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A cultura escolar material, a modernidade e a aquisição da escrita no Brasil no século XIX

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A cultura escolar material, a modernidade e a aquisição

da escrita no Brasil no século XIX

The material school culture, modernity and the acquisition of the writing

in Brazil on the XIX century

Eduardo arriada*

Elomar antonio CallEgaro tambara**

RESUMO – O processo de modernidade teve especial significação no Brasil no século XIX. Entre as esferas de sua influência, a que mais se destacou foi a do recinto escolar. A ideia de civilizar a população por meio de um saber vinculado à moralização, ordenamento religioso, civilidade, etc., passou a não ser suficiente para a formação do novo homem alfabetizado demandado pelo novel padrão de desenvolvimento industrial. Ao par, e não menos importante, instituiu-se uma “machina de ensinar” subordinada aos interesses do capitalismo em consolidação. Houve, sem dúvida, uma adequação do sistema de educação à produção e, principalmente, ao consumo em massa. Uma nova racionalidade impôs-se, a qual estava vinculada principalmente à aquisição da escrita, objeto deste estudo.

Palavras-chave – aquisição da escrita; história da educação; cultura material escolar

ABSTRACT – The modernity process had a special meaning in Brazil on the XIX century. Among its influential areas the most significant was the school premises. The idea to civilize the population through knowledge, which was tied to the moralization, religious ordainment, civility, etc., started to be insufficient to the formation of the new alphabetized man now demanded by the new pattern of industrial development.

Also, and not least important, a “teaching machine” was introduced subordinated to the capitalism interests in consolidation. There is, without any doubts, an adequacy of the education system to the production and, mostly, to the mass consumerism. A new reasoning enforces itself. And it is connected specially to the writing acquisition.

Keywords – writing acquisition; history of education; material school culture

I

ntrodução

O nascimento do mundo moderno apresenta-se como uma era de profundas transformações, sejam elas no âmbito econômico, na estruturação e no domínio do modo de produção capitalista, ou numa nova concepção mental de mundo, isto é, no predomínio de uma racionalidade embasada no conhecimento científico.

A modernidade consolidou modificações profundas na concepção cultural vigente no século XIX. Primeiramente, observa-se um processo de laicização, emancipando

a forma de pensar da sociedade, sobretudo da elite esclarecida, em relação a uma cosmovisão religiosa; num segundo momento, constata-se um processo de racionalização, produzindo uma revolução profunda nos saberes organizados sob o primado da razão. O século XIX, sob certos aspectos, estava impregnado pelas ideias de secularização e laicidade. O domínio do Estado, utilizando-se do aparelho ideológico escolar, impôs-se com mais força. “A educação das classes populares e, mais concretamente, a instrução e formação sistemática de seus filhos na escola nacional, fazem parte, na segunda

* Doutor em Educação pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (RS, Brasil) e Professor da Universidade Federal de Pelotas (RS, Brasil). E-mail: <arriada@hotmail.com>.

** Doutor em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (RS, Brasil) e Professor da Universidade Federal de Pelotas (RS, Brasil). E-mail: <tambara@ufpel.tche.br>.

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metade do século XIX e em princípios do século XX, das medidas gerais do bom governo”, afirmam Varela e Alvarez-Uría (1992, p. 88).

Sobre a escola, nasceram os grandes sistemas públicos de educação. Trata-se de um modelo de escola que não apenas instruía e formava, mas também estabelecia comportamentos e valores, que se articulavam em torno da didática, da racionalidade, da disciplina, das práticas repressivas. Era uma escola não mais caracterizada, como nos fala Ariès (1988), pela “promiscuidade das diversas idades”. Para Petitat (1994, p. 146), a renovação do pensamento pedagógico, nesse período, estava impregnada pela ideia de Estado. A estatização supunha certa centralização e uma abordagem global dos problemas educativos.

Desse modo, podemos perceber que a escola moderna nasceu como uma “máquina de educar”, uma tecnologia de controle e aculturamento. Ainda que nem todos considerem adequada a metáfora industrial ou tecnológica para falar da escola do século XIX, não obstante, todos compartilham o fato de considerá-la um artefato ou invenção humana para dominar e enclausurar a natureza infantil (PINEAU; DUSSEL; CARUSO, 2007, p. 22).

Segregadas do mundo, quando levadas para essas instituições, as crianças, aos poucos, descobriam a realidade do isolamento, as hostilidades dos colegas, as dificuldades do processo de ensino-aprendizagem, etc. A permanência na escola, as severidades e ameaças dos professores, marcavam as suas personalidades para o resto da vida. As minúcias com que eram elaborados os calendários escolares, os programas, os horários, as atividades, constituem-se em exemplos mais do que evidentes que um dos papéis desempenhados pelas instituições escolares seria justamente normatizar e regular o processo educativo. Com base nesses elementos, estabeleciam-se os ritmos da escola. Essas novas instituições representavam uma relação permeada de controle, distribuição do tempo e usos diferenciados dos espaços escolares, onde se executavam as atividades com regularidade assustadora e em etapas bem delimitadas. Por exemplo, havia horário para ingresso, para saída, para cada aula, para intervalos entre uma aula e outra, para recreio, etc. (FRAGO, 1995; 2005; FOUCAULT, 1984).

O ensino e a aprendizagem do controle do tempo estavam intimamente vinculados à construção das idades sociais, em especial das crianças e dos jovens. As representações e as práticas dos jovens prendiam-se a uma raiz histórica – a modernidade – que se expressava na justificação e legitimidade da vigilância e supervisão dos tempos, dos ritmos e dos conteúdos ensinados.

Estruturou-se uma “cultura escolar”, que dividia e disciplinava o tempo na escola, tendo um papel crucial na implantação de novos métodos didáticos, estabelecimento

de minuciosos programas, adoção de diversos materiais didáticos e pedagógicos. Essa nova escola submetia pro- fessores e alunos a um modelo de educação altamente espe- cializado no controle e disciplinamento de “corpos e espí- ritos”, a regras e ritos, a chamadas e exames (JULIA, 2001). Ao par, e não menos importante, instituiu-se uma “machina de ensinar” subordinada aos interesses do capi- talismo em consolidação. Houve, sem dúvida, uma adequa- ção do sistema de educação à produção e, principalmente, ao consumo em massa. Uma nova racionalidade impôs-se!

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Entre as diversas “instituições totais”, no entendimento de Goffman (1974), a escola é uma das mais poderosas, perpetuando o seu modelo por um longo período. Nela, as crianças começam a internalizar as primeiras noções de temporalidade, produto das rotinizações constantes das práticas educativas. Aos poucos, vão incorporando a noção de um tempo medido e cronometrado. A grade das disciplinas-saber marca a distribuição do tempo: instrução moral e religiosa; leitura e escrita; noções essenciais da gramática; princípios elementares da aritmética; sistema de pesos e medidas. O tempo escolar é, ao mesmo tempo, tempo disciplinar: horário de entrada, horário de aula, horário do intervalo, horário de saída.

Desse modo, a instituição escolar assume o papel de disciplinadora do tempo e das condutas, uma rede completa e complexa que se traduz em uma organização das rotinas imperceptíveis, à qual todos devem habituar-se: diretores, professores, inspetores, alunos, etc. (COMPÈRE, 1985; VARELA; ALVAREZ-URÍA, 1991; PETITAT, 1994). As instituições educativas prescrevem minuciosamente cada uma das atividades que devem ser executadas num determinado tempo, um tempo medido, controlado, disciplinado; podemos falar num “tempo escolar”, numa referência à conceituação de Viñao Frago (1995).

O espaço definitivo das vivências e controle do corpo discente é a sala de aula, não implicando dizer que não existam outros espaços ocupados pelos alunos: o pátio, os corredores, os banheiros, a biblioteca, a sala do diretor, entre outros. Diversos são os espaços de circulação, contudo, nenhum se equipara ao da sala de aula.

Tendo como modelo Hippeau, Almeida Oliveira1

considera o ideal de uma sala de aula aquela que possui as seguintes condições: deve estar no centro do edifício, com janelas localizadas distantes da rua, “a fim de evitar-se que os meninos se distraiam”. Ainda acrescenta:

No centro, um vasto espaço, dividido em tantos com- partimentos quantas aulas deve haver. As preferidas são separadas por tabiques envidraçados. Numa das extremidades, há um estrado onde o principal ou o diretor vigia todas as aulas, seis ou oito ordinariamente,

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contendo cada uma 50 a 60 alunos. Cada aluno está assentado numa cadeira fixa no chão, diante de uma pequena mesa ou escrivaninha com gaveta onde se metem os livros, lápis, réguas, papel, pedras. Um quadro preto, mapas para leitura, cálculo, e geografia, estão suspensos nas paredes. Todos esses objetos, asseados, elegantes, cômodos, estão arranjados com muita ordem (OLIVEIRA, 2003, p. 262).

Em seu Dicionário Universal de Educação e Ensino, Campagne salienta a importância da sala de aula: “é a parte da escola preservada aos exercícios escolares; pode-se até afirmar que é ela que constitui, por assim dizer, a escola”. Para o autor, ela é um espaço de ordem, de trabalho, de disciplina. Embora se demonstre com clareza ser um local onde as crianças “estão mais tempo obrigadas a um silêncio, a uma imobilidade”, pondera que esse aspecto, muitas vezes, não coadunava com a natureza das crianças, podendo comprometer o desenvolvimento físico. Entre outras observações, destaca que, em seu interior, o número máximo de alunos deveria ser 50 e que ela deveria ter a forma retangular (CAMPAGNE, 1886, p. 571).

Esse era o modelo almejado à época, porém, a rea- lidade brasileira encontrava-se distante desse tipo ideal em diversos aspectos. Os pareceres apresentados para a preparação do Congresso de Instrução do Rio de Janeiro, em 1883, eram unânimes em ressaltar a falta de material escolar: “a nossa pobreza toca a miséria; sem casas apropriadas, sem mobília conveniente, sem utensis, isto é, sem organização material”. Sem isso, seria difícil de acreditar que funcionasse a escola brasileira. Quanto aos “bancos-carteiras”, seja pelo acanhamento das salas ou por razões econômicas, “ainda são distribuídos na razão de 1 para 4 alunos, o que não só prejudica a disciplina esco- lar, mas dificulta o processo de escrita”. Quadros de lei- tura, de história natural, cartas geográficas, eram objetos não encontrados em nossas escolas, conclui o parecer (PARECER de Januário dos Santos Sabino, 1984, p. 6-7).

Era norma, na época, as autoridades provinciais en- viarem comissões para visitarem as escolas. Damasceno Vieira Fernandes (1879), representante do governo gaúcho, destaca:

A comissão não pode deixar de reclamar a atenção da Ilma. Câmara para a excessiva deficiência de livros, que se nota nas aulas, dificultando extraordinariamente o ensino, por quanto se o professor quer cumprir perfeitamente a sua missão, vê-se na penosa con- tingência de compilar para seus discípulos noções de geografia, aritmética, história do Brasil, por haver falta de compêndios nas aulas. Este fato a comissão teve ocasião de verificar nas aulas que percorreu.

Diversas províncias, anteriormente à concretização do Congresso da Instrução Pública na Corte, acompanharam

com interesse os preparativos. A Província de São Pedro do Rio Grande do Sul deliberou a seguinte medida:

Tendo o Governo Imperial resolvido sob proposta da Mesa do Congresso de Instrução, que juntamente com o mesmo Congresso e de acordo com o plano constante da cópia inclusa se realize na Corte uma exposição pedagógica, onde se reúnam todos os elementos que possam tornar conhecido o estado de adiantamento do ensino primário no país e nas nações da Europa e da América, que mais cooperam para o seu aperfeiçoamento, dignam-se convidar os funcionários do magistério e demais pessoas que se interessarem pelo desenvolvimento da Instrução Pública, nesse município, a contribuir para o êxito daquela tentativa com a remessa de listas e publicações que poderão aproveitar ao fim que se tem em vista, conforme é recomendado pela Circular do Ministério do Império de 9 de abril último. [...] O Diretor Geral da Instrução Pública de Rio Grande, Saturnino Epaminondas de Arruda (ARRUDA, 1883).

Anexa a esse documento, consta uma cópia com quatro folhas de autoria do Secretário do Congresso da Instrução, Carlos Leôncio de Carvalho (1883), com o seguinte teor:

Autorizada por aviso do Ministério do Império de 3 do corrente mês, a mesa do Congresso de Instrução convida as pessoas que se interessarem pelo desenvolvimento da instrução pública no Brasil a prestarem o seu concurso para uma exposição pedagógica, que deverá realizar-se ao tempo em que funcionar o mesmo Congresso. A exposição compreenderá os objetos seguintes: Jardins de infância. Plano e arquitetura dos edifícios. Mobília das salas e exercícios e trabalhos, aparelhos, instrumentos, modelos e mais objetos destinados aos trabalhos e exercícios. Mobília das salas de refeição e de recreio. Programas de ensino manuscritos e impressos. Livros relativos aos métodos, exercícios e trabalhos. Trabalhos dos alunos. Escolas primárias. Plano e arquitetura dos edifícios. Bancos, bancos-carteiras, taboas pretas e mais móveis apropriados para as aulas. Alfabetos, silabários e quadros de leitura. Cadernos e modelos de escrita. Aparelhos gráficos e modelos de desenho. Quadros para caçulo, contadores mecânicos e padrões do sistema métrico decimal. Globos e cartas para o ensino da geografia. Quadros para o ensino da história e processos mnemônicos. Instrumento e aparelhos para as aplicações elementares de física, química e mecânica. Coleções de geologia, mineralogia, botânica e zoologia. Atlas e modelos anatômicos. Coleções de objetos para o ensino intuitivo. Programas de ensino manuscritos e impressos. Livros para uso dos alunos. Obras relativas aos métodos de ensino. Aparelhos de ginástica. Instrumentos para a prática de ofícios. Planos de bibliotecas e museus escolares. Planos de caixas econômicas escolares. Trabalhos dos alunos com designação dos métodos adotados.

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A respeito dos assentos e das carteiras para os alunos, sob o ponto de vista do discurso higienista, o parecer de José Manoel Garcia priorizou o uso de carteiras individuais.

Prescindindo da discussão por amor da brevidade, declaro que de quantos tipos pude examinar de visu e de quantos nos dão notícia o relatório de Mr. Braun, os do congresso belga e as monografias de Mr. Narjoux, para as escolas mistas principalmente prefiro o do orfilinato Rothschild, de Paris, com assento isolado, por ser o mais simples e o mais cômodo. Uma vez que se lhe dê tamanho proporcionado à idade e desenvolvimento físico dos alunos, presta-se ele a arredá-los das distrações, oferece garantia de moralidade e não embaraça o asseio das aulas (5ª Questão, 1884, p. 10).

Entretanto, conforme visto, a realidade brasileira estava muito distante do considerado ideal. Em documento retratando o contexto da Província do Rio Grande do Sul, as autoridades públicas, ao relatarem como se encontrava o ensino na cidade de Rio Grande, constataram uma diferença entre ele e o da Suécia e dos Estados Unidos, além de “outros países mais adiantados do que o nosso”. Nesses países, os meninos se achavam “cada qual no seu banco”; mesmo estando próximos uns dos outros, “não o estão a ponto de se tocarem”.

Entre nós tudo é bem diferente disso. Um banco serve nas nossas escolas para 10 e 15 meninos, e do mesmo modo as estantes e mesas; e assim acham-se os meninos em contato imediato. Vª. Sª compreende o mal que desta aglomeração de crianças pode resultar, não sendo todas educadas com o mesmo cuidado pelas mães, e sendo muito diversos os meios em que passaram os primeiros anos de sua infância (LOUZADA, 1879).

Do ponto de vista pedagógico, as carteiras individuais eram consideradas as mais adequadas para as escolas, pois possibilitavam uma maior distância entre os alunos, coibindo, dessa forma, bagunças e desordens. Isolavam os corpos, em razão de normas de boa conduta, garantindo a disciplina, o estudo e a melhor vigilância por parte do professor. No entanto, aponta Rodrigues da Costa, o grande senão era que as carteiras individuais demandavam maior espaço das salas de aula. Assim, destacamos seu parecer quanto às carteiras:

Eu entendo que o sistema de uma só carteira e um só banco para cada aluno deve ser o preferido; a disciplina ganha pela facilidade das evoluções na aula; a educação lucra, porque o aluno se habitua à responsabilidade de seus atos, a qual, com esta mobília, não pode tão facilmente ser dividida com os outros. Julgo também preferível que o banco tenha encosto baixo, côncavo

no sentido horizontal e convexo no vertical, por isso que, se adaptando melhor a parte posterior do corpo que nele descansa, dá ao menino uma posição correta e mais cômoda; o que evita torsão na espinha, e permite atenção mais intensa e extensa. As carteiras individuais demandam, porém, muito espaço (1884, p. 12).

Tudo era minuciosamente ordenado; os novos modelos de carteira buscavam disciplinar os corpos; posturas adequadas eram cobradas na busca de rapidez, rendimento e competência. A postura correta do aluno agora tinha um caráter orientado pelos higienistas.

O cotovelo assenta na mesa, perto do bordo. Em consequência, a parte superior do corpo, volvida sobre si mesma para a direita debruça-se mais ou menos para frente, segundo o grau de distância existente entre a carteira e o banco. A mão direita posa no caderno, enquanto o cotovelo direito vem apoiar-se de encontro às costelas (BARBOSA, 1883, p. 329).

Essas questões não mereceram apenas a preocu- pação dos educadores, mas também de arquitetos, médi- cos e higienistas, de um modo geral. No último quartel do século XIX, reforçava-se a convicção, nos educadores mais esclarecidos, de que a escola tinha um papel importante a cumprir. Rui Barbosa (1883, p. 328), em seus pareceres, aponta inclusive questões de iluminação: “todas as autoridades concordam que a claridade mais cômoda e sã para os olhos é a que penetra somente por um lado da sala”. Quais os tipos mais adequados de mobiliário? Que dimensões deveriam ter as carteiras e bancos escolares? Eles estavam adequados às idades dos alunos? Qual a posição ideal dos alunos no ato de escre- ver?

Alguns materiais didáticos eram indispensáveis ao bom funcionamento das escolas. Nas salas de aula, de acordo com a maioria dos regulamentos, deveria constar a imagem do Senhor crucificado, um relógio, um armário, uma mesa com um estrado, uma cadeira de braços para o professor, bancos e mesas inclinadas com tinteiros fixos para os alunos, uma ampulheta, um quadro grande de madeira pintado de preto, esponjas e giz, ardósias, papel e compêndios, cabides para chapéus e réguas com guarnição de metal. O uso desses materiais didáticos em sala de aula implicava, tanto por parte dos professores como dos alunos, a sua correta utilização. Ao Conselho Diretor, cabia informar a durabilidade desses materiais, a fim de, quando necessário, refazerem os pedidos. Além disso, deveriam zelar pelo asseio, mantendo as salas limpas. Ordem, higiene e asseio faziam parte dos comportamentos e atitudes dentro do recinto da sala de aula; eles eram componentes da disciplina escolar, moldando e reforçando valores morais. Era de praxe os

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colégios informarem às autoridades públicas o rol de objetos existente em sala de aula.

As escolas públicas eram bastante detalhistas na descrição do rol dos objetos. Eis a relação da 2º ca- deira enviada pelo professor José Maria Damásio Mattos, da cidade de Rio Grande (RGS): 31 ardósias; 26 1º livros de leitura (Dr. Abílio); 16 2º livros de leitura (Dr. Abílio); 6 3º livros de leitura (Dr. Abílio); 3 gramáticas de Kramer Walter; 14 gramáticas de Villeroy; 11 doutrinas; 25 aritméticas; um maço de lápis; uma resma de papel; 2 mapas; 14 quadros com exemplares de escrita; 2 mesas e duas cadeiras; um estrado; 2 pedras; 13 escrivaninhas; 43 bancos; uma caixa de penas de aço; 4 garrafas de tinta; 24 canetas; uma talha; um armário; 35 tinteiros; uma tabuleta com as armas imperiais (MATTOS, 1878).

O professor Joaquim Louzada (1879) relata, em ofício, o “inventário” dos bens constantes no espaço da sala de aula.

Duas armas imperiais. Um armário em mau estado. Seis classes em mau estado. Seis classes boas. Um globo terrestre. Vinte bancos. Duas pedras grandes. Uma mesa. Uma mesinha. Uma cadeira. Um estrado.

Desse modo, a sala de aula pode ser considerada o ambiente por excelência do convívio escolar. Ali no recinto fechado de um espaço reduzido, alunos e professores relacionam-se diariamente. Uma disputa velada de poder ocorre à vista de todos.

O controle sobre o corpo discente é feito por técnicas e estratégias que a maquinaria engendra: valorização dos “bons comportamentos”, avaliação das disciplinas, exames, premiações. O olhar panóptico vigia tudo e todos, desde atitudes, gestos, comportamentos, condutas, notas, ou seja, todos os espaços escolares são vigiados: corredores, pátios, salas. Mesmo quando não existe a presença física de alguém, o aluno é induzido a comportar-se como comportar-se houvescomportar-se um olhar permanente e atento.

Importa estabelecer as presenças e as ausências, saber onde e como encontrar os indivíduos, instaurar as comunicações úteis, interromper as outras, poder a cada instante vigiar o comportamento de cada um, apreciá-lo, sancioná-lo, medir as qualidades ou os méritos. Procedimento, portanto, para conhecer, dominar e utilizar. A disciplina organiza um espaço analítico (FOUCAULT, 1984, p. 131).

Essa dimensão ganha contornos mais amplos no recinto da sala de aula, espaço no qual a autoridade do professor é inconteste. A ele, cabe ordenar e dirigir; aos alunos, resta obediência, silêncio e respostas quando inquiridos.

As salas de aula, em geral retangulares, de tamanho reduzido, com um estrado na frente e disposição dos bancos em fileiras, facilitavam o controle do professor sobre os alunos.

Uma descrição minuciosa de uma sala de aula e seu “funcionamento”, no início do século XIX, é relatada por Felicíssimo de Azevedo, que teve como mestre Antonio D’Ávila, vulgarmente conhecido na época pelo “pouco simpático qualificativo de amansa-burros”. De acordo com a escrita do memorialista, “penetremos na aula” e observemos o seguinte:

No vão, que fica entre a porta e a janela, está uma pequena mesa, um pouco afastada da parede para dar lugar a uma poltrona com assento de sola, onde se acomoda o professor. Por detrás do professor, pendente da parede, está uma cruz de madeira pintada de preto, que é como que o símbolo da escola. À esquerda da sala veem-se três ordens de bancos à moda dos circos de cavalinhos ou de rinhas de galos (em anfiteatro), onde se sentam os meninos, sendo os maiores no primeiro banco e os outros nos bancos superiores, guardadas as gradações de adiantamento. À direita vê-se um grande banco, com altura suficiente para vê-servir de escrivaninha, e a par dele outro da mesma extensão e com altura proporcionada a nele se assentarem os meninos quando escrevem (AZEVEDO, 1884, p. 157-158).

Diversos outros aspectos do interior da escola são narrados, inclusive a existência de outro cômodo, onde eram ministradas aulas de estudos secundários, latim e francês, para três ou quatro alunos, conforme a memória do articulista. Como a nossa preocupação é caracterizar o ensino de primeiras letras, retomamos o “fio condutor” da narratividade de Azevedo, que assim se expressa: “examinemos agora o seu método de ensino”.

A cada discípulo principiante é distribuído um pedaço de papelão sobre o qual, em um quarto de papel, está grudado o abecedário escrito pelo professor. Da mesma forma, sobre pedaços de papelão, são distribuídos aos meninos todas as cartas de nomes, sempre escritas com letra de mão, como se dizia então (manuscritas). Depois de saberem toda a escala das cartas passam à leitura da doutrina cristã ainda escrita por letra de mão. A doutrina cristã forma a base da instrução. Duas vezes por semana são examinados os meninos rigorosamente em todas as suas orações, sofrendo cruéis castigos, a maior parte das vezes imerecidas porque as faltas dos examinados são filhas do terror que inspira o professor aos meninos seus discípulos. Da doutrina cristã passam eles a ler, em cadernos escritos pelo professor, trechos do Velho e do Novo Testamento, sobre cujos artigos prelecionava com perícia pouco comum o Sr. Antonio D’Ávila. Depois desta leitura se exercita o discípulo na leitura de sentenças dos tribunais judiciários, escolhida

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a dedo entre as mais cruéis, como, por exemplo, a que condenou o mártir brasileiro Francisco José da Silva Xavier (o tira-dentes) e seus companheiros, a fim de guiar e acostumar o espírito dócil da infância à obediência cega às ordens de El-rei Nosso Senhor (AZEVEDO, 1884, p. 158).

Aos poucos e arduamente, os alunos aprendiam. Depois dessa etapa, finalmente estavam prontos para receberem a ambicionada Cartilha do Padre Inácio,2

texto não mais manuscrito, porém, impresso.

Recebido este ambicionado presente, que anuncia ao menino a aproximação do termo do seu martírio, entra o coitado em nova luta intelectual que tem de lhe custar muitas dúzias de bolos. Para logo, ele desconhece a letra de imprensa, o que não admite o tirano professor. Acostumado a ouvir a leitura corrente do discípulo, não pode sofrer pacientemente a dificuldade que ele encontra nos novos caracteres que é preciso conhecer a fundo para poder ler corretamente (AZEVEDO, 1884, p. 158-159).

Embora a aula iniciasse às sete horas e trinta minutos, o professor só chegava às oito. Ao entrar no recinto, todos tinham que se levantar e saudar o mestre com “bons dias”. Depois de sentar em sua cadeira “com a gravidade de um soberano”, a um sinal quase imperceptível, autorizava os alunos a sentarem-se.

Três vezes por semana dão-se os meninos ao exercício da escrita, principiando por fazer riscos perpendiculares, copiados de traslados. Daí passam a escrever as letras do abecedário a lápis para serem depois cobertas com tinta, e por fim escreverem máximas morais. Cada discípulo ao acabar a sua escrita levanta-se da escrivaninha e, depois de apresentá-la ao professor sem ter coragem de levantar os olhos, toma o lugar que lhe compete no banco de estudo e de lá espera como o condenado a leitura da sentença. Terminada a apresentação das escritas, são elas minuciosamente examinadas pelo professor, que a proporção que as vê, segundo a boa ou má prova, vai passando-as para um ou outro lado da mesa, escrevendo na parte superior de grande parte delas os algarismos 2, 4, 6 ou 8 (sempre números pares) e assim por diante. As escritas têm cada uma à assinatura do aluno respectivo. Terminado o seu exame cada menino é chamado por sua vez à mesa do professor, que silenciosamente lhe mostra, apontando, o algarismo lançado no alto da escrita (AZEVEDO, 1884, p. 159).

Em sua obra intitulada Minhas recordações, Francisco de Paula Ferreira de Rezende recorda seu tempo de estudante em Minas Gerais, no distante ano de 1840.

A frequência era muito grande; pois que a matrícula era de cento e muitos meninos. O ensino se fazia

por classe; e como o mestre não tinha tempo para pessoalmente se ocupar de tantos meninos, as classes inferiores eram mais ou menos desprezadas e bem pouco se adiantavam. Quanto à matéria do ensino e ao modo como este se dava, era mais ou menos o que ainda hoje se vê; e por isso sem demorar-me sobre este ponto, só quero aqui registrar uma novidade que na aula apareceu e que julgo bem pouco durou. Essa novidade foi umas espécies de pequenas mesas cercadas de umas tabuletas as quais, cheias de uma areia bem lisa, serviam para nela se escrever ou se fazerem letras, em lugar de lousas ou papel (REZENDE, 1988, p. 152).

O espaço escolar, rigidamente ordenado e regu- lamentado, tentava inculcar-lhes valores, padrões, normas de comportamento. A autoridade do professor estava agora alicerçada na nova “ciência pedagógica”; todo um saber teórico e prático de como manter a “boa ordem” e a “disciplina” em sala da aula era agora reivindicado. O professor, do mesmo modo que os outros profissionais da educação, para governar, via-se obrigado a romper os laços de amizade de seus subalternos, impondo a delação, a competição, “as odiosas comparações”, a “rivalidade nas notas”. Assim, qualquer tentativa de resistência coletiva estava descartada. Emergia desse universo um dispositivo fundamental: a carteira ou classe escolar. “Este artefato destinado ao isolamento, imobilidade corporal, rigidez e máxima individualização permitirá a emergência de técnicas complementares destinadas a multiplicar a submissão do aluno”, afirmam Varela e Alvarez-Uría (1992, p. 91-92).

A evolução do processo de criação e consolidação do sistema educacional brasileiro apresenta um caráter visivelmente vinculado às transformações socioeconômicas pela qual a sociedade brasileira passou. Particularmente, em relação aos conteúdos das disciplinas ministradas no ensino primário, notam-se algumas alterações associadas ao processo de consolidação do sistema capitalista em seu estágio monopolista.

a

aquIsIçãodaescrItae

seusartefatos

Este trabalho pretende vincular essa transformação socioeconômica às doutrinas e práticas hegemônicas que embasavam as modificações em termos de teoria e prática pedagógica e que estavam associadas a mecanis-mos de poder da classe dominante tanto em nível nacional como internacional. Há um processo de homogeneiza-ção mundial em termos de cultura escolar que perpassa todas as instituições vinculadas à produção, difusão e, principalmente, comercialização de artefatos educacio- nais. Esse processo de industrialização tem, sem dúvida, seus corifeus em intelectuais que cientificaram técnicas ins- trumentais com o objetivo de alçar a prática pedagógica

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ao status que os diversos conhecimentos científicos pro- curavam consolidar no decorrer do século XIX.

A ideia de civilizar a população por meio de um saber vinculado à moralização, ordenamento religioso, civilidade, etc., passaram a não ser suficientes para a formação do novo homem alfabetizado demandado pelo novo padrão de desenvolvimento industrial. O final do século XIX tinha por meta a formação de um homem produtivo que, na escola, traduzia-se em um homem escritor. A nova ordem econômica que substituiu a escravocrata exigia um novo conhecimento e uma nova práxis escolar, a qual se consubstanciava em novos moldes de inserção na sociedade letrada instalada e nos novos quadros administrativo-burocráticos constituídos.

Das habilidades e competências inerentes ao pro- cesso de ensino-aprendizagem das séries iniciais, parti- cularmente no primeiro ano, há de se destacar a escrita. Não que a leitura e o contar, que tradicionalmente constituem o trio de conhecimentos associados ao início do processo de alfabetização, não fossem considerados importantes, mas é nossa opinião que a efetividade da atuação da escola para a nova formação socioeconômica consubstanciava-se na aquisição da escrita. Nesse sentido, este trabalho tem por objeto principal a caracterização da tese que identifica, na aquisição da habilidade de escrita, o principal componente de desconforto e mesmo de sofrimento do aluno no primeiro ano de escolarização, por um processo individualizado e facilmente mensurado pelo professor. Ademais, constituía na exteriorização de um efetivo aprendizado.

Sem dúvida, o processo de aquisição das habilidades da escrita e da leitura estava ligado à necessidade de maior inserção no processo de doutrinação religiosa, particularmente no início do século XIX. Nesse sentido, é pelo menos questionável a apropriação aligeirada que, por vezes, ocorria na direção de caracterizar uma eventual negligência da Igreja Católica em relação a tais competências. De modo geral, havia um forte vínculo do processo de alfabetização e a introjeção doutrinária católica. Um exemplo dessa situação é o manual Novo

Alfabeto Portuguez, de larga circulação no Brasil, no qual

está bem explícita essa associação.

A associação entre o processo de alfabetização e a constituição de um novo sujeito histórico conformado a práticas comportamentais subordinadas à assunção de religiosidade, civilidade, subserviência, etc., é bastante investigada na área da história da educação. Entretanto, por vezes, negligencia-se que a modernidade representada pela penetração do capitalismo na escola e na sociedade como um todo requer não somente esse homem conformado, mas um novo homem, o homem produtivo em novos moldes – o “trabalhador livre assalariado”. Foi nesse diapasão que a aquisição da escrita tornou-se um dos elementos

determinantes da nova sociedade que desembocou na era republicana no Brasil. No Brasil e mesmo no mundo, observa-se um processo de transformação da escola e do ensino, mormente vinculado a esse item, sendo facilmente percebível em uma análise dos diversos regulamentos de instrução pública elaborados pelas províncias no decorrer do século XIX.

No início do século, o método de ensino utilizado para o aprendizado do ato de escrever estava baseado no propugnado pelo sistema apresentado por Joseph Lancaster (1778-1838), legitimado pela Lei de Ensino de 1827. Nesse sentido, a apreensão, no Brasil, ocorreu primordialmente pela tradução efetuada por Guilherme Skinner, que, na Gradação de Classes para aprender a

escrever, estipulava:

1ª classe – Fazer o A, B, C

2ª classe – Escrever o alfabeto e palavras de duas letras 3ª classe – Idem de três letras

4ª classe – Idem de quatro letras 5ª classe – Idem de cinco letras 6ª classe – Idem de seis letras

7ª classe – Idem qualquer livro histórico

8ª classe – Idem qualquer livro histórico (LANCAS- TER, 1823, p. 15).

Figura 1 – Manual escolar que ilustra a vinculação entre alfabetização e doutrina cristã.

Figura 2 – Ilustração do processo de aquisição da escrita em uma aula lancasteriana (LANCASTER, 1823).

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Com o Ato Adicional de 1834, coube às províncias a atuação mais incisiva sobre o sistema de ensino, embora, muitas vezes, as legislações provinciais se caracterizassem em uma adaptação das reformas efetuadas no Município da Corte. De qualquer forma, percebe-se que há a elaboração de vários instrumentos que visavam a regular a instrução nas províncias, particularmente no ensino primário. Assim, por exemplo, a legislação da educação na Província do Rio Grande do Sul tem um marco regulador no ano de 1837, com a promulgação do regulamento de instrução pública. Nesse instrumento, temos uma definição sobre o conteúdo ministrado nas primeiras séries do ensino primário, divididas em três classes. Na primeira classe, eram ministrados os seguintes conteúdos leitura e escrita; as quatro operações de aritmética sobre números inteiros, frações ordinárias e decimais; proporções; princípios de Moral Cristã e da Religião do Estado; Gramática da Língua Nacional, conforme a Lei 14, de 1837 (TAMBARA; ARRIADA, 2004, p. 15). Com pouca variação, esse era o conteúdo ministrado em todas as províncias do Império. Os regulamentos repetem-se na caracterização dessas matérias e ainda na eleição do sistema de Lancaster, apesar da reconhecida dificuldade em sua implantação.

Paulatinamente, vai havendo uma preocupação mais importante e precisa com a aquisição da escrita, o que denota a vontade de cientificizar um conhecimento e, por vias de consequência, padronizar rotinas de aprendizagem que permitissem um guia seguro ao professor em sala de aula. Em 1842, no Rio Grande do Sul, havia uma reorganização do conteúdo do ensino de primeiras letras, dividido em 10 classes. O método era centrado no ensino da leitura, escrita e aritmética.

Nas 4 primeiras classes devem compreender as lições de leitura até os Nomes, inclusive. A 5ª, 6ª e 7ª manuscritos e um compêndio de doutrina moral cristã e civilidade soletrado; a 8ª, 9ª e 10ª noções de história do Brasil ensinadas por compêndio resumido e gramática nacional (TAMBARA; ARRIADA, 2004, p. 22).

No regulamento de 1842, há um método prático do ensino3 para as Aulas de Instrução Primária da

Província do Rio Grande de S. Pedro do Sul, cuja estrutura é a seguinte:

Dividi a instrução em dez classes distintas, e um banco de areia para que cada uma delas aprenda gradualmente o ensino correspondente ao seu entendimento: por isso que no banco de areia o menino aprende a traçar linhas retas, e curvas, cada uma das letras de abc, os algarismos aritméticos, e juntamente decora seus nomes (TAMBARA; ARRIADA, 2004, p. 38).

Figura 3 – Ilustração do início do processo de aquisição da escrita, normalmente feito em banco de areia (MONTEVERDE, 1878).

Nesse período, no Brasil, de modo geral, o primeiro contato do aluno com a escrita era efetuado nos bancos de areia. Isso ocorria por vários motivos, dentre os quais os econômicos, por ser mais barato, e os técnicos, pela inexistência de quantidade suficiente de lousas e cadernos. Entretanto, esse artefato, em meados do século, sofreu forte oposição dos especialistas que estudavam o processo de ensino da escrita nas séries iniciais, particularmente da vanguarda acadêmica atuante nas escolas normais, como se pode perceber no excerto do Manual Completo

do Ensino Simultâneo Elaborado por Dois Membros da Universidade de França, publicado na Bahia, em 1852.

Usava-se d’antes d’uma carteira ou banco d’areia, mas que se acha hoje inteiramente reprovado.

Mesmo os mais tenros discípulos principiam logo a escrever em pedras, com as quais se evitam os numerosos inconvenientes da areia. Eles a deitavam fora, lançavam nos olhos uns dos outros, e, além disso, traçavam caracteres confusos, que nas pedras se tornam muito mais distintos (MANUAL, 1852, p. 13).

Essa foi uma ferramenta por muito tempo utilizada no Brasil, em muitas regiões, como se pode deduzir, por exemplo, pelo artigo 69 do Regimento Interno das Escolas Públicas de Instrução Primária da Província de Mato Grosso, em 1873.

Feito o sinal da seção de escrita e ocupadas as classes pelos respectivos alunos, antes de começarem os exercícios, os monitores distribuirão por eles os translados e mais utensílios necessários. Enquanto durarem os trabalhos desta seção, o monitor do banco de areia irá chamando a atenção dos alunos da respectiva classe para as letras do alfabeto e algarismos

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que lhes for apontando, ensinando-lhes os nomes que se dão a cada uma e fazendo-os desenhar na areia com um ponteiro (SÁ; SIQUEIRA, 2000, p. 66).

O regulamento gaúcho de 1842 apresenta a sequência de aprendizagem da escrita preconizada para as escolas primárias de instrução pública.

Na 1ª Classe, aprende a traçar sobre louza as linhas rectas, e curvas [...]

Na 2ª aprende a traçar letras de corpos primitivos que não prolongão hastes quer superiores, quer inferiores [...]

Na 3ª, aprende a traçar, não só letras de corpos primitivos que não prolongão suas hastes; como aquellas que prolongão tanto superiores, como inferiores [...] Na 4ª, aprende a fazer, ou traçar as letras alphabeticas por ordem [...]

Na 5ª, principia em papel a fazer as letras alphabeticas por ordem [...] (TAMBARA; ARRIADA, 2004, p. 38-39).

última classe, não se riscam. As pedras sendo fixadas nas carteiras não se quebram facilmente, e são assim econômicas. Usa-se do lápis de pedra em canetas de metal, e quando o professor prefere mandar escrever em papel, pelo menos na primeira divisão tornam-se indispensáveis as pedras para substituírem o banco d’areia (MANUAL, 1852, p. 14).

O regulamento de 1842, utilizado aqui como guia, estabelece as séries que deveriam conter o coroamento do processo da aprendizagem da escrita.

Na 6ª, forma as letras alphabeticas por ordem sem sombra [...]

Na 7ª, escreve bastardo [...] Na 8ª, escreve bastardinho [...]

Na 9ª e 10ª finalmente, o resto com recordações que fazem, quando transmitem a seus condiscípulos aquilo que já aprenderão (TAMBARA; ARRIADA, 2004, p. 39).

É importante destacar que a substituição dos diversos suportes materiais utilizados no processo de aquisição evoluiu, mas, ao mesmo tempo, conviveram entre si, denotando um processo multifacetado tanto em termos de sua natureza como em seu sentido histórico. Assim, por exemplo, o Colégio Rio-Grandense, estabelecimento de ensino particular de destaque de Porto Alegre, já indicava, na década de 40 do século XIX, forte utilização de cadernos, convivendo com o uso da lousa e com o banco de areia, como se pode notar no artigo 40 de seu regulamento:

Os objetos que tem lugar na aula, são os livros designados no art. 29, um caderno de papel de peso para escrituração, outro dito almaço para contas, uma lousa com competente pena, uma dita para escrever, um lápis e um canivete, porém este só trarão os que escrevem cursivo, por que esses terão obrigação de aparar as suas penas (REGULAMENTO DO COLÉGIO RIO-GRANDENSE, 1842, p. 2).

Ao final do regulamento, há esta advertência:

Os que entrarem na aula sem saberem os primeiros elementos de leitura começarão pelo abcedário; indo ao mesmo tempo formando na areia esses mesmos caracteres de três em três, a fim de lhes ficarem impressos na memória com mais facilidade os nomes de cada um (REGULAMENTO DO COLÉGIO RIO-GRANDENSE, 1842, p. 2).

Sobre o processo de aprendizado da escrita, na medida do possível, a utilização de translados deveria ser feita a partir de cópias elaboradas pelo próprio professor, sendo os impressos uma exceção, conforme consta no Manual, quando se refere à “classe de escrita”.

Figura 4 – Ardósia de dupla face já com pautas utilizadas para o exercício do ato de escrever (acervo dos autores).

Observa-se que, em meados do século, a utilização de lousas tornou-se um instrumento indispensável no processo de aquisição da escrita. Constituía-se no seu principal suporte e, consequentemente, exigiu da estrutura escolar outros equipamentos indispensáveis para a otimização de seu uso, entre eles o banco escolar apropriado, o que mereceu dos técnicos um explicação bastante precisa, como podemos ver no excerto a seguir.

Pedras. Elas são fixadas na superfície da madeira, bem como no ensino mutuo. Os discípulos para limpá-las trazem ao pescoço uma esponja pendurada a um barbante.

O uso das pedras é, além de útil, pouco dispendioso. As menores são riscadas para bastardo, as de tamanho médio para bastardinho, e as maiores, pertencentes à

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Quando o professor tiver boa letra fará ele próprio os seus translados, quando a não tiver usará d’eles impres- sos. A letra cursiva é a que geralmente se ensina, mas também é bom ensinar a redonda e a gótica, que são usa- das nos frontispícios dos livros, e em outros papéis. As cinco classes do método simultâneo escrevem: A 1ª elementos de letras, e letras destacadas; A 2ª bastardo unido;

A 3ª ora bastardo, ora bastardinho, e maiúsculas; A 4ª fino, e letras capitais;

A 5ª Alternadamente o que tem aprendido nas outras classes, a redonda, a gótica, e no fim de cada escrita uma linha de algarismos (MANUAL, 1852, p. 46).

Em 1857, no Rio Grande do Sul, quando da refor- mulação do regulamento em decorrência da Lei Provincial 318, de 09 de novembro de 1855, o sistema de ensino foi dividido em escolas de ensino primário de 1º grau e de 2º grau. O primeiro ano dessas escolas apresentava o seguinte conteúdo:

Art. 1º. A instrução moral e religiosa; a leitura e escrita; as noções essenciais da gramática; os princípios elementares da aritmética, o sistema de pesos e medidas usados na província (TAMBARA; ARRIADA, 2004, p. 49-50).

Nota-se a existência de uma regulação geral, se- guindo, de certa forma, a reforma Couto Ferraz, mas logo esmiuçada, em 1859, quando houve alterações no regulamento de 1857, principalmente voltadas à expli- citação da gestão do conteúdo das matérias do ensino primário. Quanto ao conteúdo que nos interessa, desta- camos o seguinte:

O ensino de leitura versaria sobre as seguintes ma- térias:

& 1º Conhecimento – 1º dos diferentes caracteres de letras de uso comum, 2º de sua formação e modificação; 3º dos acentos e sinais ortográficos, e de pontuação; 4º das sílabas, das palavras, gêneros, e espécies destas, sua formação e derivações; 5º das sentenças, e das partes que as compõem; 6º das regras gerais da sintaxe, sua aplica- ção, e mais partes elementares da Gramática Portuguesa. & 2º Pronúncia correta, e leitura corrente, assim em prosa, como em verso, em manuscritos e impressos modernos ou antigos.

& 3º Aparo, preparo, colocação e uso da pena. & 4º Conhecimento e formação das linhas, traços de escrita, espaços e intervalos das letras; figuras simples de Geometria, imitação e formação de diferentes espécies de letras, escrita (bastardo, bastardinho, cursivo e letras variadas) à vista de modelos, ou ditada, conforme as regras de caligrafia.

& 5º Cópias de manuscritos, ou impressos, ou exer- cícios de escrita com aplicação das regras ortográficas, composições ou escrita ditada.

& 6º Exercício de memória, especialmente do cálculo mental.

Art 4 Os modelos para escrita conterão preceitos do Evangelho, ou máximas de moral cristã e normas de atos civis e comerciais do uso geral (TAMBARA; ARRIADA, 2004).

Na segunda metade do século XIX, consolidou-se a sistematização e mesmo a sofisticação técnica do processo de aquisição da escrita, transformando-o, particularmente nas escolas formadoras de professores, numa referência da profissão. Em 1873, no regulamento da Província do Mato Grosso, esse aspecto já estava bem delineado, sendo muito semelhante à estrutura curricular existente em outras províncias. De modo geral, a “seção de escrita” apresentava esta divisão:

Art. 7º A seção de escrita será também subdividida em oito classes.

§ 1º – A 1ª classe terá por objeto o traço de linhas, letras maiúsculas e minúsculas e algarismos em areia. § 2º – A 2ª o traço de linhas e de letras do alfabeto em lousas, entre regrados largos.

§ 3º – A 3ª o traço de letras do alfabeto no papel sobrepondo-o ao translado.

§ 4º – A 4ª o bastardo largo. § 5º – A 5ª o meio bastardo. § 6º – A 6ª o bastardinho

§ 7º – A 7ª o cursivo maior entre dois regrados. § 8º – A 8ª o cursivo menor sobre um só regrado ou pauta (SÁ; SIQUEIRA, 2000, p. 60).

O processo de cientifização estava bastante associado a elementos da penetração de relações tipicamente capitalistas no âmbito da escola, como se pode perceber no informe publicitário do livro Modelos ou normas

de escripta para collegios e methodo para aprender a escrever por si mesmo, da empresa C. ADLER, de

Hamburgo, Alemanha.

Estes modelos, partindo de linhas e traços finíssimos conduzem a mais perfeita escripta ingleza.

Um pontuado fino cor de lápis, destinado a ser coberto com tinta pelos alumnos, facilita no principio a imitação dos modelos claramente impressos. As entrelinhas em branco são destinadas aos exercícios de mão livre. Estes cadernos gozando dos maiores encômios de juizes competentes, forão premiados em muitas exposições internacionais, e já se acham adotados para os respectivos cursos nas escolas públicas, assim como em aulas de ensino particular, da maior parte dos Estados da Europa e em diversos países das duas Américas, incluindo o Brasil.

Destes cadernos há igualmente edições apropriadas paras as línguas portuguesa, espanhola, francesa, italiana, inglesa, etc., assim como as há para a alemã (ALMANAK, 1884, p. 1772).

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É importante perceber como a passagem da lousa para os cadernos permitiu a expansão de um mercado de consumo mundial, amplamente aproveitado pela indús- tria editorial, particularmente da Inglaterra, Alemanha e França, devido, principalmente, à padronização, rela- tivamente universal, de um arquétipo caligráfico. É evi- dente que esse movimento estava relacionado a um processo de colonização das mentalidades e, em particular, vinculado a um estágio de globalização do capitalismo e, no caso específico, de expansão dos mercados para o sistema fabril europeu, por meio da privatização da cultura material existente no espaço público escolar. Todos esses movimentos estavam acoplados a novos estilos de vida escolar, agora marcada por uma relação tipicamente mercantil, com importante significação na matriz econômica da sociedade.

aquisição da escrita, associado, de certa forma, à tentativa de elevar o ato pedagógico ao nível de ciência. Em outras palavras, intentava-se criar um profissional com um conhecimento específico, com habilidades próprias e com capacidade, de per se, de garantir o sucesso proposto pelo estatuto profissional. Por outro lado, observa-se a tentativa de uma popularização dos abecedários, que obviamente tem embutido um cunho comercial, como Alphabeto Illus-

trado das Aves, Alphabeto Illustrado dos Animais, etc.

Figura 5 – Exemplares de cadernos escolares para a prática da aquisição da escrita que evidenciam sua globalização (acervo dos autores).

O paulatino processo de substituição de artefatos mais manufaturados por outros tipicamente industrializados associava-se à justificativa de ordem pedagógica, mas que obliteravam a verdadeira razão – predominantemente, de ordem econômica. Vejamos como Daligault justifica tal processo:

Bem como as penas metálicas, as pautas poupariam o tempo do professor, obrigado a regrar parte dos cadernos. Teriam, além disto, a vantagem de indicar por meio de linhas oblíquas, que nelas se traçam, a inclinação da escrita, o comprimento das hastes, a grossura das letras, e a distância que entre elas deve haver, etc. Entretanto, preferimos para os principiantes o papel regrado, porquanto tem provado a experiência que assim a escrita sai mais limpa e mais regular (DALIGAULT, 1874, p. 137).

Nas últimas décadas do século XIX, ocorreu, portanto, um processo de cientifização e regulação do processo de

Figura 6 – Ilustração da criatividade e sofisticação editorial em relação à aquisição da escrita no final do século XIX.

Ao final do século, temos, então, uma série de estru- turas normativas que caracterizariam um aprendizado condizente com práticas mais modernas na área da peda- gogia. Um típico exemplo desse desiderato é o trabalho de Paulino Martins Pacheco, intitulado Algumas lições de

calligraphia dadas aos alunos da escola normal e publicado

em 1888. Esse manual representa as orientações emanadas pela escola normal do Município da Corte, retransmitidas pelo efeito demonstração para todas as outras escolas do Império. A análise desse processo, neste texto, tem como sustentáculo empírico essa fonte privilegiada.

O primeiro momento do processo de modernização capitalista da arte da escrita vincula-se à massificação do uso do caderno de papel e à utilização da pena metálica. Até meados do século XIX, o processo de escrita dava-se principalmente com a utilização de penas de aves.4 Havia

mesmo um ritual bastante significativo que deveria ser considerado na escolha da pena.

A alvura da pena e o preceito de ter a rama do lado direito mais larga do que a do esquerdo (o que atestava

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ser ela da asa direita da ave) eram condições prévias e indispensáveis para que a pena pudesse ser aceita. Reconhecida a boa qualidade da pena e a sua aptidão para a escrita, seguia-se a escolha por grossura, e o processo de seus diferentes aparos, afim de acomodá-la à altura e espécie de letra que se queria empregar. Estas operações faziam-se com tanta cerimônia e particularidades, que quase equivaliam à prática de uma ciência.

Um tal sistema, pois, condenando à morosidade quem muitas vezes desejava ser célere, não podia deixar de reclamar uma substituição (PACHECO, 1888, p. 7).

A indústria inglesa passou a produzir maciçamente penas metálicas, tendo como parâmetro a invenção do mecânico francês J. Arnoux. Logo, todos os países do continente adotaram esse equipamento, que se generalizou pelo mundo. Ao final do século XIX, diversas empresas disputavam o mercado de penas de aço: Gillot, a mais antiga, Brandauer, Blanzy-Poure, Mallat, entre outras. Por algumas décadas, os dois tipos de penas foram utilizados concomitantemente; porém, aos poucos, tanto por motivos econômicos como por recomendação de interesse prático e técnico, as penas metálicas passam a monopolizar o ato de escrever. Isso nos revela, também, o poder das transformações industriais no sentido de operacionalizar um sistema conveniente para o sistema de produção de massa que se instalava em todos os níveis.

Essa transição é bem demonstrada por Daligault:

Penas – de duas qualidades de penas se usa nas escolas: das de pato e das metálicas. As primeiras são próprias para todos os gêneros de escrita, são mais brandas ao escrever, e são também as únicas com que se pode chegar à grande perfeição. As outras podem apenas servir para a escrita cursiva (média ou fina) e expedita. Demais, pelo esforço que exigem, tem sempre o inconveniente de tornar a mão pesada, e de dar aspereza à escrita. Em compensação tem sobre as de pato a vantagem de estarem sempre prontas, de tornarem os traços mais inteligíveis, e guardarem mais uniformidade na execução de um certo número de páginas (DALIGAUT, 1874, p. 137).

O emprego das penas de metal introduziu o das canetas, utensílio de grande difusão ao final do século, cuja finalidade era facilitar os movimentos da pena. Constituiu-se, então, em mais um artefato manufaturado importado introduzido no âmbito escolar, devido, mormente, à recomendação dos pedagogos para a preferência às de cedro, “por serem leves e facilitarem, portanto, o movimento dos dedos”.

Como já prescrito em relação às penas de ave,5 havia

uma preocupação técnica muito importante no sentido de delinear, com precisão, a maneira pela qual o aluno deveria manusear a caneta. Segundo Pacheco,

Toma-se, em geral, a caneta como outrora se tomava a pena, isto é, com os três primeiros dedos da mão direita algum tanto curvados, o polegar à esquerda, o indicador na parte superior do encaixe da pena, o médio à direita; os outros dois dedos, anelar e mínimo, curvados para a palma da mão, servem de ponto de apoio para a formação dos corpos compostos. A mão deve conservar-se curvada, de modo a cobrir o encaixe da pena (PACHECO, 1888, p. 7).

Figura 7 – Ilustração do modo de se utilizar a caneta (PACHECO, 1888).

A partir dessas definições, as orientações dirigiam-se no sentido de prescrever quais a regras determinantes da posição do corpo e do papel em relação ao assento e à mesa, para que se tivesse um bom desempenho da escrita. Sem dúvida, essa foi uma preocupação que os técnicos-pedagogos e o movimento higienista, de uma maneira geral, tiveram com especial destaque.6 Nesse sentido, as

regras sobre determinações ergonométricas em sala de aula constituíram-se em um quesito crucial relativo às técnicas de aquisição da escrita.7

Pacheco descreve o estado da arte desse processo ao final do século:

Um dos pontos mais essenciais para bem se escrever é conservar o corpo direito, aproximando-o, contudo, da mesa da escrita mais pelo lado esquerdo do que pelo direito.

Este preceito tem por fim fazer com que, pendendo o peso do corpo sobre o braço daquele lado, fique ao direito toda a liberdade de ação.

A aproximação do corpo à mesa não deve, entretanto, ser tal que chegue a tocá-la.

Este hábito e o de escrever-se com o corpo dobrado sobre a mesa pode acarretar incômodos futuros do peito e do estômago.

Do braço direito deve ficar assentada sobre o papel ape- nas uma parte igual à distância compreendia entre o pu- nho e a extremidade dos dedos, enquanto que o esquerdo deve ser conservado horizontalmente sobre a mesa. A mão esquerda é a que sustem o papel; ela deve, consequentemente, estar apoiada sobre a margem superior deste durante todo o tempo da escrita (PACHECO, 1888, p. 11-12).

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processo foi a preocupação com as mesas e cadeiras. Assim, indicaram-se as carteiras individuais com tampo inclinado que facilitavam em “muito a regularidade dos traços e, portanto, a igualdade das letras”. Sem constrangimento, os bancos e cadeiras fabricados em qualquer marcenaria no Brasil foram substituídos por móveis de ferro fundido importados dos Estados Unidos e Europa, em nome da modernidade do processo de ensino-aprendizagem.

No procedimento de escrita, houve a tentativa de criarem-se mecanismos e artifícios técnicos que, sem dúvida, representavam a posse de um conhecimento específico e revelador da existência de regras e normas, quando não de segredos profissionais, aos quais apenas os iniciados teriam acesso. Assim, nesse processo, um dos elementos mais importante eram as “regras de igualdade” que, de modo geral, referiam-se à altura, à posição, ao espaço e à grossura. Conforme Pacheco,

A igualdade de altura tem lugar em todas as letras de uma palavra, observada a divisão dos respectivos corpos em simples e compostos.

Não se entenda, porém, que todas as letras devem ter sempre a mesma altura; se assim fosse, não se distinguiriam, como se distinguem, diferentes alturas para as letras.

Qualquer que seja o caráter de escrita que se queira adotar, oferece ele três alturas para os corpos da letra minúscula: uma maior, sem limite máximo determina- do, mas nunca menor de doze milímetros, chamada bastardo; uma outra com a metade do bastardo, chamada bastardinho; e uma com a metade do bastardinho, ou cursivo que ainda se subdivide em maior e menor. O bastardo e o bastardinho são alturas essencialmente destinadas a títulos.

Nos agrupamentos, o bastardinho deve sempre figurar subordinado ao bastardo.

O cursivo maior é a altura geralmente empregada na escrituração dos livros, correspondência e mais atos comerciais, bem como nos atos oficiais escritos; ao menos, aquela de que se faz uso na correspondência particular.

A igualdade de posição é de todas as exigidas a que mais convém ser observada, pois dela principalmente depende a beleza de uma escrita.

Nos inclinados, o meio de obter-se ou conhecer-se o número de graus de sua inclinação é o mesmo que no Desenho-linear se emprega para avaliar um ângulo ou construí-lo sobre uma reta dada com determinado número de graus.

A reta dada naquele caso e a própria linha em que se tem de escrever ou já existe a palavra.

A igualdade de espaço tem lugar não são entre as letras, como também entre as palavras e as linhas, e depende da altura empregada.

Tratando-se, por exemplo, de um bastardo, o espaço entre as letras deve ser de metade da altura; entre as Figura 8 – Ilustrações sobre a postura no ato de escrever

(PACHECO, 1888).

Para Pacheco,

Os joelhos também prestam seu contingente à boa execução das letras.

Sua posição já está determinada pela do corpo e do braço; entretanto diremos que o direito deve conservar-se a prumo e o esquerdo estendido, ou apoiado sobre a travessa da mesa ou carteira, quando a haja.

É defeito, que convém evitar, acompanhar com o corpo as linhas da escrita, bem como fazer durante esta visagens com a boca ou meneios com a cabeça (1888, p. 12-13).

Em busca de procedimentos balizados por critérios funcionais, a pesquisa pedagógica procurava definir todos os movimentos em busca de uma prática baseada em uma racionalidade técnica. Assim, por exemplo, havia uma constante discordância quanto à melhor forma de se colocar o papel sobre a mesa. Alguns teóricos defendiam que o papel devia ser colocado direito ao corpo de quem escrevia; outros entendiam que seria melhor incliná-lo ligeiramente para a esquerda. Além dessa questão, Pacheco detalha:

O caderno, de forma oblonga, será posto paralelamente à beira inferior da carteira, a dez centímetros pouco mais ou menos dessa beira, de modo que o punho direito tenha um ponto de apoio; também deve estar defronte do ombro direito. Para a redonda, o caderno se colocará defronte do peito, e o braço direito um pouco separado do corpo (1888, p. 14).

O que se buscava era lapidar os movimentos de uma atividade marcadamente manual, inserindo, neles, um aspecto revestido de caráter eminentemente operacional, o qual, em sua execução mais bem elaborada, transmu- tou-se em aspecto estético do ato de escrever, indo muito além da escrita legível. Apesar de ser a legibilidade a primeira preocupação, como qualquer atividade profissional, quando exercida em sua plenitude, o ato manual aproximou-se de uma atividade artística. Como já comentado anteriormente, uma decorrência natural desse

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palavras, o de uma letra, ou, o que vale o mesmo, um espaço igual à altura do bastardo; entre as linhas, altura e meia, a fim de evitar o cruzamento dos corpos compostos.

No bastardinho o espaço entre as letras deve ser de 2/3 da altura dos corpos simples; entre as palavras, de uma letra da mesma altura; entre as linhas, de duas alturas dos corpos simples.

No cursivo, sem distinção, o espaço entre as letras deve ser igual à altura dos corpos simples; entre as palavras, de duas letras; e, entre as linhas, de três alturas. As exceções que alguns caracteres oferecem quanto ao espaço que as letras devem guardar entre si figuram na parte relativa a cada um.

Assim como a de espaços, depende a igualdade de grossura da altura de letra que se empregar. E sendo quatro, como já anteriormente vimos, as alturas que podem ter as letras, quatro serão também as grossuras.

Pela primeira, a do bastardo, ou grosso perfeito, obtém-se as outras três, pois cada uma das obtém-seguintes é obtém-sempre igual à metade da que lhe anteceder.

Na prática consegue-se que as letras guardem entre si as igualdades de altura, de posição e de espaço com o único exercício da vista: a de grossura, empregando força sempre igual na formação das letras.

A fim de examinar se num trabalho caligráfico foram observadas as regras de igualdade procede-se as seguintes experiências:

Compreendem-se todos os corpos entre retas, quer no sentido de sua altura, quer no da largura da letra. O paralelismo destas retas determinará as igualdades de altura e de posição.

Se as paralelas forem equidistantes, ter-se-á também, salvas as exceções adiante enumeradas, verificado as igualdades de espaço e de grossura.

Ainda que todas as regras sobre igualdades até agora indicadas só se tenham referido às letras minúsculas, não quer dizer que as maiúsculas não lhes estejam também sujeitas. Realmente, devem elas ser feitas de modo que, comparadas com as minúsculas a que estiverem ligadas, ou entre si, conservem-se iguais em altura, posição, espaço e grossura (1888, p. 14-17).

Fica evidente que a prática da escrita requeria um conhecimento do profissional-professor, o qual lhe con- feria o domínio de um conhecimento técnico-científico e tornava esse saber dotado da capacidade de transmitir o passaporte para o exercício de atividades profissionais de importante reconhecimento social. Sob certo aspecto, o efetivo domínio da prática da escritura revelava o coroamento e o atestado concreto de um rito de passagem para que o novo cidadão ultrapassasse os umbrais da cida- dania, em que fosse reconhecida uma nova identidade, a de alfabetizado.

Evidentemente que o processo de globalização dos artefatos escolares conduziu também a uma padronização

subordinada à nação hegemônica na época da consolidação do sistema de produção de massa. Assim, ao final do século XIX, havia ainda em uso os caracteres seguintes: inglês, francês, itálico, gótico. Mas, segundo Pacheco (1888, p. 19), “É notável, porém, o movimento que se vai operando na forma das letras, no sentido de acomodá-las às do carácter inglês”.

Figura 9 – A Letra Inglesa que se tornou padrão ao final do século XIX (MONTEVERDE, 1878).

c

onsIderaçõesfInaIs

Estrutura-se uma “cultura escolar” que divide e dis- ciplina o tempo na escola, tendo um papel crucial na implantação de novos métodos didáticos, estabelecimento de programas, adoção de material didático, aqui incluídos os nascentes manuais.

Essa nova escola submete professores e alunos a um modelo de educação altamente especializado no controle e disciplinamento de “corpos e espíritos”, a regras e ritos; passa a utilizar elementos de controle, como é o caso da chamada, além de regras e comportamentos que permanecem presentes na escola atual. Surge um novo modelo paradigmático.

[...] lugar de isolamento, parede que separe com- pletamente as gerações jovens do mundo e de seus prazeres, da carne e sua tirania, do demônio e seus enganos. O modelo do novo espaço fechado [...] servirá agora de maquinaria de transformação da juventude, fazendo das crianças, esperança da igreja, bons cristãos, ao mesmo tempo que súditos submissos da autoridade real (VARELA; ALVAREZ-URÍA, 1992, p. 76).

O espaço de sala de aula espelhava essa dura realidade ali na presença constante do professor, sob o seu olhar,

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sob o seu controle. Pouco restava aos alunos. Nesse espaço, uma relação permeada de disciplina existia, a distribuição do tempo era medida, as atividades escolares são executadas com uma regularidade assustadora e em etapas bem delimitadas.

Em suma, o Estado passou cada vez mais a controlar a organização, o funcionamento e a normatização da educação, tornando a escola uma instituição laica, pública e de caráter obrigatório. Nesse sentido, a aquisição da escrita no século XIX significou a aquisição de um do- cumento de identidade que atestava a passagem para a modernidade e o ingresso no mundo do trabalho indus- trializado. Como efeito colateral, a infraestrutura física, para tal efeito, oportunizou a criação de uma cultura material escolar consorciada com os interesses econômicos em nível global.

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Figura 1 – Manual  escolar que ilustra  a vinculação entre  alfabetização e  doutrina cristã.
Figura  3  –  Ilustração  do  início  do  processo  de  aquisição  da  escrita, normalmente feito em banco de areia (MONTEVERDE,  1878).
Figura 4 – Ardósia de dupla face já com pautas utilizadas para  o exercício do ato de escrever (acervo dos autores).
Figura 5 – Exemplares de cadernos escolares para a prática da  aquisição da escrita que evidenciam sua globalização (acervo  dos autores).
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