Praia de Botafogo, 480 – 2º andar - Rio de Janeiro – RJ CEP 22250-040 Tel.: (21) 9317-5380
Cidade, água e poder:
o Aqueduto da Carioca e o chafariz do Largo do Paço
Anita Correia Lima de Almeidai
Em A cidade na História (1961), Lewis Munford escreveu: “Quando se pensa na antiga cidade de Roma, pensa-se imediatamente em seu império: Roma com seus símbolos de poder visível, seus aquedutos, seus viadutos e suas vias pavimentadas, cortando sinuosamente colinas e prados, saltando sobre rios e pântanos, movendo-se em formação ininterrupta, como uma vitoriosa legião romana”ii. Assim Munford apontava para o aqueduto como símbolo do poder, e mais especificamente, do poder do império. Seu significado ultrapassava largamente, portanto, sua função elementar de abastecimento de água para as cidades. Nas áreas periféricas da metrópole, “somente um vislumbre ocasional de planejamento urbano, um templo, uma fonte, um pórtico e um jardim, despertaria um eco nobre do centro da cidade”iii. Aqui a fonte é sinônimo de área urbanizada.iv
A cidade do Rio de Janeiro teve boa parte de sua história voltada para a conquista das áreas inundadas. Cresceu dominando mangues e lagoas e, mais tarde, aterrando zonas de mar. Mas a história da cidade também foi a de uma luta árdua pelo abastecimento de água. Em 1723, finalmente, a canalização do Rio Carioca, com a construção do aqueduto, levou a água desde a encosta do Corcovado até o primeiro chafariz, instalado no atual Largo da Carioca. Em 1750, durante o governo de Gomes Freire de Andrade, ficaram prontos os Arcos de pedra e cal, hoje conhecidos como Arcos da Lapav.
No governo do vice-rei Luís de Vasconcelos e Sousa seriam realizadas obras igualmente destinadas a deixarem uma marca duradoura na cidade. E a estas remodelações estão ligadas, de alguma forma, os famosos painéis ovais do Museu Histórico Nacional, atribuídos a Leandro Joaquim. Eles compõem um conjunto muito precioso, entre as raras imagens da cidade nos finais do século XVIII. A idéia aqui é olhar para duas dessas telas: Vista da Lagoa do Boqueirão com os Arcos e Revista Militar no Largo do Paço. São elementos importantes, na primeira, o aqueduto, e na segunda, o chafariz do Largo do Paço.
Em estudo detalhado, Gilberto Ferrezvi considera que as seis telas existentes hoje fariam parte das oito pintadas para decorar um dos pavilhões do Passeio Público. E julga que podemos considerar que nelas o artista “teve ordens para descrever alguns acontecimentos marcantes da vida carioca
‘Usos do Passado’ — XII Encontro Regional de História ANPUH-RJ 2006: 2 durante aquele período; tipicamente o que hoje chamaríamos de propaganda do governo”vii. Os pavilhões do Passeio Público ficavam no terraço construído por cima da muralha que barrava o mar. John Barrow, em 1792, passando no Rio de Janeiro e descrevendo as telas que decoravam os pavilhões do Passeio, observou que “são todas dedicadas a cenas do porto”viii, ou seja, nelas, a cidade é retratada a partir do mar.
John Luccock, escrevendo sobre uma das telas que decoravam o pavilhão do Passeio, menciona “os arcos do aqueduto por baixo dos quais um rio considerável flui”. Em seguida diz: “um boi está pintado atravessando-o e mostra que o vau dava água pelo joelho”, e acrescenta que “tal, informaram-me, fora o aspecto do local por volta de 1750 coberto d’água então; e agora transformado neste jardim e várias boas ruas”ix. Nessa Vista da Lagoa do Boqueirão com os Arcos, a lagoa está tomada por cenas ligadas ao mundo dos negros, há escravos que tangem animais, escravos que carregam homens brancos, provavelmente para que pudessem atravessar sem molhar os pés, crianças brancas que, imagina-se, ainda estão sob os cuidados de suas amas escravas, negras que carregam fardos, ou até um negro, em primeiro plano, que toca um instrumento. A irregularidade da lagoa, o espaço que precisou ser aterrado, contrasta com a regularidade dos Arcos e das casas.
Vista da Lagoa do Boqueirão com os Arcos
Tela atribuída a Leandro Joaquim. Museu Histórico Nacional.
Aqui, o aqueduto é uma vitória do homem sobre a natureza, do construído, do meio urbanizado, mas também é uma vitória do poder instituído, do governador Gomes Freire, e do vice-rei Luís de Vasconcelos, que dedicou esforços para a melhoria do sistema do Carioca, para o aterramento da lagoa e para a construção do Passeio Público. A inauguração do Chafariz das Marrecas, em 1785, marcou o coroamento da remodelação dessa área da cidade, com a criação do Passeio Público e a abertura da Rua das Belas-Noites (atual Rua das Marrecas). No chafariz, foi gravada a seguinte inscrição:
“Durante o reinado de D. Maria I e D. Pedro III/Secou-se um lago outrora pestífero/E converteu-se em forma de passeio/Repeliram-se as águas do mar por ingente muralha/Aduziram-se fontes em jorrantes bronzes [...]. Ao vice-rei Luiz de Vasconcellos de Souza, sob cujos auspícios foi tudo isso realizado/O povo do Rio de Janeiro, em sinal de grato ânimo/No dia 31 de
julho de 1785.”x
Ficavam assim contidas as águas do mar, pela muralha do Passeio, e as águas do “lago pestífero”, saneadas pelo aterro.
Num curioso livro de emblemas dessa época, conservado na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, o Príncipe Perfeito (1790), oferecido pelo bacharel Francisco Antônio de Novais Santos ao príncipe D. João, aparecem os emblemas do jurista espanhol do século XVII, Don Juan de Solórzano Pereira, reproduzidos e transformados, com o texto original em latim parafraseado em sonetos portugueses. No Emblema “Com prêmios tudo assim tão bem floresce” vemos uma fonte representando a virtude da magnanimidade, indispensável aos reisxi.
Francisco António de Novaes Campos.
Príncipe Perfeito (1790). Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro.
Sobre a tela Revista Militar no Largo do Paço, Gilberto Ferrez escreveu: “a cena poderia ser uma revista militar inaugurando as grandes obras de remodelação total da praça, com a construção do cais, do novo chafariz e calçamento parcial do largo, executadas durante o governo de Luís de Vasconcelos e terminadas em 1789”, ou seria uma revista militar para comemorar o aniversário de D. Maria I, ou as duas coisas juntas. Segundo Ferrez, o que fortalece a hipótese de que fosse uma comemoração pelas obras recentes é o fato de que o chafariz aparece “festivamente decorado com bandeiras de diversas cores”xii.
No centro da imagem, o chafariz, enfeitado com bandeiras coloridas, que dialogam com as cores dos uniformes militares, dos telhados e até da cúpula azul da torre do Carmo, organiza de tal
‘Usos do Passado’ — XII Encontro Regional de História ANPUH-RJ 2006: 4 maneira a tela, que José Mariano Filho comentou: “Nesse documento mentiroso, o chafariz aparece locado no eixo da praça [...]”xiii.