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O fenômeno da depressão em uma perspectiva biomédica: a omissão do sujeito

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Academic year: 2019

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O fenômeno da depressão em uma perspectiva biomédica: a omissão do sujeito

A depressão é amplamente discutida no campo da saúde mental; porém, ainda hoje, é abordada em estreita relação com o modelo biomédico, centrado no diagnós-tico homogêneo, tendo como base expressões sintoma-tológicas gerais (KESSLER et al., 2003; SAMUELS; HEN, 2011; DISNER et al., 2011; KUPFER; FRANK; PHILLIPS, 2012). Diante da influência desse modelo nas práticas em saúde, o sujeito tem sido ignorado no pro-cesso do “adoecer”, culminando em frequentes quadros de patologização, caracterizado pelo permanente redu-cionismo biológico – processo amplamente abordado nos trabalhos de Basaglia (1985), Canguilhem (2004) e Capra (1982). Tal perspectiva coloca em segundo plano elemen-tos culturais, sociais e históricos – dimensões indissociá-veis do modo de vida atual da pessoa e da saúde humana (CAMPOS; AMARAL, 2007; GONZÁLEZ REY, 2012). Consequentemente, nessa lógica, as práticas de saúde são realizadas em abordagem unidimensional dos fenômenos

humanos, não criando condições para serem promovidos saberes e práticas que considerem a complexidade da vi-vência singular do momento depressivo (KLEINMAN, 1988; HORWITZ; WAKEFIELD, 2010).

É certo que não podemos negar os amplos alcances e a importância dos progressos no âmbito da saúde realiza-dos sob hegemonia do modelo biomédico. Por exemplo, ressaltam-se a tecnologia de equipamentos que permi-tem, hoje, técnicas cirúrgicas avançadas e a descoberta dos antibióticos, que possibilitaram o eficaz tratamento das doenças infecciosas. Sua prática, no entanto, ao tor-nar-se dominante também no âmbito da saúde mental, culminou no negligenciamento de aspectos que são su-mamente relevantes para a compreensão de fenômenos sociais, culturais, históricos e subjetivos – partes indis-sociáveis da gênese dos chamados “transtornos mentais”. Nesse contexto, as críticas a esse modelo culminaram em diferentes movimentos que se contrapuseram à psi-quiatria hegemônica, formando diferentes vertentes da reforma psiquiátrica no mundo, como nos Estados Uni-dos (CAPLAN, 1980), na França (TOSQUELLES, 2001), na Inglaterra (JONES, 1962), na psiquiatria democrática italiana (BASAGLIA, 1985; ROTELLI, 1994) e no

movi-Processos subjetivos da depressão:

construindo caminhos alternativos em uma aproximação cultural-histórica

Andressa Martins do Carmo de Oliveira

,

I, H

Daniel Magalhães Goulart

,

I

Fernando Luís González Rey

II

I Universidade de Brasília, Brasília, DF, Brasil II Centro Universitário de Brasília, Brasília, DF, Brasil

Resumo

Este artigo tem o objetivo de explicar processos subjetivos associados à depressão, apoiando-se em um estudo de caso. O trabalho fundamenta-se no método construtivo-interpretativo, que tem como principal referência a Teoria da Subjetividade em

uma perspectiva cultural-histórica. O olhar para a subjetividade, nesse viés, distancia-se da hegemônica reificação patológica da depressão, que tem limitado as práticas de saúde mental ao oferecer instrumentos teóricos que favorecem a percepção sobre

como esse fenômeno expressa-se concretamente em trajetórias únicas de vida. Nesse sentido, com base no referencial teórico adotado, foi possível gerar inteligibilidade sobre a singular complexidade do processo depressivo a partir do caso estudado. Haja vista essa proposta, colocou-se em discussão que considerar a pessoa deprimida em sua integralidade, incluindo suas

concepções, vivências e formas de sociabilidade, é fundamental para fomentar reflexões e estratégias que não dissociem clínica,

cultura e sociedade. Trata-se de situar o processo depressivo dentro de uma trama concreta de vida, não o contrário.

Palavras-chave: depressão; subjetividade; saúde mental.

Subjective processes of depression:

constructing alternative paths upon a cultural-historical approach

Abstract

This article aims to explain subjective processes related to depression, supported by a case study. This work is based on the constructive-interpretative method, having as its main theoretical referential the Theory of Subjectivity in a cultural-historical

approach. The subjectivity in the referred perspective differs from the hegemonic pathological reification of depression, which

has limited mental health practices, by offering theoretical tools that favor theoretical visibility on how this phenomenon con-cretely expresses in unique trajectories of life. Therefore, based on the adopted theoretical framework, it was possible to gen-erate intelligibility about the uniqueness complexity of depressive process regarding the studied case. Thus, it pointed out that to consider the depressed person in its entirety, including its conceptions, experiences and ways of sociability, is fundamental

to promote reflections and strategies that do not dissociate clinic, culture and society. That is to situate the depressive process

inside a concrete weft of life, not the other way.

Keywords: depression; subjectivity; mental health.

H Endereço para correspondência: Universidade de Brasília, Faculdade de

Edu-cação, Secretaria da Coordenação de Pós-Graduação em EduEdu-cação, prédio FE 1, sala AT 56/6, Campus Universitário Darcy Ribeiro, Brasília-DF. CEP 70904-970. E-mail: andmartins18@hotmail.com, danielgoulartbr@yahoo.com.br,

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mento que transitou em diversos países conhecido como antipsiquiatria, representado por diversos autores, como Cooper (2013), Goffman (1974) e Szasz (1960).

Em geral, a prática médica no modelo biomédico, ba-seada em uma concepção mecanicista das funções orgâ-nicas, pauta-se na prevenção e remediação de “doenças” (CAMARGO, 2007; FOUCAULT, 1972). Vivemos em um momento no qual a depressão é diagnosticada pelo período curto em que a pessoa vivencia uma dada con-dição constante de tristeza e desinteresse, considerando apenas um limitado conjunto de “sintomas”, o que de-grada, consequentemente, a condição singularizada da pessoa ao vivenciar tais condições (HORWITZ; WAKE-FIELD, 2010; BARONI; TONELI, 2012).

A pluralidade e a dinamicidade dos matizes emocio-nais das pessoas, atualmente, são negligenciadas pelos atores da sociedade, ao serem postulados pretensos esta-dos emocionais ideais com base em preceitos hedonistas e enrijecidos. Ou seja, apesar de a tristeza ser um assunto na pauta de alguns contextos sociais, ela ainda é frequen-temente tratada como “um sentimento que as pessoas não deveriam vivenciar”. Com recorrência, deparamo--nos com tramas sociais que continuamente limitam as possibilidades de trocas sociais em determinadas situa-ções emocionais socialmente indesejáveis. Esses padrões favorecem a sutil e progressiva exclusão de determina-dos processos humanos que, não por acaso, passam a ser considerados como “patológicos” (AMARANTE, 1994; BASAGLIA, 1985). Nesse sentido,

[...] ao focalizar somente o que há de comum entre os

sin-tomas expressos pela pessoa atendida, a lógica biomédica

implica a escolha pré-determinada dos sintomas que são socialmente aceitos e aqueles que devem ser evitados e, nesse sentido, associa-se a uma rígida e estreita perspectiva daquilo que é e deve ser considerado um desenvolvimento normal. Em outros termos, trata-se de postular a existência

de uma concepção universal da natureza humana

(GOU-LART, 2013a, p. 128, grifos do autor).

A concepção de que trata o autor assenta-se em uma perspectiva padronizada e hedonista da vida, voltada para a constante busca pelo conforto. Nesse sentido, a permanência de um estado idealizado de felicidade torna--se imperativo, e tudo o que dele se desvia deve ser “ajus-tado”, de preferência com recursos externos que possam ser comprados. Nessa perspectiva, o modelo biomédico, em conjunto com o Capitalismo, promove implicita-mente a busca por um império de sensações que visam a ocultar qualquer contradição possível da vida, minimi-zando o valor da emergência de certas emoções e, por-tanto, favorecendo um permanente estado de passividade do homem. Ademais, como parte orgânica da associação modelo biomédico-capitalismo prevalecente no campo da saúde, o saber e as práticas nesse campo ainda estão em estreita relação com o paradigma da cientificidade e sua busca por relações diretas e lineares, tendo como fio condutor uma concepção estreita de um método abstrato, cuja referência são as balizas propostas pela epistemolo-gia moderna dominante (GONZÁLEZ REY, 2014).

Nesse sentido, trata-se a saúde humana por meio de um processo de objetivação da pessoa, mediante a construção de generalidades, cujo objetivo é legitimar dentro de uma visão estreita e pouco flexível de ciência (GUEDES; NO -GUEIRA; CAMARGO, 2006). Além do mais, tal objeti-vação tem como principal consequência a subjugação da pessoa num processo contínuo de cristalização de poderes, no qual o especialista outorga a si mesmo o topo hierárqui-co. A esse respeito, argumenta Capra (1982, p. 150):

De acordo com o modelo biomédico, somente o médico sabe o que é importante para a saúde do indivíduo, e só ele pode fazer qualquer coisa a respeito disso, porque todo

o conhecimento acerca da saúde é racional, científico, ba -seado na observação objetiva de dados clínicos. [...] A au-toridade do médico e sua responsabilidade pela saúde do paciente fazem-no assumir um papel paternal. Ele pode ser um pai benévolo ou um pai ditatorial, mas sua posição é claramente superior à do paciente.

Na mesma direção crítica do reducionismo da ciên-cia, Morin (2005, p. 30), em sua perspectiva da com-plexidade, aponta a importância de “esforçar-se não por sacrificar o todo à parte, a parte ao todo, mas por con -ceber a difícil problemática da organização”. Assim, em uma compreensão dinâmica do desenvolvimento da sub-jetividade, faz-se necessário incluir os diferentes fatores em interação que participam desse processo, consideran-do aspectos subjetivos que são produções de pessoas e grupos sociais a partir de experiências históricas e atuais. Pauta-se, assim, no modo como tais aspectos perpassam o curso de suas experiências no presente, bem como es-tão recursivamente organizados na dimensão social de qualquer espaço (GONZÁLEZ REY, 2011; GONZÁLEZ REY; GOULART; BEZERRA, 2016).

O conhecimento biomédico linear e orgânico da de-pressão, por exemplo, ignora a processualidade das ex-periências de vida da pessoa e a complexa organização simbólica dos diferentes elementos que constituem os espaços sociais das suas experiências que, por sua vez, são tramas indissociáveis do momento depressivo. Con-sequentemente, recusa a complexidade de todo o pro-cesso que está organizado subjetivamente pela pessoa. Podemos dizer, portanto, que o domínio do saber biomé-dico elimina o sujeito da “patologia”, propiciando um co-nhecimento parcial da depressão, ao diagnosticar pessoas por meio de meras manifestações de tristeza, sem atentar àquele que as vivencia. Desse modo, torna-se importante criar caminhos alternativos de pensamento que permitam superar as limitações resultantes desse modelo hegemô-nico. Nessa perspectiva, muito além de buscar compre-ender a depressão enquanto fenômeno abstrato, torna-se premente compreender como ela integra uma trama de vida que, apesar das dificuldades atuais, também cultiva recursos e potencialidades.

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con-textos sociais que integra parece constituir-se um esforço heurístico no sentido de criar alternativas a esse mode-lo estancado (GOULART, 2015, 2017). Portanto, faz-se premente a valorização da produção subjetiva como uma abertura às possibilidades de pesquisa que não se limitam às dimensões já exploradas pelo modelo biomédico.

A perspectiva cultural-histórica como possibilidade de transcender representações estanques do psiquismo

O fundador da psicologia cultural-histórica, que sur-giu no contexto soviético no princípio do século XX, Lev Vigotski, propôs o estudo do social em sua articulação aos processos psíquicos, possibilitando avançar na noção de unidade psicológica no estudo dos fenômenos humanos (VIGOTSKI, 1994, 2009). Esse marco teórico abriu novos caminhos à trajetória do pensamento científico da época, permeado pelas representações positivistas dominantes.

De particular relevância ao presente estudo, Vigotski vislumbrou a complexidade das expressões psicológi-cas do homem, abarcando a gênese social do psiquismo. Criam-se, assim, diferentes categorias para estudar proces-sos culturais e sociais a partir de nova aproximação que, qualitativamente, diferenciava o homem do animal (GON-ZÁLEZ REY, 2004, 2013). O fato representou esforço sig-nificativo à época, por possibilitar avançar em relação às fragmentações na produção do conhecimento, sobretudo no que se refere à dicotomia indivíduo e sociedade, que, tradicionalmente, marca diferentes perspectivas teóricas no âmbito da saúde. Esse esforço faz-se nítido, por exem-plo, em sua primeira obra, Psicologia da Arte, em que Vi-gotski (2001) aponta para uma possibilidade teórica que, notadamente, a psicologia social contemporânea ainda se debate para concretizar. “Esses psicólogos não admitem a ideia de que, no movimento mais íntimo e pessoal do pensamento, do sentimento, etc., o psiquismo de um in-divíduo particular seja efetivamente social e socialmente condicionado” (VIGOTSKI, 2001, p. 14).

Vigotski buscou diferenciar a psique em determi-nados processos que caracterizavam a especificidade humana, guiado por uma representação dialética que pos-sibilitou transcender noções estáticas e parciais dos me-canismos psíquicos. Nesse processo, também valorizou as emoções, destacando seu papel gerador, e integrou-as a outros processos no desenvolvimento humano – o que foi, segundo González Rey (2009b, 2014, 2016) espe-cialmente enfatizado no último momento de sua obra, entre 1932 e 1934, ao propor as categorias “sentido e pe-rezhivanie”(VIGOTSKI, 1987, 1994).

Nesse último momento de sua obra, Vigotski gerou importante alternativa teórica em relação à predominante referência ao ambiente enquanto determinante direto do tipo de emoções que poderia gerar nas pessoas, marcando certa ruptura com a lógica objetal e com o tradicional princípio do reflexo na psicologia soviética (GONZÁ -LEZ REY, 2014, 2016). Entretanto, apesar desses sig-nificativos avanços, as bases teóricas que sustentavam a ideia de internalização dos processos sociais no indivíduo impossibilitavam, de certa forma, avançar em relação a como “[...] a multiplicidade de fenômenos e processos da

vida social se expressam na psique”(GONZÁLEZ REY, 2009a, p. 213). Igualmente, é possível notar relativa au-sência de definições conceituais que levariam à compre -ensão de processos psíquicos que tomam forma mediante a emergência das emoções, gerando novos processos qualitativos que se desenvolveriam para além de uma única função. Ademais, seus postulados não lograram abranger teoricamente o simbólico enquanto inseparável das emoções (GONZÁLEZ REY, 2009a, 2014, 2016).

Foi assim que, na tentativa de avançar esse legado in-concluso vigotskiano, González Rey (2009b, 2013, 2014, 2016) caminhou em uma nova definição ontológica dos processos humanos ao definir a subjetividade enquanto sistema simbólico-emocional. Essa definição ultrapassa o reducionismo individual e intrapsíquico que tem sido do-minante no uso do conceito de subjetividade, ao mesmo tempo em que permite superar o reducionismo social do-minante na psicologia cultural-histórica, ao centralizar-se nas noções de reflexos e operações sociais internalizadas.

A depressão na teoria da subjetividade: da patologia

à configuração subjetiva

O modelo biomédico é uma possível explicação para a depressão, porém sua abrangência hegemônica lança explicações de bases biológicas, mecanicistas e unidi-mensionais, que não priorizam o modo como o sujeito organiza a própria experiência, ou seja, negligenciam a dimensão subjetiva. Assim, ocultam-se aspectos singula-res que são indissociáveis da compreensão dos processos de saúde, o que a Teoria da Subjetividade, elaborada por González Rey (2003, 2007, 2012), traz como possibilida-des, ao enfatizar uma qualidade específica dos fenôme -nos huma-nos que tem sido ignorada pelas perspectivas hegemônicas nesse campo: a unidade simbólico-emocio-nal (GOULART, 2013a, MORI, 2014b, SILVA, 2008).

A categoria subjetividade – em uma perspectiva cul-tural-histórica – proposta por González Rey (2003, 2007, 2013), vem desafiar a noção reducionista-organicista, avançando em relação à lógica universal, patológica, de modo a enfatizar um olhar voltado às possibilidades da emergência dos indivíduos e grupos sociais enquan-to sujeienquan-tos de suas experiências de vida. Sob essa ótica, o indivíduo ou um grupo social produz a partir de suas experiências singulares de vida. Essa produção é simbó-lica-emocional (GONZÁLEZ REY, 2011).

Desse modo, as organizações das experiências singu-lares são configuradas de diferentes maneiras e por meio de vários elementos, em que a consciência, por exemplo, é apenas um momento dessa complexidade (MITJÁNS MARTÍNEZ, 2005). Assim, pode-se dizer que a experi-ência depressiva é experimentada de forma singular, ou seja, cada pessoa terá uma experiência única, apesar de eventuais semelhanças sintomáticas.

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favore-ce a existente profavore-cessualidade das experiências que são configuradas emocional e simbolicamente pela pessoa (MORI; GONZÁLEZ REY, 2012).

Os sentidos subjetivos organizam-se em configura -ções subjetivas, outra categoria proposta pelo autor, que expressa as redes simbólico-emocionais relativamente estáveis relacionadas a algum evento, pessoa ou processo significativo em uma situação concreta de vida (GONZÁ -LEZ REY, 2003, 2011). A partir dessa proposta, é possível pensar em formas alternativas às classificações padroni -zadas do modelo biomédico, uma vez que esse concei-to pressupõe, por exemplo, a impossibilidade de reificar qualquer fenômeno humano enquanto uma entidade, enquanto essência desvinculada das tramas concretas de vida da pessoa que as vivenciam (NEUBERN, 2005).

Dessa forma, ao pensar a depressão por essa ótica, é possível integrar a multiplicidade de cenários da vida da pessoa e as distintas maneiras de subjetivar as expe-riências, configuradas sob processos ocultos à perspec -tiva “baseada em evidências”, tão aclamada atualmente pela medicina, gerando, assim, novas zonas de sentido (GONZÁLEZ REY, 1997, 2005b, 2014) sobre esse tema. Assim, pode-se dizer que as configurações subjetivas do processo depressivo são produções das pessoas e dos es-paços sociais que as envolvem, o que possibilita visibi-lidade teórica de outro sistema ontológico humano, que não ignora a importância de aspectos orgânicos, mas que não se esgota no histórico, no discurso e tampouco no biológico (GOULART, 2013b; MITJÁNS MARTÍNEZ, 2005; MORI, 2014a).

Com base nessa aproximação teórica, podemos pen-sar que a depressão não se caracteriza por um conjunto específico de sintomas comportamentais, mas por uma atual estagnação na produção de sentidos subjetivos al-ternativos ao sofrimento psíquico, culminando na perma-nência de um estado psicológico marcado pela ausência de protagonismo mediante maneiras rígidas de pensar e de lidar com fenômenos e situações da vida cotidiana, culminando nas expressões recorrentes atribuídas a esse quadro. A diferença dessa definição, portanto, é que o foco não está no comportamento expresso, mas na trama de vida sobre a qual a emergência desse comportamen-to assenta-se. Nessa compreensão, uma vez que sentidos subjetivos não são compreendidos de forma isolada, mas organizados em configurações constituídas também por outros sentidos subjetivos (GONZÁLEZ REY, 2011), di-ferentes experiências poderão constituir a configuração subjetiva da depressão. Esse é um processo que sempre transcende a nossa consciência, escapando qualquer pos-sibilidade de predição e controle (NEUBERN, 2004).

Por exemplo, uma pessoa deprimida, que está em crise em seu matrimônio, pode atribuir todo seu sofri-mento ao conflito conjugal e, no entanto, esse sofrisofri-mento pode estar relacionado de forma mais profunda a aspec-tos de seu trabalho, à sua forma de organizar sua rotina e ao modo como cuida de sua saúde, sem que ela tenha consciência disso. Nesse caso, romper a relação com o marido pode não somente não trazer qualquer benefício, como pode agravar seu estado de sofrimento. Ou seja,

a subjetividade humana constitui um universo simbóli-co-emocional complexo e processual, que ultrapassa, em grande medida, nossa capacidade de significação sobre ela (GONZÁLEZ REY, 2003). Nessa perspectiva, a pes-quisa científica e o trabalho clínico visam a gerar inteli -gibilidades que estão para além do óbvio e daquilo que é alcançado racionalmente pela pessoa que sofre (GOU-LART, 2013a, 2015; MORI; GONZÁLEZ REY, 2012).

Com base no exposto, a Teoria da Subjetividade pos-sibilita gerar visibilidade teórica sobre a complexa articu-lação entre individualidade, cultura e sociedade atuantes no processo da depressão. Além do mais, compreender a depressão nessa perspectiva é abordar fenômenos sutis, imperceptíveis pelo imediatismo empírico ou por estu-dos e práticas supostamente a-teóricos. Dessa forma, o viés teórico eleito suscita inteligibilidade sobre processos subjetivos que estão na base do quadro depressivo que, configurados no momento atual, fazem com que a pes -soa perca o interesse pela vida, limitando-a a ter novas produções. Fundamentado nesse referencial, o objetivo deste artigo é explicar processos subjetivos associados à depressão, com base em um estudo de caso.

Metodologia

O presente estudo apoia-se nos pressupostos da Epis-temologia Qualitativa e da metodologia construtivo-in-terpretativa, propostas por González Rey (1997, 2005a), que se baseiam no caráter construtivo-interpretativo do conhecimento e reconhecem a centralidade da qualidade da comunicação no processo da pesquisa, bem como do singular na produção do saber. Ao afirmar que o conhe -cimento é construtivo-interpretativo, o autor enfatiza o caráter não representacional e linear em relação à reali-dade, considerando-o como produção sobre o vivido, na qual se integram as dimensões emocional e imaginária. Dessa forma, supera-se o nexo causal linear atribuído frequentemente aos processos humanos, sendo possível ultrapassar o imediatismo empírico.

No processo de construção da informação, o teórico não é “aplicado” forçosamente no empírico, mas cons-titui-se enquanto conjunto de ferramentas intelectuais, que favorecem a significação dos fenômenos estudados, pela via interpretativa, sendo o pesquisador de suma importância nesse processo, pois é responsável por ar-ticular elementos da pesquisa de campo aparentemente dispersos, por meio da construção de indicadores que promoverão inteligibilidade sobre o fenômeno estudado (GONZÁLEZ REY, 1997, 2005a, 2012).

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Instrumentos

Nesse referencial, o tipo de instrumento deve ser es-colhido em relevância ao caso estudado, portanto, a sua validação apriorística não entra em questão (GONZÁLEZ REY, 2005a). Os instrumentos utilizados no presente es-tudo são a dinâmica conversacional e o complemento de frases. O primeiro expressa um processo de diálogo a par-tir do qual o pesquisador, tendo em vista seus objetivos de pesquisa, baseia-se naquilo que parece ser relevante para o outro (GONZÁLEZ REY, 2005a), ultrapassando o ca-ráter enrijecido do formato hegemônico de “entrevistas” que geralmente são utilizadas nas pesquisas. A intenção é constituir uma relação na qual ambos, participante e pesquisador, encontrem-se emocionalmente implicados. Assim, sem delineamentos fixos a priori, buscam-se ex -pressões carregadas de produções subjetivas, em que o pesquisador terá elementos para produzir teoricamente frente a isso (GONZÁLEZ REY, 2005a).

Já o complemento de frases é um instrumento que, ao conter indutores curtos que deverão ser completados livremente pelo participante, oferece ao pesquisador di-versas opções de construção qualitativa. Ademais, poten-cializa os alcances de novos e significativos trechos de informação por parte do pesquisador, precisamente por favorecer a emergência de novos processos subjetivos relacionados à própria história e aos diferentes contextos sociais integrados pela pessoa. A utilização desse instru-mento deve acontecer somente após a criação de um vín-culo com a pessoa (GONZÁLEZ REY, 2005a).

Participante

O estudo de caso realizado na pesquisa teve como par-ticipante ML: mulher, 25 anos, solteira, formada recente-mente em Direito. ML é da classe social média e reside sozinha em Brasília (DF). No momento da pesquisa, ML estava desempregada e passava boa parte do seu tempo estudando para uma prova de proficiência profissional, após três fracassadas tentativas. ML expressou nunca ter tido dificuldades nos estudos, mas que, naquele momento, por mais que se esforçasse, não conseguia passar no exa-me exa-mencionado. Com base no objetivo de pesquisa que fundamentou a construção deste artigo, ML foi escolhida por ter recebido diagnóstico de episódios depressivos oito meses antes do início da pesquisa e por estar em tratamen-to medicamentratamen-toso. Foi o seu primeiro e único diagnóstico médico. Segundo afirmação dela, o diagnóstico era de -corrente do término de um relacionamento amoroso que vivenciou por cinco anos. No momento da pesquisa, esse namoro havia terminado há quase dois anos, e seu antigo parceiro estava prestes a se casar com outra pessoa. Até o momento da pesquisa, ML ainda não havia tido outra relação amorosa após tal término.

Análise e construção da informação

Nos primeiros encontros com ML, utilizamo-nos da dinâmica conversacional em diferentes momentos. Em nossos diálogos iniciais, o tema central trazido espon-taneamente por ela foi o antigo relacionamento, sobre o qual expressou momentos marcantes de um passado

amoroso, incluindo diversos relatos sobre o ex-namorado e a relação de cinco anos que vivenciaram. Alguns tre-chos durante nossa conversa podem exemplificar a forma como ML se referia ao relacionamento passado:

Encontrei o meu ex hoje, nossa, não sei o que me deu...

De-pois da festa me deu uma depressão tão grande, fiquei mui -to triste! Aí mandei uma mensagem para ele, falei: “Quero conversar com você”, mas não era para falar da gente, era para conversar com ele. Aí nos encontramos. Assim, me deu uma tristeza depois daquela festa, uma coisa ruim... um lugar que eu fui e não queria estar.

Em outro momento, expressou:

Até hoje não consigo esquecê-lo, eu quero que isso

aconte-ça... às vezes eu acho que o fato de raramente

conversar-mos me faz ter esperança... Tudo me lembra ele. Eu estudo

porque ele me incentivava. É incrível como minha

produ-ção caiu depois que terminei o namoro... já tem um ano e

nove meses que terminamos.

Em ambos os relatos, percebe-se que ML demonstra sentir incômodo por pensar no ex-namorado, mas que, ao mesmo tempo, pouco se posiciona frente ao sofrimento que isso lhe provoca, terminando por não conseguir ge-rar um caminho alternativo de produção subjetiva frente a essa situação. Somado a isso, o fato de ela atribuir o término do namoro à queda na sua produção é um indi-cador de como ela se coloca na posição de refém de uma situação, justificando seu sofrimento às causas externas às suas próprias responsabilidades, comportamento pre-sente também na seguinte expressão: “No dia do meu aniversário, ele me contou que ia se casar. Totalmente

desnecessário! Nossa, fiquei muito triste. Eu estava perto

de fazer uma prova, que acabei não conseguindo passar. Isso pra mim abalou demais”. Nessa fala, ML relaciona linearmente uma dificuldade atual, que é sua incapacida -de para passar em um exame, à relação amorosa que ter-minou há quase dois anos. Dessa forma, tendo em vista as construções interpretativas realizadas sobre o lugar de passividade em que ML coloca-se, é possível construir um indicador de um processo subjetivo que foi se mos-trando recorrente nas expressões de ML: a atribuição das responsabilidades por seus processos de vida a outrem e não a si mesma. Esse mesmo fenômeno também se fez presente no seguinte trecho do complemento de frases, ao escrever sobre a relação com as irmãs:

A gente se fala muito, mas quando elas moravam aqui éramos próximas demais, assim, eu sinto que perdi alguns valores da época de quando elas moravam aqui. A família toda junta, eu tinha valores diferentes que hoje não tenho mais, tipo, quando eu saía com um cara, eu me controlava mais, porque elas estavam perto. Hoje às vezes, quando eu

faço as coisas, penso: que merda! Não é de mim, espiritual -mente sinto que estou mais que perdida. Estou sem nada.

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valo-res”, de modo que eles não constituem sua forma de ser, de ver o mundo e agir, mas tão somente uma dimensão fragilizada, que se encontra presente apenas mediante presença das irmãs ao seu lado.

Interessante notar como as expressões de ML são, em sua maioria, carregadas pelo mesmo eco infindável de queixa em relação aos outros e à sua própria condi-ção, o que fica novamente explícito quando ela fala das amizades: “Hoje tenho uma ou duas amigas. Já tive mui-tas, mas as pessoas estão muito complicadas, e eu não

ficarei correndo atrás delas”. Da mesma forma que nas outras expressões de ML abordadas, a participante pare-ce não assumir protagonismo nas relações pessoais que constitui. Além disso, esse trecho indica o estreitamento de seus vínculos, o que parece culminar em progresso desinteresse por construir amizades e vínculos afetivos mais profundos. Podemos verificar que, diante de expres -sões variadas, ML mantém tal posicionamento “passivo” frente a diferentes dimensões da vida, referindo-se, na maioria das vezes, a elementos externos e raramente a si mesma, dificultando a produção de processos subjetivos alternativos a seu momento depressivo.

As construções tecidas até aqui nos levam à ideia de que esse modo de ML lidar com as próprias responsa-bilidades, evadindo-se da assunção de posicionamentos claros e orientados à mudança de sua condição atual de vida, pode estar assentado na base de uma configuração subjetiva dominante em seu momento de vida atual, que se expressa no quadro depressivo apresentado por ela. Precisamos, porém, da construção de outros indicadores que poderão dar sustentação a essa hipótese, ou eventual-mente contradizê-la.

À medida que ML parecia se sentir mais à vontade em nossa conversa, o diálogo foi entrando em um sistema complexo de ideias até então ocultas, e outros aspetos de sua vida começaram a emergir. No âmbito da metodolo-gia em questão, considera-se que situações de vida mais profundas do participante vão emergindo mediante cons-tituição de um espaço de confiança com o pesquisador (GONZÁLEZ REY, 2002, 2005a).

Dessa forma, gradativamente, o diálogo com ML foi abordando situações da vida que estavam para além de sua relação amorosa, razão central à qual ela explicita-mente atribui seu sofrimento atual. Isso é expresso na seguinte resposta a um complemento de frases:

Eu gostaria: De mudar tanta coisa na minha vida!!! Eu queria mudar totalmente minha vida, mudar de Brasília. Às vezes me sinto totalmente perdida, tenho vontade de estar estável, para constituir uma família, mas ao mesmo tempo

eu quero o mundo. Vivo esse conflito diariamente na minha cabeça. Quero estabilidade, encontrar alguém, e por eu es -tar sozinha, e eu acho que a maneira de eu fugir disso é ir para o mundo, penso que saindo daqui, mudando, eu vou encontrar pessoas diferentes.

Nesse complemento, ML apresenta um discurso abs-trato, desvinculado de projetos específicos, permitin -do-nos observar o quanto a participante parece almejar mudanças no curso de sua vida, porém encontra-se

inca-paz de expressá-las por meio de caminhos que poderiam concretizá-las. A própria expressão do termo “perdida” para caracterizar sua condição atual alude à tal incapa-cidade para criar condições que poderiam efetivamente levar a mudanças desejadas em sua vida, uma situação que a ideia de “fugir” também expressa.

Portanto, podemos perceber a dificuldade de ML em produzir novos sentidos subjetivos, ao observarmos maneiras repetitivas e rígidas de lidar com aspectos cen-trais em sua vida. Além do mais, as expressões de ML parecem reafirmar o próprio sofrimento, ao invés de conduzi-la rumo a mudanças tangíveis. Nesse sentido, é interessante notar como em vários trechos de diálogos fi -guram vazias as suas propostas de ações, como podemos perceber também nas respostas dos complementos de frases, ao escrever sobre o “que se esforça diariamente”: “Esforço-me diariamente: por ser uma pessoa melhor,

para tentar... para ser... como eu posso dizer... para que

meus objetivos futuramente sejam alcançados, para que

eu consiga... conquistar os meus objetivos”. Ao escrever sobre o tema “trabalho”:

Instabilidade. Me formei há um ano e ainda não consegui

fixar em nenhum lugar. Sei a área que quero atuar, quero

me especializar, mas me sinto sem foco, aérea, ainda um pouco perdida. Às vezes quero estabilidade e em poucos minutos planejo me mudar de Brasília, conhecer pessoas novas, lugares diferentes.

Nos trechos acima, é interessante notar, novamente, a imprecisão e instabilidade com que ML se remete a as-pectos centrais da sua vida, como o seu esforço diário e o trabalho. Ou seja, percebe-se que não há uma orientação clara em sua forma de agir, o que intensifica a sua falta de protagonismo.

Ademais, a partir das expressões anteriores, pode-se constatar que o momento atual é percebido como “sem objetivos” para ML, uma vez que ela afirma buscar al -cançar seus objetivos apenas futuramente, e não agora; e, também, pelo fato de seus objetivos não aparecerem associados a um plano concreto a ser desenvolvido. Da mesma forma, esse posicionamento recorrente de ML parece estar em estreita relação com o que ela escreveu durante o complemento de frases em relação a quais são seus objetivos de vida:

O que mais me traz vontade é me realizar profissionalmen

-te, me encontrar profissionalmen-te, sabe, de falar eu estou

feliz no que eu estou fazendo, e de ter uma tranquilidade de saber que se for o lado da estabilidade que me deixa as-sim, se realmente for isso, de sossegar, chega, agora tenho estabilidade no trabalho, e acho que consequentemente as outras coisas chegam.

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a elaboração da hipótese de que ML não consegue, no momento, organizar um campo de ação que poderia con-duzir a transformações cruciais em sua vida voltadas ao seu bem-estar e à capacidade de gerar sentidos subjetivos alternativos ao sofrimento.

ML ainda expressa em relação à família:

Eu lamento não poder estar tão próxima das minhas irmãs, do meu pai, não ter uma família tão perto de mim, e es-tar, ao mesmo tempo, morando sozinha; ter tudo e não ter nada. Ao mesmo tempo que meu pai me proporciona uma vida boa, ao mesmo tempo que tenho tudo, eu acho que não tenho nada. Tem um vazio, tem alguma coisa que eu não consigo me completar. Não consegui falar hoje que eu sou uma pessoa feliz. É triste falar isso.

Nesse trecho, pode-se perceber que novamente ML demonstra uma incerteza, predominante nas reflexões so -bre sua vida, mantendo-se em uma situação de lamento por sua condição. É notável como essa postura se expressa nas diversas relações pessoais de ML, bem como em sua forma de agir em diferentes âmbitos de sua vida. Assim, diferentemente do que ela atribui inicialmente, o estado depressivo em que se encontra atualmente não se resume, em hipótese alguma, à situação concreta de rompimento de sua relação amorosa, mas configura-se subjetivamente de maneira profunda na forma de ML relacionar-se com o mundo, com as pessoas e consigo mesma. Essa é uma expressão do valor heurístico do conceito de configura -ção subjetiva, que permite gerar inteligibilidade sobre a articulação entre um estado psicológico atual e diferen-tes espaços sociais e momentos históricos singulares que compõem o universo da pessoa. Além disso, ao visibilizar teoricamente como a depressão de ML transcende o sig-nificado atribuído por ela à sua própria situação, torna --se evidente que a dinâmica subjetiva não se assenta em uma base racional e intencional, mas encontra seus pontos mais sensíveis e fulcrais em dimensões obscuras e distan-tes da representação consciente de quem as vivencia.

Por fim, a configuração subjetiva da depressão de ML expressa-se por sua incapacidade de posicionar-se de ma-neira singularizada em suas relações e em seus projetos de vida, pela constante referência ao outro e quase nunca a si mesma e pelo afastamento subjetivo de mudanças concretas. Nesse sentido, é interesse notar, em vários tre-chos do diálogo, como figuram vazias as suas propostas de transformação, apontando de certa forma para uma situação em que ela se posiciona como refém de suas limitações. Dessa forma, como evidenciado, a inteligi-bilidade dos processos subjetivos associados ao quadro depressivo de ML está assentada em dinâmicas singu-lares, que dizem respeito a uma trama concreta de vida – posicionamento teórico-epistemológico que supera a generalização abstrata presente na concepção da depres-são enquanto patologia reificada.

A subjetividade social e suas implicações na depressão

Uma questão recorrente observada nas expressões de ML e que parece estar em estreita relação com a confi -guração subjetiva de sua condição depressiva é a fixação

em atributos materiais e superficiais das pessoas, o que pode ser entendido como desdobramento de uma sub-jetividade social que centraliza o valor do consumo em detrimento da qualidade das relações humanas.

O prevalecimento de alguns aspectos dessa subjeti-vidade social adquire formas singulares de expressão, como observados no caso de ML: “Terminamos pelo fato de estarmos muito tempo juntos e ele não ter atitude...

ele não tinha condições financeiras e eu ficava cobrando umas coisas tipo... eu não vou ficar rachando conta o

resto da minha vida”. Essas formas de expressão mar-cam a qualidade do conflito que ML menciona, crucial para o término do seu namoro. Esse fato possibilita tecer um indicador de como ela estava fixada nas condições financeiras que o outro poderia oferecê-la, sem perceber o valor humano e a qualidade da relação que eles haviam construído. De certo modo, essa postura pode ser vista como desdobramento subjetivo do discurso de uma so-ciedade capitalista, que orienta subjetivamente a pessoa à necessidade de consumir, o que acaba favorecendo uma condição de passividade e dependência em relação ao “externo” que pode ou deve ser adquirido.

Em consonância ao que foi dito, ML trouxe durante uma de nossas conversas uma reflexão sobre suas irmãs:

Eu acho que tudo na minha vida tem muito dedo das mi-nhas irmãs, por exemplo, o fato de eu ter terminado com meu ex-namorado. Se elas não tivessem falado tanto na

minha cabeça, teria ponderado um pouco mais. Elas me influenciavam muito falando: “Ele não vai te dar uma vida tão tranquila financeiramente como você merece, olha a

vida que eu tenho”. Elas sempre colocavam a vida que elas

tinham sabe? E eu ficava assim: “e a vida que eu quero

ter?”. Elas me criticam, me cobram muito.

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experiên-cia depressiva, pois, assim, a “cura” também se encontra fora e não a partir dos próprios recursos que gerariam caminhos alternativos de desenvolvimento.

Considerações finais

O presente artigo abordou algumas reflexões em rela -ção aos processos subjetivos da condi-ção depressiva de uma pessoa. De maneira geral, foi possível perceber que a concepçãobiomédica hegemônica da depressão distan-cia-se das formas dinâmicas e complexas com que se dão os processos subjetivos da pessoa. Na perspectiva da Te-oria da Subjetividade trabalhada neste texto, a ênfase não está em uma suposta depressão em si, mas na configura -ção subjetiva que está na base das expressões psicológicas daquele que sofre. Diante disso, trazemos como aspectos essenciais da compreensão da depressão, a partir do caso ML e da Teoria da Subjetividade, os seguintes aspectos:

1) A configuração subjetiva da depressão é constituída por alguns processos subjetivos hegemônicos, que culmi-nam na incapacidade da pessoa de gerar alternativas de subjetivação em relação à situação de sofrimento atual.

2) O modo cristalizado de refletir e de posicionar-se frente aos próprios processos de vida, muitas vezes, im-possibilita a pessoa de perceber a pluralidade de vivências que culminam na depressão, para além de uma situação específica ou alguma disfunção orgânica pontual.

3) O problema da concepção patologizante expressa pelo modelo biomédico reside na impossibilidade de ge-rar inteligibilidade sobre a qualidade da tristeza da pes-soa de forma singularizada, além de ignorar os recursos e produções do próprio sujeito.

Ademais, podemos pensar que a posição de ML, em relação às suas experiências de vida, está relacionada também à organização de aspectos da subjetividade so-cial, que remetem à naturalização do discurso capitalista que privilegia o ter em detrimento do ser. Dessa forma, existem elementos da subjetividade social que, muitas vezes, estão assentados na base da configuração subjetiva individual da depressão. Conforme observado no caso de ML, tais aspectos podem limitá-la a organizar um campo de ação que, provavelmente, conduzi-la-ia rumo à supe-ração de seu quadro atual, mediante produção de novos sentidos subjetivos.

Ao ponderarmos alguns dos processos subjetivos da depressão, organizados a partir de vivências de ML, rompemos com a lógica biomédica que trata o “adoecer” humano baseado em aglomerados de sintomas que impli-cam uma forma padronizada de referir-se ao período de-pressivo. Por outro lado, considerar a dimensão subjetiva daquele que vivencia sua própria condição permite-nos abranger a cultura, o histórico e o social e, portanto, a maneira singular com que esses elementos são subjetiva-dos pela pessoa, abstendo-a de ser comparado ou reduzi-do a qualquer situação taxativa e apriorística.

Essas reflexões geram inteligibilidade sobre o tema em questão e abrem caminhos para formas diferentes de conceber os fenômenos, bem como contribuem no desen-volvimento da ideia de pensar estratégias alternativas ao

modelo biomédico no que diz respeito à atenção aos casos de depressão. Dessa forma, tais reflexões podem fomen -tar novos processos sociais de atenção, que possibilitam, por sua vez, impactar em grande medida na qualidade dos serviços terapêuticos prestados a esses casos. Destaca-se a importância de não considerar este trabalho conclusi-vo, mas tê-lo como uma contribuição ao desenvolvimento necessário de futuros estudos dedicados a essa temática.

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Recebido em: 11 de fevereiro de 2015

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