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Gustavo Barreto Vilhena de Paiva*

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Academic year: 2021

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Fribourg: Academic Press Fribourg/Editions Saint-Paul, 2014, 266 p.

(Dokimion 38).

Gustavo Barreto Vilhena de Paiva*

___________________________________________

I.

A crítica textual tem sido uma ferramenta fundamental na historiografia da filosofia medieval desde o século XIX. Há poucos anos, Donald H. Reiman destacou, no prefácio de Textual Editing and Critisicm de Erick Kelemen, o quanto um leitor de literatura pode se beneficiar com a crítica textual1 – ela lhe permitiria uma maior compreensão de uma peça literária (mais precisamente, no caso de Reiman, poética) ao permitir acompanhar “o crescimento de um poema desde seu início [the growth of a poem from its inception]”.2 Em outras palavras, a crítica textual não somente permite um estabelecimento crítico de textos (o que, por si só, já seria um ganho), mas igualmente possibilita uma melhor compreensão literária desses textos.

Pois bem, o mesmo parece valer para as narrativas da história da filosofia medieval. Nesse campo, a crítica textual permite o estabelecimento de edições críticas e, ao fazê-lo, influi profundamente na interpretação filosófica ou teológica que se poderá propor acerca do texto estabelecido. Talvez possamos dizer que, também na historiografia da filosofia medieval, a crítica textual diz respeito não somente à forma, mas – ao determinar a forma – também ao conteúdo. Certamente, se deverá ressalvar os casos em que, por falta de fontes manuscritas, a interpretação do conteúdo filosófico ou teológico de um texto se torne capital para decisões quanto ao seu estabelecimento crítico. Em qualquer

* Doutorando no Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo e bolsista da CAPES. 1 REIMAN, D. H. “Foreword”. In: KELEMEN, E. Textual Editing and Criticism. An Introduction. New York/London: W. W. Norton, 2009, pp. xiii-xvii.

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caso, a necessária imbricação entre estabelecimento crítico e interpretação filosófica ou teológica de um texto parece permanecer uma constante da crítica textual na historiografia da filosofia medieval.

Com efeito, na introdução a L’art de généralités, Alain de Libera descreve seu objeto como “la mémoire des textes”3 e, portanto, coloca o problema do que seria precisamente esse texto:

Deve-se verdadeiramente se impressionar que um texto como a Isagoge, tão fundador quanto seja (e lembremos que Gilson não via aí, como todo mundo, senão um simples ‘formulário’), não exista em si? Formado na rude escola da Textkritik – o que se poderia chamar de crítica de Maas –, estamos bem posicionados para saber que, na falta de um autógrafo, um “texto” medieval não é senão uma conjectura, imaginada de uma Vorlage a outra até a ficção suprema do hiparquétipo. Mas esse não é o problema. Um texto bem estabelecido é um texto legível para nós – isso não faz dele, longe disso, um texto que exista em si nem, a fortiori, um texto que tenha sido outrora lido por outros. É preciso se resignar a isso; a tarefa do editor também possui por função tornar possível uma história da leitura, quer dizer uma história do sentido, ou mesmo do contrassenso. Um stemma codicum é um fio de Ariadne que seguimos menos para ir ao texto do que às razões, por princípio circunstanciais, de suas interpretações.4

Nessa passagem, ficam patentes duas consequências cruciais da crítica textual para a historiografia da filosofia medieval. Em primeiro lugar, se o centro dessa narrativa é o texto e este emerge tão relativizado da crítica textual, a própria narrativa da história da filosofia medieval se torna um processo de estabelecimento dos textos a partir dos quais ela própria será narrada. Em

3 LIBERA, A. de. L’art de généralités. Théories de l’abstraction. Paris: Aubier, 1999, p. 8.

4 Op. cit., p. 9: “Faut-il vraiment s’étonner qu’un texte comme l’Isagoge, si fondateur soit-il (et rappelons que Gilson, n’y voyait lui, comme tout le monde, qu’un simple ‘formulaire’), n’existe pas

en soi? Dressé à la rude école de la Textkritik – ce que l’on pourrait appeler la critique de Maas –

nous sommes bien placé pour savoir qu’à défaut de l’autographe, un ‘texte’ médiéval n’est qu’une conjecture, rêvée d’une Vorlage l’autre, jusqu’à la fiction suprême de l’hyparchétype. Mais ce n’est pas le problème. Un texte bien établi est un texte lisible pour nous, cela n’en fait pas, loin s’en faut, un texte qui existe en soi ni, a fortiori, un texte qui ait jamais été lu par d’autres. Il faut s’y résigner, la tâche de l’éditeur a aussi pour fonction de rendre possible une histoire de la lecture, c’est-à-dire une histoire du sens, voire des contresens. Un stemma codicum est un fil d’Ariane que l’on suit moins pour aller au texte qu’aux raisons, par principe circonstancielles, de ses interprétations” [grifos no original].

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outras palavras, a própria história da filosofia medieval sai relativizada deste processo, uma vez que não parece mais haver distância entre o sujeito narrador e o objeto narrado, pois a narrativa já é o estabelecimento do narrado. Por outro lado – e essa é a segunda consequência –, o papel do narrador (do historiador da filosofia medieval) termina grandemente enriquecido, uma vez que seu trabalho não será mais somente a assimilação passiva de um percurso já predeterminado – pelo contrário, o próprio historiador deverá estabelecer a base textual do percurso a ser seguido antes de poder, de fato, colocar em marcha sua narrativa.

Certamente, não será este o lugar de desenvolver todas essas dificuldades (ou soluções...). Antes, preferi iniciar a presente resenha com essa breve reflexão acerca da relação entre crítica textual e historiografia da filosofia medieval porque me parece ser esse precisamente o tema a ser colocado pelo texto que ora resenhamos, a saber, o livro L’aristotélisme exposée, editado por Valérie Cordonnier e Tiziana Suarez-Nani, a partir de uma jornada de estudos organizada pelo CNRS e realizada na Université Paris Diderot – Paris 7 em 2012 (p. ix).

Para complexificar ainda mais a narrativa histórica, o livro aborda a história da filosofia medieval não somente a partir de problemas de crítica textual, mas também a partir de uma discussão sobre intertextualidade – de fato, na encruzilhada entre duas formas que esta última assume nos debates escolásticos medievais: uma diacrônica e outra sincrônica (p. xii). “A primeira forma de intertextualidade que ocorre no pensamento medieval é aquela que liga o discurso a suas fontes fundamentais que são, sobretudo, a Escritura, Agostinho, Boécio ou Aristóteles e aos intermediários pelos quais essas autoridades são abordadas por seus leitores latinos (...)”5 (pp. xi-xii); a segunda “liga os textos dos escolásticos àqueles de seus contemporâneos ou predecessores diretos”6 (p. xii). É nessa encruzilhada entre intertextualidades diacrônicas e sincrônicas, as

5 “La première forme d’intertextualité à l’oeuvre dans la pensée scolastique est celle qui relie le discours à ses sources fondamentales que sont surtout l’Écriture, Augustin, Boèce ou Aristote, et aux intermédiaires par lesquels ces autorités sont abordées par leurs lecteurs latins (...)”.

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quais (como o volume bem mostra) só se pode bem estabelecer por meio da crítica textual, que se buscará compreender a complexa relação filosófica, teológica e institucional entre dois dos principais nomes da Faculdade de Teologia da Universidade de Paris no último quarto do século XIII: Henrique de Gand (a. 1240-1293) e Egídio Romano (c. 1245-1316).

Como Valérie Cordonnier mostra na introdução ao volume (pp. xi-xxxii), a relação entre os dois doutores foi primeiramente colocada como problema pelos historiadores da filosofia medieval a partir de um verbete de 1911 escrito por Marcel Chossat para o Dictionnaire de théologie catholique, no qual era dito que Henrique de Gand, negando a distinção real entre essência e existência, se contrapunha, precisamente, a Egídio Romano.7 Tão surpreendente quanto soasse tal tese – um autor como Pierre Mandonet, por exemplo, estaria pronto a admitir Tomás de Aquino como alvo da crítica do Doutor Solene8 –, a afirmação de um debate entre Henrique e Egídio não foi mais abandonada pelos historiadores. Pelo contrário, ela se viu reforçada (não só, mas principalmente) pelos trabalhos de Jean Paulus e Edgar Hocedez ainda em meados do século XX (pp. xvii-xix).9 Na segunda metade dos novecentos, essa tese se torna padrão e adquire um lugar fundamental nos esforços editoriais para o estabelecimento crítico dos Opera omnia de Egídio Romano e Henrique de Gand (p. xix). Com isso, não somente a hipótese de um debate entre ambos os mestres se viu alçada ao lugar de teoria padrão para a leitura dos seus textos, como também os pontos de contato entre os dois autores foram muito ampliados – se, em Chossat, considerava-se apenas a questão da distinção entre essência e existência como ponto chave para a aproximação de Egídio e Henrique, em um texto atual

7 CHOSSAT, M. “Dieu (sa nature selon les scolastiques)”. In: Dictionnaire de Théologie Catholique. Tome 4. Letouzey e Ané Éditeurs, Paris, 1911, cols. 1152-1243 (cf. esp. cols. 1180-1).

8 MANDONNET, P. “Les premières disputes sur la distinction réelle entre l’essence et l’existence, 1276-1287”. Revue Thomiste (1910), pp. 741-65.

9 Cf. PAULUS, J. “Les disputes d’Henri de Gand et de Gilles de Rome sur la distinction de l’essence et de l’existence”. Archives d’histoire doctrinale et littéraire du moyen âge 13 (1940-2), pp. 323-58; HOCEDEZ, E. “Gilles de Rome et Henri de Gand sur la distinction réelle, 1276-1287”.

Gregorianum 8 (1927), pp. 358-85; Id. “Le premier Quodlibet d’Henri de Gand, 1276”. Gregorianum 9 (1928), pp. 92-117; Id. “Deux question touchant la distinction réelle entre

l’essence et l’existence”. Gregorianum 10 (1929), pp. 365-86; Id. “La condamnation de Gilles de Rome”. Recherches de théologie ancienne et médiévale 2 (1932), pp. 34-58.

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como aquele ora resenhado vemos que diversos são os campos em que ambos se bateram (cf. pp. xx-xxxii).

O que salta aos olhos nessa breve narrativa – muito bem desenvolvida por Cordonier, diga-se – da formação historiográfica da hipótese de um debate entre Henrique de Gand e Egídio Romano é, justamente, a relevância da crítica textual para a solução do problema. Desde Hocedez,10 já parecia claro que uma coerente aproximação dos dois mestres dependeria de um retorno às fontes manuscritas dos séculos XIII e XIV. Como notaremos em mais algumas oportunidades, isso foi particularmente verdadeiro no que diz respeito ao estudo de alguns dos manuscritos da biblioteca legada por Godofredo de Fontaines (c. 1250 – 1306/9) à Sorbonne no começo do século XIV (cf. p. xix). Ou seja, como já dito, o mapeamento daquela complexa rede de intertextualidades que os organizadores do volume pretendem estudar depende de um acurado e complexo trabalho de crítica textual, de retorno aos manuscritos. Isso é o que se tornará claro ao acompanharmos resumidamente as cinco contribuições a L’aristotélisme exposé.

II.

No primeiro artigo do volume, intitulado “Le désir naturel de connaître. Autour des Questions métaphysiques attribuées à Gilles de Rome” (pp. 1-28), Catherine König-Pralong desenvolve diversos temas relacionados [i] à temática do desejo natural pelo conhecimento (necessariamente abordada no início dos comentários à Metafísica de Aristóteles) e da superioridade da metafísica enquanto forma de conhecimento intelectual para homem, [ii] ao problema do subiectum da metafísica enquanto ciência e [iii] às dificuldades concernentes à possibilidade de conhecimento, para os homens, das substâncias separadas (p. 4). Tais temas são propostos a partir das Questiones methaphisicales atribuídas a Egídio Romano (pp. 4-15) – uma atribuição que, aliás, não vem sem seus problemas (cf. pp. 2-4) –, porém logo se nota que eles podem ser igualmente considerados a partir da Suma das questões ordinárias de Henrique de Gand (pp. 15-23). Dessa maneira, o

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que temos nessa primeira contribuição é uma apresentação do debate entre os dois mestres tomando como ponto de vista o problema, posto metafisicamente, dos limites do conhecimento humano e da finalidade do homem enquanto animal que tende naturalmente ao conhecimento.

Ao que parece, a autora enxerga como ponto fundamental, na distância que separa Egídio e Henrique quanto a tais temas, as suas diferentes concepções de ‘naturalidade’ (naturalité). Como diz o próprio subtítulo da segunda parte do escrito, Henrique de Gand teria operado uma “redefinição do campo da naturalidade [rédefinition du champ de la naturalité]” (p. 15), o que necessariamente o leva a concepções distintas daquelas de Egídio Romano no que diz respeito a temas como o ‘desejo natural pelo conhecimento’, a ‘potência natural para o conhecimento’ ou os ‘limites de um conhecimento natural’. O que afastaria ambos seria a restrição ao conhecimento obtido ex puris naturalibus operada pelo Doutor Solene em contraposição a uma ampla naturalização do conhecimento científico proposta pelo mestre romano. Como conclusão, quiçá no passo mais problemático do artigo, König-Pralong busca reduzir a distância entre os dois autores àquela entre uma leitura ‘filosófica’ de Aristóteles e outra ‘teológica’: “não há dúvida de que Egídio tenha participado dessa leitura de Aristóteles que naturaliza a antropologia em uma perspectiva filosófica, se ele for, de fato, o autor de nossas Questiones methaphisicales. E é igualmente claro que Henrique de Gand percebeu a coerência dessa leitura de Aristóteles que ele julgou falaciosa e perigosa e que ele preferiu opor-lhe outra alternativa que não a de Tomás de Aquino. Henrique estabeleceu, com efeito, condições de uma teologia racional que permite ler, como teólogo [en théologien], verdadeiramente e exaustivamente a metafísica e a ética de Aristóteles”11 (p. 23). Embora capte muito bem a dupla intertextualidade proposta por Cordonier no início do

11 “Cependant, il ne fait pas de doute que Gilles ait participé à cette lecture d’Aristote que naturalise l’anthropologie dans une perspective philosophique, s’ils est bien l’auteur de nos

Questiones methaphisicales. Et il est tout aussi clair qu’Henri de Gand a perçu la cohérence de

cette lecture d’Aristote, qu’il l’a jugée fallacieuse et dangereuse, et qu’il a souhaité y opposer une autre alternative que celle de Thomas d’Aquin. Henri établi en effet les conditions d’une théologie rationelle qui permette de lire véritablement et exhaustivement la métaphysique et l’éthique d’Aristote en théologien (...)”.

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volume – de fato, estamos em uma encruzilhada de duas leituras diversas acerca de um mesmo texto de Aristóteles –, a redução dessa complexa rede de textos a uma oposições entre ‘filósofos’ e ‘teólogos’ soa simplista, como Martin Pickavé notou em sua resenha do mesmo livro.12

De fato, essa simplificação excessiva ameaça mascarar precisamente o complexo problema colocado pela contribuição de König-Pralong (e, de resto, pelo volume como um todo), a saber, o papel fundamental da crítica textual para uma narrativa da história da filosofia medieval. Esse caráter basilar da crítica textual fica muito bem explicitado por uma pequena ressalva no trecho supracitado: “...se ele for, de fato, o autor de nossas Questiones methaphisicales [s’il est bien l’auteur de nos Questiones methaphisicales]”. No fim, toda a narrativa da autora depende de uma decisão acerca da autoria de um texto que, no mais, só possui uma edição incunábula lacunar de 1499 reimpressa em 1501 (p. 3) e, portanto, reclama uma edição crítica. Enfim, decisões de crítica textual se mostram aqui cruciais para a exposição do emaranhado de intertextualidades sincrônicas e diacrônicas trazido à baila pela autora – qualquer simplificação do tema é mais um disfarce do que uma solução. Isso fica ainda mais claro quando, ao fim do artigo, são apresentadas como anexos diversas passagens similares das Questiones methaphisicales atribuídas a Egídio Romano, do Super Ethicorum de Alberto Magno e do De summo bono de Boécio de Dácia (pp. 26-28). Vemos que a trama intertextual só se complexifica...

A contribuição seguinte é um artigo de Gordon A. Wilson denominado “Le Contra gradus de Gilles de Rome et le Quodlibet IV, 13 d’Henri de Gand” (pp. 29-54).13 O autor, há alguns anos, herdou de Raymond Macken a direção da edição e publicação dos Opera omnia de Henrique de Gand e, como fica claro no capítulo de sua lavra, ele está plenamente a par dos recentes desenvolvimentos

12 PICKAVÉ, M. “A new book on Giles of Rome and Henry of Ghent. Critical Study of V. Cordonnier – T. Suarez-Nani (eds.), L’aristotélisme exposée...”. Recherches de Théologie et Philosophie

Médiévales 81.2 (2014), pp. 387-98 (esp. pp. 390-1): “The picture emerging from König-Pralong’s

comparison is that of the philosopher Giles, who allows metaphysics a relative autonomy, and the theologian Henry, for whom all philosophical disciplines are directed towards theology. I find this picture a bit too simplistic. After all, the texts on which her comparison is based are of a very different nature”.

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crítico-textuais nos estudos acerca do gandavense. O tema abordado por Wilson é algo a que ele vem se dedicando desde sua tese de doutorado defendida em 1975, a saber: o problema da descrição do homem enquanto composto e, em particular, o chamado ‘dimorfismo’ defendido por Henrique de Gand (isto é, a tese segundo a qual o homem teria duas formas substanciais – a forma do corpo e a alma – informando sua matéria).14 Ora, a grande diferença entre seu texto de doutoramento e o artigo do volume que ora resenhamos é precisamente o longo caminho percorrido no campo da crítica textual como parte dos Opera omnia de Egídio e de Henrique. Basta notar que, enquanto em 1975 a versão mais recente disponível dos Quodlibeta do Doutor Solene para um trabalho a respeito do tema era a edição de 1613 por Vital Zuccoli, em 2014 não somente Wilson pôde se valer das edições críticas de diversos dos textos importantes para o assunto (em particular, de Quodl. 4, q. 1315), mas também de significativos avanços no estudo da tradição manuscrita das obras de Egídio e Henrique.

Tais avanços foram particularmente relevantes para o estabelecimento das relações entre um conjunto de obras que, entre 1275 e 1289, versaram sobre a composição e unidade do homem, nesta ordem: os Theoremata de corpore Christi de Egídio Romano, os Quodl. 1, q. 4 e Quodl. 2, q. 2 de Henrique de Gand, o Contra gradus de Egídio Romano, o Quodl. 3, q. 6 de Henrique de Gand, o De unitate formae de Egídio de Lessines e, finalmente, o Quodl. 4, q. 13 de Henrique de Gand. Após apontar brevemente o contexto histórico imediato em que essa discussão se pôs na década de 1270, inclusive com referências à atmosfera institucional particularmente explosiva de 1277 (pp. 30-7), Wilson se volta para a relação entre o Contra gradus de Egídio e o Quodl. 3, q. 6 de Henrique de Gand (pp. 37-42) – note-se, como lembra Pickavé em sua já citada resenha, que o autor não se refere à possibilidade da distinção de duas redações

14 WILSON, G. A. Dymorphism and the metaphysical unity of man in Quodlibeta Magistri Henrici Goethal a Gandavo doctoris solemnis: socii sorbonici: et archidiaconi tornacensis cum duplici tabella. A dissertation submitted to the Department of Philosophy of the Graduate School of Tulane University in partial fulfillment of the requirements for the degree of Doctor of Philosophy, 1975.

15 HENRICI DE GANDAVO. Quodlibet IV. Ed. G. A. Wilson & G. J. Etzkorn. Leuven: Leuven University Press, 2011 (Henrici de Gandavo Opera omnia 8).

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do Quodl. 2 de Henrique, de tal modo que sua segunda redação já contivesse uma primeira referência ao Contra gradus de Egídio (sem dúvida, essa possível adição de uma referência de Henrique ao Contra gradus anterior a seu Quodl. 3 poderia modificar significativamente a narrativa de Wilson).16 Por fim, o autor da contribuição estuda o Quodl. 4, q. 13 de Henrique, mostrando como foram relevantes para a sua complexa composição tanto o Contra gradus de Egídio Romano como o De unitate formae de Egídio de Lessines, além da Suma teológica de Tomás de Aquino (pp. 42-9). Após enumerar rapidamente suas principais conclusões (pp. 49-50), Wilson apresenta como anexo um esquema da “structure du Quodl. IV, q. 13 d’Henri de Gand” (pp. 51-4), um instrumento utilíssimo para um leitor desse complexo e longo texto do Doutor Solene.

Se o texto de Wilson deixa clara não somente a complexa rede de intertextualidades desenvolvida em pouco menos de cinco anos pelos mestres de Roma e de Gand, mas também o problema crítico-textual (levantado aqui indiretamente, é verdade) acerca da duplicidade ou unidade da redação do Quodl. 2 de Henrique, a contribuição seguinte, de Pasquale Porro, traz novamente à baila ambas as temáticas historiográficas que viemos destacando até aqui: intertextualidade e crítica textual. Com efeito, esse trecho – intitulado “Prima rerum creatarum est esse: Henri de Gand, Gilles de Rome et la quatrième proposition du De causis” (pp. 55-81)17 – depende, de saída, de uma decisão acerca da atribuição de uma obra. Ora, sendo o tema principal agora a recepção (nas palavras de Cordonier, um caso de intertextualidade diacrônica) do De causis pelos nossos dois mestres, é preciso decidir a respeito da autoria do comentário ao De causis transmitido no ms. Escorial, h-II-1, ff. 74ra-89va e outrora atribuído a Henrique de Gand. Mais do que adotar a prudência defendida por Zwaenepoel,

16 PICKAVÉ, “A new book on Giles of Rome and Henry of Ghent...”, 2014, p. 392: “(...) unlike Robert Wielockx, Wilson makes no mention of the idea that Henry responded to Giles of Rome’s Contra gradus not only in Quodlibet III, but already in a second redaction of Quodlibet II. (The Contra gradus was written in reaction to the first version of Henry’s second Quodlibet.) So the reader may wonder whether Wilson disagrees with this thesis, which Wielockx has defended in his edition of Quodlibet II and elsewhere”. Para a posição de Wielockx, cf. a p. 185 do livro ora resenhado ou HENRICI DE GANDAVO. Quodlibet II. Ed. R. Wielockx. Leuven: Leuven University Press, 1983 (Henrici de Gandavo Opera omnia 6), pp. xviii-xx.

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o editor do texto, quanto à sua atribuição,18 Porro parece seguramente considerar a proposta da autoria de Henrique para esse comentário como espúria, referindo-se a seu autor como “pseudo-Henri de Gand” ou simplesmente como “l’auteur du commentaire de l’Escorial” (p. 59) – essa parece ser, ademais, a posição padrão atualmente quanto à questão.19 A não atribuição desse texto a Henrique de Gand faz com que o campo de pesquisa proposto por Porro envolva basicamente cinco autores: o Pseudo-Henrique de Gand, Alberto Magno, Tomás de Aquino (pp. 59-66), Henrique de Gand e Egídio Romano (pp. 66-78). A relação entre esse autores é abordada após uma rápida introdução à problemática suscitada pela quarta proposição do livro De causis e sua proximidade ou distância com respeito à Elementatio theologica de Proclo (pp. 55-9).

A dificuldade que surge a partir dessa quarta proposição do De causis e que será atentamente pesquisada por Porro nos cinco autores enumerados há pouco é assim resumida: “[a] quarta proposição se apresenta, assim, como um verdadeiro curto-circuito ontoteológico – para retomar uma expressão heideggeriana banalizada –, ou melhor como uma reduplicação do dilema ontoteológico ao nível do ser supremo enquanto ser criado e não somente tomado enquanto causa primeira: o ser que é a primeira coisa criada seria uma forma universal (o ente em geral) ou seria o ente supremo, quer dizer, notadamente a inteligência (quiçá somente a primeira inteligência?)”20 (p. 58). Bem ao modo de Porro, o problema metafísico suscitado pela quarta proposição

18 ZWAENEPOEL, J. P (éd.). Les Quaestiones in librum De causis attribuées à Henri de Gand. Publications Universitaires – Béatrice Nauwelaerts: Louvain – Paris, 1974, p. 19: “Lorsque nous serons en possession de bonnes éditions des commentaires sur la Métaphysique et sur la Physique attribués au maître gantois, une comparaison approfondie de ces textes, de nos Quaestiones et des écrits théologiques permettra sans doute de voir plus clair dans ce délicat problème d’authenticité. En attendant, la prudence s’impose et mieux vaut rester dans le doute”.

19 Cf. WILSON, G. A. “Henry of Ghent’s Written Legacy”. In: WILSON, G. A. A companion to

Henry of Ghent. Leiden – Boston: Brill, 2011, pp. 3-23 (esp. pp. 22-3).

20 “La quatrième proposition se présente ainsi comme un véritable court-circuit ontothéologique – pour reprendre une expression heidéggerienne rebattue –, voire comme une réduplication du dilemme ontothéologique au niveau de l’être suprême en tant qu’être créé, et non pas seulement de l’être pris comme cause première: l’être qui est la première chose créée est-il une forme universelle (l’étant en général), ou bien est-il l’étant suprême, c’est-à-dire notamment l’intelligence (voire seulement la première intelligence?)”.

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do De causis é reinterpretado à luz da noção de ‘ontoteologia’ que o comentador italiano toma a Martin Heidegger.21

Para além desse pormenor, notemos que todo o problema posto pela quarta proposição do De causis diz respeito à concepção de ‘ser’ eventualmente adotada por seu leitor e à consequente concepção deste último a respeito da relação entre o ser e o ato de criação. Não sendo este o lugar para apresentar todas as posições que Porro encontra em seu trajeto, ressaltemos ao menos as primeiras linhas de sua conclusão (pp. 78-9), logo antes de alguns textos e esquemas apresentados em anexo (pp. 80-1): “[a] interpretação diferente que Henrique e Egídio dão da quarta proposição do De causis depende, evidentemente, de suas opções respectivas quanto à composição de ser e essência, mas reflete também uma ambiguidade de fato presente no próprio Liber e que já havia estado na origem de opções diversas no século XIII”22 (p. 78). Ou seja, Porro quer ver no próprio De causis a razão para as diversas opções interpretativas que surgem acerca dele nos duzentos. Essa ambiguidade (seja ela própria do De causis ou derivada dos diferentes vieses de leitura do século XIII) está profundamente ligada, como destaca o autor, às opções adotadas acerca da distinção e relação entre ser e essência pelos leitores da quarta proposição do livro De causis – em particular, esse é o caso da nossa dupla de mestres de teologia. Assim, por meio do De causis, retornamos ao problema da distinção entre ser e essência (além, é claro, da existência) que, como vimos no início, foi o próprio estopim para a proposta, por Marcel Chossat, de que haveria ocorrido um debate entre Henrique de Gand e Egídio Romano em fins do século XIII.

Em seguida, lemos a contribuição de Valérie Cordonier, com o título “Une lecture critique de la théologie d’Aristote: le Quodlibet VI, 10 d’Henri de Gand comme réponse à Gilles de Rome” (pp. 83-180). Aqui a autora busca apresentar a recepção por parte de Egídio Romano e de Henrique de Gand do Liber de bona

21 Uma utilização semelhante de Heidegger pode ser lida em PORRO, P. Tomás de Aquino. Um

perfil histórico-filosófico. Trad. Orlando Soares Moreira. São Paulo: Loyola, 2014, p. 287.

22 “L’interprétation différente qu’Henri et Gilles donnent de la quatrième proposition du De causis dépend évidemment de leurs options respectives au sujet de la composition de l’être et de l’essence, mais reflète aussi une ambiguïté de fait présente dans le Liber lui-même, et qui avait déjà été à la source d’options diverses au XIIIe siècle”.

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fortuna, um tratado que, em fins do século XIII, já havia sido “integrado havia uma boa dezena de anos ao corpo latino de obras de Aristóteles”, sendo “formado de dois excertos tirados dos Magna moralia e da Ética a Eudemo traduzidos por Guilherme de Moerbeke”23 (p. 83). Um problema que encontramos, de saída, nesse artigo é o fato de Egídio Romano possuir o primeiro comentário conhecido do Liber de bona fortuna – a saber, a sua Sententia de bona fortuna (cf. p. 96) – e Henrique de Gand não possuir nada semelhante. Essa dificuldade pode ser suplantada com um princípio metodológico de leitura da obra de Henrique de Gand que, como Pickavé lembra ao comentar esta quarta contribuição,24 encontramos na introdução ao volume de autoria da mesma Cordonier: “(...) a Summa contém passagens semelhantes a ‘comentários’ em miniatura, centrados em um ponto ou uma noção (...). Nos Quodlibets, igualmente, encontram-se análises minuciosas de textos de Aristóteles, em particular daqueles que acabavam de ser traduzidos para o latim por Guilherme de Moerbeke (e integrados ao dito corpus recentius): assim, o Quodl. VI, q. 10 faz uma exegese aprofundada da teologia sugerida pelo Liber de bona fortuna (...)”25 (p. xv). Se aceitarmos esse princípio metodológico, é possível colocar lado a lado a Sententia de bona fortuna de Egídio Romano e o Quodl. 6, q. 10 de Henrique de Gand como comentários discordantes ao Liber de bona fortuna – mais precisamente, o Quodlibet do Doutor Solene apresenta-se como uma resposta à interpretação de Aristóteles proposta na Sententia de Egídio Romano.

Em poucas palavras, a problemática que se desenrola a partir da leitura do Liber de bona fortuna diz respeito à relação entre Deus enquanto causa

23 “Une telle question, nouvelle dans le paysage scolastique, trouve sont origine dans le Liber de

bona fortuna, un traité intégré alors depuis une bonne dizaine d’années au corpus latin des

oeuvres d’Aristote et formé de deux extraits tirés des Magna moralia et de l’Éthique à Eudème traduits par Guillaume de Moerbeke”.

24 PICKAVÉ, “A new book on Giles of Rome and Henry of Ghent...”, 2014, p. 394: “Henry of Ghent is usually not taken serious as a commentator on Aristotle. We do not possess any Aristotle commentaries that we can attribute to him without any doubt. Yet, as Valérie Cordonier rightly notices in her excellent introduction to the present volume, some of Henry’s quodlibetal questions are sort of mini-commentaries on Aristotelian texts”.

25 “Ainsi, la Summa contient-elle des passages ressemblant à des ‘commentaires’ en miniature, centrés sur un point ou une notion (...). Dans les Quodlibets également, on trouve des analyses fouillées de textes d’Aristote, en particulier de ceux qui viennent d’être traduit en latin par Guillaume de Moerbeke (et intégrés audit corpus recentius): ainsi le Quodl. VI, q. 10 fait-il une exégèse approfondie de la théologie suggérée par le Liber de bona fortuna (...)”.

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primeira e a vontade enquanto causa livre. Seja de um ponto de vista metafísico ou teológico, parece difícil sustentar simultaneamente a vontade como causa segunda (com respeito à causa primeira divina) e como livre (não determinada por algo outro). Toda essa problemática é levantada, justamente, pelo estudo sobre o que significaria dizer de um homem que ele é ‘bem-afortunado’. Enfim, o estudo da ‘boa fortuna’ termina por colocar em jogo justamente a tensão entre uma concepção metafísica (mas, também, teológica) de mundo que o faz depender de um agente primeiro e uma concepção de homem enquanto agente livre. Todo esse espectro – bem amplo, diga-se de passagem – de problemas filosóficos é estudado por Cordonier primeiro no próprio Liber de bona fortuna que, sendo uma colagem de textos de Aristóteles, necessariamente traz consigo problemas de análise interna (pp. 85-91), e a seguir na recepção dessa obra na Suma contra os gentios (com referências a outras obras) de Tomás de Aquino (pp. 91-6). Em seguida, a autora se volta para o núcleo de sua contribuição: o estudo de Quodl. 6, q. 10 de Henrique de Gand enquanto resposta à interpretação do Liber de bona fortuna oferecida por Egídio Romano em sua Sententia de bona fortuna (pp. 96-140), ao que se segue uma curta conclusão com os principais resultados do artigo (pp. 140-2).

Como anexo a seu texto (pp. 143-80), Cordonier adiciona sete excertos da Sententia de bona fortuna de Egídio Romano em uma versão provisória, fruto de um trabalho de edição crítica em andamento (pp. 144-55), uma vez que o texto possui somente edições dos séculos XV e XVI (pp. 159-60). Ao texto do mestre romano, se seguem descrições dos manuscritos utilizados (pp. 156-9) – uma recensão parcial e provisória da tradição manuscrita, segundo a autora (p. 156) – e a descrição da edição de 1507 da Sententia (pp. 159-60). Por fim, é oferecido um longo estudo comparativo da tradição manuscrita e impressa recenseada até agora (pp. 160-80), com especial atenção para a versão do texto encontrada no ms. Paris, BnF lat. 16096, ff. 122r-123v (cf. pp. 159, 169-173 e 179-80). Esse manuscrito provém da já citada coleção de manuscritos legados à Sorbonne por Godofredo de Fontaines. Estes têm sido fontes inestimáveis não somente para o estudo do próprio mestre de Liège, mas também em razão do

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cuidado com que ele e seus colaboradores buscaram manter suas cópias de textos atualizadas (registrando, muitas vezes, diversas versões de uma mesma obra) e procuraram comparar criticamente passagens de diversos autores que mantivessem debates entre si ou servissem de fonte um para o outro – é o que ocorre com as lições de Egídio Romano e Henrique de Gand que encontramos nessa biblioteca.

Com essa observação, entramos já na última contribuição ao volume, de autoria de Robert Wielockx e intitulada “Henri de Gand et Gilles de Rome à la lumière de la bibliothèque de Godefroid de Fontaines” (pp. 181-259). A meu ver, a correta apreciação desse artigo depende de uma frase posta logo ao início do texto: “[p]ara se apoiar em um texto estabelecido de maneira crítica, o recurso aos manuscritos é indispensável [Pour s’appuyer sur un texte établi de façon critique, le recours aux manuscrits est indispensable]” (p. 181). Assim como ocorria no texto de Cordonier, também aqui há um princípio metodológico fundamental, pois Wielockx justamente irá mostrar no decorrer de seu texto como uma edição crítica pode ser enriquecida e corrigida pela consulta aos manuscritos (recenseados ou não naquela edição) por parte do leitor. No presente caso, está em jogo mais uma vez a biblioteca de Godofredo de Fontaines legada à Sorbonne.

Sendo assim, na primeira parte de sua contribuição, o autor destaca os resultados que já se pôde obter a respeito das obras de Henrique de Gand e Egídio Romano, bem como acerca da relação entre ambos e Tomás de Aquino a partir da consulta aos manuscritos de Godofredo (pp. 182-9).26 Torna-se particularmente importante, nesse contexto, o problema das múltiplas camadas textuais que se parece poder identificar em diversas obras do Doutor Solene a partir das lições encontradas nos manuscritos legados por Godofredo. Essa problemática é particularmente candente, por exemplo, com respeito a temas como a noção de iluminação divina desenvolvida pelo gandavense e o dimorfismo

26 De fato, por diversas vezes nessa etapa de seu artigo Wielockx remete a AIELLO, A., WIELOCKX, R. Goffredo di Fontaines aspirante bacceliere sentenziario: le autografe “Notule de

scientia teologie” e la cronologia del ms. Paris BnF lat. 16297. Turnhout: Brepols, 2008 (Corpus

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do homem igualmente asseverado por ele (pp. 183-6). Pickavé, na sua já mencionada resenha, afirma que esse início desta última contribuição ao volume “serve como uma boa lembrança de que a pesquisa sobre tópicos tão centrais para Henrique como a doutrina da iluminação, a pluralidade de formas substanciais ou a psicologia cognitiva não podem deixar de tomar em consideração esses desenvolvimentos doutrinais”.27 A bem dizer, não me parece que seja esse o resultado da apresentação de Wielockx. Antes, o que parece dela derivar é o fato, muito mais importante metodologicamente, de que (sejam as diferentes lições ou camadas textuais de uma obra fruto de desenvolvimentos doutrinais ou não) não se pode ler textos medievais sem a consulta aos manuscritos e, portanto, sem um cuidadoso trabalho de crítica textual. O ponto aqui não é discutir a ocorrência ou não de mudanças doutrinais em um autor escolástico (Henrique de Gand, no caso), mas antes destacar a centralidade da crítica textual para a leitura de um autor. Desse ponto de vista, a contribuição de Wielockx é, antes de tudo, um ensaio metodológico.

Como segunda etapa de seu artigo, o autor propõe diversos (para retomar seu termo) ‘documentos’ (documents) que ele analisará em seguida. Esses documentos – sete, no total, mais os estudos acerca deles (pp. 190-253) – são basicamente transcrições e releituras de textos de Egídio Romano e de Henrique de Gand a partir de lições obtidas na biblioteca de Godofredo de Fontaines não consideradas nas edições críticas originais ou, segundo o autor, mal compreendidas e expostas nessas edições. Assim, no ‘Documento I’ (pp. 191-204), há uma tentativa de reconstituição da Reportatio in II Sent., q. 65 de Egídio Romano. Nessa reconstituição, são destacados determinados trechos relevantes de um ponto de vista doutrinal e crítico-textual – em particular, cinco excertos que, diferentemente, do restante da questão, não são tomados diretamente ao De malo, q. 6 de Tomás de Aquino. No ‘Documento II’ (pp. 204-6), é mostrada a lição do mesmo texto encontrada no ms. Paris, BnF lat. 15819,

27 PICKAVÉ, “A new book on Giles of Rome and Henry of Ghent...”, 2014, p. 396: “It serves as a welcome reminder that research on topics so central to Henry as the doctrine of illumination, the plurality of substantial forms, or cognitive psychology cannot do without taking these doctrinal developments into account”.

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legado por Godofredo de Fontaines e, segundo Wielockx, não considerada por Concetta Luna em sua edição da Reportatio in II Sent., q. 65 de Egídio Romano.28 O ‘Documento III’ (pp. 207-8) apresenta uma comparação linear entre a edição de Reportatio in II Sent., q. 65 proposta no ‘Documento I’, a lição desse mesmo texto encontrada no ms. BnF lat. 15819 e apresentada no ‘Documento II’ e, finalmente, o De malo, q. 6 de Tomás de Aquino na edição leonina.29 O ‘Documento IV’ (pp. 208-11) é uma proposta de aparato crítico derivado da comparação entre a edição de Reportatio in II Sent., q. 65 por parte de Luna e a lição encontrada no ms. BnF lat. 15819. O ‘Documento V’ (pp. 211-5) é a transcrição de um excerto de Quodl. 9, q. 5 de Henrique de Gand encontrado no ms. Paris, BnF lat. 15350, ff. 137va-138ra, igualmente legado por Godofredo de Fontaines – por um recurso tipográfico, busca-se destacar a possível ocorrência de uma dupla camada textual neste excerto (cf. pp. 213-4). As discordâncias entre o texto de Quodl. 9, q. 5 apresentado por Godofredo de Fontaines e a edição crítica de Raymond Macken30 são apresentadas no ‘Documento VII’ (pp. 220-3). O ‘Documento VI’ (pp. 215-9) igualmente apresenta, a partir do ms. Paris, BnF 15848 legado por Godofredo, diversas propostas de correções do corpo do texto ou do aparato da edição crítica produzida por Macken para Quodl. I, qq. 14-17.31 Como se vê, os documentos VI e VII tornam-se ferramentas indispensáveis para uma correta utilização dos volumes 5 e 13 dos Opera omnia de Henrique de Gand.

Por fim, a esses documentos são adicionados alguns estudos que buscam mostrar, a partir dos textos (re)estabelecidos, a complexa relação entretida por Egídio Romano com Tomás de Aquino e, possivelmente, com Henrique de Gand em Reportatio in II Sent., q. 65. Esses estudos culminam, a meu ver, com a

28 AEGIDII ROMANI. Reportatio Lecturae Super libros I-IV Sententiarum. Reportatio Monacensis,

Excerpta Godefridi de Fontibus. Ed. Concetta Luna. Roma: SISMEL, 2003 (Aegidii Romani Opera

omnia 3.2).

29 THOMAE AQUINATIS. Quaestiones disputatae de malo. Ed. Pierre-Marie Gils. Roma/Paris: Commissio Leonina/Vrin, 1982 (Sancti Thomae Aquinatis Opera omnia 23).

30 HENRICI DE GANDAVO. Quodlibet IX. Ed. Raymond Macken. Leuven: Leuven University Press, 1983 (Henrici de Gandavo Opera omnia 13).

31 HENRICI DE GANDAVO. Quodlibet I. Ed. Raymond Macken. Leuven/Leiden: Leuven University Press/Brill, 1979 (Henrici de Gandavo Opera omnia 5).

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proposta de que se poderia encontrar vestígios do comentário às Sentenças do Doutor Solene (texto não transmitido pela tradição manuscrita) na Reportatio de Egídio Romano (cf. p. 251). Em sua resenha, Pickavé enxerga com reservas tal conclusão32 e não posso deixar de seguir seu juízo, uma vez que, apesar da enorme qualidade e utilidade do trabalho desenvolvido por Wielockx nesta contribuição ao volume resenhado, os dados angariados por ele parecem muito tênues para a magnitude daquilo que ele conclui, a saber, que a Reportio in II Sent. de Egídio Romano seria um meio para a leitura do comentário às Sentenças de Henrique. Tão tênues quanto sejam os argumentos em favor desta hipótese, acredito que ela deva ser reservada para futuros desenvolvimentos.

Por fim, em uma terceira etapa de sua contribuição (pp. 253-9), Wielockx propõe novamente revisões crítico-textuais – agora, à edição de Quodl. 10, q. 7 de Henrique de Gand, realizada uma vez mais por Macken.33 Não somente o autor propõe, a partir do já citado ms. Paris, BnF lat. 15350 legado por Godofredo de Fontaines, correções a esta edição e o preenchimento de lacunas textuais que se encontram nela (pp. 253-4, 256-9), mas igualmente estuda as consequências doutrinárias de tais correções no contexto dos debates entre os mestres de Roma e de Gand (pp. 254-6). Ou seja, como ocorria na segunda etapa desta contribuição, também agora o que Wielockx nos fornece é um utilíssimo instrumento para uma leitura mais responsável de trechos do volume 14 dos Opera omnia de Henrique de Gand.

III.

Essas duas últimas contribuições ao livro L’aristotélisme exposé – isto é, a de Cordonier e a de Wielockx – apontam mais claramente aquilo que constitui o Leitmotiv de todo o volume: a necessidade da crítica textual para a compreensão das redes de intertextualidades diacrônicas e sincrônicas que formam a base de uma narrativa histórica (neste caso, uma narrativa de um período bem curto, de poucos anos, da história da filosofia medieval). Dito isso, os demais artigos que

32 PICKAVÉ, “A new book on Giles of Rome and Henry of Ghent...”, 2014, p. 397.

33 HENRICI DE GANDAVO. Quodlibet X. Ed. Raymond Macken. Leuven – Leiden: Leuven University Press/Brill, 1981 (Henrici de Gandavo Opera omnia 14).

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compõem o livro igualmente trazem à baila – cada um a sua maneira – essa mesma temática. Desse ponto de vista, parece-me, a obra como um todo coloca, para o historiador da filosofia medieval, além de todas as importantes contribuições aos estudos sobre Egídio Romano e Henrique de Gand, fundamentalmente um problema metodológico e teórico, pois ela discute, no limite, a própria relação entre a narrativa histórica e a possibilidade do estabelecimento de uma base textual para tal narrativa. O resultado hiperbólico desse questionamento – mas, sinceramente, não vejo como dele fugir – é o princípio de Wielockx que lemos acima, segundo o qual “[p]ara se apoiar em um texto estabelecido de maneira crítica, o recurso aos manuscritos é indispensável [Pour s’appuyer sur un texte établi de façon critique, le recours aux manuscrits est indispensable]” (p. 181). Longe de ser um truísmo, essa afirmação coloca em dúvida a própria possibilidade de uma edição crítica, uma vez que ela caracteriza qualquer texto criticamente estabelecido como um ‘trabalho em andamento’ – uma edição crítica só será bem lida à luz dos manuscritos nos quais ela se baseou (ou daqueles que ela deixou de considerar). Em resumo, o volume resenhado, tomando por ocasião o estudo das relações de intertextualidade que se pode reconhecer entre Henrique de Gand e Egídio Romano, põe dois níveis de problemas metodológicos: [i] a necessidade basilar da crítica textual para que seja possível uma narrativa da história da filosofia medieval e [ii] a insuficiência inerente a qualquer resultado obtido pela mesma crítica textual. Essas são questões que deverão ser discutidas para que seja possível uma melhor compreensão teórica da própria historiografia contemporânea da filosofia medieval.

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