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TERREIRO BATE FOLHA: A SALVAGUARDA DO PATRIMÔNIO NEGRO DO CANDOMBLÉ NA BAHIA

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Academic year: 2021

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TERREIRO BATE FOLHA: A SALVAGUARDA DO PATRIMÔNIO NEGRO DO CANDOMBLÉ NA BAHIA

Carla Maria Ferreira Nogueira Universidade Federal da Bahia E-mail: carlmarianogueira@gmail.com Resumo: Discutir a salvaguarda do patrimônio na perspectiva interna, de compreensão da vida da comunidade de terreiro, faz parte de um recorte vinculado à pesquisa de doutorado que pensa as relações entre material e imaterial no processo de preservação do legado negroafricano no candomblé Congo-Angola do Terreiro Bate Folha. O contexto simbólico e religioso do candomblé nos mostra importantes caminhos de proteção, cuidado e manutenção de representações culturais negras que ampliam o debate em torno das políticas de patrimônio no Brasil, trazendo possibilidades de propostas integradoras de desenvolvimento de práticas disruptivas aos modelos vigentes de pensamento. Deste modo, a experiência de pesquisa no Bate Folha e a vivência enquanto filha da Casa, auxiliam a pensar nos desafios de superação da gestão de políticas pautadas na uniformidade institucional em detrimento da heterogeneidade nacional. Por meio da metodologia participativa de proposição interdisciplinar valoriza a memória, o pertencimento e as contribuições do terreiro, enquanto patrimônio cultural brasileiro, como espaço social e de política de identidade, sobretudo, nas potencialidades demarcadas na consolidação da cosmologia do sistema religioso afro-brasileiro.

O presente trabalho parte de alguns pressupostos para a discussão acerca do patrimônio negro no Brasil. Primeiro, por se tratar de um tema abrangente de suma importância para a preservação da memória, representações culturais, lugares e bens imóveis e móveis, a abordagem pretende tratar de um recorte acerca deste assunto, mas que pensa o patrimônio a partir da experiência de terreiro de candomblé, mais especificamente, o Terreiro Bate Folha que faz parte de um trabalho doutoral de pesquisa e que por experiência vivenciada, propõe a dupla relação de pesquisadora e de filha da Casa.

Pelo tradicional conceito de patrimônio cultural inscrito no Decreto-lei 25 de 1937, seu significado está vinculado ao interesse público de valores muito bem especificados a quem interessaria e somente estavam protegidos bens cuja relação estivesse ligada a memoráveis acontecimentos da história brasileira.

Art. 1º Constitue o patrimônio histórico e artístico nacional o conjunto dos bens móveis e imóveis existentes no país e cuja conservação seja de interêsse público, quer por sua vinculação a fatos memoráveis da história do Brasil, quer por seu excepcional valor arqueológico ou etnográfico, bibliográfico ou artístico (BRASIL, 1937).

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Compreendendo o patrimônio como esse bem que mereça e só deve ser considerado por meio de seu apontamento em registro sob a classificação em quatro categorias previamente demarcadas, sua valoração parte de uma padronização estabelecida por lei e que representa, segundo decreto, uma normativa nacional. Conforme primeiro parágrafo da citada lei “Os bens a que se refere o presente artigo só serão considerados parte integrante do patrimônio histórico o artístico nacional, depois de inscritos separada ou agrupadamente num dos quatro Livros do Tombo, de que trata o art. 4º desta lei” (BRASIL, 1937).

Segue-se, desse modo, uma tradição em inventariar e inscrever em arquivos que nos remete à herança colonial, de Portugal, que tem na Torre do Tombo, uma instituição de guarda de documentos e registros dos velhos tempos de reinado. Sob a expressão de tombamento e livro de tombo se inaugura a forma de acautelamento do patrimônio cultural do Brasil. Forma que deriva do direito português no sentido de registrar, inventariar e inscrever.

Desse percurso legal de estabelecimento de formas de proteção, muito bem formatadas aos propósitos que atendiam a expectativa de uma elite, como imaginar a inscrição de monumentos de origem negroafricana, em um contexto socioeconômico e cultural de um país, como o Brasil, em que o debate racial e de discriminação foi suplantado, durante muito tempo, pela ideia da democracia racial e de convivência harmônica de todos, com plena aglutinação dos elementos culturais negros? Em seu texto, “Monumentos Negros: uma experiência”, o professor Ordep Serra ressalta a problemática das políticas públicas mal estudadas de que têm sido alvo os grupos de culto e os templos de candomblé, que em grande período, para o Estado brasileiro, era essencialmente “caso de polícia” (SERRA, 2005, p. 169).

De modo geral, a institucionalização das políticas públicas de cultura no Brasil, mostra-nos que o conceito de patrimônio cultural, ao longo da história, esteve ligado ao pensamento eurocêntrico e aos seus valores artísticos e estéticos, sendo que no processo de consolidação da identidade cultural nacional brasileira, foram excluídas de reconhecimento e valorização, a identidade afro. Como vislumbrar em tempos de

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repressão policial, desqualificação da produção artístico-literária e referenciais negros que se inserissem nas seguintes especificações:

Art. 4º O Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional possuirá quatro Livros do Tombo, nos quais serão inscritas as obras a que se refere o art. 1º desta lei, a saber:

1) no Livro do Tombo Arqueológico, Etnográfico e Paisagístico, as coisas pertencentes às categorias de arte arqueológica, etnográfica, ameríndia e popular, e bem assim as mencionadas no § 2º do citado art. 1º.

2) no Livro do Tombo Histórico, as coisas de interêsse histórico e as obras de arte histórica;

3) no Livro do Tombo das Belas Artes, as coisas de arte erudita, nacional ou estrangeira;

4) no Livro do Tombo das Artes Aplicadas, as obras que se incluírem na categoria das artes aplicadas, nacionais ou estrangeiras.

§ 1º Cada um dos Livros do Tombo poderá ter vários volumes.

§ 2º Os bens, que se inclúem nas categorias enumeradas nas alíneas 1, 2, 3 e 4 do presente artigo, serão definidos e especificados no regulamento que for expedido para execução da presente lei.

Art. 5º O tombamento dos bens pertencentes à União, aos Estados e aos Municípios se fará de ofício, por ordem do diretor do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, mas deverá ser notificado à entidade a quem pertencer, ou sob cuja guarda estiver a coisa tombada, afim de produzir os necessários efeitos (Brasil, 1937)

Não é tão complexo ou nada surpreendente perceber como para o poder público as referências e bens simbólicos de origem negra no Brasil não ofereciam corpus para valoração enquanto bem de amplitude nacional, ou sequer, em níveis estadual e municipal. Assim, os princípios discriminatórios são produzidos e difundidos de maneira vigorosa, promovendo a naturalização do hegemônico e eliminando o debate sobre a equidade, pois “as instituições são a materialização das determinações formais na vida social e derivam das relações de poder, conflitos e disputas entre os grupos que desejam admitir o domínio da instituição” (ALMEIDA, 2018, p. 30). Nesse aspecto, surge o questionamento para quem e para quê patrimônio, tão quanto os valores atrelados a ele. Como nos aponta Ulpiano Meneses “atuar no campo do patrimônio cultural é se defrontar, antes de mais nada, com a problemática dos valores, que ecoa em qualquer esfera do campo” (2012, p. 32).

Essa parte preliminar, que não se proponhe a ser o cerne da questão, mas se anuncia como introdução para a importância aos tensionamentos constitucionais de abrangência territorial, política, religiosa e social, a fim de elucidar um desses

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enfrentamentos quanto ao descaso do Estado brasileiro à significação da simbologia referencial da cultura negra, o exemplo do tombamento do Ilê Axé Iya Nassô, Terreiro da Casa Branca, é uma esclarecedora demonstração da acirrada compressão de forças.

Quando eu era membro do Conselho do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, tive a oportunidade e o privilégio de ser o relator, em 1984, do tombamento do terreiro de candomblé Casa Branca, em Salvador, Bahia. Era a primeira vez que a tradição afro-brasileira obtinha o reconhecimento oficial do Estado Nacional (VELHO, 2006, p. 237).

Assegurados 47 anos depois da publicação do decreto de organização e proteção do patrimônio histórico e artístico nacional, deparamo-nos com o emblemático episódio na história da narrativa do patrimônio cultural em que ocorreram questionamentos ao primeiro terreiro tombado. “O Conselho encontrava-se bastante dividido. Vários de seus membros consideravam desproposital e equivocado tombar um pedaço de terra desprovido de construções que justificassem, por sua monumentalidade ou valor artístico” (VELHO, 2006, p. 237). Importantes considerações são trazidas por professor Gilberto Velho, em seu texto Patrimônio, Negociação e Conflito, que nos apresenta desde seu título as estratégias, os mecanismos e confrontações ao padrão estabelecido. O Tombamento do Terreiro da Casa Branca é elucidativo para sustentar o debate proposto por esse artigo e por representar a abertura de caminho para demais tombamentos de terreiros pelo Brasil, dos quais, a maior parte está localizada na Bahia.

No passado, de maneira direta e institucional, as comunidades tradicionais de terreiro eram perseguidas pelo aparato policial, sob a observância do Estado, paradoxalmente, no presente, esse mesmo Estado é o responsável pela criação das políticas públicas voltadas para a proteção, manutenção e continuidade tanto do patrimônio material quanto imaterial, que se dá pelas ações de tombamento e registro realizadas em instâncias estaduais, municipais e federal pelo Instituto do Patrimônio Histórico Artístico Nacional/IPHAN.

No caso do Terreiro Bate Folha, o tombamento ocorreu em 2003, sendo o candomblé de nação Congo-Angola do Brasil a ser reconhecido como patrimônio pelo Estado. Reconhecimento que se afasta da noção de patrimônio que trago como premissa fundamental para envolvimento, aceitação e pertencimento da comunidade. De dentro

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para fora, de valorização e compreensão dos partícipes que habitam e vivenciam as aprendizagens e desfrutam do bem. Exercício que pôde ser revivido no centenário do Terreiro Bate Folha, em 2016, período das celebrações ocorridas durante todo o ano, de janeiro a dezembro em reverência aos Nkisis que protegem o solo sagrado e dão sentido à vida dos filhos e filhas, frequentadores/as e circunvizinhança.

Inscrito na historiografia brasileira como importante amplificador da cultura negroafricana, de origem Congo-Angola e de localização em bairro periférico de Salvador, na Mata Escura, a fundação oficialmente do Bate Folha é datada de 1916, existindo relatos da memória coletiva da comunidade de uma existência anterior, no entanto, segue-se o registro confirmado. Período que auxilia na compreensão de um interessante momento da história de grandes terreiros na Bahia e que estabelece marcos para a dinâmica da cidade, juntamente com a instalação de terreiros espalhados em outros bairros, também na periferia da capital. Outro registro significativo da organização do Bate Folha e que deve compor a conformação de outro terreiros, é o senso de co-participação e responsabilidade com o bem religioso que o candomblé representa. Após quatro anos de sua fundação, pelo nosso Tata, Manoel Bernardino da Paixão, foi instituída a representação civil Sociedade Beneficente Santa Bárbara, organização sem fins lucrativos e/ou econômicos, com autonomia administrativa e financeira. Datada de 1920, a sua composição é de filhos e filhas da Casa com definições e regulamentos sobre as especificidades desempenhadas.

O fundador do Terreiro Bate Folha, Senhor Manoel Bernardino da Paixão é considerado uma das figuras representativas do candomblé da Bahia e um dos nomes mais importantes, internacionalmente falando, quando se referencia o candomblé Congo-Angola. O pesquisador Erivaldo Sales Nunes, em sua tese de doutorado sobre a Contribuição para a História do Candomblé Congo-Angola na Bahia: O Terreiro de Bernardino do Bate Folha (1916-1946), primeiro pesquisador a se deter sobre os aspectos de fundação do Bate Folha e dos dois primeiros pais de santo do terreiro, destaca que a década de 1930 foi um período profícuo para o debate acerca da herança negroafricana na Bahia e aponta que mesmo com a preeminência Nagô daquele período, o terreiro Bate

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Folha permaneceu no cenário afro-religioso com o culto às divindades do panteão de origem Congo-Angola (NUNES, 2017).

Relembrando o rito oficial, em 2003, o processo do Bate Folha foi registrado em dois livros de tombos, o Livro Histórico nº de inscrição 574; v.2; f. 083-85; data 03/02/2005 e no Livro Arq./Etn./Psg. Nº de inscrição 133; v.2; f. 036-37; data 03/02/2005, o processo sob nº 1486-T-01, porém, a oficialização das inscrições somente foi registrada dois anos depois. Temporalidade que remete ao período de tramitação dos processos e sua efetivação. A solicitação foi realizada a pedido da renomada e saudosa Mãe de Santo Estela de Oxossi, do Terreiro Ilê Axé Opô Afonjá, conhecido e tradicional terreiro de Salvador, da nação Ketu, na ocasião do tombamento do referido terreiro. Sua solicitação estava pautada na emergência de tombamento de um terreiro de origem Congo-Angola, de importante representação dos povos de origem Bantu e com a existência de terreiros Ketu já tombados, o Bate Folha deveria ter esse reconhecimento.

O processo do Terreiro Bate Folha, montado entre ofícios do próprio IPHAN, o pedido de tombamento realizado oficialmente por Mãe Estela de Oxossi, além das atas de reuniões da comunidade do Terreiro Bate Folha, ainda obteve registros da Sociedade Beneficente Santa Bárbara, assim como as documentações comprobatórias da posse das terras definidas como espaço circunscrito à propriedade do Bate Folha e o laudo antropológico elaborado pelo antropólogo Ordep Serra que colheu informações de membros da comunidade.

Além da contribuição religiosa e cultural, o terreiro também possui relevância social para a comunidade, pois, em sua história inicial há o registro da primeira instituição de ensino fundamental no espaço do terreiro, contribuindo para a formação escolar inicial de muitas crianças. Ainda para a manutenção do culto afro-brasileiro e nesse contexto de resistência e agrupamento, esta mesma área consistia em uma antiga reserva de quilombo cujo legado é confirmado em seu valor identitário e instalação de um terreiro anterior. Nos terreiros, as famílias de santo criaram uma rede de proteção essencial para a preservação dos valores e tradições, costumes e fé, além de possibilitar a reconstrução de identidades e a manutenção da cultura, filosofia e visão de mundo africana, sem as quais

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o negro não teria sobrevivido à escravidão. Assim como os quilombos, são espaços de resistência e de recuperação dos vínculos de aproximação e relação mútua.

E como patrimônio representa a salvaguarda da memória, da cosmovisão e da natureza, o Bate Folha é um dos maiores terreiros em extensão territorial da capital e está circundado pelo crescimento desordenado e irregular das áreas urbanas. Compartilha dos desafios das regiões urbanas com pouca ou nenhuma infraestrutura, chamando a atenção para a melhoria das condições fundamentais de vida, mas, mesmo com todo o processo de modernização tardia e desordenada, protege uma significativa reserva, remanescente de mata atlântica, pois, a mata, às folhas, árvores e verde, são essência à religiosidade afro-brasileira, como bem pontua a arquiteta e urbanista Márcia Sant’Anna.

No terreiro de candomblé, a área do mato é indispensável à existência do culto, não só porque contém árvores consideradas sagradas, plantas e ervas utilizadas nos rituais, mas porque simboliza a natureza – origem e destino de todas as coisas. Todos os terreiros mais antigos possuem, ou um dia possuíram, uma grande área de mato. Com o crescimento da cidade, contudo, e, e, decorrência de a maioria das associações de candomblé não ter a propriedade dos terrenos que ocupam, muitas dessas áreas verdes foram invadidas ou duramente mutiladas. No entanto, terreiros de nação Keto-Nagô, como o Axó Opô Afonjá, e de nação Congo-Angola, como o Bate Folha (Manso Bandunquenqué), possuem matas preservadas, ainda que constantemente ameaçadas por invasões (SANT’ANNA, 2015, p. 08).

Representantes do legado negroafricano no Brasil, os terreiros de candomblé possuem grande repertório de registros históricos de luta e resistência do povo negro. Dentro dessas comunidades é comumente percebida através da transmissão oral, a reelaboração de narrativas que estabelecem ligações entre o passado e o presente no constructo de uma memória coletiva, coparticipativa de conhecimentos, experiências e modo de vida. Neste sentido, pensamos como o terreiro de candomblé é representativo nos enfrentamentos e manutenção dos ritos, censo comunitário e patrimônio material e imaterial. As comunidades alocam suas relações comunitárias enquanto aspecto central em sua forma de organização social no significado que reside o humano na cosmovisão africana como bem define os povos Bantu, através do princípio Ntu, que diz: “Eu sou

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porque você me reconhece”. A existência de cada um só faz sentido no reconhecimento do coletivo.

Deste modo e com o propósito de revisão das formas de acionamento do Estado para a preservação e ampliação dos bens que compõem o patrimônio cultural negroafricano, menciona-se aqui as ações desenvolvidas entre os terreiros tombados da Bahia, a Universidade Federal da Bahia (UFBA), o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) e o Instituto do Patrimônio Artístico e Cultural da Bahia (IPAC) com o intuito de estabelecer pauta de diálogo e mudanças estruturais na condução dos processos de salvaguarda dos terreiros de candomblé.

A partir das demandas apresentadas pelos terreiros Ilê Axé Iya Nassô (Casa Branca), Ilê Axé Opô Afonjá, Ilê Iyá Omin Axé Iyá Massê (Gantois), Manso Banduquenqué (Bate Folha), Ilé Axé Mariolajé (Alaketu), Ilé Axé Oxumarê, Serja Hunde (Roça do Ventura), Ilê Babá Agboulá e Tumba Junsara, à época, em processo de tombamento, surge o grupo de trabalho, criado em 2015, com integrantes/lideranças dos terreiros, da universidade e técnicos do Iphan e IPAC, na integração dessa iniciativa.

Promovido pelo Centro Interdisciplinar de Desenvolvimento e Gestão Social (CIAGS) da Escola de Administração da UFBA e o IPHAN, o curso de extensão Gestão e Salvaguarda do Patrimônio Cultural dos Terreiros Tombados, sob coordenação da Profª. Drª Tânia Fischer e Prof. Dr. André Luis Nascimento dos Santos, foi realizado no período de julho a dezembro de 2015 e gerou bons frutos de formação e capacitação de atores sociais no campo da religiosidade afro-brasileira e como multiplicadores da defesa do patrimônio cultural negro. Inclusive nas reivindicações de políticas públicas e não apenas política de edital e na criação de diálogo com o Estado, universidade, instituições públicas e privadas. O debate acerca da salvaguarda compartilhada do patrimônio cultural, teve como eixos de formação as noções de territorialidade, gestão do patrimônio, sustentabilidade e a construção de planos de preservação: Educação e Salvaguarda, por um habitar os caminhos da ancestralidade - Vanda Machado; Políticas de Preservação do Patrimônio Cultural - Márcia Sant’anna; Ocupação Territorial dos Terreiros, aspectos da questão fundiária de terreiros - Maurício Azevedo; Velhos e novos perfis de liderança - João Tude; Memórias da contestação Política do Povo de Santo: Da resistência à

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contestação política, a construção dos diálogos com o Estado e com a Sociedade Civil – Júlio Braga; Construção do Plano de Salvaguarda. Das temáticas e recortes conceituais, possibilitou-se, assim, a aplicação dos saberes levados àquele espaço com a elaboração do Plano de Salvaguarda pelo próprio terreiro, a partir do olhar de dentro.

Ao seguir a lógica que rege a comunidade do terreiro Bate Folha, a qual se confunde com demais comunidades tradicionais, retoma-se aqui um marco recente da Casa em se pôde exercitar a noção de patrimônio partilhada, com o registro de narrativas dos membros da Casa, em que o primeiro registro foi feito com Dona Olga Conceição Cruz, mais conhecida como Nengua Ganguacesse, nome recebido após seu processo de iniciação no candomblé, o qual ocorreu por volta de 1949, três anos posteriores ao falecimento do fundador do terreiro, Seu Manoel Bernardino da Paixão.

Ao enfatizar o caráter coletivo da memória, destacamos que o sentimento de pertença a uma comunidade ou grupo não implica na presença atual de seus componentes. As influências permanecem vivas e orientam perspectivas memorialistas sobre o passado, tornando-o mais vigoroso pela sua contínua reconstrução. “O tempo da memória é social, não só porque é o calendário do trabalho e da festa, do evento político e do fato insólito, mas também porque repercute no modo de lembrar” (CHAUÍ, 1987, p. 30). Dessa maneira, as narrativas de comemoração do centenário também recaem sobre as marcas de um passado que destacam seus antecessores e os demais membros da comunidade que compõem a presença sensível dos que já partiram. Nesse processo de (re)lembrar, os membros do terreiro Bate Folha reforçam ainda mais a ligação entre passado, presente e projeção de novos acontecimentos para o futuro.

Não somente o de Dona Olga, mas em torno de 47 registros foram documentados acerca das vivências, práticas, afetos e relação com o terreiro. Dentre a rede de significados constituída pelos filhos e filhas do terreiro, principalmente nos mais jovens, sobre a consciência da importância de celebrar 100 anos de um terreiro de candomblé, é exatamente resistir aos ataques de intolerância religiosa, preservar e dá continuidade ao legado herdado pelos antepassados. Nas quase duas horas de fala, as histórias individuais da Nengua se confundiam com a história do terreiro e também com a de Salvador, pois a característica mais contada daquela época foi o isolamento, com total afastamento do

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centro da cidade, a inexistência de moradias nos arredores e a falta de luz. Água se tinha porque era abastecida por uma nascente, a qual mais tarde iria atender aos moradores locais e adjacentes, servindo até para fornecer a uma parte de Salvador.

Desta forma, pensar a dinâmica do terreiro, inclusive, a partir do projeto “100 anos do Terreiro Bate Folha” com histórias e memórias centradas em narrativas orais, procuramos recriar trajetórias de vida, a relação das/os entrevistadas/os com o terreiro, enfrentando o desafio colocado pelos processos de rememoração. Objetivos que nos levaram a sublinhar a importância de interrelacionar ação social, situações e sujeitos, sendo frutífero reter a noção de experiência. Noção que possibilita reflexões sobre ações e sentimentos, apontar conexões temporais, mudanças e continuidades, tradições e rupturas. Privilegiando e tendo como recorte trajetórias de vida em diferentes tempos. O constante exercício de lembranças e reconstituição de memórias faz com que as tradições afro-brasileiras continuem sendo praticadas, sejam preservadas e consideradas patrimônio por quem a também vivencia. Na história dos diversos agrupamentos negros no Brasil, eles conservaram na memória e transmitiram saberes, costumes, tradições e modos de vida que extrapolaram o tempo e o espaço, perpassando por mais de quatro séculos desde que os primeiros africanos aqui chegaram, trazidos forçosamente. Vale ressaltar que esse processo de transmissão cultural se deu através da oralidade e neste sentido, o ato de contar presentifica a tradição oral e o transmitir das experiências que a ancestralidade adquiriu pelo mundo material e imaterial/sobrenatural, recuperar, pois, essa oralidade estimulada pelos laços de solidariedade e integração social que sustentaram e sustentam essa memória coletiva.

Referências Bibliográficas

ALMEIDA, Sílvio Luiz de. O que é racismo estrutural? Belo Horizonte (MG): Letramento, 2018.

BRASIL. Decreto-Lei n. 25 de 30 de novembro de 1937. Organiza a proteção do

patrimônio histórico e artístico nacional. Disponível em: <

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CHAUÍ, Marilena. Os trabalhos da memória. In. Memória e sociedade: lembranças de velhos. São Paulo: T.A. Queiroz: Edusp, 1987.

MENESES, Ulpiano T. Bezerra de. O campo do patrimônio cultural: uma revisão de premissas. Conferência Magna. I Fórum Nacional do Patrimônio Cultural. I vol.1 In: IPHAN. I Fórum Nacional do Patrimônio Cultural: Sistema Nacional de Patrimônio Cultural: desafios, estratégias e experiências para uma nova gestão, Ouro Preto/MG, 2009. Anais, vol.2, tomo 1. Brasília: IPHAN, 2012.

NUNES, Erivaldo Sales. Contribuição para a história do candomblé Congo-Angola na Bahia: O Terreiro de Bernardino do Bate Folha (1916-1946). Tese de doutorado. Salvador: Universidade Federal da Bahia, 2017.

SANT’ANNA, Márcia. Escravidão no Brasil: os terreiros de candomblé e a resistência cultural dos povos negros. In: Políticas de Acautelamento do IPHAN para Templos de Culto Afro-Brasileiros. IPHAN: Salvador, 2015.

SERRA, Ordep. Monumentos Negros: uma experiência. Revista Afro Ásia, n. 33, p. 169-205, 2005.

VELHO, Gilberto (2006). Patrimônio negociação e conflito. Mana. Estudos de Antropologia Social. v. 12, n.1, p. 237-248.

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