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De boca perfumada a ouvidos dóceis e limpos. Ancestralidades africanas, tradição oral e cultura brasileira

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Academic year: 2020

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DE BOCA PERFUMADA A OUVIDOS DÓCEIS E LIMPOS. A N C E S T R A L I D A D E S A F R I C A N A S , T R A D I Ç Ã O O R A L E

C U L T U R A B R A S I L E I R A

Ronilda Iyakemi RIBEIRO*

Povo

B R A S I L E I R O

Interessado em Cultura Brasileira, Correia-Rickli (1993) escreve o livro Três raízes, dez mil flores. 500 anos e Cultura Brasileira, buscando expressar, a t r a v é s desse título a enorme e rica variedade originada do encontro de influências indígenas, africanas e e u r o p é i a s na c o n s t i t u i ç ã o s ó c i o -cultural brasileira. Uma riqueza de fazer gosto e dar orgulho a esse povo cuja diversidade de origens étnicas fez brancos alvíssimos, negros p r e t í s s i m o s , tons e semitons, determinados pela mistura de seivas trazidas por raízes fortes mergulhadas em distintas origens raciais.

Olhando um dia desses o girar de um carrossel num Parque de Diversões, v i passar, subindo e descendo no movimento dos cavalos, com olhares encantados, duas c r i a n ç a s negras - uma mais clara, outra mais escura - , seguidas logo de uma loiríssima, a t r á s de quem vinha uma nissei. Logo depois, um menino com t r a ç o s indígenas e j á vinha vindo um ruivinho e depois dele, uma garota de pele escura e cabelos bem lisos. A g o r a chegavam de novo as c r i a n ç a s negras, a loiríssima... Havia naquele carrossel, entre espelhos, o n d u l a ç õ e s e sons de sinos, uma imagem de Brasil.

O corpo do Brasil é multicolorido, sua alma n ã o poderia ser m o n o c r o m á t i c a : a cultura brasileira, constituída por múltiplas influências culturais explode em m i l flores de tantas formas e tantos perfumes. Diferentes

Pesquisadora do Grupo de Estudos Interdisciplinares das Ancestralidades Africanas e Cidadania - PROLAM/USP - Email: iyakemi@usp.br.

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simbolismos mesclam o r i x á s , charutos defumadores e comemorativos, missa do galo, ceia de natal, dia de Reis, festas juninas, cauim, sereias, bruxas, lobisomens, ogres, a cuca, o Pedro Malasarte... N a m ú s i c a e d a n ç a s , misturam-se modinhas, serenatas, polca, mazurca, valsa, quadrilha, chote, toada, embolada, maxixe, samba, chorinho, marcha carnavalesca, frevo, b a i ã o , chote, pagode, reggae, salsa, lambada, mambo, maracatu, congada, cateretê, cururu. Capoeira Angola, m a c u l e l ê , puxada de rede. Permeando todas essas e x p r e s s õ e s culturais e determinando valores éticos e estéticos, h á matrizes de C o s m o v i s ã o Africana, Indígena, E u r o p é i a , Asiática.

Sem reduzir a i m p o r t â n c i a das demais, particularizo aqui dados sobre as bases a n t r o p o l ó g i c a s africanas da c o n s t r u ç ã o sócio-cultural brasileira, por estar mais familiarizada com elas. Discorrer sobre r a í z e s africanas do Brasil inclui lembrar essa p r e s e n ç a em muitas m a n i f e s t a ç õ e s culturais e artísticas. Apanho o Dicionário do Folclore Brasileiro de C â m a r a Cascudo e o abro, para brincar, ao acaso. Praticamente n ã o h á p á g i n a onde n ã o figure u m verbete com referências a jogos, cantigas, nomes, costumes, c r e n ç a s de origem africana. Mas, mais que isso, talvez muito mais que isso, o que temos da África é a p r e s e n ç a de valores e de elementos formadores do modo brasileiro de perceber o mundo.

Quero discorrer, pois, inicialmente, sobre alguns desses elementos formadores, integrantes do que se poderia chamar "ancestralidades africanas" ou, quem sabe, "africanidades brasileiras" Proponho a seguir, apresentar exemplos e é aí que algumas dificuldades se impõem: o que recortar desse vasto e t ã o rico universo? Recursos divinatórios? Panteões de divindades? I m p o r t â n c i a da palavra? Medicina Tradicional? Magia, feitiçaria e bruxaria? Contos infantis? Princípios de paidologia e pedagogia? Relações de g ê n e r o ? Escolho o seguinte caminho: logo a p ó s discorrer sobre os referidos elementos formadores, sob o título de Ancestralidades africanas tratarei, ainda que brevemente, de aspectos relativos à literatura oral dos i o r u b á s , povo da África Ocidental ( N i g é r i a , Togo e R e p ú b l i c a do Benin) e para finalizar, abordo alguns aspectos do racismo no Brasil, que vem impedindo o pleno reconhecimento da beleza e da sabedoria africanas, dificultando, com isso, a c o n s t r u ç ã o das identidades individuais e nacional e o exercício da cidadania.

A N C E S T R A L I D A D E S A F R I C A N A S

Nas sociedades tradicionais africanas a t r a n s m i s s ã o de conhecimentos se deu, ao longo de milênios, a t r a v é s de uma longa cadeia de

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t r a d i ç ã o oral - de boca perfumada a ouvidos dóceis e limpos (Hampate B â , 1980). Nessas sociedades a palavra, reconhecidamente dotada de força e poder para criar e destruir, estabelece r e l a ç ã o com o homem que a profere, de modo que a mentira vicia o sangue do mentiroso e o testemunho, seja

escrito ou oral, no fim não é mais do que testemunho humano e vale o que vale o homem.

O universo, imensa rede de p a r t i c i p a ç ã o , inclui seres humanos, seres naturais e espirituais: De Deus a um grão de areia o universo africano é sem costura: basta tocar levemente qualquer ponto dessa teia para que o

todo vibre. Nas sociedades tradicionais africanas os ancestrais e os mais

velhos s ã o reverenciados, dado que se reconhece a impossibilidade do presente e do futuro n ã o fosse sua vida e seu esforço e o grupo familiar inclui os j á - i d o s A o grupo atribui-se i m p o r t â n c i a essencial: somos porque sou e por sermos sou e o enunciar de todo conhecimento s u p õ e sua c o n s t r u ç ã o

coletiva ao longo das gerações:

Não é da minha boca E da boca de A que o deu a B, que o deu a C, que o deu a D, que o deu a E, que o deu a mim

Que esteja melhor em minha boca que na boca dos que me antecederam.1

O compromisso com o passado n ã o exclui, como se pode perceber, o compromisso com o p r ó p r i o tempo e com o futuro. Cada adulto reconhece a si p r ó p r i o como educador das g e r a ç õ e s seguintes. Cada qual, elo da longa cadeia geracional iniciada com o primeiro homem, compromete-se com o presente, sem dúvida. E, por comprometer-se com o passado, pode dirigir o olhar para o futuro e participar responsavelmente da c o n s t r u ç ã o social, necessariamente coletiva.

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L I T E R A T U R A O R A L I O R U B Á

As culturas africanas, transmitidas basicamente a t r a v é s da oralidade, servemse de diversos g ê n e r o s literários para essa t r a n s m i s s ã o -cada qual com sua estrutura, c a r a c t e r í s t i c a s e finalidades p r ó p r i a s . O estudo dos enunciados orais dos diversos grupos étnicos nos permite acesso à s suas peculiaridades sócio-culturais. Apresentamos, a seguir, breves referências aos enunciados orais i o r u b á s2 com o p r o p ó s i t o principal de sensibilizar o leitor

para o reconhecimento de h e r a n ç a s dessas formas nas t r a d i ç õ e s brasileiras. Entre os principais enunciados orais i o r u b á s incluemse os adura -rezas; iba - s a u d a ç õ e s ; oriki - e v o c a ç õ e s ; e orin - cantigas. Destas, as mais conhecidas s ã o os orin-esa - cantigas em homenagem aos ancestrais masculinos e orin-efe - cantigas em homenagem aos ancestrais femininos. Incluem-se, ainda, entre os orin mais conhecidos os iremoje - cantigas de lamento e dor dedicadas a Ogum e os ijala - cantigas de j ú b i l o dedicadas a Ogum. Apresento em seguida algumas características desses enunciados orais.

ADURA - R E Z A S

Os adura s ã o dirigidos aos elementos regidos pelos O r i x á s , divindades do P a n t e ã o iorubá. Considerados excelentes veículos de a x é , visam propiciar as g r a ç a s dessas divindades. A t r a v é s deles busca-se agradar a divindade ou pedir-lhe que aplaque sua ira ou a volte contra inimigos. S ã o dirigidos t a m b é m aos ancestrais para que afastem da comunidade as d o e n ç a s , as intrigas e a m á sorte. Compete aos a n c i ã o s enunciá-los em c e r i m ô n i a s familiares, conforme exemplos a seguir.

> Adura entoado em cerimônia de casamento Olanike ile oko re ya wayi o

Ere ni iwo yo ba bo ile Ere owo

Ere orno Ere ola Ere ayo

Os dados que compõem esta seção constituem uma pequena amostra do material recolhido por Salami (1990, 1991, 1998) na Nigéria.

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-Ere alafia

gbogbo ibi ti o ba nra owo re si Ire ni yoo maa yo nibe fun e O ni pasan, o ni pofo o

Aye re yoo dun bi oyin nile oko re

Olanike é esta a hora de você ir embora para a casa de seu marido. Sua permanência lá será vitoriosa.

Lá você será bem sucedida com dinheiro. Lá você será bem sucedida na fertilidade. Lá você será bem sucedida em prosperidade. Lá você será bem sucedida em felicidade. Lá você será bem sucedida em saúde e bem-estar. Em tudo o que você pretender realizar.

Será bem sucedida e terá felicidade. Nada será em vão na sua vida.

Sua vida em seu novo lar será doce como mel. > Adura entoado por ocasião da compra de um automóvel Oko ti o ra yi

Ko ni fi ori so igi tabi ope Ko ni pa e

Ogun a maa dana fun e

Abukun Eledunmare yoo maa ba e Bi o baa di amodun

Wa tun ra eyi to ba ju bayi lo

Este carro que você comprou Não vai bater na árvore. Não vai se destruir em acidente. Ogum protegerá o seu caminho.

Eledunmare estará sempre abençoando sua vida. Ao chegar o próximo ano,

Você comprará um carro ainda melhor (Salami, 1998).

IBA - S A U D A Ç Õ E S

Os iba, formas de s a u d a ç ã o dos O r i x á s , dos ancestrais, dos mestres e a n c i ã o s , s ã o utilizados antes de qualquer oferenda, antes mesmo da e n t o a ç ã o de ori kl. Convictos de que o respeito favorece o acesso à força v i t a l ( a x é ) , os i o r u b á s utilizam os iba ao iniciarem todo e qualquer ritual. Para dar

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início a seja o que for, deve-se solicitar p e r m i s s ã o aos mais velhos e aos ancestrais. Exemplificando: Mo juba akoda Mo juba aseda Atiyo ojo Otiwo oorun Ikorita meta ajalaye Enyin Baba-nla mi, iba /ba ni mo wa fi ighayije Ki nto maa lo

E ma je iba naa o wun mi Bi ekolo ba juba He, lie a lanu fun Iba ni mo je o, E la na ko mi

Eu saúdo os primórdios da Existência. Saúdo o Criador.

Saúdo o sol nascente. Saúdo o sol poente.

Saúdo as três encruzilhadas que unem o mundo visível ao invisível. Meus antepassados, eu os saúdo.

Meu tempo presente é para fazer saudações. Antes que eu inicie minha caminhada,

Não deixem de ouvir minhas saudações e me abençoem. Quando a minhoca saúda a terra,

A terra se abre para que ela entre. Eu os saúdo.

Abram caminho para mim.

ORIKI - E V O C A Ç Õ E S

A palavra oriki c o m p õ e - s e de ori e ki. Ori é origem e ki, saudar ou louvar. Assim, oriki significa louvar ou saudar o Ori ou a origem daquele a quem se refere. Sendo as palavras condutoras da força vital, os oriki servem de veículo do a x é .

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Quando dirigidos a uma pessoa relatam suas c a r a c t e r í s t i c a s e seus feitos, tendo assim, valor documental. Quando entoados aos O r i x á s citam suas qualidades e realizações, narrando episódios em que b ê n ç ã o s e ajuda foram obtidos. Servem simultaneamente para louvar e buscar auxilio j u n t o a essas divindades. Os oriki definem qualidades essenciais dos O r i x á s e os exemplos apresentados a seguir constituem parcela m í n i m a do imenso conjunto de oriki de O r i x á s da T r a d i ç ã o I o r u b á :

• Xangô: Olukoso; Oba Koso (o rei que não se enforcou); Alado (aquele que racha o pilão); Ogiri-ekun (leopardo feroz); Asangiri (aquele que racha paredes); Alagiri (aquele que abre paredes); Alafin Oyo (rei de Oyo). • Oya: Oya Oriri (o vendaval); Ti ndagi lokeloke (a que corta a copa das

árvores); Oya arina hora bi aso (Oya vestida de fogo).

• Oxum: A Fide Remo (a que enfeita seus fühos com braceletes de bronze); Yeye Osun (graciosa Mãe Oxum); O wa yanrin wa yanrin kowo si (a que cava e cava a areia para esconder dinheiro).

• Oba: O jowu obinrin (a mulher ciumenta); To t'Ori owu kola si gbogbo ara (a que por ciúme se cobriu de incisões ornamentais).

Os oriki s ã o indispensáveis no chamado dos O r i x á s e dos ancestrais e sua e n t o a ç ã o conduz facilmente ao transe. Das muitas formas de oriki citamos os oriki-orile, referentes à s linhagens, que tanto podem ser entoados em homenagem a uma família, como a algum de seus integrantes, com a finalidade de louvar ancestrais, demonstrar a p r e ç o ou reduzir antipatia. Constituem uma forma de reconhecimento da identidade individual e familiar, uma vez que fazem referências à s profissões, preferências alimentares e outras peculiaridades do homenageado.

Esta modalidade de oriki ocupa importante lugar na oralidade iorubá, sendo usada em muitas situações sociais: em c e r i m ô n i a s como casamentos e batizados, nas i n a u g u r a ç õ e s de casas, nos ritos fúnebres etc. Os historiadores, conhecendo a história e os oriki das linhagens, s ã o convidados para prestar homenagem aos presentes, a t r a v é s da r e c i t a ç ã o de seus orile. Muitas vezes a homenagem se completa pela e n t o a ç ã o dos oriki-amutorunwa, que fazem referência à s c i r c u n s t â n c i a s de nascimento. Nos ritos fúnebres realizados por o c a s i ã o da morte de a n c i ã o s , a homenagem ao falecido inclui a e n t o a ç ã o de oriki-orile feita por mulheres da família. Nas conquistas, os oriki-orile s ã o entoados para que a pessoa, ouvindo os feitos dos ancestrais e sentindo-se protegida por eles, possa sentir-se mais forte e tenha mais coragem para enfrentar dificuldades e riscos. Nas derrotas s ã o entoados para consolo; nas viagens s ã o entoados pelos a n c i ã o s para a b e n ç o a r o que parte, lembrando a ele suas origens, profissões e ewo (interdições)

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familiares. Nas relações entre pais e filhos, os uriki-orile e oriki-amutorunwa s ã o usados para acalmar a c r i a n ç a que e s t á chorando, para pedir desculpas ou para transmitir força. Nos rituais de c i r c u n c i s ã o s ã o entoados pelos a n c i ã o s para que os ancestrais, com sua p r e s e n ç a , protejam a c r i a n ç a da dor ou a tornem capaz de suportar o sofrimento.

U m exemplo de oriki-amutorunwa (descrição de c i r c u n s t â n c i a s do nascimento individual) é o da c r i a n ç a ige, nascida com a p r e s e n t a ç ã o dos p é s (Salami, 1990, p. 23):

Abudi

Nascido com luta Ige ladubi ni b ' ode baye na

Ige, a criança que nasceu com muita luta Eni ti o he adubi n 'ise,

Quem pede favor a Adubi Ara re l 'o be

só faz pedir a si mesmo Adubi ko nije, be ni ko ni ko

Adubi não vai fazer, nem vai recusar Adubi to ni bi iya le ku, ko ku

Adubi diz que se a mãe vai morrer, que morra Bi baba le be, ko be

Se o pai quiser pular do alto, que pule Ohun I 'adubi o je ko won

O que Adubi precisar comer não lhe faltará

Esse oriki mostra que os i o r u b á s consideram os ige como indiferentes ao sofrimento alheio.

Animais, cidades, terras e povos t a m b é m possuem oriki a eles dedicados:

> Javali: Ahuledelepa

Animal que cava o chão, Koko h 'oju je

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> Cidade de Abeokuta: Abeokuta ilu Egba

Abeokuta, a cidade dos Egba. llu fi gbogbo ile s'okuta

A cidade é cercada de pedras. Okuta o won n 'ile wa

A pedra é abundante cm nossa terra. Abe Olumo

Embaixo da pedra Olumo, Ibi a fi ori mo si

Onde nos escondemos (nas épocas de invasão).

Esse oriki fornece dados sobre a geografia da região - a cidade é cercada de pedras, sobre sua história - serviu de esconderijo nas é p o c a s de i n v a s ã o - e, ainda, sobre o ser que lhe oferece p r o t e ç ã o espiritual - Olumo.

Os oriki s ã o acompanhados, muitas vezes, pelo som dos tambores falantes: bata, bembe, gangan, ogidigbo, igbin, gbedu etc. C o n v é m que f a ç a m o s uma breve referência a esses tambores. A seu respeito, diz J. K i -Zerbo:

veículos da história falada, esses instrumentos são venerados e sagrados. Com efeito, incorporam-se ao artista, e seu lugar é tão importante na mensagem que, graças às línguas tonais, a música torna-se diretamente inteligível, transformando-se o instrumento na voz do artista sem que este tenha necessidade de articular uma só palavra. O tríplice ritmo, tonal, de intensidade e de duração, faz-se então, música significante ... Na verdade, a música encontra-se de tal modo integrada à tradição que algumas narrativas somente podem ser transmitidas sob a forma cantada. (UNESCO, 1982, p. 30)

Entoados c o m finalidade religiosa ou n ã o , acompanhados ou n ã o pelos tambores falantes, no momento de serem entoados, os oriki sempre contam com a atitude de respeito e de c o n c e n t r a ç ã o dos presentes. Possuem, como vemos, grande relevância cultural, apresentando a forma de lidar c o m cada ser ou linhagem e revelando as qualidades da força vital daquele ou daquilo que evocam e s a ú d a m .

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ORIN- C A N T I G A S

Os orin s ã o formas mais brandas de l o u v a ç ã o empregadas nas festas е c e l e b r a ç õ e s aos O r i x á s . Carregam parte da carga informativa dos oriki е representam u m ponto intermediário entre a e x o r t a ç ã o dos poderes do O r i x á contidos nos adura (rezas) е a musicalidade dos oriki.

Podem ser entoados oralmente ou por tambores falantes. Possuem, como os oriki, valor documental por fazerem registro histórico do modo de vida profano е sagrado dos i o r u b á s . Veiculam ensinamentos a t r a v é s do canto (sempre acompanhado pelo som de tambores falantes) dos ayan, mestres-m ú s i c o s - h i s t o r i a d o r e s pertencentes à s linhagens responsáveis por essa profissão. Revelam amores е ódios.

Vejamos u m exemplo de orin, entoado pelo toque do igbin, sem acompanhamento de voz humana, em homenagem a O b a t a l á :

Eni soju .чети Orisa ni maa sin Eni ran mi wa Orisa ni maa sin Adani ho se ri Orisa ni maa sin

Aquele que modelou meus olhos е nariz, é essa divindade que cultuarei.

Aquele que me enviou para a vida, é essa divindade que cultuarei. Aquele que me criou da forma que sou, é essa divindade que cultuarei.

A morte de pessoas ilustres é anunciada por orin entoados por tambores falantes е outros instrumentos musicais, sem acompanhamento da voz humana. A de u m rei é anunciada pelo toque do gbedu, е a de sacerdotes pelo toque do tambor preferido de seu O r i x á .

Das diversas modalidades de orin apresentamos agora, algumas informações sobre os orin-ewi-esa, orin-efe, iremoje е ijala.

Os orin-ewi-esa, entoados em homenagem aos ancestrais masculinos, Egungun, geralmente pelos oloje, conhecedores dos segredos de seu culto, é acompanhado pelo coro de mulheres, pelo som de tambores falantes е de outros instrumentos musicais, além das d a n ç a s . Caracteriza-se

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pelo fato de incluir a e n t o a ç ã o do oriki do homenageado Vejamos um exemplo: Bi obinrin mo awo Ko gbodo wi Ko gbodo fo Ko gbodo so Egungun He Ojebode de o. Orno a reku, tosi nu. Odun Baba wa la nse o igbayi a gbe wa.

Se a mulher conhecer o segredo, Não deverá revelar.

Ela não deve abrir a boca. Ela não deve falar.

Chegou Egungun do clã Ojebode.

O clã que, cultuando seus ancestrais, espanta a pobreza e a doença Estamos venerando nosso pai.

Este tempo nos será favorável.

Os orin-efe, entoados por adultos e c r i a n ç a s de ambos os sexos em homenagem aos ancestrais femininos Gelede, nas festividades anuais, t ê m por significado literal cantigas de deboche. Acompanhados pelo toque de tambores falantes e por d a n ç a s , s ã o usados para tornar p ú b l i c a s t r a n s g r e s s õ e s cometidas durante o ano transcorrido entre um festival de Gelede e o seguinte. Os cultuadores de Gelede observam, c o n t í n u a e atentamente, as t r a n s g r e s s õ e s cotidianas de normas c o m u n i t á r i a s para elaborarem os orin-efe. A tarefa n ã o é t ã o fácil como pode parecer à primeira vista Devem saber, entre outras coisas, eleger a melhor forma e o melhor momento para d e n u n c i á - l a s e realizar simultaneamente, l o u v a ç õ e s a Gelede. Vejamos um exemplo:

O ji mi ni nkaa. Mo fe jo sun,

Awon to ku ni baba fun, wipe ki won kilo fun. Won ni ki nmu suru

Bi ko ba ni gbo

Maa mu de iwaju ijobe titun a dele ejo ro tenu e. Ele roubou minhas coisas.

Avisei seus parentes,

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Fui até a casa dele para adverti-lo.

Pediram-me muitas desculpas, e que eu tivesse muita paciência. Se ele não parar,

Eu o levarei até o novo tribunal (sistema de justiça não-tradicional)

A o ouvirem isso os presentes geralmente identificam a pessoa a quem é feita a referência. Esta, por sua vez, n ã o se sente agredida. Outros transgressores - maridos que maltratam esposas, mulheres que n ã o cumprem adequadamente o papel de esposas ou m ã e s - s ã o t a m b é m denunciados.

Os iremoje, entoados por o c a s i ã o da morte dos iniciados de Ogum, constituem cantigas de lamento e dor e os ijala, cantigas de j ú b i l o , t a m b é m s ã o entoados nos rituais fúnebres de c a ç a d o r e s e outros filhos de Ogum.

A L G U N S A S P E C T O S D O R A C I S M O NO B R A S I L , Q U E V E M I M P E D I N D O O P L E N O R E C O N H E C I M E N T O DA B E L E Z A E DA S A B E D O R I A A F R I C A N A S ( R I B E I R O , 1 9 9 7 )

O que é ser preto ou pardo nesta sociedade em que cerca de 44,2 % da p o p u l a ç ã o se c o m p õ e de descendentes de africanos? Sabemos que a p r o p o r ç ã o de afro-descendentes no Brasil é surpreendente: no p e r í o d o da e s c r a v i d ã o , o n ú m e r o de indígenas era estimado em torno de u m m i l h ã o e meio e o de africanos, três milhões e meio. Durante longos períodos da história do Brasil, o n ú m e r o de africanos e afro-descendentes foi bem superior ao de indígenas e brancos, fato que por si só explica a enorme influência e o papel decisivo da p a r t i c i p a ç ã o cultural africana no grupo social brasileiro.

Os negros do Brasil, originários de distintas culturas africanas, tanto bantu como sudanesas, e de distintos estratos sociais, encontraram-se aqui com outras nuances regionais. A maior c o n t r i b u i ç ã o africana para o Brasil acha-se expressa na p r ó p r i a c o m p o s i ç ã o demográfica, que distingue nossa p o p u l a ç ã o da maioria de outras dos p a í s e s latino-americanos e que situa nosso p a í s no segundo lugar do mundo em p o p u l a ç ã o negra3. N o

entanto, dados censitários apontam para o fato de haver u m processo de e x c l u s ã o de tudo o que diz respeito à África, aos africanos e seus descendentes.

3 A Nigéria ocupa o primeiro posto.

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-N o dizer de G u i m a r ã e s (1996, p. 1), "o a r c a b o u ç o legislativo brasileiro produzido a p ó s a A b o l i ç ã o da E s c r a v i d ã o sempre f o i omisso em assegurar o p r i n c í p i o de igualdade entre as etnias formadoras da n a ç ã o brasileira". Boletins estatísticos sobre a s i t u a ç ã o s ó c i o - e c o n ô m i c a dos grupos de cor no Brasil registram os reflexos dessa o m i s s ã o4.

Os autores do Boletim Os números da cor sugerem que é preciso

priorizar não só o acesso à escola, mas também investir nas trajetórias escolares, diminuindo repetências para aumentar o nível de escolaridade obtida pelas pessoas. O acesso ao ensino e os níveis de escolaridade da população brasileira mostra uma linha de cor que impede que pretos e pardos alcancem os percentuais do grupo branco na trajetória escolar, o que acaba refletindo diretamente na sua menor realização sócio-econômica.

Quanto à s diferenças regionais, observa-se que

os progressos educacionais estão muito direcionados para as regiões mais desenvolvidas, mantendo-se o problema nas regiões onde a situação é mais grave. A população preta e parda que vive nas áreas do nordeste brasileiro, principalmente nordeste rural, está exposta a uma situação de extrema pauperização.

A d i n â m i c a das relações sociais, caracterizada por complexos processos de i n c l u s ã o / e x c l u s ã o , determina u m jogo cujos perdedores e vencedores t ê m cartas marcadas. Santos (1996), ao e s b o ç a r "uma teoria para a q u e s t ã o racial do negro brasileiro", refere-se ao mecanismo de e x c l u s ã o dos afro-descendentes, por ele denominado Trilha do Circulo Vicioso e que poderia ser t a m b é m chamado de Circuito Maldito ou Circuito Perverso. aprisionados n u m inteligente circuito de e x c l u s ã o para o qual concorrem a g ê n c i a s educacionais, de trabalho, de c o m u n i c a ç ã o , de s a ú d e , apoiadas todas em r e p r e s e n t a ç õ e s sociais estereotipadas da África, dos africanos e de seus descendentes e impostas para serem compartilhadas por brancos e negros, os afro-descendentes encontram poucas chances - quando encontram - , de

4 Dados de análise da situação da população brasileira na escola e no mercado de

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i n s e r ç ã o sócio-político-econômica e de ( r e ) c o n s t r u ç ã o de uma auto-imagem positiva que lhes possibilite auto-estima elevada.

Trata-se, no dizer de Santos, de uma centopeia de duas cabeças, pois além da conjuntura externa desfavorável, o afro-descendente compartilha de r e p r e s e n t a ç õ e s negativas inscritas no i m a g i n á r i o coletivo. O processo c o n t í n u o de sujeição a u m bombardeamento de imagens negativas de tudo o que se refere à África e o entorpecimento da consciência determinam que brancos e n ã o - b r a n c o s interiorizem como "naturais" esses estímulos: bêbado, engole o verme e nem nota. C o m pouca ou nenhuma possibilidade de (re)conhecimento dos valores tradicionais de seu povo de origem, vê-se na c o n d i ç ã o de desenvolver a p r ó p r i a identidade a partir de modelos ideais-de-ego brancos, de r e a l i z a ç ã o impossível dada a c o n d i ç ã o biológica e de r e a l i z a ç ã o indesejável por implicar em afastamento e n e g a ç ã o da riqueza e beleza da cultura de origem.

À s implicações do rebaixamento da auto-estima nas esferas de poder e c o n ô m i c o , político e social t ê m sido dada i m p o r t â n c i a inferior à merecida: auto-estima rebaixada e auto-imagem negativa inibem qualquer movimento reivindicatório, seja no â m b i t o intelectual, seja no afetivo. Príncipes encantados em sapos, c r ê e m - s e capazes apenas de coaxar a t é que se quebre o encantamento e seja e n t ã o possível reapropriar-se da realeza. Por exemplo, a força advinda da ( r e ) a p r o p r i a ç ã o dos valores de origem, certamente propicia a passagem do medo e vergonha de n ã o ser branco ao orgulho de ser negro e estimula o impulso de reivindicação de direitos humanos, entre os quais os de cidadania.

N o Brasil, ú l t i m o p a í s a abolir a e s c r a v i d ã o e primeiro a declarar-se p a í s de democracia racial, este mito associado à força da ideologia do branqueamento tecem o pano de fundo das relações raciais. A e x t i n ç ã o da e s c r a v i d ã o sem projeto de inserção social, impingiu aos afrodescendentes a c o n d i ç ã o de sub-cidadania e a responsabilidade pelo fracasso passou a ser a t r i b u í d a a uma suposta incompetência individual e n ã o à conjuntura s ó c i o -econômica-política. Como desenvolver-se u m p a í s cuja grande maioria se encontra encantada, enfeitiçada, engessada, emparedada, enredada, encurralada?

U m esquema gráfico t r a ç a d o por Santos permite constatar que t r a n s f o r m a ç õ e s nas relações raciais brasileiras demandam a ç ã o afirmativa nos campos da E d u c a ç ã o , da C o m u n i c a ç ã o Social e do Mercado de Trabalho. A a ç ã o no cotidiano é que possibilita rompimento do círculo vicioso: no â m b i t o educacional, a m p l i a ç ã o das consciências, estímulo à solidariedade e t o l e r â n c i a

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nas relações interétnicas e interraciais, desenvolvimento de programas especiais de c a p a c i t a ç ã o ; no â m b i t o do trabalho, o mesmo e mais a i n t r o d u ç ã o de fatores que alterem os índices de r a ç a / r e n d a ; no â m b i t o da c o m u n i c a ç ã o social e, o uso de recursos que possibilitem a re-significação de conceitos como negro, África, africanos, de modo a transformar, no i m a g i n á r i o coletivo, r e p r e s e n t a ç õ e s negativas em positivas. Esta vista aérea de a ç õ e s possíveis nos t r ê s â m b i t o s considerados apenas aponta para o quadro geral. Especificações e possíveis o p e r a c i o n a l i z a ç õ e s incluem-se no contexto do debate sobre estratégias e políticas de a ç ã o afirmativa ( P A A ) para v a l o r i z a ç ã o da p o p u l a ç ã o negra no Brasil e no mundo.

O contato com a Ética e a Estética africanas necessariamente induzem sentimentos de orgulho de p e r t e n ç a étnica e racial nos afrodescendentes e nos brasileiros em geral. Resgatar a i m p o r t â n c i a da m ã o e da voz africanas na c o n s t r u ç ã o física e simbólica desta terra brasileira é tarefa inadiável, à qual somos chamados hoje, como nunca antes. Lembrando o que foi ensinado por nossos ancestrais africanos: na grande rede de p a r t i c i p a ç ã o que caracteriza o universo estamos todos indelevelmente ligados.

R e f e r ê n c i a s b i b l i o g r á f i c a s

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Referências

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