A Laranja Mecânica resume a posição de Burgess com grande concisão: «Quando um homem perde a capacidade de escolha, deixa de ser homem.»

Burgess era um linguista dotado, que aprendera malaio a um nível universitário e que fazia traduções de obras literárias escritas em francês, russo e grego antigo. Foi o seu interesse pela língua e literatura russas, e não a política, que o levou a Leninegrado (hoje conhecida como São Petersburgo) para umas férias de trabalho em Junho e Julho de 1961. O seu editor, William Heinemann, enviara-o na esperança de que ele pudesse escrever um livro de viagens sobre a Rússia soviética. Burgess aprendeu sozinho rudimentos de russo após ter adquirido exemplares de Getting Along in Russian, de Mario Pei, Teach Yourself

Russian, de Maximilian Fourman, e The Penguin Russian Course. No entanto, o projecto de não-ficção que estava na

forja rapidamente foi posto de lado assim que uma outra espécie de livro começou a ganhar forma. Antes de partir de Inglaterra, Burgess equacionara escrever o seu romance sobre rufias adolescentes utilizando o calão britânico de inícios da década de 1960, mas receava que a linguagem

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se desactualizasse antes mesmo da publicação do livro. À porta do Metropole Hotel em Leninegrado, Burgess e a sua mulher observaram bandos de jovens violentos e bem vestidos que lembravam ao autor os Teddy Boys da sua pátria inglesa. Burgess afirmou na sua autobiografia que foi nesse instante que decidiu engendrar para o seu romance uma nova língua baseada no russo, à qual ten-cionava chamar «Nadsat» (sendo este o sufixo russo com o significado de «teen»). A localização urbana do romance «poderia ser em qualquer parte», viria ele a escrever, «embora eu a tivesse visualizado como uma espécie de conjugação da minha Manchester natal, de Leninegrado e de Nova Iorque». Para Burgess, a ideia importante era que a juventude ajanotada e fora-da-lei constituía um fenómeno internacional, igualmente visível de ambos os lados da Cortina de Ferro. O agente literário de Burgess, Peter Janson-Smith, remeteu o original dactilografado de A Laranja Mecânica para a Heinemann, em Londres, a 5 de Setembro de 1961, acompanhado de uma carta a explicar que estivera demasiado ocupado para o ler. Maire Lynd, a principal leitora de ficção da Heinemann, escre-veu um relatório prudente no qual observava que «Tudo depende de o leitor conseguir entrar no livro suficiente-mente rápido […]. Depois de entrarmos, torna-se difícil parar. Mas a dificuldade linguística, se bem que divertida de confrontar, é grande. Com sorte, o livro resultará num enorme sucesso, proporcionando aos adolescentes uma nova linguagem. Embora possa vir a ser um fiasco tre-mendo. Não será certamente nada de intermédio.»

James Michie, o editor de Burgess, difundiu uma cir-cular a 5 de Outubro, na qual descrevia o romance como «um dos mais singulares problemas editoriais que se pode

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imaginar». Preocupava-o a forma de promover o livro, cujo género era bastante diferente dos romances cómicos anteriores de Burgess sobre a Malásia e a Inglaterra. Michie estava confiante em que a linguagem inventada não seria demasiado proibitiva para a maior parte dos leitores, embora identificasse o risco de que certos episódios de violência sexual em A Laranja Mecânica pudessem abrir portas a uma acusação ao abrigo da Lei sobre Publicações Obscenas de 1959. «O autor poderá alegar razões artís-ticas», escreveu Michie, «embora um crítico susceptível pudesse acusá-lo convincentemente de se entregar a fan-tasias sádicas». Um dos conselhos de Michie foi que seria possível limitar os hipotéticos danos à reputação de Bur-gess publicando o romance na Peter Davies (uma chancela da Heinemann) com um pseudónimo. É pouco provável que Burgess estivesse a par destes alvoroços de nervosismo entre os seus editores. A 4 de Fevereiro de 1962, Burgess correspondia-se com William Holden, o director de publi-cidade da Heinemann, a propósito de um glossário de Nadsate para ser distribuído pelos comerciais.

Outra dificuldade editorial foi criada pelo próprio Burgess. No final da Terceira Parte, Capítulo 6, o original dactilografado inclui uma nota com a letra de Burgess: «Deveríamos acabar aqui? Segue-se um “epílogo” opcio-nal.» James Michie decidiu incluir o epílogo (referido por vezes como o vigésimo primeiro capítulo) na edição bri-tânica. Quando o romance foi publicado em Nova Iorque pela W. W. Norton em 1963, o editor norte-americano, Eric Swenson, chegou a uma resposta diferente à pergunta editorial de Burgess («Deveríamos acabar aqui?»). Olhando para esses acontecimentos mais de vinte anos depois, Swenson escreveu: «O que recordo é que ele reagiu aos

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meus comentários dizendo-me que eu tinha razão, que ele acrescentara aquele optimista vigésimo primeiro capítulo porque o seu editor britânico pretendia um final feliz. A minha memória atesta igualmente que ele me instou a publicar uma edição norte-americana sem esse último capítulo, aproximando-a, novamente segundo a minha lembrança, da forma como ele originalmente terminara o romance. Assim fizemos.» Burgess viria a arrepender-se de ter permitido que duas versões diferentes do seu romance circulassem em territórios diferentes. Em 1986, escreveu: «As pessoas escreviam-me a esse respeito — aliás, grande parte da minha vida posterior foi passada a fotocopiar declarações de intenção e na frustração da intenção.» No entanto, fica evidente a partir do original dactilogra-fado de 1961 que as intenções de Burgess quanto ao final do seu romance eram ambíguas desde o início.

A Laranja Mecânica foi publicado pela Heinemann

em 14 de Maio de 1962, numa edição de 6000 exempla-res. O livro vendeu mal, apesar dos elogios de críticos como Julian Mitchell na Spectator e de Kingsley Amis no Observer. Uma nota constante do arquivo da editora indica que apenas 3872 exemplares tinham sido vendi-dos até meavendi-dos da década de 1960. O tom de muitas das primeiras recensões era de perplexidade e desagrado rela-tivamente às experiências linguísticas do romance. Num texto publicado no Times Literary Supplement (Londres), John Garrett descrevia A Laranja Mecânica como «uma verborreia viscosa que é o empanturrado resultado da decadência». Robert Taubman, na New Statesman, dizia que o livro implicava «um grande esforço de leitura». Diana Josselson, escrevendo na Kenyon Review, comparou desfavoravelmente A Laranja Mecânica a The Inheritors,

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o romance de William Golding acerca dos Neandertais: «Como nos interessam essas criaturas peludas, como odiamos o seu sucessor, o Homem.» Malcolm Bradbury, cuja recensão, mais animadora, saiu na Punch, afirmava que o romance era uma obra «moderna» no sentido em que lidava com «o nosso desnorte e a nossa indiferença, a nossa violência e a nossa exploração sexual do outro, a nossa revolta e o nosso protesto».

Apesar das reacções contraditórias saídas na imprensa de grande circulação, A Laranja Mecânica começou rapi-damente a granjear um séquito clandestino. William S. Burroughs, o autor de O Festim Nu (publicado em Paris em 1959), assinou uma entusiástica recomenda-ção para a edirecomenda-ção de bolso nos Estados Unidos: «Não conheço nenhum outro escritor que tenha feito com a linguagem o que o Sr. Burgess fez neste caso. O facto de ser para além disso um livro bastante engraçado poderá passar despercebido.» Em 1965, Andy Warhol e Ronald Travel, seu habitual colaborador, fizeram um filme a preto e branco em 16 mm, de orçamento reduzido, Vinyl, vagamente inspirado no romance de Burgess e protago-nizado por Gerard Malanga e Edie Sedgwick. Descrito inclusivamente pelos seus admiradores como 66 minutos de tortura, Vinyl consiste em quatro planos e um diá-logo aparentemente improvisado. O filme foi exibido pela primeira vez na Cinemateca de Nova Iorque a 4 de Junho de 1965 e, segundo o livro de memórias de Warhol,

POPism, foi subsequentemente projectado pelo menos

duas vezes em 1966, formando uma série de imagens de fundo nos concertos ao vivo dos Velvet Underground em Nova Iorque e na Rutgers University. Em Abril de 1966, Christopher Isherwood anotou no seu diário que

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Brian Hutton (que haveria de realizar Desafio das Águias, em 1968) lhe pedira para escrever um argumento baseado em A Laranja Mecânica. Em Maio do ano seguinte, Terry Southern e Michael Cooper, que propuseram chamar Mick Jagger para o papel principal, entregaram o seu argumento preliminar ao British Board of Film Censors, embora essa versão viesse a ser rejeitada por ser «uma dieta monótona de holiganismo praticado por adolescentes […] não apenas indesejável como também perigosa». O próprio Burgess foi convidado a escrever outro argumento em Janeiro de 1969, mas ninguém se convenceu a filmá-lo. Em Janeiro de 1970, Stanley Kubrick correspondeu-se com os produtores executivos Si Litvinoff e Max Raab que, pouco depois, venderiam os direitos cinematográficos à Warner Brothers. Em retrospectiva, é óbvio que a história de Burgess sempre estivera à espera de ser descoberta por um público mais alargado.

A adaptação cinematográfica de Kubrick foi lançada em Nova Iorque, em Dezembro de 1971, e em Londres, em Janeiro de 1972. Kubrick disse que se sentira atraído pelo romance de Burgess por causa do «enredo fantástico, das personagens intensas e da filosofia límpida», e Bur-gess retribuiu o elogio descrevendo o filme como «uma reformulação radical do meu próprio romance». Obrigado pelos constrangimentos do seu veículo visual a abando-nar boa parte da língua inventada, Kubrick esforça-se ao máximo, enquanto realizador, por insinuar a perspectiva da primeira pessoa exibindo uma das cenas de luta em câmara lenta (com banda sonora de Rossini) e filmando a cena da orgia a uma velocidade dez vezes acima da normal. Porém, o realismo do filme torna a violência dos quarenta e cinco minutos inaugurais inevitavelmente mais imediata,

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o que poderá constituir uma das razões por que Kubrick optou por omitir o segundo homicídio na prisão, bem como aumentar a idade das raparigas de dez anos que são abusadas sexualmente por Alex (dando lugar no filme a raparigas maiores de idade).

Torna-se evidente pela correspondência de Burgess com o seu agente que Kubrick estava ciente de ambos os finais possíveis do romance e que a sua decisão de seguir a versão norte-americana abreviada do livro foi alcançada após aturada reflexão. Numa conversa com Michel Ciment em 1980, Kubrick disse: «[O] capítulo adicional retrata a reabilitação de Alex. Porém, quanto a mim, é pouco con-vincente e inconsistente relativamente ao estilo e propósito do livro. […] Nunca pensei seriamente em utilizá-lo.» Embora tenha feito uma apreciação entusiástica ao filme aquando do seu primeiro lançamento em 1972, Burgess mudou de ideias em relação a Kubrick quando o realiza-dor publicou o seu próprio livro ilustrado, com o título

A Laranja Mecânica de Stanley Kubrick. Burgess,

enfure-cido pela ideia de que Kubrick estivesse a apresentar-se como único autor de um artefacto cultural conhecido como A Laranja Mecânica, redigiu uma recensão a este «livro acerca do filme» para o Library Journal (a 1 de Maio de 1973) encarnando Alex e recorrendo a novos elemen-tos de vocabulário Nadsate que não tinham aparecido no romance propriamente dito:

O nosso estário drugo Kubrick, o veco do cino, meus irmãos, tipo desencantou da sua tipo liberali-dade e toda essa cal um cniguinho, que consiste tipo em lonticas verdadeiramente horrorochosas da sua Grande Obra-Prima que levariam qualquer jovem,

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decente e íntegro malchico a rebentar a esmecar pelas iarblas e pelas quiscas. O que tipo esse cnigo é são toneladas de ultraviolência e o bom do entrissai, mas não através de eslovos, tirando os pontos onde os chelovecos govoram, mas através de veches que podemos videar sem ter de pôr o velho Gulíver a espatar de tipo tédio se estivermos numa bíblio sen-tados em cima dos charicos.

E tipo videia-se igualmente que o Grande Objectivo da gisna do tal veco Kubrick ou Zubrick (sendo essa a ímia árabe para uma veche grasna), que tipo começa agora por fim a ganhar corpo e essa cal toda, era ter um Livro. Pois agora já tem um Livro. Um Livro tem ele, ó malencos irmãos, deveras tem. Olaré. Era um livro que ele desejava ter tipo feito, e conseguiu, esse Kubrick ou Zubrick, o Faz-Livros.

Porém, irmãos, o que me põe a esmecar como um bezumo é que esse tipo Livro há-de correr às tolchocadas para o meio das trevas com o livro que tipo existia anteriormente, aquele do F. Alexander ou do Sturgess ou ímia que o valha, pois quem haveria de querer eslovos se pudesse videar a gisna real a glazo nago?

De maneira que é assim. Olaré. E verdadeira-mente horrorochoso. E toneladas de diengue para os carmões do Zubrick. E para este vosso malenco drugo nadinha. Portanto, groncos chumes de música labial brrrrrr para todos vós. E essa cal toda.

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Outra questão a ter em conta acerca do filme de Kubrick é o facto de negligenciar a proeminência das drogas no seio da subcultura do romance. No argumento inédito de Burgess, que Kubrick rejeitara, o roupeiro de Alex encerra vários horrores, entre os quais o crânio de uma criança e seringas. No romance, imediatamente antes de violar as meninas, Alex injecta-se com uma droga para aumentar a sua potência. E no Lactobar Korova (sendo «korova» a palavra russa para «vaca»), onde Alex e os seus drugos se reúnem para planear os seus crimes, ao leite adiciona-se um sortido de drogas, tais como «sintesmeque» (mescalina) e «facas» (anfetaminas).

Dizia-se por vezes que Burgess, que na década de 1950 fumara frequentemente haxixe e ópio na Malásia, foi um dos pioneiros do movimento em torno das drogas. A reputação de que gozava nesta área teria resultado exclu-sivamente da versão em romance de A Laranja Mecânica, uma vez que as drogas estão praticamente ausentes no filme de Kubrick. Quem quer que tivesse lido o romance com atenção em 1962, ou pouco depois disso, teria sido capaz de estabelecer as ligações entre a cultura, a moda e a música dos bandos de adolescentes e o consumo des-contraído das drogas, tendo estes elementos sido deter-minantes para a difusão da reputação contra-cultural do romance. Em diversos sentidos, o livro parece ter sido calculado para apelar tanto à malta das flores alucinogé-nias do final da década de 1960 como às subculturas mais agressivas dos skinheads e dos punks que se seguiram ao longo da década de 1970. Burgess, que vociferava o ódio que nutria pelos hippies («labregos barbudos») e pela música

pop, ficou horrorizado com muitas das inflexões culturais

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Seria difícil sobrestimar a importância de A Laranja

Mecânica em termos da influência que teve na cultura

popular. A um nível simples, poderíamos mencionar uma série de bandas cujos nomes foram directamente retira-dos do romance: Heaven 17, Moloko, The Devotchkas e Campag Velocet são apenas os exemplos mais óbvios. Julian Cope, o líder da banda The Teardrop Explodes, de Liverpool, recorda na sua autobiografia que decidiu aprender russo após ter lido o romance de Burgess quando andava na escola. O baterista dos Sex Pistols gabava-se de só ter lido dois livros: uma biografia dos gémeos Kray e A Laranja Mecânica. Os Rolling Stones redigiram os encartes de um dos seus álbuns em Nadsate. Os Blur vestiram-se de drugos para o teledisco da sua canção «The Universal». O décor do Lactobar Korova de Kubrick encontra-se replicado na cena da discoteca na versão cine-matográfica de Trainspotting de Danny Boyle. Até Kylie Minogue envergou um fato-macaco branco, um chapéu de coco preto e pestanas falsas ao longo da digressão do seu álbum Fever, em 2002. Para lá de tudo isto, existe uma sensação permanente de que o romance de Burgess franqueou novas possibilidades linguísticas para subse-quentes gerações de romancistas britânicos. Martin Amis, J. G. Ballard, Will Self, William Boyd, A. S. Byatt e Blake Morrison contam-se entre os escritores literários mais con-sagrados que reconheceram essa influência na sua obra. Burgess, que foi um prolífico compositor amador a par da sua obra enquanto linguista e romancista, criou duas adaptações musicais de A Laranja Mecânica para o palco em 1986 e 1990. Uma delas (com o título futurista

A Laranja Mecânica 2004) foi interpretada pela Royal

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em 1990. Na ocasião, a música ficou a cargo de Bono e The Edge, da banda irlandesa U2. Ao fazer a crítica a esta produção «insipidamente inofensiva» da RSC, com encenação de Ron Daniels, John Peter escreveu no

Sunday Times de Londres: «A violência é uma mímica

óbvia: proporciona uma sensação de histeria balética em vez de terror. A representação é tosca, custosa e impessoal, embora apenas em parte por o argumento não ter espaço para algo tão minucioso como uma personagem. Alex (Phil Daniels) é repugnante mas nunca assustador, e vai narrando os acontecimentos à medida que vai avançando, o que faz com que a história nos chegue na forma de uma anedota bizarra. Sei que o romance também é uma nar-rativa na primeira pessoa; existe, porém, uma diferença vital entre o drama implícito no texto impresso e o drama escancarado no palco ao vivo.» A versão teatral de Burgess teve várias reposições subsequentes e triunfantes — mais recentemente em Londres, Edimburgo, Alemanha e Japão — embora no momento em que escrevo (Primavera de 2012) apenas tenha havido uma execução integral da sua música para A Laranja Mecânica.

Na cena final da versão teatral de Burgess, entra um homem «barbudo como Stanley Kubrick» a tocar Singin’

In the Rain em trompete. Os restantes actores

escorra-çam-no do palco. A determinação de Burgess no sentido de reaver o domínio sobre o seu próprio texto torna-se prontamente evidente nesta piada musical. Porém, talvez essa sua ansiedade quanto à autoria tivesse sido despropo-sitada. Entre a geração mais jovem de leitores que atingiu a maturidade após a sua morte em 1993, poucas dúvidas restam quanto à versão de A Laranja Mecânica que mais provavelmente perdurará.

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Nota à edição restaurada

Os leitores desta edição comemorativa do quinqua-gésimo aniversário de A Laranja Mecânica repararão que, entre outros acrescentos, ela inclui o Prólogo e o Epílogo escritos por Burgess na década de 1980. Estes paratextos nunca antes foram publicados a par do texto do romance. Ambos foram escritos por volta da altura em que Burgess estava a criar a primeira das suas adaptações teatrais, publi-cada como A Laranja Mecânica: Uma Peça com Música em 1987, ilustrando algumas das formas como ele revisitou e entrou em diálogo com o seu próprio romance. Repus a música do salmo dos prisioneiros na Segunda Parte, Capí-tulo 1, tal como surge no original dactilografado. A razão provável para a sua omissão nas edições da Heinemann de 1962 e da Norton de 1963 será que o custo de reproduzir música seria muito elevado antes do advento da litografia barata em offset.

O original dactilografado de 1961 serve de base a este texto restaurado, tendo eu comparado cada linha com os textos publicados pela Heinemann e pela Norton. O meu princípio foi incluir o máximo possível de Nadsate, o que por vezes implicou repor palavras e passos que foram eliminados no original. Algumas das correcções feitas à mão por Burgess no original de 1961 são ambíguas, embora em geral eu tenha preferido uma palavra «perdida» em Nadsate (como «bugato» com o significado de «rico», na página 119) ao equivalente inglês tal como aparecia nas primeiras edições. O disco lançado em 1973 pela Caedmon, Anthony Burgess Reads A Clockwork Orange, difere nalguns pontos dos textos impressos, e preferi o «boor joyce» [« burgases»] do LP ao «burguês» tal como

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aparece no original dactilografado. Burgess nem sempre foi cuidadoso a dactilografar ou a rever provas, tendo-se mostrado inconsistente na grafia de certas palavras. Esfor-cei-me ao máximo por conferir ordem ao texto, embora tenha mantido presente aquilo que Burgess escreveu a James Michie, numa carta de 25 de Fevereiro de 1962, a propósito da ortografia em Nadsate: «Devemos lembrar que é uma língua falada que está sujeita a ser um pouco vaga ortograficamente. Penso, no entanto, que já está correctamente grafada.»

A edição da Norton de 1963 e as edições subsequentes da Ballantine incluíam um posfácio escrito pelo crítico literário Stanley Edgar Hyman, bem como um glossário de termos em Nadsate1.

Um dos prazeres de incluir notas ao romance de Burgess é que a amplitude das suas alusões se tornou pela primeira vez completamente evidente. Aqueles que estão a par dos escritos críticos de Burgess sobre Shakespeare e T. S. Eliot não se surpreenderão ao encontrar no texto citações desses autores. Porém, nunca ninguém abordou anteriormente em que medida Burgess, que era um fasci-nado pelas esquinas sombrias do calão, se sentia em dívida para com o Dictionary of Slang and Unconventional English de Eric Partridge. Os dois exemplares que Burgess possuía dessa obra, que fazem actualmente parte da colecção de livros da International Anthony Burgess Foundation, foram lidos tão abundantemente que se encontram prati-camente desintegrados. As citações embutidas dos poemas e peças de Gerard Manley Hopkins nunca tinham sido

1 A presente edição inclui um glossário feito pelo tradutor, com os termos do

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