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REPUBLICANISMO, FEDERALISMO E PATRIMONIALISMO: A FORMAÇÃO DAS INSTITUIÇÕES POLÍTICAS BRASILEIRAS COMO UM MOSAICO DE CONTRADIÇÕES

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tal, V

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REPUBLICANISMO, FEDERALISMO E PATRIMONIALISMO: A FORMAÇÃO DAS INSTITUIÇÕES POLÍTICAS BRASILEIRAS COMO UM MOSAICO DE

CONTRADIÇÕES1

Raimundo Márcio Ribeiro Lima2

RESUMO

O artigo discute sobre a origem da República e do federalismo brasi-leiro, destacando um curso histórico de contradições entre a teoria das instituições políticas, seus modelos e propósitos, com a realidade das instituições estampadas com o advento da República de 1889. Além disso, discute-se a interferência do patrimonialismo na promoção da ação política, como realidade histórica desde a Monarquia, acentuando sua capacidade mimética em face das mudanças nas instituições ou nos modelos de gestão pública, o que instrumentaliza, com largo êxito, as práticas corruptivas na estrutura orgânico-funcional do Estado.

Palavras-chave: Republicanismo. Federalismo. Patrimonialismo. Cor-rupção.

“[…] o povo quer a proteção do Estado, parasitando-o, enquanto o Estado mantém a menoridade popular, sobre ela imperando. No plano psicológico, a dualidade oscila entre a decepção e o engodo”3.

1 Adota-se a ortografia do Novo Acordo Ortográfico de 1990, inclusive nas transcrições de textos com escritas antigas ou arcaicas, exceto título de obra ou artigo.

2 Doutorando em Direito Constitucional pela UFC. Doutorando em Direito Público pela Universidade de Coimbra. Mestre em Direito Constitucional pela UFRN. Procurador Federal/AGU. Associado do Instituto Brasileiro de Advocacia Pública (IBAP).

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FIDES, Na tal, V . 8, n. 1, jan./jun. 2017. FIDES, Na tal, V . 8, n. 1, jan./jun. 2017. 1 INTRODUÇÃO

A dificuldade da formação do Estado nacional possui diversas razões: algumas são bem elementares; outras, complexas, mas todas capazes de exercer influência sobre os tortuosos rumos de uma nova nação, com velhos dilemas, nos albores do século XIX. A tormenta de de-safios vai da busca de uma identidade nacional até uma efetiva formação de um corpo de insti-tuições político-administrativas de caráter verdadeiramente nacional, que seja capaz de navegar pelas incertezas de um Estado soberano na comunidade internacional. Em verdade, a expressão nacional sempre comporta muitas digressões no universo da Ciência Política, não apenas por conta dos inevitáveis percalços na definição dos parâmetros da nacionalidade, desejosamente objetivos, mas, sobretudo, pela recorrente ciranda de interesses que sempre acenam para fora da ideia corrente dos interesses decididamente nacionais. Portanto, discute-se o formalmente nacional, porque a dinâmica dos prospectos materiais, que sempre comportam importantes dis-cussões doutrinárias, adentrando até mesmo nos denuncismos de crimes de lesa-pátria, acaba por representar um círculo discursivo amplo demais aos objetivos deste breve artigo.

A questão monárquica, por sua vez, revela, no caso brasileiro, um misto de estupefação e operacionalidade quanto à cadência dos princípios republicanos. A dessepulta escravidão no seio do Estado, mais que uma chaga aberta na sociedade brasileira, servira de mote para os mais perniciosos objetivos políticos, especialmente os relacionados aos descuidados fins da ciranda econômica nacional. A novel República, no poço dos desejos políticos, gozou ou sofreu com todas as pedras passíveis de serem lançadas pela infame ou infantil discórdia como regime anterior.

A novela dos ciclos políticos, para longe de uma reflexão mais séria sobre os problemas nacionais, mas superando os conflitos regionais de cariz libertador, mantiveram as pretéritas estruturas político-sociais com novas roupagens, que dissimularam os velhos propósitos, mais

condizentes com os luminares princípios republicanos, mas, de todo modo, restando sempre

vi-sível os ranços do patrimonialismo que ainda reina triunfante no largo campo das instituições públicas brasileiras. O mosaico de contradição não reflete, nem de longe, a sinuosa estrutura que mantém o federalismo brasileiro, porém denuncia que os imperativos, nada lineares, da formação das instituições políticas haveria de consagrar nodosos caminhos no desenvolvimento do Brasil.

O artigo discutirá, dentre outros pormenores, sobre republicanismo, federalismo e pa-trimonialismo numa relação discursiva com os atuais desafios da sociedade brasileira, pon-tuando, principalmente, os arranjos políticos que possibilitaram a atual estrutura do Estado brasileiro: suas contradições, seus retrocessos ou avanços.

Neste artigo, a reflexão, preponderantemente bibliográfica, não nega, contudo, a força das informações colhidas pelas pesquisas quantitativas eventualmente consideradas, só que o sobrevoo das inquietações ancora-se basicamente nas perquirições de ordem qualitativa, co-lhendo nas fontes históricas que testemunharam a controvertida dinâmica da formação das instituições políticas brasileiras.

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2 A MONARQUIA COMO ARRANJO POLÍTICO E A REPÚBLICA COMO ALHEAMENTO POLÍTICO

A Monarquia vive imponente no século XXI, portanto, não enveredou no ostracismo cantado em verso e prosa, de afogadilho, pela erudição apoteótica e pueril de muitos republi-canos, como se as mazelas brasileiras decorressem do regime monárquico e, com isso, apenas a República acenaria para um novo e reluzente cenário das instituições políticas no Brasil. Olvidando, assim, a multissecular advertência de Jean-Jacques Rousseau, a saber: “Para ser legítimo, o governo não deve se (sic) confundir com o soberano, mas ser seu ministro: então a própria Monarquia é República” 4. É dizer, o Estado monárquico pode ser regido por leis,

in-dependentemente de sua forma de organização, porquanto apenas o interesse público governa, denotando que a coisa pública é, de fato, uma realidade, enfim que todo governo legítimo é republicano 5. Aliás, isso resulta ainda mais evidente quando se considera que a monarquia é

plenamente compatível com a democracia ou o absolutismo, o mesmo diga quanto à centraliza-ção ou ao federalismo; sem falar, ainda, nas experiências parlamentaristas ou de mero governo pessoal, independendo, inclusive, se o sufrágio é universal ou censitário, dentre outras tantas opções de cunho político6.

Desse modo, cumpre gizar que a Monarquia não acarreta necessariamente qualquer fluxo imobilizador da razão político-constitutiva do Estado, encerrando, assim, uma forma de governo que, a despeito de lembrar os vínculos históricos dos reinos tiranos, pouco ou nada conservava, mesmo no fim do século XIX, de suas matrizes absolutistas7. Daí que, como que

um necessário resgate histórico, há quem defenda que Joaquim Nabuco, sob a égide de um

idealismo prático, na qual aduzia a defesa da Monarquia, alicerçando-se no seu inegável

aristo-cratismo, não promovia uma oposição à democracia, mas, sim, à oligarquia e tirania, porquanto acreditava que nenhum país no continente reunia as condições necessárias à efetiva implanta-ção de uma democracia8.

Vê-se que a noção de uma Monarquia republicana não é nada contraditória, contudo, a contradição surge com o fato de a República assumir despudoradamente as vestes oligárquicas ou, na melhor hipótese, não combatê-la no seio do Estado, permitindo um nicho político-repu-blicano alheio aos verdadeiros imperativos da sociedade, que não se confundiam com os das

4 ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do contrato social ou Princípios do direito político. Tradução de Eduardo Brandão. Organização e intro-dução de Maurice Cranston. São Paulo: Penguin Classics/Companhia das Letras, 2011, p. 90.

5 ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do contrato social ou Princípios do direito político. Tradução de Eduardo Brandão. Organização e intro-dução de Maurice Cranston. São Paulo: Penguin Classics/Companhia das Letras, 2011, p. 90.

6 LYNCH, Christian Edward Cyril. O império é que era a República: a Monarquia republicana de Joaquim Nabuco. Lua Nova. São Paulo, nº 85, p. 277-311, 2012, p. 283.

7 Afinal de contas, “[p]retender que um soberano absoluto não seja invejoso e despótico, quando diariamente tem motivos constantes para o ser, é querer milagres da natureza humana. […] A monarquia absoluta é na realidade uma aristocracia encoberta, e por isso tem todos os males do despotismo e da aristocracia” [SILVA, José Bonifácio D’Andrada e. Ideias sobre a organização política do Brasil, quer como reino unido a Portugal, quer como estado independente. In: SILVA, Elisiane da; NEVES, Gervásio Rodrigo; e MARTINS, Liana Bach (org.). José Bonifácio: a defesa da soberania nacional e popular. 2 ed. Brasília: Fundação Ulysses Guimarães, 2013, p. 123-127, p. 124]. 8 LYNCH, Christian Edward Cyril. O império é que era a República: a Monarquia republicana de Joaquim Nabuco. Lua Nova. São Paulo,

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forças oligárquicas, inclusive em dois aspectos: (a) na fundação da própria República, porque os interesses em jogo não extrapolavam o círculo desejosamente fechado dos golpistas da Re-pública; e (b) na compreensão e prática do republicanismo no meio social9, pois a dinâmica do exemplo providencialmente exigida nas práticas sociais, infelizmente, restara embargada pela

inexitosa capacidade de a população absorver o novel sistema político, que, em tese, revelar-se--ia mais bem preparado para alcançar a democracia e promover o desenvolvimento do Brasil. Obviamente, toda proposta não pode defender os prognósticos de seu malogro, pelo contrário, sempre desenha com fortes tintas o itinerário de suas inolvidáveis conquistas.

Há nisso tudo, sem sombra de dúvida, um traço de autoritarismo na nossa cultura polí-tica, aliás, que mais se alinha a uma comédia ideológica, pois, a ferro e fogo, a desfiguração dos modelos adotados, no que a Constituição de 1891 é um bom exemplo, revelou-se inevitável em função da indisfarçável assimetria de parâmetros político-sociais entre a sociedade norte-ame-ricana ou europeia com a brasileira, ganhando matizes próprios, e mesmo contraditórios, como é o caso da ideologia liberal burguesa europeia numa sociedade escravista e latifundiária10.

Portanto, sem medo de errar, a mudança de rótulo, Monarquia ou República, não al-terava a essência do conteúdo do sistema político, particularmente no caso brasileiro, no qual os invólucros são, muitas vezes, eram alterados, e mesmo ainda são, justamente para manter determinadas estruturas político-econômicas, geralmente amalgamadas com uma grande ideia legitimadora, ontem, República; hoje, Estado mínimo11 e por aí vai. É dizer, as mudanças não

trazem uma proposta de grandes rupturas, porquanto as vicissitudes apenas consagram os ar-ranjos decorrentes de disputas no ciclo inquebrantável das elites.

Aliás, o alijamento político dos segmentos populares, alheios à lei e ordem no perío-do monárquico12, pareceu um cenário sem fim, pois o povo13 não participou da fundação da

República; aliás, isso não se trata de contradição, mas sim de imperiosa constatação. Contra-dição, evidentemente, era considerar a viabilidade da manifestação popular, numa perspectiva soberana, quando a comunidade política ainda se prendia à perspectiva exclusivista do direito 9 Aliás, ainda no segundo reinado, os dilemas da compreensão político-social do sistema político eram tributados, pelo menos na

pers-pectiva saquarema, ao atraso intelectual e à pobreza na sociedade brasileira, no que impossibilitava o surgimento de opinião pública consistente, conforme os prognósticos do governo parlamentar inglês, fato que, dentre outros fatores, pretensamente exigia um regime de tutela política, aliás, exercido pela Coroa, no que conflitava claramente com o modelo da teoria liberal (LYNCH, Christian Edward Cyril. A primeira encruzilhada da democracia brasileira: os casos de Rui Barbosa e de Joaquim Nabuco. Revista de Sociologia e Políti-ca. Curitiba, vol. 16, número suplementar, p. 113-125, ago. 2008, p. 114).

10 LYNCH, Christian Edward Cyril. Por Que Pensamento e Não Teoria? A Imaginação Político-Social Brasileira e o Fantasma da Con-dição Periférica (1880-1970). Dados – Revista de Ciências Sociais. Rio de Janeiro, vol. 56, nº 04, p. 727-767, 2013, p. 758.

11 O problema não é o tamanho do Estado, mas, sim, o que se faz com ele e, para ser sincero, no caso brasileiro, os defensores do Estado mínimo possuem justificáveis motivos para arvorar sua tese, principalmente os relacionados à ineficiência estrutural da máquina pública até mesmo.

12 O próprio curso histórico da escravidão, que dissolvia os padrões de socialidade e concebia as ilusões das benesses materiais possíveis desde os primórdios da era colonial, faziam com que as elites, longe dos prognósticos decididamente republicanos, enfileirassem cô-modas razões para consagrar uma dinâmica excludente na formação das instituições políticas, por certo, não era possível esperar outra postura no advento da República [JANCSÓ, István. Este livro. In: JANCSÓ, István (org.). Brasil: formação do Estado e da Nação. São Paulo/Ijuí: Editora Hucitec/Editora Ijuí/Fapesp, 2003, p. 15-28, p. 22].

13 Ora, isso remonta ao processo histórico colonial, porquanto “[n]ão parece haver dúvidas quanto ao fato de, no contexto de uma discus-são sobre reivindicações políticas, os escravos e libertos não serem considerados parte do ‘Povo’”. (ROWLAND, Robert. Patriotismo, povo, ódio aos portugueses: notas sobre a construção da identidade nacional no Brasil independente. In: JANCSÓ, István (org.). Brasil: formação do Estado e da Nação. São Paulo/Ijuí: Editora Hucitec/Editora Ijuí/Fapesp, 2003, p. 365-388, p. 375).

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ao voto14, aliás, algo verificado durante todo o período monárquico, decantada no sufrágio

cen-sitário, que foi abolido com o advento da Constituição de 1891.

Aliás, quando o remanso da desigualdade da economia escravista15 e da indiferença

política ainda não era capaz de mirar um novo horizonte, popularmente organizado, de reivin-dicações de direitos civis e políticos, não é possível cogitar que a inclusão dos grupos margi-nalizados fosse promovida pela elite político-econômica, que arregimentava forças e mudanças para preservação do poder, com o advento da República. A contradição revela-se, no entanto, com a manutenção de parâmetros legais excludentes dos segmentos populares no processo po-lítico, mesmo depois da instauração da República, no que denuncia uma das condenáveis faces do liberalismo oligárquico16. Nesse ponto, não se pode negar que a exigência constitucional do voto alfabetizado, no que excluía a participação política dos brancos pobres e dos descendentes

de africanos, sem falar que as mulheres ainda não podiam votar, notabilizava-se como um ins-trumento de exclusão política, ou não emancipação política, para tentar manter os privilégios corporativos no seio da República, pois a cidadania17, ainda que firmada numa prerrogativa

universal dos brasileiros natos, não garantia, por si só, a efetiva inclusão política dos brasileiros, denunciando, assim, um verdadeiro drible na iletrada mestiçagem18.

A Monarquia, como arranjo político, foi uma tentativa, relativamente exitosa, de con-sagrar a identidade monárquica no Brasil, sem, contudo, permitir que o atendimento dos inte-resses reinantes, decorrentes de segmentos nada revolucionários19, alavancasse uma reviravolta

na injusta estrutura, para dizer o mínimo, político-econômica do Império. Ora, a ideia de rup-tura chega a ser tão risível que o filho do imperador tornou-se a figura política central no novo 14 Aliás, já numa fase republicana, a questão do alheamento político foi suficientemente discutida em CARVALHO, José Murilo de. Os Bestializados. O Rio de Janeiro e a República que não foi. 3 ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2004, p. 42 e segs. Todavia, os ventos do republicanismo, e não apenas dele, fez exsurgir uma incipiente frente de movimentos pretensamente organizados, como bem pontua o autor nesta passagem: “Se na proclamação da República a participação popular foi realmente arranjada de última hora e de efeito apenas cosmético, logo após as agitações se tornaram cada vez mais frequentes e variadas, incluindo greves operárias, passeatas, que-bra-quebras” (CARVALHO, José Murilo de. Os Bestializados. O Rio de Janeiro e a República que não foi. 3 ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2004, p. 70).

15 A sensibilidade pela causa abolicionista, mesmo no final do século XIX, apesar das leis que antecederam à tardia e inconsequente abolição, não possuía, nem de longe, uma defesa uníssona da política nacional, inclusive a dinâmica da escravatura, secundada no pre-tenso direito de propriedade, foi um grande fator de cizânias nos primórdios da República, que, apesar de não escravista, consentia com vetustas ideologias de dominação racial, olvidando, assim, uma advertência antiga, à época, nestes termos: “Se a lei deve defender a propriedade, muito mais deve defender a liberdade pessoal dos homens, que não pode ser propriedade de ninguém, sem atacar os direitos da Providência, que fez os homens livres, e não escravos […]” (SILVA, José Bonifácio D’Andrada e. Representação à Assembleia Geral Constituinte e Legislativa do Império do Brasil sobre a Escravatura. Paris: Typographia de Firmin Didot, 1825, p. 21). Como explicar as raízes liberais escravocratas brasileiras? Na ocasião, a teoria liberal, por certo, não passava de mero engodo, um invólucro moderno para as mais anacrônicas pretensões da ciranda política.

16 Não se tratava propriamente de uma verdadeira vertente do pensamento liberal, porquanto as premissas discursivas da teoria liberal não se afiguram compaginável com a dinâmica reacionária das matrizes oligárquicas das instituições políticas brasileiras. Portanto, tratava-se mais de um rótulo adequado para pretensões políticas, por vezes inconfessáveis, dedicadas tão somente na manutenção de uma estrutura política não democrática.

17 Aliás, a perspectiva excludente da cidadania ocidental, possivelmente mundial, sempre marcou o instituto, portanto, ainda persiste, inclusive sem qualquer pudor, para tanto, basta lembrar os condenáveis critérios político-econômicos na concessão de nacionalidade a uma pessoa estrangeira em determinados países, o que não passa, de forma bem rústica, duma mera exigência de identidade econômica (investimento no mercado local) e não propriamente social ou cultural. Ora, a cidadania também é uma moeda do mercado no sistema capitalista.

18 CAMARGO, Alexandre de Paiva. Mensuração racial e campo estatístico nos censos brasileiros (1872-1940): uma abordagem conver-gente. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas. Belém, vol. 04, nº 03, p. 361-385, set./dez. 2009, p. 368. 19 Em verdade, no Império, os movimentos efetivamente revolucionários, que objetivavam uma ruptura com o status quo, foram

dura-mente demovidos ainda no período regencial, até porque, por ostentarem uma ambiência quase que estritadura-mente regional e, portanto, sectárias, tal fato impossibilitava-os de ganhar maior fôlego para resistir às forças imperiais.

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Império, dito independente. Aqui, tem-se a precisa máxima: dos males, o menor20.

A República, por sua vez, como alheamento político, não quer dizer que as forças propulsoras do seu advento vivessem a orgia de uma nova ordem política mundial, como que apenas inebriadas pelas ideologias estrangeiras e, com isso, agissem destemidamente na vã esperança de uma solução nacional baseada na perspectiva abstrata de uma ideia política. Não mesmo. O alheamento político, aqui, possui outro sentido. O povo restou alheio à República, ou melhor, não teve qualquer participação política para o seu advento. Incialmente, a República não casou com o perfil democrático dos grandes levantes populares. Assim, ela representou uma via, aliás, nada discursiva, porquanto foi empreendida subitamente por meio de um golpe militar, para estancar a sangria política do modelo imperial, que já se encontrava na unção dos enfermos, aliás, em face de diversas problemáticas, porém, todas igualmente convergentes para necessárias mudanças nas instituições políticas, que vão da questão religiosa até a mal resol-vida disputa sobre a abolição dos escravos, que não agradou aos fazendeiros21 e, muito menos,

aos próprios abolicionistas, aliás, os ideais republicanos, até então defendidos pelo Partido Re-publicano, não fechavam questão com as ideais abolicionistas, ainda que muitos republicanos fossem defensores da abolição22.

Portanto, a República, mais que um hábil arranjo político que caracterizou a Monarquia brasileira, inclusive, resultante das parcas possibilidades monárquicas portuguesas no início do século XIX, resultou de uma posição ainda mais excludente, porquanto o povo já caminhava na rua, e o Brasil já possuía uma identidade, não apenas territorial23, mas, sobretudo, social, a

des-peito de todas as suas mazelas; todavia, mesmo assim, a forma de governo adotada, para o bem ou para o mal, não rendeu qualquer importância à população iletrada ou simplesmente sem forças econômicas ou políticas; enfim, a República triunfou sem qualquer participação política popular.

Fala-se, até hoje, na estrondosa meta de republicanizar a República, é dizer, tal expres-são deixa subjacente uma ideia de que a República brasileira já foi, de fato, uma República e que

20 Aqui, é preciso fazer o contraponto no sentido de que o vislumbre do interesse defendido, notadamente de ordem econômica, pode ter ido além do próprio fundamento da nacionalidade, de forma que português poderia ser considerado aquele que defendia o impulso colonial e brasileiro, pouco importando sua nacionalidade, aquele ancorava o desejo da independência política (ROWLAND, Robert. Patriotismo, povo, ódio aos portugueses: notas sobre a construção da identidade nacional no Brasil independente. In: JANCSÓ, István (org.). Brasil: formação do Estado e da Nação. São Paulo/Ijuí: Editora Hucitec/Editora Ijuí/Fapesp, 2003, p. 365-388, p. 372).

21 Mais especificamente sobre a temática da ausência de indenização pela perda de um direito de propriedade.

22 CARVALHO, José Murilo de. República, democracia e federalismo. Brasil, de 1870-1891. Varia Historia. Belo Horizonte, vol. 27, nº 45, p. 141-157, jan./jun. 2011, p. 144.

23 Não desconhecendo as mais diversas teses sobre as razões da unidade territorial brasileira, defende-se que a inexistência de uma es-trutura orgânico-funcional própria no tecido social, considerando-se que Portugal sempre foi um país pequeno, sem maiores expressões de ordem populacional, tenha contribuído na formação da unidade nacional, justa e paradoxalmente em função da inércia organizativa e da extrema desintegração social, porquanto sem a existência de grupos coesos e organizados nas diversas provinciais, e menos ainda entre elas, como ocorrer uma desintegração territorial, mesmo porque as forças de retaliação portuguesas, certamente uma das míni-mas formíni-mas de organização consistentes do Império, ainda que de atuação emergencial, não tardavam em demover eventuais levantes regionais ou locais. Nesse ponto, resulta pertinente esta demorada transcrição: “Diante da complexa realidade social do escravismo, base de suas condições de existência, para as elites brasileiras a hipótese de que a comunidade humana que lhes coube integrar pudesse ser dotada de coesão interna com base em critérios universais (fundamento da ideia nacional), pareceu-lhes absurda. Para elas, o corpo social, no seu todo, não formava nação, nem deveria formá-lo. Ao Estado (que não tem, convém lembra-lo, existência autônoma por sobre as classes), caberia garantir que a temida hipótese não vingasse” (JANCSÓ, István. Este livro. In: JANCSÓ, István (org.). Brasil: formação do Estado e da Nação. São Paulo/Ijuí: Editora Hucitec/Editora Ijuí/Fapesp, 2003, p. 15-28, p. 28). Tem-se, então, a inegável questão do inimigo interno: aquilo que não reconheço importância, exceto o fato de permitir que determinada parcela da sociedade goze das benesses da exploração social.

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basta, tão somente, revitalizá-la em face dos seus vigorosos e providenciais valores na socieda-de. Todavia, seria mesmo esse o melhor entendimento sobre a temática? No Brasil, o curso his-tórico das ideias republicanas não pode ser a razão fundante desse horizonte compreensivo, isso porque a fundação da República foi um ato cênico de manifesto interesse político-econômico na instauração de uma nova ordem, mas, claro, sem qualquer repercussão no meio social, isto é, sem preparativos, mobilização social ou efetivas conquistas, porém, como necessário trato das potencialidades políticas, não faltou uma retórica dos novos valores e/ou direitos: só que uma República sem valores republicanos no seio da sociedade que a constitui, por certo, revela uma dupla forma de alheamento político: (a) a que se corporifica nas instituições recém-criadas, por-quanto não são capazes de empreender os objetivos do republicanismo; e (b) a que se prende na sociedade, haja vista uma larga cadeia de costumes e valores dissonantes, totalmente empeder-nidos, no cotidiano dos cidadãos. Numa palavra: sem valores do republicanismo, só há espaço para interesses privados, onde, desde cedo, fez campear galhardamente o patrimonialismo na estrutura orgânico-funcional do Estado.

Ademais, a própria manutenção ou expansão do patrimonialismo, naturalmente, com outras roupagens e meios, bem demonstra que o ideário republicano jamais imperou na estrutu-ra político-administestrutu-rativa do Estado. Não que a semeaduestrutu-ra dos valores republicanos afigure-se destituída de um lastro jurídico, não mesmo, pois o escarcéu normativo do Direito Público é pródigo em declinar uma extensa lista de valores republicanos, sobriamente calcados na impes-soalidade da gestão pública, o dilema centra-se, assim, em outra ordem de considerações: os ideais republicanos não brotam de árvores e nem se alimentam do mesmo modo que pombos em praça pública. Eles exigem a dinâmica dos esforços comunitários e carecem de uma compreen-são normativa que vá além dos meandros interpretativos, isto é, saindo do abstrato ao concre-to, portanconcre-to, que saia em campo e não adormeça na insuficiência das declarações meramente normativas; enfim, a realidade desses valores até convivem com a ciranda jurídica, mas, sem dúvida, não pode limitar-se a ela, porquanto possui autonomia discursiva na ambiência social, revelando-se mais propriamente um sentimento de compartilhamento social em função dos seus benefícios concretos do que uma diretriz estritamente política. Além disso, a República, na praça, não segue a mesma indicação dos pombos e nem espera que as benesses venham a cair do céu. Ela, no cotidiano, sofre os reversos dos falsos sinais das instituições estatais e, cla-ro, dos cidadãos, que, não raras vezes, rendem-se às miraculosas benesses do patrimonialismo mimético24, que, numa compreensão sistêmica dos imperativos da gestão pública, emperra os

avanços da ação política.

24 Atualmente, um exemplo típico do patrimonialismo mimético (adaptação das práticas corruptivas) que se observa nas culminâncias dos Poderes da República, com particular destaque ao Poder Judiciário, é o uso das garantias institucionais, notadamente a autonomia financeira e poder de iniciativa de leis, para fins exclusivamente privados, acentuando um regime remuneratório legalmente condenável, e moralmente inaceitável, a partir das famigeradas vantagens eventuais (permanentes) de natureza indenizatória (totalmente remunera-tória), indene, assim, de imposto de renda e contribuição previdenciária.

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3 A FEDERAÇÃO COMO ILUSÃO POLÍTICA?

No Brasil, desde o Império, porque os seus imprecisos termos foram discutidos bem antes da República25, o federalismo foi cercado de notórias contradições, que não se limitam

apenas aos aspectos conceituais no curso da história, vai mais além. Aliás, como bom exemplo disso, as disposições do Código do Processo Criminal de 1832, nas quais capitaneavam diversas regras que aproximavam a participação da comunidade local na Administração da Justiça26,

perdiam fôlego nas comunidades locais após o Ato Adicional de 1934, que, abraçando o pen-samento federalista de primazia política do Legislativo das Províncias, acabava por permitir levantes normativos que simplesmente controlava os eventuais excessos descentralizadores do

Código do Processo, promovendo, assim, o esvaziamento dos cargos eletivos, no que bem

afei-çoa a ideia descentralizadora, em detrimento dos cargos nomeados por autoridades provinciais, portanto, não mais nos limites dos distritos ou comunidades locais27.

Por isso, mais importante que identificar as ideias que rompiam das forças políticas, que não eram veladas, mas ardorosamente propagandas como tábuas civilizatórias, era perceber os interesses escusos defendidos ou alcançados por meio delas, mormente quando a matriz con-servadora ou reacionária ostentava as vestes da liberdade política e/ou do progresso econômico. Dito de outro modo, no século XIX, a compreensão do debate sobre a dinâmica centralizadora ou federalista dependia da compreensão do interesse provincial e, sobretudo, da forma como essas correntes avaliavam esse interesse e arregimentavam as forças político-discursivas nos grupos sociais das Províncias, conforme a tônica dos negócios particulares ou necessidades provinciais 28. Até mesmo no século XX, tendo em vista a redação do artigo 1º da Constituição

25 Nesse ponto, é importante destacar que, mesmo na Assembleia Constituinte de 1923, os federalistas não desconheciam a diferença de trajetória entre o Brasil e os Estados Unidos (COSER, Ivo. O Debate entre Centralizadores e Federalistas no Século XIX: a trama dos conceitos. Revista Brasileira de Ciências Sociais – RBCS. São Paulo, vol. 26, nº 76, p. 191-206, jun. 2011, p. 193 e nota de rodapé nº 08); no entanto, a clara distinção entre o federalismo pleno (confederação de províncias) e o federalismo mitigado (federação de províncias), muito embora tenha sido discutida desde cedo, por conta da questão da unidade nacional, apenas se revelou fora de dúvida, portanto, de pleno conhecimento pela elite política imperial, a partir de 1934, afastando, de vez, a ideia confederativa no conceito de federação (COSER, Ivo. O Conceito de Federalismo e a Ideia de Interesse no Brasil do Século XIX. Dados – Revista de Ciências Sociais. Rio de Janeiro, vol. 51, nº 04, p. 941-981, out./dez. 2008, p. 967). Em sentido diverso, acentuando que, até a Constituinte de 1890-1891, o con-ceito de federalismo não era de todo claro, exigindo-se, à época, os devidos esclarecimentos, notadamente pelo Senador pernambucano José Higino Duarte Pereira, que era catedrático de Direito Administrativo na Faculdade de Direito do Recife [CABRAL, Gustavo César Machado. Os senados estaduais na Primeira República: os casos de São Paulo e Ceará. In: FLORES, João Alfredo de J. Temas de histó-ria do direito: o Brasil e o Rio Grande do Sul na construção dos Conceitos Jurídicos Republicanos (1889-1945). Porto Alegre: Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul, 2013, p. 127-162, p. 135]. Deve-se reconhecer que a compreensão sobre o federalismo parecia ser algo bem controvertido na constituinte de 1823, porquanto a discussão ainda girava em torno da palavra federação e, com isso, tinha-se um forte aceno com o significado de confederação, aliás, isso resultava ainda mais evidente quando se considerava que as Províncias do Pará, Rio Negro e Maranhão, que, à época, ainda padeciam de uma resistência portuguesa, deveriam unir-se definitiva-mente à federação brasileira, muito embora fossem, mesmo que por pouco tempo, independentes do Império brasileiro. (RODRIGUES, José Honório. A Assembleia Constituinte de 1823. Petrópolis: Vozes, 1974, p. 113-117).

26 Em particular o processo de eleição dos Juízes de Paz. Todavia, não se pode afirmar que isso representasse necessariamente um ins-trumento eficaz de participação popular, pois o espaço público era diminuto e excludente demais para isso. De todo modo, tinha-se a possibilidade de uma mudança de roteiro, saindo das tradicionais camadas decisórias da Administração central da Província para os também tradicionais detentores do jogo político nos distritos, que, apesar de ainda consagrar formas de exclusão política, poderiam ser bem menos sofríveis que as decorrentes dos Legisladores provinciais.

27 COSER, Ivo. O Conceito de Federalismo e a Ideia de Interesse no Brasil do Século XIX. Dados – Revista de Ciências Sociais. Rio de Janeiro, vol. 51, nº 04, p. 941-981, out./dez. 2008, p. 958.

28 COSER, Ivo. O Conceito de Federalismo e a Ideia de Interesse no Brasil do Século XIX. Dados – Revista de Ciências Sociais. Rio de Janeiro, vol. 51, nº 04, p. 941-981, out./dez. 2008, p. 973.

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de 189129, levantou-se o entendimento de que o nome República dos Estados Unidos do Brasil,

com clara inspiração na Constituição norte-americana, “[…] fortalecia a opinião, dominante na política, de que os Estados são dotados de uma autonomia que assume de fato as proporções da soberania” 30, de maneira que a “[…] ardente ambição de autoridade local […]” 31 acabou por

infirmar as condições práticas de uma efetiva soberania das funções da União, no que exigia uma reforma no texto constitucional, assinalando o verdadeiro lugar dos Estados, a saber, de meras províncias autônomas32.

Nesse ponto, é pertinente assinalar que o poder de legislar dos Estados, o mesmo se diga quanto às Províncias, representa um atributo de sua reconhecida autonomia no regime po-lítico, não decorre, evidentemente, do modelo federal, tanto que no Império, portanto, na vigên-cia de um Estado unitário, as Assembleias Provinvigên-ciais, inclusive criadas no período regenvigên-cial, possuíam funções legislativas, no que diferiam da atuação legislativa da Assembleia Geral, que representa a nação33.

Noutro giro, considerando curso histórico da questão, indaga-se: O federalismo deve decorrer do aperfeiçoamento (a) de uma conquista histórica ou (b) de projeto político-norma-tivo, ainda que sem substrato popular? A questão comporta resposta suficientemente esclare-cedora nos dois sentidos, das mais rudimentares até as mais complexas, especialmente quando se considera que o traço histórico transformador das instituições políticas não representa um percurso comum a todas as nações, que sempre admitem - umas mais, outras menos - um flerte com as instituições políticas estrangeiras, porém o que importa mesmo é considerar o modelo que melhor possa promover as possibilidades políticas de um povo, o que é algo bem diverso do modelo que melhor atenda aos interesses do povo, isso porque os principais atores responsáveis pelas vicissitudes no sistema político tendem a consagrar os interesses dominantes, isto é, difi-cilmente rompem com a estrutura de poder e, claro, o desenho político-institucional do Estado é, sem sombra de dúvida, um bom caminho para contemplar esse propósito. Por outro lado, as grandes rupturas decorrentes de processos revolucionários não garantem resultados exitosos, aliás, a história bem explica isso. O fato é que a denúncia das opções políticas - e o certo e o

errado, numa relação discursiva séria, costumam ter seu prosélitos -, vai revelar uma reflexão

contínua sobre as instituições (im)postas e isso é sempre algo bastante positivo para a evolução

29 A redação, de fato, é passível de questionamentos, eis o dispositivo: “A Nação brasileira adota como forma de Governo, sob o regime representativo, a República Federativa, proclamada a 15 de novembro de 1889, e constitui-se, por união perpétua e indissolúvel das suas antigas Províncias, em Estados Unidos do Brasil” (Disponível em:< http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao91. htm>. Acesso em 10 jun. 2016).

30 TORRES, Alberto. A Organização Nacional. Primeira Parte – A Constituição. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1914, p. 220. O autor, mais adiante, na mesma página, grafa os contrapontos entre a Constituição e vida real, nestes termos: “Coleção de preceitos sem assento na vida real, a Constituição não recebeu o influxo de um pensamento político dominante, que desse às instituições o fluido inspirador e a ideia motora de um objetivo superior e prático, nem métodos e critérios de orientação que enfeixassem seu conjunto num corpo homogêneo e animado”.

31 TORRES, Alberto. A Organização Nacional. Primeira Parte – A Constituição. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1914, p. 220. 32 TORRES, Alberto. A Organização Nacional. Primeira Parte – A Constituição. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1914, p. 220-221. 33 CABRAL, Gustavo César Machado. Os senados estaduais na Primeira República: os casos de São Paulo e Ceará. In: FLORES, João

Alfredo de J. Temas de história do direito: o Brasil e o Rio Grande do Sul na construção dos Conceitos Jurídicos Republicanos (1889-1945). Porto Alegre: Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul, 2013, 127-162, p. 143.

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político-institucional de um país. Dito de outro modo, tornar as escolhas melhores é o maior mérito de um povo. No Brasil, o federalismo não teve um curso histórico feliz34, pois surgiu

de um processo político ultimado num súbito golpe militar; todavia, a evolução constitucional tem demonstrado que o federalismo ganhou novos matizes, mas, gradativamente, assumindo uma postura mais centralizadora35, como que acenando com a perspectiva unitária do período

imperial.

E, aqui, é preciso desmitificar o entendimento de que o curso histórico de um institu-to, isto é, a decantação político-social de um instituinstitu-to, seja sempre a melhor saída, ainda que, na maioria das vezes, ele represente o melhor caminho a continuar seguindo. A velha questão entre o ideal e o real sempre projeta a importância do ôntico sobre deôntico, porquanto o cômo-do das experiências vivas tende sempre a negar alternativas, quase sempre tachadas de meras projeções abstratas, quiçá, impossíveis, justamente por serem, por assim dizer, ideais ou idea-lizadoras demais para levar a sério. A questão é que todo modelo adotado, mesmo com clara ruptura dos parâmetros até então vigentes, tende também a seguir um curso histórico único, daí a importância de discutir os modelos idealmente considerados e, com isso, refletir sobre o espa-ço ocupado/operado pelo curso histórico modelar ainda reinante. Se não é possível transplantar modelos, com todas as suas virtudes; por outro lado, não é possível afastá-los, pelo menos numa perspectiva comparativa, quando o modelo corrente, carente de soluções, também projeta ilu-sões ou esperanças advindas de outras paragens, ainda que elas sejam assentadas com substrato social diverso e, consequentemente, valores também diversos.

Daí que o flerte com o federalismo dos Estados Unidos da América, ainda no início do Império, longe de uma ilusão política, acenou para uma nova e pretendida realidade, que, em dado sentido, podia expressar uma ilusão, mas, também, a esperança de novo curso históri-co, desejosamente mais profícuo no fortalecimento das instituições políticas brasileiras. Ilusão mesmo é acreditar que isso ocorreria sem qualquer decurso histórico, como que num passe de mágica e tudo a partir de um golpe militar. Importação acrítica36? Não se trata disso. A via

es-colhida, como todas elas, depende dos interesses que desejaram firmar. Ocorre que a imagem 34 Aliás, ainda não alcançou o ápice-estabilizador do edifício constitucional, pois, recorrentemente, encontra-se cercado de duras

críti-cas e constantes alterações pontuais, que, justamente pela inexpressividade delas, transmitem o reforço de que algo deve ser mudado e, portanto, ele é ainda incapaz de atender aos apelos dos entes políticos. Até mesmo engenhosas formas de compensação financeira, numa ambiência de acirradas disputas fiscais, como é o exemplo das Transferências Voluntárias da União (TVU), percebe-se que os arranjos do federalismo centralizador ganham ares de verdadeira barganha política, na qual a dimensão político-partidária rompe o es-paço da dimensão social-redistributiva na percepção dos recursos destinados à redução dos graves desequilíbrios regionais (SOARES, Márcia Miranda; NEIVA, Pedro Robson Pereira. Federalism and Public Resources in Brazil: Federal Discretionary Transfers to States. Brazilian Political Science Review. São Paulo, vol. 5, nº 02, p. 94-116, 2011, p. 106-107), isso porque a dinâmica da discricionariedade na promoção das TVU faz imperar as decisões que reafirmam a superposição da União em detrimento dos demais entes políticos, tudo por conta de apoios transitórios, ou mesmo emergenciais, com fundados propósitos políticos, sem uma dinâmica da atuação decisória decantada em sólidos critérios de gestão pública planejada e, por isso, mais bem preparada para superar os desafios impostos pelo artigo 3º, inciso III, da CF/88. Desse modo, encerra-se mais uma contradição: os modelos de superação de desafios, como que uma peça do destino, transforma-se um novo desafio, que, se não for maior, reforça a tese da inviabilidade não só do modelo de características balsâ-micas, mas malogrado, como também de toda a estrutura federal, tal como desponta hodiernamente.

35 Subtraindo-se da análise, evidentemente, os nefastos anos da ditadura militar, porquanto as instituições eram meandradas pelas turbu-lentas formas de expressão política dos generais das forças armadas, também conhecidas como intervenções, isso apenas para apresen-tar uma linguagem mais amena quanto à autonomia dos entes políticos.

36 Na linguagem fácil das críticas açodadas: se há discordância, é porque não houve necessária reflexão, na imperiosa pretensão de que a reflexão propriamente dita apenas decorre da análise do crítico e não do criticado.

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que reflete no espelho jamais será a mesma, porque simplesmente não se trata da mesma nação. Ilusão política? Não mesmo. Como ardil político, aí sim, tal como se destaca adiante, revela-se mais consentâneo com os conchavos da época, aliás, de todas as épocas, nas quais são parteja-das as grandes transformações politico-administrativas brasileiras.

O desânimo com a monarquia, cujas razões não são difíceis de destacar, inclusive já ventiladas no tópico anterior, fez desabar os desejos de uma nação republicana, só que isso não explica muito, pois o ardil decorreu justamente do pano de fundo que sustentou a via adotada para firmar a República e, claro, o modelo federal. Nesse ponto, vale afirmar que a anedota de uma nova ordem, com valores republicanos, não passava de um expediente politicamente viável para preservar os interesses de segmentos importantes da sociedade, notadamente, os grandes proprietários de terra, pois, numa conjuntura diversa, ainda não se viam capazes de romper, sem maiores adaptações, a cômoda desigualdade do sistema escravocrata.

Nesse contexto, como que alentado pelas peripécias históricas da política brasileira, o levante militar, que entronou a República, ganharia gosto pelo poder não apenas na Repú-blica Velha, cujo reflexo, até os nossos dias, é possível identificar em função dos permanentes rumores da vigília militar sobre a sociedade civil, o que bem denuncia os ranços da relação ambígua, no passado, entre republicanismo e democracia37. Um bom exemplo do constante vai

e vem da ciranda militar encontra-se na implantação do Estado Novo, pois, longe de uma nova expressão federalista, rompendo com os prognósticos constitucionais da autonomia dos Estados membros, aliás, devidamente decantada nas constituições republicanas anteriores, perseguia um novo norte na disciplina política do federalismo brasileiro, baseada na maior presença do Estado na sociedade, firmando, sem maiores pudores, uma postura intervencionista, inclusive por meio da destacada e conhecida fórmula dos valores, como que arvorando um sentimento patriótico e nacionalista, que incorporasse a ideia de união nacional e, com isso, minando os núcleos de oposição, notadamente os regionais38. O mesmo de diga quanto aos anos de chumbo da ditadura

militar. A recorrente atuação militarista nas intermitências da República, variando entre golpes e abusos institucionais, bem demonstra a ausência dos fundamentos republicanos no seio da so-ciedade. Como se o regime de tutela da República dependesse de uma mão forte das Forças Ar-madas39. Afinal, toda liberdade cobra o seu preço, no caso da República, e consequentemente do

modelo federal, parece ser a constante vigília, não apenas civil, sobre os rumos políticos do país.

37 SILVA, Ricardo. Republicanismo neo-romano e democracia contestatória. Revista de Sociologia e Política. Curitiba, vol. 19, nº 09, p. 35-51, jun. 2011, p. 36. Notadamente, como um regime não puro, é compreensível que a República comporte, ao longo tempo, o relevo de teorias políticas hoje consideradas condenáveis, mas, claro, sem perder o norte de um governo (poder político) regido pelas leis. O fato é que: “[d]a Antiguidade aos dias atuais, o conceito de república não parou de evoluir segundo o contexto em que era pensado. A partir do século XVII, ela é definida como um regime misto, mas também em oposição à monarquia absoluta. Com os federalistas americanos, a república se distingue da democracia pela introdução do sistema de representação” (DORTIER, Jean-François. Dicionário de Ciências Humanas. Tradução Aline Saddi Chaves, Felipe Cabanas da Silva, Ilan Lapyda, Leonardo Teixeira da Rocha, Maria Aparecida Cabanas e Maria José Perillo Isaac. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2010, p. 558).

38 CABRAL, Gustavo César Machado. Federalismo, autoridade e desenvolvimento no Estado Novo. Revista de Informação Legislativa. Brasília, ano 48, nº 189, p. 133-146, jan./mar. 2011, p. 137.

39 De todo modo, após a redemocratização do país, o discurso da intervenção militar, pelo menos na sua ordinária concepção, desvane-ceu-se; porém, não se pode olvidar, os mecanismos da atuação militar, como que adaptados ao novo processo do jogo político, rendem-se ao lastro legitimante do parlamento, mas, claro, sem perder a tônica dos seus ideais.

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4 A INCRÍVEL CAPACIDADE MIMÉTICA DO PATRIMONIALISMO BRASILEIRO A corrupção e o patrimonialismo não revelam uma relação entre meio e fim. A dinâ-mica vai além da mera noção de instrumentalidade ou finalidade, isto é, eles são dois velhos companheiros da experiência histórica brasileira, não há como negar isso: uma dedicada ao trato fisiológico; o outro, ao deleite institucional, resultando, assim, a seiva no tronco frondoso da árvore estatal.

Nisso reside o casamento perfeito: a cômoda cumplicidade num consórcio rentável e, por isso, tentador e ardorosamente defendido pelos agentes representativos dos interesses incon-fessáveis dos verdadeiros donos do poder40, de forma que toda mudança representa um novo

substrato de adaptações no seio do Estado, mas, claro, ainda são mantidas as mesmas linhagens do concurso furtivo das benesses estatais. Observa-se, então, a imagem clara de uma figura nebulosa, volátil, lábil e mutável dentro da estrutura orgânico-funcional do Estado; contudo, já não cotejando a dinâmica patrimonial do mundo português de outrora, cujos pretensos ecos ainda soariam, persistentemente, no mundo brasileiro atual41, como se o Brasil herdasse de

Por-tugal sua estrutura social e, com ele, o patrimonialismo, tese, aliás, bastante controvertida, para não dizer totalmente equivocada42.

As considerações acima denunciam uma visão tradicional sobre o patrimonialismo na literatura brasileira, inclusive largamente reconhecida pela doutrina nacional. Evidentemente, tal visão da dominação patrimonial já se encontra distante das premissas teóricas de Max Weber43,

40 Que, evidentemente, não se limita aos agentes do Estado, mas que, através deles, atendem aos reclames escusos da sociedade, notada-mente dos grandes agentes econômicos do mercado.

41 FAORO, Raymundo. Os Donos do Poder. Formação do patronato político brasileiro. 3 ed. São Paulo: Editora Globo, 2001, p 35. Na parte final do livro (p. 823/824), contudo, o autor esclarece, com precisão, a matriz mimética do patrimonialismo nestes termos: “Enquanto o sistema feudal separa-se do capitalismo, enrijecendo-se antes de partir-se, o patrimonialismo se amolda às transições, às mudanças, em caráter flexivelmente estabilizador do modelo externo, concentrando no corpo estatal os mecanismos de intermediação, com suas manipulações financeiras, monopolistas, de concessão pública de atividade, de controle do crédito, de consumo, de produção privilegiada, numa gama que vai da gestão direta à regulamentação material da economia”. Vê-se, assim, que Faoro não desconhecia ou desprestigiava a dinâmica patrimonial como expressão de interesses do mercado, também corrupto, mas, sim, que mirava no Estado a forma habitual de consagração desses interesses. Seria mesmo uma tolice defender que o gênio de Raymundo Faoro não concebesse uma promíscua relação engendrada entre o Estado e o mercado, ambos, claro, entregues às práticas corruptivas. Daí, um bom exemplo de tolice da inteligência brasileira: caso Jessé Souza, que, numa crítica extremada, desconsidera a amplitude compreensiva das ideias de Faoro, nestes termos: “O que existe é uma dramatização da oposição mercado (virtuoso) e Estado (corrupto) construída como uma suposta evidência da singularidade histórica e cultural brasileira. […] é apenas o ‘Estado’ que passa a ser percebido como o fundamento material e simbólico do patrimonialismo brasileiro” (SOUZA, Jessé. A tolice da inteligência brasileira: ou como o país se deixa mani-pular pela elite. São Paulo: LeYa, 2015, p. 33-34), a despeito de, noutros momentos, promover certeiras críticas contra o autor gaúcho e outros grandes doutrinadores brasileiros. Ora, qual a razão de Raymundo Faoro não conceber a corrupção no mercado? Aliás, o próprio Jessé Souza admite isso quando aduz sobre o livro de Raymundo Faoro: “[…] sua tarefa é demonstrar o carácter patrimonialista do Esta-do e, por extensão, de toda a sociedade brasileira” (SOUZA, Jessé. A tolice da inteligência brasileira: ou como o país se deixa manipular pela elite. São Paulo: LeYa, 2015, p. 53), então, o mercado estaria excluído em que momento? Não faria parte da sociedade brasileira? O problema é que a tese da demonização do Estado e da virtuosidade do mercado, decantada em verso e prosa por Jessé Sousa, nessa equivocada dualidade (p. 91), exige a premissa de que Faoro haveria de isentar o mercado da corrupção, mas isso, a toda evidência, não encontra amparo na obra de Raymundo Faoro.

42 SOUZA, Jessé. A tolice da inteligência brasileira: ou como o país se deixa manipular pela elite. São Paulo: LeYa, 2015, p. 41, 59 e 64. 43 WEBER, Max. Economia e sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva. Vol. 2. Tradução de Regis Barbosa e Elsabe Barbosa.

4 ed. Brasília: Editora UnB, 2009, p. 255. Mais adiante (p. 263), na perspectiva política do patrimonialismo, destaca o autor: “O comple-xo patrimonial político não conhece nem conceito de ‘competência’ nem o de ‘autoridade administrativa’ no sentido atual das palavras [...]. A separação de assuntos oficiais e privados, patrimônio oficial e privado e a correspondente autoridade senhorial dos funcionários encontra-se apenas razoavelmente realizada no tipo arbitrário [...]”. Noutra parte (p. 306), na perspectiva econômica, na qual revela uma capacidade mimética do patrimonialismo, o autor pontua: “O patrimonialismo é compatível com a economia de subsistência e com a economia de troca, com a constituição agrária pequeno-burguesa e a de senhorios territoriais, com a ausência e a existência da econo-mia capitalista”. Desse modo, a dinâmica doutrinária de Weber não se afigura tão distante dos atuais prognósticos do patrimonialismo.

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ganhando, assim, uma nova tonalidade, conforme o quadro das experiências históricas44, e,

nes-sa qualidade, desprendendo-se das originárias matrizes discursivas weberianas apresentadas no início do século XX. Portanto, o patrimonialismo na concepção atual, a toda evidência, em nada se assemelha com os pressupostos teóricos de outrora; porém, ainda assim, com notórias vicissi-tudes, não há nada de condenável em ostentar tal terminologia, no que denuncia uma verdadeira

história do conceito, e não o uso acrítico e vazio de uma expressão, mormente quando se tem

consciência da distinção dos significados em função do percurso histórico do conceito, porquanto a decantação histórica de um termo, num determinado lugar, é digna de consideração e, sobretu-do, autonomia compreensiva, sem que isso represente qualquer atecnia ou mesmo desrespeito aos imperativos iniciais de qualquer perspectiva teórica. É dizer: “A história dos conceitos mostra que novos conceitos, articulados a conteúdos, são produzidos/pensados ainda que as palavras empre-gadas possam ser as mesmas” 45.

Portanto, as mesmas palavras, ventiladas em momentos diferentes, relacionadas a ex-periências distintas, não podem comportar a mesma dimensão semântica46, de forma que, não

raras vezes, as mesmas palavras podem denotar realidades conceituais bem diversas, isso por-que “[o] significado de um conceito não pode ser alcançado independentemente do seu uso na sociedade e, por isso, deve-se considerar o contexto em que é utilizado e o universo temporal no qual se insere” 47.

Superados esses dilemas, que não meramente conceituais, e que tanta importância foi tributada por Jessé Souza, inclusive com ácida crítica aos escritos de Raymundo Faoro48, vale

mencionar que as propriedades miméticas do patrimonialismo brasileiro49 remontam de um

lon-go curso histórico, atravessando todos os períodos da organização política do Estado, aliás, de forma totalmente indene, para não dizer que, sem qualquer exagero, vem ostentando posições cada vez mais fortes e expansivas nas culminâncias políticas da República.

Não importa, se Monarquia ou República, se Estado Unitário ou Federado, o

patrimo-44 KOSELLECK, Reinhardt. Uma história dos conceitos: problemas teóricos e práticos. Tradução de Manoel Luís Salgado Guimarães. Estudos Históricos. Rio de Janeiro, vol. 05, nº 10, p. 134-146, 1992, p. 138.

45 KOSELLECK, Reinhardt. Uma história dos conceitos: problemas teóricos e práticos. Tradução de Manoel Luís Salgado Guimarães. Estudos Históricos. Rio de Janeiro, vol. 05, nº 10, p. 134-146, 1992, p. 140.

46 KIRSCHNER, Tereza Cristina. A reflexão conceitual na prática historiográfica. Textos de História. Brasília, vol. 15, nº 01/02, p. 49-61, 2007, p. 50.

47 KIRSCHNER, Tereza Cristina. A reflexão conceitual na prática historiográfica. Textos de História. Brasília, vol. 15, nº 01/02, p. 49-61, 2007, p. 51.

48 SOUZA, Jessé. A tolice da inteligência brasileira: ou como o país se deixa manipular pela elite. São Paulo: LeYa, 2015, p. 63. É lamen-tável afirmar que Jessé de Souza não empreende qualquer dinâmica ao texto criticado e, nem mesmo esclarece, porque isso seria possí-vel, que nem todo o uso da palavra patrimonialismo, antes e hoje, se une inexoravelmente a uma realidade histórica já distante, portanto no início do século passado, ainda que Raymundo Faoro assim tenha feito, porque é simplesmente anular qualquer crítica sociológica por meio de mera gincana conceitual, o que não é algo aceitável.

49 Aliás, a ciranda histórica do patrimonialismo denuncia isso, passando por todos os sistemas econômicos, despontando uma autonomia operacional dentro de qualquer estrutura de poder, alavancando e firmando interesses, por vezes paralelos ou simplesmente convergen-tes, na tessitura dos projetos políticos do Estado. A dimensão mimética do patrimonialismo é facilmente reconhecida nesta demorada transcrição: “Enquanto o sistema feudal separa-se do feudalismo, enrijecendo-se antes de partir-se, o patrimonialismo se amolda às transições, às mudanças, em caráter flexivelmente estabilizador do modelo externo, concentrando no corpo estatal os mecanismos de intermediação, com suas manipulações financeiras, monopolistas, de concessão pública de atividade, de controle do crédito, de consu-mo, de produção privilegiada, numa gama que vai da gestão direta à regulamentação material da economia” (FAORO, Raymundo. Os Donos do Poder. Formação do patronato político brasileiro. 3 ed. São Paulo: Editora Globo, 2001, p. 823-824).

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nialismo sempre encontra ressonância no estamento político, na contumaz orquestra do poder político e, daí, adentrando nos demais segmentos direcionais do Estado. Não há novidade nis-so50. O que soa inusitado é defender a tese de que o patrimonialismo é um defunto dessepulto

do período imperial, quando, em verdade, ele apresenta ainda maior vivacidade na atualidade, portanto, mais vivo que nunca e mais letal que outrora. A questão é ele atua com novas pos-sibilidades práticas na ciranda institucional do Estado para firmar, além dos limites inerentes do ordinário processo político-administrativo, os interesses privados. Uma coisa é atentar para importância do lobby, regulamentado ou não, que existe em qualquer país; outra, aliás, bastante diversa, é enxergar nas relações político-administrativas uma contínua teia de instrumentos que extrapola o processo político decisório, constituindo, ela mesma, todo um fluxo de benesses estatais que perpetuam uma forma totalmente desigual de concepção das políticas públicas, enfim, da ação política do Estado51.

Não se trata propriamente de um estamento tecnoburocrático52 idealizado por

Raymun-do Faoro, até porque não há um estilo de vida comum numa ambiência de prestígio compartilha-do53, mas a compreensão de que novas formas de implicação prática da ação corruptiva evoluem

e, com isso, intensificam-se na ação política, inclusive na mesma medida em que as relações polí-tico-institucionais também evoluem no ordinário curso das vicissitudes das estruturas do Estado. Os cotejos do patrimonialismo54 são bem diversos, inclusive assumindo posições, não

raras vezes, incompreendidas no universo das relações sociais, como que imperceptíveis num primeiro momento, porém, com um pouco de percuciência, percebe-se como a dinâmica da corrupção no meio social assume instrumentais que vão dos extremamente simplórios aos mais complexos, portanto, que vão das hierarquias da convivência comunitária, pretensamente invi-síveis e baseadas na intimidade social55, aos parâmetros decisórios centrais das grandes

qu50 Com bem demonstra esta passagem doutrinária: “O patrimonialismo, organização política básica, fecha-se sobre si próprio com o es-tamento, de caráter marcadamente burocrático. Burocracia não no sentido moderno, como aparelhamento racional, mas da apropriação do cargo – o cargo carregado de poder próprio, articulado com o príncipe, sem a anulação da esfera própria de competência” (FAORO, Raymundo. Os Donos do Poder. Formação do patronato político brasileiro. 3 ed. São Paulo: Editora Globo, 2001, p. 102). Ora, essas ca-racterísticas independem dos arranjos organizacionais e/ou administrativos da estrutura funcional do Estado, muito embora, a depender do modelo adotado, elas se manifestam de forma ainda mais clara nas entranhas político-administrativas do Poder Público.

51 Tais reflexões faz empreender a noção de que: “A ‘crise do Estado’, por mais paradoxal que seja, exige uma reflexão mais aprofundada sobre o Estado. Reflexão esta que saiba lidar com a questão da unidade política tanto quanto com a democracia, a inclusão do povo e do conflito na compreensão do fenômeno estatal, temas que o modelo liberal do direito público não apenas não soube incorporar no seu discurso, como busca ignorar solenemente até hoje” (BERCOVICI, Gilberto. As possibilidades de uma teoria do Estado. Revista da Faculdade de Direito da UFMG. Belo Horizonte, nº 49, p. 81-99, jul./dez. 2006, p. 98-99).

52 DAMATTA, Roberto. A Casa & Rua. Espaço, cidadania, mulher e morte no Brasil. 5 ed. Rio de Janeiro: Rocco, 1997, p. 45. 53 SOUZA, Jessé. A tolice da inteligência brasileira: ou como o país se deixa manipular pela elite. São Paulo: LeYa, 2015, p. 56. 54 Aqui, é preciso um ligeiro esclarecimento: não se confunde o patrimonialismo com outras formas de relação promíscua na ação

polí-tica, não é isso, o que se defende é que ele sempre alcança meios de imprimir uma dinâmica corruptiva através de novos instrumentais, daí o formidável recurso de sua capacidade mimética.

55 DAMATTA, Roberto. Carnavais, malandros e heróis: para uma sociologia do dilema brasileiro. 6 ed. Rio de Janeiro: Rocco, 1997, p. 192. O autor equivoca-se, contudo, quando apregoa a existência de “universo puritano dos norte-americanos” (p. 210 e 227), como se a realidade e seus dilemas, especialmente os de ordem moral, notadamente a figura do pretensamente institucionalizado jeitinho, não fossem, por assim dizer, universais (SOUZA, Jessé. A tolice da inteligência brasileira: ou como o país se deixa manipular pela elite. São Paulo: LeYa, 2015, p. 88).

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tões político-econômicas do Estado56. Obviamente, as distinções hierárquicas são geralmente autorizadas pela dinâmica da especialização funcional57, mostrando que a linha divisória entre

o que pode e não pode ser feito na convivência diária, numa perspectiva pretensamente legi-timadora, encontra apoio no cabedal objetivo da dignidade profissional e, mais adiante, em outras fontes de recursos, que não se limitam propriamente aos de ordem pecuniária. É dizer, na clássica síntese damattiana, “[c]onfie sempre em pessoas e em relações (como nos contos de fadas), nunca em regras gerais ou em leis universais. Sendo assim, tememos (e com justa razão) esbarrar a todo momento com o filho do rei, se não com o próprio rei” 58.

Todavia, uma ressalva é necessária, senão os vislumbres da capacitação funcional se-riam condenáveis em per si. Ora, o uso do capital cultural, como fator de destaque no meio social, não há nada de condenável, contanto que esse pretendido destaque expresse apenas a im-portância da atuação funcional no meio social, o dilema exsurge quando tal destaque funcional, que existe independentemente da análise subjetiva do seu titular, conceba um meio para superar os ordinários parâmetros de direitos e deveres na ordem social.

Exigir o mesmo tratamento entre pedreiro e engenheiro, no conjunto de suas relações funcionais, afigura-se, além de um dever legal, algo plenamente compaginável com as exigên-cias da convivência comunitária, agora, exigir que a sociedade atribua a mesma importância entre eles, ainda que isso seja desejável, no universo da atuação funcional individualmente considerada, sem sombra de dúvida, é cair na quimera igualitarista absoluta entre os homens, que são verdadeiramente diferentes entre si e sem que isso constitua o verdadeiro sopro de sub-jugação da humanidade, menos ainda o que perfaz ou direciona o sistema ritual brasileiro entre

56 Nesse ponto, o presidencialismo de coalização, como verdadeiro fator de instabilidade na dinâmica relação político-institucional bra-sileira, exerce um papel relevante na construção dos instrumentais da corrupção no seio da República, isso porque tais instrumentais, devidamente operados na relevante questão da contratação pública, nas concessões etc., são permeados por um conjunto de fatores políticos que permitem o trânsito dos agentes incumbidos na drenagem dos recursos públicos em benefício do mercado. Na tensão ine-vitável do jogo político e da tentativa de manutenção no poder, sem sombra de dúvida, o mote da governabilidade representa a chave dos arranjos político-econômicos, nos quais são perfilhados, contínua e intransigentemente, os verdadeiros interesses do patrimonialismo. “Além disso, a capacidade de formar maiorias estáveis e a necessidade de recorrer a coalizões não são exclusivamente determinadas pela regra de representação, nem pelo número de partidos, mas também pelo perfil social dos interesses, pelo grau de heterogeneidade e pluralidade na sociedade e por fatores culturais, regionais e linguísticos, entre outros, que não são passíveis de anulação pela via do regime de representação” (ABRANCHES, Sérgio Henrique Hudson de. Presidencialismo de coalizão: o dilema institucional brasileiro. Dados – Revista de Ciências Sociais. Rio de Janeiro, vol. 31, nº 01, p. 05-34, 1988, p. 13-14). Por outro lado, mesmo que se considere a importância de que os Poderes sejam fortes, conforme a tônica da independência e harmonia nas culminâncias do poder, bem como uma consagrada cultura de accountability institucional (PEREIRA, Carlos; MELO, Marcus André. The surprising success of multi-party presidentialism. Journal of Democracy. Baltimore, vol. 23, nº 03, p. 156-170, July 2012, p. 162), é pouco provável que os dilemas da coalizão não repercutam na manutenção dos instrumentais da corrupção na estrutura político-administrativa do Estado. O sistema político, a toda evidência, deve ser repensado.

57 DAMATTA, Roberto. Carnavais, malandros e heróis: para uma sociologia do dilema brasileiro. 6 ed. Rio de Janeiro: Rocco, 1997, p. 203.

58 DAMATTA, Roberto. Carnavais, malandros e heróis: para uma sociologia do dilema brasileiro. 6 ed. Rio de Janeiro: Rocco, 1997, p. 216.

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a casa e a rua: o nosso mundo e o outro mundo no espaço de atuação entre pessoa e indivíduo59.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Considerando as ligeiras ponderações apresentadas acima, especialmente por questionar o tratamento linear dispensado à formação das instituições políticas brasileiras, concluímos que:

(a) a República, decorrente de um golpe militar, representou uma via cômoda de con-sagrar os interesses das elites político-econômicas, uma vez que o definhar da Monarquia, para além das consagrações abstratas do republicanismo, poderia abrir caminho para movimentos políticos mais consistentes, isto é, mais radicais na transformação da sociedade brasileira, ainda fortemente abalada pela tardia abolição dos escravos;

(b) o conceito de federalismo, foi objeto de demoradas discussões ainda na Assembleia constituinte de 1823, inclusive com forte apelo ao modelo norte-americano, que se firmou com o advento da República; todavia, a precisa identificação do seu significado, no que afastava do conceito de confederação, foi obra dos movimentos descentralizadores, já na segunda metade do século XIX, da elite política imperial;

(c) a federação consubstanciava uma forma de promover os interesses das elites po-líticas regionais em face do Estado unitário, que marcava a centralização do poder político no período monárquico, porém, mais importante que a discussão teórica desse modelo, era compreender os interesses que ele carreava na estrutura político-administrativa das províncias, pois, não raras vezes, o levante da descentralização mais serviu para podar a gestão local que propriamente para robustecer a autonomia política dos Estados; e

(d) o patrimonialismo possui um curso histórico próprio na literatura nacional, de for-ma que, hoje, ligá-lo às premissas teóricas weberianas representa um vexado equívoco e, claro, desconsidera a história desse conceito no Brasil, que não se baseia numa mera relação estamen-tal, promovendo diversas adaptações das práticas corruptivas em função das vicissitudes nas instituições político-administrativas, o que comprova sua inacreditável capacidade mimética.

59 DAMATTA, Roberto. A Casa & Rua. Espaço, cidadania, mulher e morte no Brasil. 5 ed. Rio de Janeiro: Rocco, 1997, p. 61. Deve-se considerar, por ser uma questão patente, no que circunstancia uma importante ressalva, que a relação entre pessoa e indivíduo, tal como destaca pelo autor, nada particulariza a realidade brasileira, porquanto essa dualidade pode ser aplicada, com maior ou menor exten-são, a qualquer país. Nesse ponto, transcreve-se uma ligeira crítica, nestes termos: “Atualmente, essa tese da ‘singularidade cultural’ brasileira, pensada de modo absoluto como um povo com características únicas e incomparáveis – para o bem e para o mal – é como uma ‘segunda pele’ para todos os brasileiros, intelectuais ou não. Essa singularidade é constituída pela junção e combinação das noções descritas acima de personalismo e patrimonialismo” (SOUZA, Jessé. A tolice da inteligência brasileira: ou como o país se deixa mani-pular pela elite. São Paulo: LeYa, 2015, p. 29). Acontece que, isso precisa ficar claro, a compreensão do patrimonialismo, pelo menos no atual contexto e do conceito que dele se extrai, não congrega qualquer relação com primitivo, ainda que mantenha uma simbiose direta com a corrupção e as relações de pessoalidade e, nesse sentido, pode tranquilamente existir em qualquer meio social, o que pode variar, evidentemente, é a extensão e o instrumental utilizado para esse fim. A dimensão reflexiva do patrimonialismo não se limita, faz muito tempo, às ideias de Raymundo Faoro. Portanto, não é possível preservar as noções pretéritas sobre o conceito para fazer as críticas com realidade hoje, fato que, infelizmente, parece ocupar boa parte do livro desse autor (SOUZA, Jessé. A tolice da inteligência brasileira: ou como o país se deixa manipular pela elite. São Paulo: LeYa, 2015, p. 25).

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6 REFERÊNCIAS

ABRANCHES, Sérgio Henrique Hudson de. Presidencialismo de coalizão: o dilema institucional brasileiro. Dados – Revista de Ciências Sociais. Rio de Janeiro, vol. 31, nº 01, p. 05-34, 1988.

BERCOVICI, Gilberto. As possibilidades de uma teoria do Estado. Revista da Faculdade de Direito da UFMG. Belo Horizonte, nº 49, p. 81-99, jul./dez. 2006.

CABRAL, Gustavo César Machado. Federalismo, autoridade e desenvolvimento no Estado Novo. Revista de Informação Legislativa. Brasília, ano 48, nº 189, p. 133-146, jan./mar. 2011. CABRAL, Gustavo César Machado. Os senados estaduais na Primeira República: os casos de São Paulo e Ceará. In: FLORES, João Alfredo de J. Temas de história do direito: o Brasil e o Rio Grande do Sul na construção dos Conceitos Jurídicos Republicanos (1889-1945). Porto Alegre: Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul, 2013, p. 127-162.

CAMARGO, Alexandre de Paiva. Mensuração racial e campo estatístico nos censos brasileiros (1872-1940): uma abordagem convergente. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas. Belém, vol. 04, nº 03, p. 361-385, set./dez. 2009.

CARVALHO, José Murilo de. Os Bestializados. O Rio de Janeiro e a República que não foi. 3 ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.

CARVALHO, José Murilo de. República, democracia e federalismo. Brasil, de 1870-1891. Varia Historia. Belo Horizonte, vol. 27, nº 45, p. 141-157, jan./jun. 2011.

COSER, Ivo. O Conceito de Federalismo e a Ideia de Interesse no Brasil do Século XIX. Dados – Revista de Ciências Sociais. Rio de Janeiro, vol. 51, nº 04, p. 941-981, out./dez. 2008. COSER, Ivo. O Debate entre Centralizadores e Federalistas no Século XIX: a trama dos conceitos. Revista Brasileira de Ciências Sociais – RBCS. São Paulo, vol. 26, nº 76, p. 191-206, jun. 2011.

DAMATTA, Robert. Carnavais, malandros e heróis: para uma sociologia do dilema brasileiro. 6 ed. Rio de Janeiro: Rocco, 1997.

DAMATTA, Roberto. A Casa & Rua. Espaço, cidadania, mulher e morte no Brasil. 5 ed. Rio de Janeiro: Rocco, 1997.

Referências

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