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Habermas, Eugenia Liberal e o Direito à  Liberdade Reprodutiva

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Resumo: o presente trabalho examina a posição habermasiana

a respeito da engenharia genética, centrando-se em considerações relacionadas com o direito à liberdade reprodutiva e buscando res-saltar a relação entre a posição do autor e de defensores de um direito à liberdade reprodutiva nessa situação, como é o caso de Ronald Dworkin.

Palavras-chave: liberdade, eugenia, bioética, direitos

Allerdings steht die eugenische Freiheit der Eltern unter dem Vorbehalt, dass sie mit der ethischen Freiheit der Kinder nicht kollidieren darf.

(Habermas)

Charles Feldhaus

HABERMAS, EUGENIA LIBERAL E O DIREITO

O

debate bioético acerca da permissibilidade ou não do uso das tecnologias reprodutivas, que, de modo hipotético ao menos, serão futuramente disponibilizadas pela biotecnologia moderna, tem se voltado, principalmente, em particular, no debate dos filósofos da Europa Continental, por um lado, e norte-americanos, por outro, ao escopo dos direitos liberais, em particular às liberdades de procriação e reprodução. Historicamente, este direito tem suas origens na necessidade de proteger os cidadãos do Estado, de empreender políticas de esterilização involuntária, de miscigenação, etc. Além disso, esse direito caracteriza-se por proteger verticalmente a esfera de escolhas reprodutivas livres dos cidadãos. Contudo, Habermas questiona a priorização da relação vertical e a desconsideração de outra relação, a saber, a relação horizontal entre os próprios cidadãos e os efeitos prejudiciais de

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certos pretensos usos da liberdade reprodutiva, com isso evidenciando as conseqüências antiliberais da eugenia liberal. Essa equiparação do direito de reprodução e procriação com o uso das tecnologias reprodutivas citadas acima é, além do mais, dependente de outras equiparações altamente controversas como entre a educação e a manipulação genética, entre a atribuição de res-ponsabilidade em um contexto em que os dotes naturais são orientados pelo acaso e pelo destino com um contexto em que as preferências e intenções dos progenitores orientam este processo, entre outras. Além disso, o direito à liberdade reprodutiva não é um incondicional, como alguns parecem su-gerir, ou ao menos pressupor1, porque ele pode ser limitado por outros

va-lores ou bens.

Para Mendieta (2004), o texto Die Zukunft der menschlichen Natur assemelha-se muito mais com um escrito político-legal [Kleine Politisce Scriften] do que com um estritamente filosófico. Uma preocupação central de Habermas é com a atitude subjacente à intervenção genética e à ausência de respeito [Ehrfurcht] e consideração pela dignidade da vida humana (Würde des

menschlichen Lebens)2. Atribuindo dignidade à vida humana do embrião,

todavia, ele não está retomando à antiga questão do estatuto do embrião, pois a abordagem habermasiana parte da impossibilidade de resolvê-la. A abordagem habermasiana se preocupa com os fundamentos naturais e antropológicos da autonomia e da liberdade ética. Desse modo, a liberdade habermasiana clara-mente desvincula-se, em parte, ao menos, da visão kantiana. Para Kant, liberda-de é algo liberda-de que todos os seres racionais finitos eram dotados e, ao mesmo tempo, algo para o qual todas as suas ações deveriam orientar-se, mas em momento algum Kant entende a liberdade ética como apoiada por considerações empíricas. Na solução da terceira Antinomia da Crítica da Razão Pura, Kant inclusive sustenta que, quando estamos no campo prático, a saber, quando tratamos das ações huma-nas da perspectiva relevante à moralidade, supomos independência dos móbiles sensíveis e da causalidade natural3. Pressupomos que o ser racional é dotado de

espontaneidade em suas ações, caso contrário, as mesmas nem poderiam ser de-nominadas suas próprias ações. Ao tratar da bioética, por sua vez, Habermas defende abertamente que elementos empíricos e mesmo a consciência da mani-pulação genética, podem impossibilitar pessoas de compreenderem-se como pessoas iguais e livres4.

Ronald Dworkin, jurisfilósofo norte-americano, defende o uso da tecnologia, baseando-se em dois princípios de sua concepção de moralidade política e na incapacidade humana de identificar qualquer tipo de valor envolvido na reação de oposição à tecnologia5. Habermas não critica

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intervenções que podem ser realizadas, ao contrário de seu companheiro norte-americano. A argumentação habermasiana recorre a uma ética da es-pécie (Gattungsethik). Por ética da eses-pécie ele entende as condições ou pres-supostos incontornáveis de nossa moralidade convencional, entre os quais se incluem as noções de igualdade, autonomia e responsabilidade.

Embora sustentem posições antagônicas, em certo sentido, Dworkin e Habermas também têm muitos pontos em comum, dos quais se salienta-rão apenas os principais, por mor da brevidade. Ambos concordam que a engenharia genética afeta a estrutura geral de nossa experiência moral. To-davia, Dworkin considera isso um episódio passageiro da história de nosso progresso moral. Habermas considera necessário proteger nossa moral con-vencional desses ataques. Ambos concordam que os tipos de intervenções genéticas permitidas estão na dependência de um debate democrático, visto que noções como doença e saúde são de difícil definição e delimitação, em virtude da variação cultural entre Estados e até mesmo dentro do Estado em razão do pluralismo de concepções de bem. Todavia, Habermas considera sujeito ao debate democrático apenas as intervenções que se orientam pela

Logik des Heilens [lógica da cura], ou que ao menos sejam candidatas a tal.

Dworkin, por sua vez, sujeita ao debate democrático tanto as intervenções terapêuticas quanto as aperfeiçoadoras.

Tornando mais precisa a explicação das posições de ambos: segundo o estadunidense, cabe aos pais apenas decidir que tipos de intervenções genéticas poderiam ser realizados, dado a inexistência da evidência de risco7.

Para Habermas, certos tipos de intervenção genética tornam-se previamen-te indisponíveis ao arbítrio dos pais, como as inpreviamen-tervenções que não se res-tringem a cura, mas adentram no campo do aperfeiçoamento8. Dworkin

entende que, assim como os pais têm o direito de escolher quando se repro-duzir e como educar seus filhos, os pais tem direito de escolher como e quando usar as tecnologias reprodutivas para esses mesmos objetivos. Selecionar geneticamente traços à luz de suas preferências em nada se diferencia da maneira habitual de reprodução e educação humana, ou seja, nenhuma nova questão é suscitada. Como Habermas parece corretamente apontar, Dworkin transfere o tipo de raciocínio desenvolvido no debate acerca do aborto para o caso do Diagnóstico Genético de Pré-implantação (DGPI) e para a enge-nharia genética9. A base desse raciocínio parece ser um paralelo entre o

di-reito à tolerância religiosa moderno e a escolha dos pais do patrimônio genético de sua prole. Porém, o que Dworkin entende como uma expansão da liberdade ética (‘expansão material’, nos termos de Habermas) e um res-peito às diversas concepções de bem que marcam as sociedades

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contempo-râneas (‘pluralismo de concepções de abrangentes’, para usar o jargão de Rawls) é compreendido pelo filósofo herdeiro da Escola de Frankfurt de outra maneira. Para Habermas, há um núcleo racional não explorado na reação de aversão à nova tecnologia e também não é correto traçar paralelos entre eugenia liberal e os direitos reprodutivos. As mesmas intuições normativas referentes ao aborto não resultam nas mesmas decisões éticas, no caso da engenharia genética10. Embora o embrião não possa ser sujeito de direitos

no sentido estrito do termo, intervenções dirigidas a ele podem ser conside-radas erconside-radas, em função da sua indisponibilidade [Unverfügbarkeit].

Habermas (2001) busca estabelecer um nexo entre simetria nas rela-ções humanas interpessoais e dignidade da vida humana, a fim de driblar o problema da determinação do estatuto do embrião. A tradição liberal clás-sica baseada em Locke ignora o efeito horizontal, a saber, entre os próprios destinatários dos direitos fundamentais e privilegia a relação vertical do Estado para com os cidadãos (HABERMAS, 2004). Habermas procurar ressaltar a contradição latente na visão liberal no que diz respeito a esta questão bioética. Os liberais estão demasiado preocupados em defender a liberdade ética dos pais como se apenas estivesse em jogo esta liberdade e ignoram a liberdade ética dos seres humanos manipulados. Como parece adequadamente ressal-tar Prusak (2005, p. 35), acerca da posição do estadunidense, ele “não reflete muito sobre como a pessoa submetida à programação eugênica pode ser afetada”.

A liberdade reprodutiva pode sofrer restrições e exigir ponderação com outros valores. Além disso, é errôneo “pensar que o prejuízo a ser impedido é um prejuízo apenas ao feto [...] o prejuízo a ser impedido é um prejuízo que alcançará a criança que o feto se tornará mais tarde” (BUCHANAN et al., 2000, p. 228), Por esta razão pode ser objetado que Dworkin tem comprome-timentos com o utilitarismo, que merecem escrutínio. Dworkin assume, com base nas decisões legais norte-americanas, que o embrião somente pode ter interesses a partir do momento em que ele é capaz de sentir dor. Contudo, se houver algum tipo de objeção normativa plausível às intervenções genéticas, com certeza, elas não se referem a este tipo de interesses. Os interesses relevan-tes à questão não são aqueles que o embrião possui no momento da inter-venção genética, orientados pela utilidade, mas sim, os interesses da pessoa em que o embrião um dia se tornará. E, portanto, não parece correto afirmar que o embrião não tem interesses a ser protegidos no momento da manipu-lação, como sustenta Dworkin (2000), pois há interesses da pessoa futura que o embrião se tornará. Além disso, poder-se-ia ir mais longe na critica, afirmando que, na discussão atual a respeito da eugenia liberal, há outros

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tipos de valores envolvidos, que não podem ser restritos a perspectiva ética utilitarista. Pode haver interesses de outra ordem que não apenas evitar o sofrimento, seja físico, seja psíquico11. Ele entende que, como um feto não

é dotado de sistema nervoso desenvolvido até determinada fase da gestação, então não é um ser consciente e, portanto, incapaz de ter qualquer interesse dele mesmo. Entretanto, mesmo que o embrião não tenha interesses utilitaristas, como Dworkin advoga, ele pode ter interesses de outra ordem. Como por exemplo, um interesse por parte da pessoa em que o embrião manipulado se tornará de não ter uma esfera de liberdade de ação ética res-trita demais. Mesmo que o determinismo genético seja falso, e Habermas claramente não advoga que seja verdadeiro, como alguns insinuam, algu-mas limitações às liberdades éticas dos seres humanos manipulados perma-necem. Um exemplo claro é a intervenção que visa introduzir um traço como cegueira, a fim de que pais cegos tenham filhos também cegos, que, certa-mente, limitaria a liberdade do filho12. As intervenções que procuram

au-mentar a habilidade para alguma atividade particular, como a matemática, a,música, os esportes, etc. são mais controversas. Contudo, Habermas ad-voga que o aspecto mais relevante são as intenções dos progenitores que pretenderam vê-las concretizadas e isso, com certeza, pode ter casos dissonantes, pois é impossível saber a priori, ou melhor, antes do nascimen-to, que tipos de características poderiam ser aceitas, ou não, pela prole.

Habermas (2001) advoga que podemos incluir seres humanos e atu-almente até não humanos dentro da esfera de relevância moral, ou da comu-nidade de seres iguais e simetricamente situados, sem que o ser seja capaz de participar diretamente do discurso prático moral, ou seja, ocorre um tipo de

anticipatory socialization. E, quanto aos fetos, já o fazemos de maneira

in-tuitiva em alguns casos, sustenta Habermas, pois os pais, em muitas situa-ções, referem-se ao filho no útero materno como a um outro. Com isso, Habermas não está defendendo nenhum novo critério ou propriedade de âmbito a partir da qual se classifiquem seres humanos como incluídos na esfera de relevância moral, mas apenas questionando a obviedade que paira sobre a noção utilitarista de capacidade de sentir dor iniciada com o desen-volvimento de um sistema nervoso e ressaltando o caráter mais complexo da questão acerca da determinação do estatuto do embrião e, ao mesmo tempo, recorrendo a uma noção com bases intuitivas.

O ponto de Habermas (2001) é que a indisponibilidade

[Unversfügbar-keit] não se restringe apenas a quem receba o estatuto de um sujeito de direitos

e de quem é dotado de dignidade humana [Menschenwürde]. Com a distin-ção entre inviolabilidade [Unantastbarkeit] da dignidade humana e

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indisponi-bilidade da vida humana pré-pessoal, Habermas (2004) quer ressaltar que não há agressão ao direito de uma pessoa existente, mas sim uma redução do esta-tuto de uma pessoa futura e um prejuízo à consciência da autonomia. Não há uma privação de direitos, mas uma insegurança no que diz respeito ao estatuto da pessoa manipulada. Habermas apela a uma reconstrução da semântica do uso do termo dignidade [Würde], a fim de poder incluir a vida humana pré-pessoal na esfera dos seres dotados de valor e dignos de respeito e consideração moral. Todavia, ele não estaria incorrendo em nenhum tipo de aristotelismo, como afirma Mendieta13. A intervenção genética discutida aqui suscita

ques-tões de um calibre diferente da mera variabilidade cultural, uma vez que não se restringe “a esta ou àquela diferença na variedade de formas de vida cultural [...] mas a nossa autocompreensão enquanto seres da espécie” (HABERMAS, 2004, p. 55) e, além disso, significa “uma redefinição de espaços, dentro dos qual a futura pessoa fará uso de sua liberdade, a fim de moldar sua própria vida ética” (HABERMAS, 2004, p. 109).

Objeta-se que Habermas parece usar o mesmo tipo de argumento tanto contra a eugenia liberal quanto contra o uso de embriões exclusivamente para pesquisa e contra o DGPI. No entanto, não é óbvio que esses diferentes tipos de intervenção possam ser criticados pelas mesmas razões ou pelos mesmos argumentos14. Há elementos comuns e elementos díspares na

ar-gumentação habermasiana contra essas tecnologias. Todas elas implicam um tipo de atitude instrumental para com a vida humana pré-pessoal15, mas o

argumento da presunção de consentimento contrafactual, por exemplo, aplica-se claramente contra a eugenia liberal e não contra o uso de embriões exclusivamente para pesquisa e ao DGPI em si, pois apenas a manipulação genética baseada nesse diagnóstico pré-natal superando a lógica da cura é censurável, na perspectiva de uma ética da espécie. Um argumento alterna-tivo para os dois casos seria o da Würde da vida humana. Sem dúvida, em ambos os casos seria um uso instrumental de embriões, porém, no caso da pesquisa, seria um uso instrumental que precisa ser ponderado com o bem ou benefício da cura ou descoberta de tratamentos para doenças graves, ao passo que, no caso da escolha genética baseada no DGPI, a ponderação estaria relacionada com uma atitude de gerar ‘apenas sob certas condições’ versus nenhum benefício.

Para Prusak, a posição habermasiana é plausível, pois tanto a eugenia liberal quanto a pesquisa com células tronco e o DGPI introduzem a mesma atitude para com a vida pré-pessoal humana, a saber, uma atitude de instrumentalização e de gerar ‘apenas se’ certas condições forem satisfeitas. Além disso, “a pesquisa com células tronco embrionárias e o DGPI

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inculca-riam atitudes para com a vida humana pré-pessoal que promoveinculca-riam uma transição da eugenia negativa para uma positiva”. Esta inclusão do DGPI e da pesquisa com embriões dentro das intervenções censuráveis, do ponto de vista de uma ética da espécie, aproxima o argumento habermasiana dos sllipery

slope arguments [argumentos da ladeira escorregadia]. Contudo, há uma

diferença gritante entre as bases de um argumento da ladeira escorregadia e a estratégia argumentativa habermasiana ao tratar da eugenia liberal, a saber: a última busca evidenciar o núcleo racional das atitudes aparentemente ir-racionais de oposição à biotecnologia moderna aplicada à medicina reprodutiva, ao passo que as primeiras têm base afetiva e emocional e ne-nhum núcleo racional, apenas um temor de perder o controle do que é certo e do que é errado. Por incrível que pareça, Fenton (2006) inverte essa ordem de importância e sustenta que os argumentos na linha da ladeira escorrega-dia são poderosos e importantes, ao passo que argumentos na linha habermasiana são mal-orientados. Fenton incorre neste tipo de avaliação errônea dos respectivos pesos dos argumentos, primeiramente, porque ela compra uma interpretação da estratégia argumentativa habermasiana incor-reta, ou seja, ela inclui Habermas, juntamente com Annas e Fukuyama, na linha de objeção à eugenia caracterizada por uma re-sacralização da natureza humana nos moldes de uma ontologia de valores. Todavia, esta interpreta-ção, como salienta Kersting (2005), é equivocada, pois Habermas não in-corre nem numa re-sacralização da natureza humana, nem numa ontologia de valores, mas apresenta um argumento sui generis, contudo, dotado de um calcanhar-de-Aquiles consequencialista, para Kersting. Quanto à posi-ção de Fenton, ela também mal-compreende o argumento da ladeira escor-regadia, pois, caso contrário, não atribuiria a ela tamanho poder. O argumento da ladeira escorregadia tem bases em sentimentos como o temor da incerte-za moral, por exemplo.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Para Habermas, o debate a respeito da eugenia liberal distingue-se da discussão sobre o aborto, uma vez que não está em jogo, no primeiro, um conflito entre o direito de autodeterminação da mãe com a necessidade de proteção do embrião (ou feto), como na segunda. No primeiro, o foco é o tipo de atitude envolvida para com a vida humana pré-pessoal do embrião, ou seja, uma atitude de ponderação da vida pré-pessoal nos moldes de um bem material, digna de existência apenas ‘sob certas condições’, quais sejam, estar de acordo com as preferências e as orientações axiológicas de terceiros.

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Embora enfatize a diferença entre o debate acerca do aborto e as discussões atuais sobre a eugenia liberal, Habermas reconhece que a discussão histórica sobre o aborto tem algumas coisas a ensinar, entre as quais, encontra-se a comprovação do fracasso de qualquer tentativa de estabelecer o estatuto normativo da vida humana pré-pessoal.

Portanto, a eugenia liberal não poderia ser considerada um caso de direito reprodutivo, tal como o entende Dworkin, por exemplo, e a própria afirmação do estadunidense de inexistência de qualquer tipo de valor envol-vido na intervenção estaria incorreta. De uma perspectiva reducionista utilitarista, talvez um embrião a ser fecundado e previamente a isto, mani-pulado geneticamente, não tenha interesses. Entretanto, numa perspectiva mais abrangente, da qual parte Habermas, a pessoa que o embrião se torna-ria é dotada de interesses, entre os quais se encontra o de receber uma esfera de liberdade ética que torne possível o desenvolvimento de seus projetos ou planos de vida. Mesmo defensores da eugenia liberal, como Buchanan e os co-autores de From Chance to Choice: Genetics and Justice, e Agar, reco-nhecem que algumas intervenções genéticas afetam a liberdade ética dos indivíduos geneticamente manipulados. Agar, por exemplo, distingue entre aperfeiçoamentos genéticos de capacidades que apóiam uma gama ampla de planos de vida, ao passo que outros tipos, por sua vez, são específicos de alguns planos de vida particulares. Este último tipo, ele mesmo reconhece, é poten-cialmente limitador da liberdade da ética da prole.

Notas

1 Para Buchanan (2000), há considerações que levam a se pensar em limitações da liberdade reprodutiva, a saber, se houver um conflito potencial entre a liberdade reprodutiva e alguns valores sociais; se a manipulação genética pretende gerar um filho cuja existência para ele envolve demasiado sofrimen-to, por exemplo, pais cegos manipulam geneticamente o embrião para ter um filho cego; finalmente, quaisquer tipos de intervenções genéticas que de modo significativo restrinjam a gama de escolhas dos filhos seriam injustas. Em síntese, a liberdade reprodutiva pode ser limitada por exigências de igual oportunidade, pelo direito a um futuro aberto do filho e pela obrigação de não causar dano. Quanto ao suposto direito a um futuro aberto para a prole, defendido primeiramente por Feinberg e utilizado por Habermas contra a eugenia positiva, convém apenas ressaltar que o artigo original de Feinberg tratava de escolha relativas ao meio por parte dos pais e não de escolhas genéticas. O artigo de Feinberg relaciona-se com o caso discutido nos EUA Wisconsin versus Yoder. Neste caso, os pais de uma determinada comunidade, amish, desejavam tirar seus filhos da escola com a idade de 14 anos e não com 16 como ordenava a legislação vigente. Segundo os pais, seus filhos não precisavam dos dois anos adicionais de educação para desenvolver o modo de vida da comunidade. Para Feinberg, con-tudo, o problema nessa escolha dos pais relaciona-se com a limitação das perspectivas das crianças de realização de qualquer plano de vida diferente dos de sua comunidade. Em outras palavras, esta escolha limitaria a gama de planos de vida abertos as crianças e seria um tipo de intromissão na

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li-berdade ética dos filhos. Um atitude anti-liberal autorizada pela lili-berdade liberal dos pais de decidir como educar seus filhos.

2 Para Habermas (2001; 2004), mesmo que o embrião não seja propriamente um destinatário de di-reitos, a vida pré-pessoal goza de valor em uma forma de vida eticamente constituída. Além disso, Habermas distingue entre dignidade humana [Menschenwürde] e dignidade da vida humana [Würde

des menschlichen Lebens]. Menschenwürde pertence a toda pessoa humana juridicamente, ao passo

que o outro tipo de dignidade poderia ser atribuído até mesmo a pré-pessoa do embrião. A dignidade da vida humana precisa ser ponderada de maneira diferente da dignidade humana que é um direito, uma vez que bens [Gütern] e direitos [Rechten] são diferentes. Os direitos são ponderados de ma-neira fixa, ao passo que bens podem ser considerados prioritários ou não. (HABERMAS, 2001). 3 Kant (1997, A 555-583): “se pressupõe que poderia se por totalmente de parte essa conduta e

con-siderar a série passada de condições como não tendo acontecido”.

4 Mameli dedica-se a examinar a posição habermasiana, segundo a qual, o conhecimento da manipu-lação genética pela pessoa manipulada a tornaria incapaz de assumir responsabilidade plena por suas ações e minaria seu estatuto como um membro cooperativo igual da sociedade. Para MAMELI, esse argumento habermasiano é insustentável, porque grande parte dos aspectos psicológicos relaciona-dos com a atribuição de responsabilidade plena são resultado da escolha de outras pessoas e também seria mais oneroso para as pessoas geneticamente manipuladas ser consideradas não plenamente dotadas de responsabilidade do que o contrário. Mameli, contudo, parece equivocado ao sustentar que res-ponsabilidade é algo que escolhemos ou não ter. A resres-ponsabilidade, ao menos segundo Kant, e o kantismo ainda alimenta nossas convicções normativas, é uma pressuposição e uma condição neces-sária do âmbito prático. A Liberdade e a responsabilidade moral são algo que seres humanos atribuem-se mutuamente na esfera moral e jurídica de suas ações e ao mesmo tempo algo que se tornam cientes mediante a consciência da obrigatoriedade dos mandamentos morais. Portanto, não escolhemos ser livres e responsáveis, mas somos compreendidos como tais no âmbito prático ao menos, ao supor independência dos motivos e móbeis determinantes de nossas ações em relação ao mundo natural. No caso da engenharia genética discutido aqui, contudo, essa suposição de independência parece perder a força, pois independente da validade ou não do determinismo genético a intervenção vem carre-gada de intenções que pretendem determinar o espaço dentro do qual o indivíduo manipulado poderia concretizar seu projeto racional de vida.

5 1o Princípio – é objetivamente importante que qualquer vida humana uma vez começada se bem sucedida e não falhe e o potencial dessa vida seja realizado e não perdido e isso é válido igualmente para cada vida humana. 2o Princípio da responsabilidade – a pessoa de quem a vida é tem uma res-ponsabilidade especial por cada vida e em virtude dessa resres-ponsabilidade especial tem um direito de tomar decisões fundamentais que definem o que é uma vida bem sucedida (DWORKIN, 2000, p. 448-9).

6 Habermas (2001, p. 78): “Natürlich ist nicht die Gentechnik, sondern Art und Reichweite ihrer Verwendung das Problem”.

7 Dworkin parece deixar o debate refém do parecer técnico do cientista, é importante lembrar o principialismo na bioética, por exemplo, inclui as técnicas formas de análise e avaliação de risco no princípio da beneficência, ou seja, um princípio consequencialista que avalia a utilidade. Portanto, Dworkin, ao focar na ausência de risco e na capacidade de sentir dor está assumindo claramente uma posição consequencialista e utilitarista tanto na avaliação da nova tecnologia quanto na determina-ção do critério de inclusão dentro dos seres dotados de relevância moral. Habermas, por sua vez, como ressalta Lafont (2003, 158); foca no aspecto normativo central envolvido na eugenia liberal, a saber, a questão da responsabilidade na distribuição de talentos naturais, da gama de oportunidades dentro das quais as pessoas podem desenvolver e seguir livremente um projeto de vida.

8 Há objeções contra o uso da distinção cura/aperfeiçoamento para esta finalidade, contudo, este tema não será abordado aqui. Para um critica do uso da distinção como critério demarcador entre certo e o errado moralmente veja Resnik (2000). Para Prusak, a distinção entre intervenção terapêutica e eugênica ocupa na abordagem de Habermas um papel meramente regulativo.

9 Habermas (2001, p. 58): “der Präimplantationsdiagnostik [...] unterscheidet sich vom Schwangerschaftsabbruch in relevanten Hinsichten. Bei der Ablehnung einer ungewollten

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Schwangerschaft kollidiert das Selbstbestimmungsrecht der Frau mit der Schutzbedürftigkeit des Embryos. Im anderen Fall gerät der Lebensschutz des Ungeboren mit einer Güterabwägung der Eltern in Konflikt, die einen Kinderwunsch haben, aber auf die Implantation verzichten wollen, wenn der Embryo bestimmten Gesundheitsstandards nicht entspricht.”

10 Habermas (2001, 57): “Aber die vermuteten Parallelen trügen. Aus denselben normativen Grundüberzeugungen ergeben sic him Hinblick auf die aktuelle Frage der Zulässigkeit von PID keineswegs ähnliche Parteinahmen wie in der Frage der Abtreibung.” Todavia, Habermas reconhece que o debate acerca do aborto nos ensinou que não é possível uma definição ideologicamente neutra do estatuto moral do embrião.

11 Naturalmente, a posição dworkiana contempla outros tipos de interesses em outras questões, con-tudo, ele ignora que possa haver outros tipos no que diz respeito ao tema discutido aqui. Além disso, o raciocínio de Dworkin parece seguir a seguinte estrutura: não há valores envolvidos e não há risco de dano ao embrião, logo, os pais têm direito a decidir (com base nas liberdades reprodutivas) que tipos de filhos vão ter. Contudo, há uma tensão mal explicada neste ponto, uma vez que não está claro porque os pais têm direito de escolher. Se por inexistir valores envolvidos, ou se por remeter a valores sagrados ou intrínsecos, ou ainda por ambos. Se a primeira hipótese é verdadeira há menos a objetar, pois alguém não pode ser impedido de fazer algo em virtude de sua ação não cometer dano algum, logo, estaria justificado esta posição; se a segunda hipótese, então precisaria ser mostrada que é um caso de valor intrínseco e que todos os casos de valor intrínseco são semelhantes à divergência de crença e credo; se a terceira for correta, há até uma contradição, pois não estaria envolvido ne-nhum tipo de valor e estaria envolvido valor intrínseco e por isso cabe aos pais decidir. Se os casos de engenharia genética discutidos aqui se assemelham com os casos de aborto permitidos por Dworkin, então, a terceira hipótese parece ser correta e ele incorreria em um tipo de contradição.

12 Este exemplo é discutido por Dena S. Davis e também cita a seleção sexual como outro caso de in-tervenção limitante do direito a um futuro aberto.

13 Cf. Mendieta (2004, p. 724): Para ele, alguns argumentos muito peculiares contidos em O Futuro

da Natureza Humana podem levar a se pensar que Habermas abandonou o paradigma do

pensamen-to filosófico pós-metafísico e repensamen-tornou a uma metafísica quase-arispensamen-totélica das essências. 14 Esta objeção foi suscitada por Siep.

15 A reconstrução da estratégia argumentativa habermasiana baseada nos diferentes tipos de atitudes envolvidas será abordada apenas em versões posteriores do presente texto.

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Abstract: this work intends to examine the Habermasian position about

genetic engineering dealing mainly with his considerations concerning the right of reproductive freedom and looking for to emphasize the relation between the Habermas’ position and of others that argue for the right of

reproductive freedom in this case, for instance, Ronald Dworkin. Key-words: reproductive freedom, liberal eugenics, bioethics, rights

CHARLES FELDHAUS

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