• Nenhum resultado encontrado

Breve estudo da forma no Auto da Barca do Inferno, de Gil Vicente

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2021

Share "Breve estudo da forma no Auto da Barca do Inferno, de Gil Vicente"

Copied!
26
0
0

Texto

(1)

49

BREVE ESTUDO DA FORMA NO AUTO DA BARCA DO INFERNO, DE

GIL VICENTE

SHORT STUDY OF THE FORM IN GIL VICENTE S AUTO DA BARCA DO

INFERNO

Geraldo Augusto Fernandes Universidade Federal do Ceará

Resumo: Ao criar suas peças teatrais, Gil

Vicente traz ainda em seus registros textuais a forma estrutural da poética medieval. Como uma extensão do que se produziu nas composições publicadas no

Cancioneiro Geral de Garcia de Resende,

assim Gil Vicente reproduz em suas peças dramatúrgicas. À época do

Cancioneiro Geral, muitos poemas refletem já certa teatralidade, como se pode observar nas poesias dramáticas ou diálogos dramáticos, principalmente na poesia de Anrique da Mota, texto por vezes corretivo de práticas sociais, recuperando e reafirmando seu potencial doutrinal. Apesar de inovar nas peças, inspirado pelas de seu contemporâneo espanhol, Juan de Encina, Vicente mantém as mesmas estruturas formais celebradas no compêndio de Garcia de Resende. Este breve estudo pretende analisar como se desenvolveu a estrutura formal no Auto da Barca do Inferno, de Gil Vicente.

Palavras-chave: formalismo,

teatralidade, teatro medieval

Abstract: In creating his theatrical

pieces, Gil Vicente still has in his textual records the structural form of medieval poetics. As an extension of what was produced in the compositions published in Garcia de Resende s Cancioneiro Geral, so Gil Vicente reproduces in his plays. At the time of the Cancioneiro Geral, many poems reflect already certain theatricality as we can observe in the dramatically poetry or dramatically dialogue, mainly in Anrique da Mota poetry, a text sometimes corrective of social practices, retrieving and reaffirming its doctrinal potentiality . Despite innovating in the pieces, inspired by those of his Spanish contemporary, Juan de Encina, Vicente maintains the same formal structures celebrated in the compendium of Garcia de Resende. This brief study intends to analyze how Vicente's records were developed, specifically in the formal structure of the Auto da Barca do Inferno.

Keywords: formalism, theatricality, medieval theater

La correction, la réinterprétation, la nouvelle conception d une matière et donc de sa forme, sont les bases de l art poétique médieval.

Douglas Kelly, Les inventions ovidiennes de

Froissart: réflexions intertextuelles comme imaginations.

(2)

50

A questão do gênero e da forma sempre foi polêmica nos estudos literários, pois muitos dos estudiosos tendem a usar os termos gênero e forma – e mesmo estilo – como sinônimos. Gostaria de referir, primeiramente, àquilo que envolve a designação de gênero .

Massaud Moisés discorre longamente sobre a polêmica que envolve a questão do gênero (literário), uma vez ser esse o ponto em que a troca de acepção é mais evidente. De acordo com o autor, é um dos problemas que, na nomenclatura literária, remonta à Antiguidade greco-latina e, apesar do descrédito de uns e do ataque de outros, permanece vivo até nossos dias1 . Relata, então, as origens do

tema ao citar As Rãs, de Aristófanes (séc. V-IV a.C.), a República de Platão e a

Poética de Aristóteles, entre outros. Na Idade Média, esses estudos entram em

baixa, pois o problema dos gêneros nas várias artes de trovar não relevaria o cunho filosófico dos antigos; no entanto, a ciência da literatura terá continuidade com a Patrística e com Averróis2. Em seguida, diz Moisés que

a pobreza doutrinária em assuntos literários no curso da Idade Média se compensou com a criação de variedades formais novas: na poesia lírica [de acordo com Cohen], as formas estróficas tão sábias, tão musicais e tão puras; o verso silábico em todos os metros e cortes, o emprego generalizado da rima, sem mesmo excluir a alternância...3

Isso teria levado os medievais a terem consciência de certos modelos, o que representa a própria noção de gênero , de acordo com Pauphilet; no Renascimento, teriam ressurgido os gêneros e subgêneros antigos, somando-se a outros então descobertos4. Resume Moisés:

o gênero designaria [levando-se em conta o sentido etimológico, não filosófico e estético] os aspectos primários, amplos e reiterativos de uma série de obras. Na esteira da história natural, o gênero divide-se em espécies : a reunião de obras que apresentam características secundárias comuns. E as espécies se desmembrariam em fôrmas : moldes em que se concretizam5.

1 MOISÉS, Massaud. Dicionário de termos literários. São Paulo: Cultrix, 2004, p. 196. 2 Idem, p. 196.

3 Idem, p. 196-197. 4 Idem, p. 197.

5 Idem, p. 194. Em Literatura: mundo e forma, Massaud Moisés escreve: Eis porque se pode

(3)

51

Com relação aos cancioneiros medievais dos séculos XV e XVI, mais especificamente aos Cancioneiro Geral de Garcia de Resende e Cancionero General de Hernando de Castillo, as trocas dos termos são também muito frequentes. Veja-se o que comenta Álvaro Júlio da Costa Pimpão: Além das composições em séries de coplas são as trovas do nosso Cancioneiro , há os pequenos gêneros, mais propriamente cortesãos, formados por um mote , ou moto , vilancete , ou cantiga e respectiva glosa ou grosa ...6 . O autor, explicitamente, troca gênero

por forma. A mesma postura adotam Rodrigues Lapa, em seu Florilégio do

Cancioneiro de Resende7, e José António Saraiva e Óscar Lopes, em História da

Literatura Portuguesa8. Também Juan Casas Rigall usa forma para aquilo que

para muitos seria gênero, ao analisar o que ele chama de formas dialogadas – as

perguntas e respostas e congêneres presentes nos cancioneiros do medievo tardio.

Veja-se, como exemplo, o título do capítulo em que este estudo é feito: Formas dialogísticas en el cancionero amoroso: preguntas y respuestas y modalidades conexas (perqué y debates 9. Quanto a essas, também Paul Zumthor usa o termo

"formas" para os discursos dialogados – incluindo o jeu-parti:

Je signale ici, à cause de son étroite parenté registrale (et sociologique) avec le grand chant courtois, une varieté poétique bien caracterisée ... ; il s agit en effet d un discours dialogué, depourvu de tout cadre narratif et pour là non sans analogie avec les formes dramatiques : le jeu-parti , ou parture . C est un débat, ne comportant aucune référence externe, et que se déroule, à partir

significativamente o fenômeno da arte , ou uma perspectiva para o artista. Não é uma estratégia por meio da qual organiza o seu trabalho entre outros trabalhos, porém, mais relevantemente, o como organiza o fenômeno do mundo. O gênero, para o artista, é o agente transformacional. É um alambique no processo criador [citando Donald F. Castro] MOISÉS, Massaud. Literatura: mundo e

forma. São Paulo: Cultrix, 1982, p. 266).

6 PIMPÃO, Álvaro Júlio da Costa. Poetas do Cancioneiro Geral. Lisboa: Livraria Clássica Editora, 1942.

(Coleção Clássicos Portugueses), p. 14-15).

7 FLORILÉGIO do Cancioneiro de Resende. (Org.) M. Rodrigues Lapa. 4 ed. Lisboa: Seara Nova, 1973,

p. 13-15.

8 SARAIVA, A. J. e LOPES, Óscar. História da Literatura Portuguesa. 16ed. Porto: Porto Editora, Lda.,

[s.d.), p. 160-161.

9 CASAS RIGALL, Juan. Agudeza y retórica en la poesía amorosa de cancionero. Santiago de

Compostela: Universidade, Servicio de Publicacións e Intercambio Científico, 1995, p. 138-146. Grifo meu em formas .

(4)

52

d une proposition dogmatique, entre deux trouvères chantant alternativement des strophes de structure identique10.

Há de se registrar, ainda, que, quanto à classificação dos gêneros, as opções se diferenciam conforme as intenções de análise do texto. Maria Isabel Morán Cabanas, em seus estudos sobre a teatralidade nas composições do CGGR11,

classifica os poemas de no. da Compilação o Cuidar e sospirar e no. as Trovas que mandaram o Conde do Vimioso e Aires Teles à Senhora Dona Margarida de Sousa... como debate , processo , jogo de tribunal , ou ainda debate de tipo judicial , os quais denominei ajuda/pergunta/resposta e ajuda , respectivamente. Os poemas de Henrique da Mota (Anrique da Mota) 797, 798 e são classificados por Morán Cabanas como diálogos dramáticos , enquanto os considerei ajuda/pergunta/resposta , ajuda/pergunta/oração e ajuda , respectivamente. Coincidiram nossas classificações nos textos e , breves , e e , diálogos , a cujo termo a estudiosa acrescenta o qualificativo

dramáticos12 .

Em relação à forma, Massaud Moisés esclarece que

Um princípio fundamenta o conceito de forma: a estreita relação entre as partes de um todo, constituindo uma unidade orgânica, auto-suficiente, individualizada, uma unidade limitada contraposta ao ilimitado, determinada e consistente, contraposta ao caótico e fluente13.

E complementa:

a forma é uma estrutura que se vê e que serve para ver, e agora ligando

a forma à metáfora: vemos a forma como tal, arquitetura, contorno,

10 ZUMTHOR, Paul. Essai de poétique médiévale. Paris: Seuil, 1972. (Collection Poétique), p. 264.

Grifo meu em "formes".

11 A partir deste ponto, usarei a sigla CGGR quando me referir ao Cancioneiro Geral de Garcia de

Resende. Para as referências ao Cancioneiro, usei a edição CANCIONEIRO Geral de Garcia de Resende. Fixação do texto e estudo por Aida Fernanda Dias. Maia: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1990-1993. Volumes I a IV.

12 MORÁN CABANAS, Maria Isabel. Festa, teatralidade e escrita. Esboços teatrais no Cancioneiro

Geral de Garcia de Resende. A Coruña: Biblioteca-Arquivo Teatral Francisco Pillado Mayor, 2003,

pp. 20-59). Também Márcio Ricardo Coelho Muniz tratou dessa nomenclatura em MUNIZ, Márcio Ricardo Coelho. Anrique da Mota: diálogos dramáticos e questões políticas no Cancioneiro Geral de

Garcia de Resende. In Revista Limite. 2016, Vol. 10.2, p. 27-48. Disponível também em:

http://www.revistalimite.es/v10dos/03muniz.pdf

(5)

53

estrutura, e a realidade que nela se hipostasia. Autêntica metáfora, é o que revela e o que segreda. Molde inventado para exprimir certo conteúdo e lente para captar a realidade: expõe-se ao mesmo tempo como figura e instrumento que permite ver14.

Para fins deste estudo, a forma deverá ser entendida pela estrutura que se vê e que serve para ver, conforme define Massaud Moisés: um molde em que se exprimem os conteúdos expressos em cada gênero. A estrutura relaciona-se à estrofe e aos versos; a estes, juntam-se os sistemas de rima e ritmo, a métrica, a musicalidade e os recursos retóricos, principalmente aqueles em que há alteração na palavra15.

É notório que o Auto da Barca do Inferno16 enquadra-se no gênero

dramático, no caso da peça de Gil Vicente especificamente um auto, em que são elencadas alegorias sobre o conflito entre a virtude e a dissipação moral, com propósito de edificação espiritual. Sempre circulam dois polos: o espiritual e o temporal, com apologia da pobreza e da fé, enfocada nas práticas cristãs de caridade e simplicidade, geralmente com condenação do clero. Também é notório que o teatro de Gil Vicente traz ainda resquícios da teatralidade medieval de corte ou popular. Segundo Maria Isabel Morán Cabanas, a teatralidade é registrada no

Cancioneiro Geral de Garcia de Resende entre cortesãos e frequentadores de

serões segundo um minucioso ritual que preside o estar colectivo, como ele próprio em virtude da encenação da palavra através do discurso de seus textos17 .

E acrescenta, citando J. Amaral Frazão, que as entradas e saídas de cena estão regulamentadas pela palavra escrita que aproxima o físico da escrita, em que participam todos os convivas. A palavra do rei, da rainha e dos cortesãos é parte da

14 Idem, p. 301-302.

15 No estudo da forma, será levada em conta não apenas a camada exterior da obra , mas

principalmente a linguagem que o poeta fala e que, na Poesia, se apresenta como um todo estruturado, em que cada elemento possui determinada função. A interpretação literária não deve satisfazer-se em descrever ou analisar cada um dos elementos que constituem a totalidade da obra, deve antes procurar compreendê-los como expressão de uma vontade criadora, que se realiza através das formas poéticas Formville e se manifesta num princípio estilístico, o qual coordena a multiplicidade dos elementos formais numa unicidade significativa IRIARTE, Rita. A distinção entre Classicismo e Maneirismo segundo Ernst Robert Curtius e Gustav René Hocke. Revista da

Faculdade de Letras, Lisboa, n. 6, 1962, p. 160).

16 Para este estudo, utilizei a seguinte referência: VICENTE, Gil. Auto da Barca do Inferno. Disponível

em HTTP://www.cet-e-quinhentos.com/obras.

(6)

54

encenação e, por isso, todos são atores18. Ainda de acordo com Morán Cabanas, os

momentos lúdicos dessa teatralidade inserem-se no contexto de carnavalização do

mundo, como propôs o estudioso russo Mikhail Bakhtin:

regra e desregra, ordem e desordem, se confrontam não com qualquer propósito subversor, mas apenas como modo de expressão através da palavra e do gesto de um segundo mundo e uma segunda vida, percepção de um mundo dual em que o riso festivo é ambivalente: mostra-se como força destrutora e, ao mesmo tempo, construtora; faz brotar alegria, mas também sarcasmo e mordacidade; nega e afirma; sepulta e ressuscita19.

A estudiosa também diz que essas manifestações de teatralidade se dão através do gênero da disputatio, reminiscência da poesia provençal e trovadoresca, agora representada pelas perguntas, respostas e ajudas, que Morán Cabanas define por debate , processo , jogo de tribunal , ou ainda debate de tipo judicial , além de diálogos dramáticos , conforme visto acima.

Mas essa teatralidade tem uma origem mais remota com as manifestações litúrgicas encenadas nas igrejas por ocasião, por exemplo, do Natal e da Páscoa. Desenvolve-se ainda através dos momos20, entremezes21, arremedilhos22e breves23.

18 Idem, p. 23-24. 19 Idem, p. 17.

20 Segundo Fidelino de Figueiredo: Os momos eram simples efeitos cenográficos com artifícios

mágicos, mas como elementos literários só continham as letras ou cimeiras ou breves, isto é, pequenas explicações que os atores e certos lugares do cenário ostentavam: eram dizeres da galanteria ou aclarações indispensáveis à boa inteligência da representação (FIGUEIREDO, Fidelino. Cancioneiro Geral de Garcia de Resende. In: História Literária de Portugal – Séculos XII-XX. 3 ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1966, p. 107).

21 Também conforme Fidelino de Figueiredo: o entremez teria um sentido mais compreensivo,

designaria todo o conjunto de representações cênicas de determinado momento e determinada solenidade, equivaleria ao nosso moderno espetáculo; o momo significaria o episódio particular e a ação cômica Idem, p. 108). A questão do entremez, no entanto, é complicada. Para um estudo mais acurado, consulte-se também MORÁN CABANAS, op. cit., 2003, p. 41-44.

22 De acordo com Luciana Stegnano Picchio, o arremedilho seria uma imitação burlesca, prometida

ao soberano por jograis remedadores, isto é, por bobos cuja especialidade consistia em ridicularizar o próximo macaqueando-lhe o semblante apud MORÁN CABANAS, op. cit., 2003, p. 32). Morán Cabanas informa também que os arremedilhos aparecem em Portugal desde o século XII e, de acordo com documento de , os estudiosos atribuíram uma especial importância pois se encontravam eventualmente primeira prova que demonstra a presença de actores ao serviço da corte Idem, p. 32).

23 Os breves são reduzidos ao mínimo e muitas vezes não são sequer recitados, mas antes

entregues por escrita ao destinatário. O breve seria o correspondente às letras e cimeiras. Conforme relata Joaquín González Cuenca, na introdução da seção Invenciones y letras de justadores do Cancionero General de Hernando del Castillo, eram essas invenções juegos literarios

(7)

55

Gil Vicente vai se valer desses elementos de teatralidade em suas peças, como aprimoramento do gênero dramático em Portugal.

Ainda quanto à questão da teatralidade, João Nuno Morais Alçada comenta que hoje lemos, o que não acontecia com o público medieval, pois ele escutava. E complementa:

E, porque a audição é temporal, o texto dirigia-se a um destinatário cuja capacidade de recepção estava muito atenta à arte de representar e aos ritos do espectáculo: a entoação e o gesto, porque voz e gestualidade no recitador eram duas formas complementares da existência do texto. Por seu lado, a gestualidade constitui um factor primordial da comunicação oral (...).

Os textos medievais, pois, encerrariam, no seu carácter geral mais pertinente, um aspecto dramático e poderiam ser entendidos como destinados a funcionarem em condições teatrais, e estas seriam as formas privilegiadas de comunicação entre um cantor-recitador e um determinado auditório24.

o parateatrales cargados de simbolismo y alegoría, relacionados con los momos. Esta forma de poesia constitui-se de duas partes, uma icônica, portanto visual, em que são exibidas imagens, um objeto que se levava no elmo (a cimeira), uma pintura ou bordado, todos relacionados com o texto literário; no entanto, há registro de invenciones e letras somente textuais, que constituem a outra parte desse tipo de composição (CUENCA, Joaquín González. In: Cancionero General de Hernando del Castillo. Ed. Joaquín González Cuenca. Madri: Ed. Castalia, 2004, Tomo II, p. 575). Consulte-se também MORÁN CABANAS, op. cit., 2003, p. 37-39.

24 ALÇADA, João Nuno Morais. Teatralidade e intertextualidade do tema da morte do príncipe Dom

Afonso de Portugal nas literaturas culta e popular. In: Revista Lusitana. Nova série 3, Instituto Nacional de Investigação Científica. Lisboa, 1982-1983, p. 83). Complementando o comentário de Alçada, registre-se o que discorre Márcio Ricardo Coelho Muniz quanto à performance e representação: Como se observa, é, ainda aqui, mais pela ação , pela realização concreta da voz, em eco, do que pela possibilidade [de] comunicar , que se pode alcançar compreender a poesia medieval. A este aspecto performativo que a linguagem poética medieval comporta Paul Zumthor denomina performance. Associados à performance, na realidade, a compondo, estão os conceitos de

obra e texto. Nas palavras de Zumthor, o texto é legível [...] [é sequência linguística que tende ao

fechamento ]; a obra foi ao mesmo tempo audível e visível [ poeticamente comunicado, aqui e agora – texto, sonoridades, ritmos, elementos visuais ]; [...] Do texto, a voz em performance extrai a obra (...). O desafio para a crítica é capturar a obra por via da performance da voz reconstruída, por intermédio do estudo e leitura do texto, esse ser fechado. Para Zumthor, assim como para Saraiva [António José Saraiva], a poesia medieval, como expressão poética de uma sociedade de corte, realiza-se num espaço performático modelar ou, em outros termos, propiciador do dramático. Nesta sociedade, as práticas cortesãs associadas às manifestações da etiqueta e aos atos performativos neles implicados criam ambiência apropriada para jogos dramáticos MUNIZ, Márcio Ricardo Coelho. Anrique da Mota: diálogos dramáticos e questões políticas no Cancioneiro

Geral de Garcia de Resende. Revista Limite. Revista de Estudios Portugueses y de la Lusofonía,

Universidad de Extremadura, Cáceres-Espanha, v. 10.2, 2016, p. 27-48. Disponível também em:

(8)

56

Antes da análise da forma propriamente dita, gostaria de fazer algumas referências que estudiosos têm feito sobre o próprio Auto e suas ligações a outros textos e recursos. Em interessante estudo sobre o Leal conselheiro, Márcio Ricardo Coelho Muniz faz referência àquilo que vejo como uma possível ligação entre a base do Auto da Barca do Inferno e àquilo que se destaca na obra de D. Duarte – a linguagem figurada para a existência de duas barcas (assim como se apresenta o auto de Gil Vicente):

O rei explica que o Frei escreveu a seu mandado, mas que o tema é de sua autoria (...). O texto é outro exemplo de que o rei recorreu ao uso da linguagem figurada para estabelecer seus conselhos (...). O capítulo figura a existência de duas barcas, metáfora do percurso da vida do homem: uma, segura, firme e perfeita; outra, rota, fraca e viciosa. Deve-se escolher uma delas para ir ao porto seguro e divinal prazer que é a glória p. . O conselho para que o homem se guie para a primeira, perfeita, é claro: com seu exempro podees entender que cousa perigoosa é dar-se o homem a destemperança, e cousa segura aa temperança p. 25.

Com relação ao conteúdo e o modo de representação, mais especificamente a possíveis intenções do dramaturgo, Márcio Muniz afirma que o Auto da Barca do

Inferno seria o ápice da maturidade plena do dramaturgo, e que a moralidade versaria um tema da tradição,

a ultrapassagem da alma de seus limites carnais para o campo espiritual, Inferno foi buscar no mito clássico de Caronte e na tradição medieval da Dança da Morte a inspiração cênica para retratar a sociedade portuguesa. Classes, tipos e hábitos os mais variados foram representados à corte, em 1517. Desfilaram entre as barcas do Céu e do Inferno e perante a nobreza que assistia ao auto as seguintes personagens: um fidalgo arrogante, um frade cortesão, um corregedor e um procurador corruptos, um judeu usurário, uma alcoviteira manhosa, um sapateiro ladrão, um parvo; enfim, um grande leque de tipos sociais, desde as altas classes até as de extração popular, que veem seus hábitos e costumes julgados e condenados. Todo o tom moralizador, no entanto, é vazado por meio de uma linguagem vivamente construída, caracterizadora das personagens, e

25 MUNIZ, Márcio Ricardo Coelho. Os leais e prudentes conselhos de El-Rei D. Duarte. In MONGELLI,

Lênia Márcia de Medeiros (Coord.). A literatura doutrinária na Corte de Avis. São Paulo: Martins Fontes, 2001, p. 291.

(9)

57

por situações altamente cômicas, em que se observa a mistura da moralidade com a farsa26.

Noutro estudo, Muniz faz uma ligação entre o Auto e os textos das Ars

moriendi medievais. O foco desses textos não era mais coletivo, mas

individualizantes, deslocando o morto para o Juízo Final. Este

transformou-se numa última prova, que ao jacente caberia vencer. Ali, sua biografia seria posta à prova. Anjos e principalmente diabos o cercariam como se estivessem num tribunal. Últimas tentações e demonstrações de graça seriam postas a sua frente. Caberia ao seu livre arbítrio decidir pela fé da graça divina ou deixar-se levar pelos medos aterrorizantes da hora final. O momento torna-se, então, dramático e sua representação plástica e literária far-se-á abundante27.

E complementa:

Dessas transformações resultou uma maior consciência do homem relativo ao papel central que desempenha nesse momento de passagem que é a morte. Antes, ritos de fundo coletivo dominaram o cenário dessa transição e o homem pôde contar com os seus na garantia de uma boa e tranquila passagem; agora, passou a pesar mais o comportamento do indivíduo que, em forma de espelho, se veria refletido no momento do julgamento, speculum mortis. Cabia, desta feita, preparar-se bem para o ataque da morte28.

Conclui o estudioso que o contexto e a motivação possibilitam ler o texto dramático de Vicente como uma Arte de morrer: a cada momento/cena do auto são apresentadas argumentações, antitéticas entre si, que revelam a intenção de ganhar-lhe a alma29.

Márcio Muniz, na edição que preparou do Teatro de Camões, apresenta um breve estudo inicial sobre a pervivência das estruturas formais do medievo nos autos de Camões, o que já era observado na dramaturgia de Gil Vicente. Camões faz

26 MUNIZ, Márcio Ricardo Coelho. O teatro de Gil Vicente no contexto das cortes portuguesas do séc.

XVI. In: Papéis: Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudos de Linguagens/Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. V. 1 (n. 1) 2010, Campo Grande, MS, p. 80-81. Também disponível em: http://www.papeis.ufms.br/Revista_Papeis_V14_N28.pdf Acesso em 2 out. 2017.

27 MUNIZ, Márcio Ricardo Coelho. Pera a consolação... dos moribundos. Fontes e sentidos do Auto da

Barca do Inferno. 2006, Uberlândia (MG), Anais. Uberlândia: EDUFU, 2008, p. 1193.

28 Idem, p. 1194. 29 Idem, p. 1197.

(10)

58

uso de uma estrutura idêntica aos autos de Vicente, que é, por sua vez, um modelo vigente na Península Ibérica; o texto dramático vem eivado de versos com metros curtos (redondilhas maiores e menores) e as estrofes em décimas, com rimas ordenadas em quintilhas. Isso já não se observa no texto de Vicente, conforme se pode verificar na análise que empreendi, o que mostro em seguida. Apresenta ainda, assim como no Auto, elementos desordenadores desses esquemas versos hiper ou hipométricos, versos em redondilha quebrados, estrofes de 9 ou 11 versos), quase sempre a serviço da dinâmica da oralidade30 . Assim como no texto

de Gil Vicente, Camões intercala – de forma mais abundante – composições poéticas de fundo cancioneril (cantigas, vilancetes, glosas, motes etc.) e inúmeras referências a danças, jogos e brincadeiras cortesãs e populares, que certamente contribuíam cenicamente na colagem / composição do enredo31 . No caso do

Inferno, isso é nítido nas aparições do padre fanfarrão.

Outro fato relevante, agora não relacionado à forma, é a profusão de personagens-tipo, em sua grande maioria de extração popular, originários do mesmo fundo comum que alimentou o auto peninsular, como criados, bobos, pastores, escudeiros etc.32 . No caso de Vicente, o onzeneiro, o sapateiro, o parvo,

entre outros. O estudioso aponta ainda o uso da linguagem que faz diferenciar o registro elevado do registro popular: às figuras da nobreza caberá um registro elevado da linguagem, marcado por jogos estilístico-retóricos, seleção e diversidade vocabular mais apurada, inversões sintáticas, maior presença de referências histórico-literárias33 – isso o faz Gil Vicente, como se poderá

comprovar à frente no item Recursos Retóricos . Outro registro coincidente entre os dois textos (vicentino e camoniano) é a linguagem dos personagens-tipo,

mais eivada de expressões populares (adágios, ditos, refrãos, pragas etc.), de certa crueza linguística (uso de calão e de ambiguidades com sugestões sensuais), de imagens de maior realismo físico e espacial, sintaxe mais simples, profusão de apartes dirigidos ao

30 MUNIZ, Márcio Ricardo Coelho. Camões, dramaturgo em seu tempo. In: CAMÕES, Luís de. Teatro

de Camões. Ed. de Márcio Muniz. Rio de Janeiro: Oficina Raquel, 2014, p. 11-12.

31 Idem, p. 12. 32 Idem, p. 13. 33 Idem, p. 13.

(11)

59

espectador/leitor; enfim, um registro que simula maior naturalidade linguística. Associa-se a isto o fato de Camões também recorrer ao bilinguismo literário, de larga tradição no teatro do s. XVI português...34

O mesmo se observa no texto de Gil Vicente – nas falas desses personagens, os ditos, a crueza linguística, como a de baixo calão, e uma sintaxe simples que denotam a oralidade35. Quanto ao bilinguismo, na seção Línguas , exponho o uso

constante do castelhano e do castelhanismo, bem como o uso de palavras latinas e mesmo longas falas em latim. Outro recurso que Camões e Vicente se valem em seus textos dramáticos.

Vistas essas alusões ao texto vicentino, sua possível intenção e referências conteudísticas, pretendo, a seguir, elencar algumas características formais no Auto

da Barca do Inferno, centro deste breve estudo.

Métrica:

Quanto à forma dos autos vicentinos, prevalece, em termos de métrica, a redondilha maior acrescida de pés quebrados, dissílabos, trissílabos, tetrassílabos e pentassílabos, todos de pouca monta36. Pontue-se que as redondilhas pela sua

forma e ductilidade são próprias para dar ao texto poético a carga musical que lhe é peculiar. Acontecem casos em que a contagem das sílabas métricas atinge o octossílabo, como no exemplo da estrofe : Que giricocins salvanor . Ou da estrofe

: Ou daquesta / Quem é? / Eu sou .

Estrofação e versos:

A peça de Gil Vicente é composta de 862 versos, com 116 estrofes, assim distribuídas: 83 oitavas, 12 novenas, seis quartetos, três sétimas, três quintilhas e

34 Idem, p. 14-15.

35 Em outro estudo, referindo-se à poesia dramática, aos diálogos dramáticos, presentes no CGGR,

Muniz refere-se a esses personagens e a crítica que fazem em seu linguajar: A crítica é explorada quase sempre por personagens tipificadas, construídas na linguagem e na ação, interlocutoras de um diálogo fluido, que busca a naturalidade do falar, recorrendo reiteradamente à graça, ao riso farsesco e franco MUNIZ, op. cit., 2016, p. 45).

36Muito usual quanto aos recursos poéticos é o advérbio onde aparecer como aonde para que a

contagem das silabas poéticas seja perfeita: Esta barca onde vai ora / que assi está apercebida? estrofe ; Vamos onde havemos d ir / nam praz a Deos com a ribeira estrofe ; E onde vai o batel? / No inferno vos poeremos (estrofe 83).

(12)

60

três tercetos, além de duas estrofes em décimas e duas monósticas. A sextilha e a estrofe de 13 versos somam apenas uma cada. Pode-se deduzir que nessa diversificação estrófica encontrem-se cantigas e vilancetes – formas características do CGGR. Tomem-se como exemplos as seguintes passagens:

Vem quatro Cavaleiros cantando, os quais trazem cada um a cruz de Cristo, pelo qual senhor e acrecentamento de sua santa fé católica morreram em poder dos mouros, absoltos a culpa e pena per privilégio que os que assi morrem têm dos mistérios da paixão daquele por quem padecem, outorgados por todos os presidentes sumos pontífices da madre santa igreja. E a cantiga que assi cantavam quanto à palavra dela é a siguinte:

Neste trecho, a entrada dos quatro cavaleiros, a própria didascália cita ser uma cantiga: E a cantiga que assi cantavam quanto à palavra dela é a siguinte .

A forma da cantiga característica do fim do medievo português compõe-se de mote que varia de quatro a cinco versos e glosa contendo o dobro dos versos do mote, quando a cantiga for considerada perfeita37 . Nas outras passagens em que

a forma poderia também configurar uma cantiga, parece não haver um encerramento conteudístico de mote como lançamento do Tema e a glosa como desenvolvimento do Tema.

VILANCETE:

À barca à barca segura barca bem guarnecida à barca à barca da vida. Senhores que trabalhais pola vida transitória

memória por Deos memória deste temeroso cais.

À barca à barca mortais barca bem guarnecida à barca à barca da vida. Vigiai vós pecadores que despois da sepultura neste rio esta aventura de prazeres ou dolores.

37 No CGGR, no entanto, essa forma fixa varia muito e há casos de cantigas consideradas

(13)

61

À barca à barca senhores barca mui nobrecida à barca à barca da vida.

O vilancete cultivado no CGGR compõe-se de mote que varia de dois e três versos, em que se lança o tema, e a glosa em sétimas, podendo compor-se de uma ou mais estrofes. No exemplo acima, o mote é de três versos e a glosa composta de duas sétimas, portanto, obedece às regras da forma fixa38.

Rimas – natureza e esquema:

O esquema rimático do Auto da Barca do Inferno segue a irregularidade própria do Cancioneiro de Resende. Pierre Le Gentil já a havia observado e acredita ser esta peculiaridade a grande marca da Compilação, sua grande riqueza – a ela Le Gentil referia persistentemente, não como defeito ou desconhecimento das técnicas da poesia, mas como algo que dava ao Cancioneiro qualidade e prestígio39.

O mesmo parece ocorrer no Auto vicentino. Quanto à natureza, mesclam-se rimas ricas e pobres, quase paritariamente; não aparecem rimas preciosas nem esdrúxulas40. Também se alternam rimas agudas (masculinas) e graves

(femininas), como no exemplo da primeira estrofe do auto:

Diabo À barca à barca oulá

que temos gentil maré ora venha o caro a ré.

Companheiro Feito feito. Diabo Bem está.

38 Assim como nas cantigas compiladas por Garcia de Resende em seu Cancioneiro, os vilancetes não

seguem a rigidez formal das formas fixas. Há casos, por exemplo, em que o mote é de três versos e a glosa de oito ou nove versos.

39 Cf. LE GENTIL, Pierre. La poésie lyrique espagnole et portugaise à la fin du Moyen âge: les thèmes,

les genres et les formes. 2 vol. Rennes: Plihon, 1952, p. 187-188. Assim se manifesta Le Gentil quanto ao tema : "Parlerons-nous alors de licence poétique? Parlerons-nous plutôt de versification

irregulière? (...) il est clair que la poésie péninsulaire n a pas la superstition des règles et que les

poètes castillains et portugaises, à part quelques esprits scrupuleux comme Juan de Mena et le Marquis de Santillane, n attachent pas au métier une importance excessive ... Improvisateurs, les rimeurs de la fin du XVe. siècle le sont presque tous ; ils en ont les défauts et aussi les qualités, car leurs dons naturels, leur souplesse, leur virtuosité sont parfois remarquables" (Idem, p. 208).

40 Há casos em que a proparoxítona torna-se oxítona para se adequar ao esquema, como em

Lucifer , para rimar com ter . A isso se denomina écstasis, ou seja, quando uma sílaba breve se faz longa: o recurso foi usado pelo dramaturgo-poeta também para coincidência de ritmo e rima.

(14)

62

Vai tu muit ieramá atesa aquele palanco e despeja aquele banco pera a gente que vinrá.

Sendo oulá, maré, ré, está, ieramá, vinrá, masculinas; e palanco, banco, femininas. Observe-se que o verso separado por linhas feito feito / bem está forma uma redondilha maior.

Com relação ao esquema das rimas, a diversidade é grande, indo de a até c, com dois exemplos em d, incluindo muitos casos de versos sem rima, cuja denominação da poética trovadoresca era palavra perduda e na nomenclatura atual verso livre . Para que se observe esse esquema, seguirei a ordem de aparecimento das estrofes, pontuando o esquema e as rimas de cada estrofe. Entenda-se pelo X, ausência de rima (palavra perduda / verso livre).

lá, ré, ré, eito, ta, má, anco, anco, rá. abbaacca u, ir, ir, uu, tu, eito, eito, cu. abbaacca esta, iça, iça, esta, esta, ique, ique, esta. abbaacca ora, ida, ida, hora, ora, iço, iço, ora. abbaacca ais, nhor, bor, ais, ais, cão, cão, ais. abbaacca si, ida, ida, mi, ti, hi, er, zer, cer, ti. abbaaacca ai, eira, eira, ai, ai, estes, estes, ai. abbaacca astes, io, io, astes, astes, astes, al, al, astes. abbaacca

ou, is, is, ou, ou, or, or, ou. abbaacca

ais, iso, íso, ais, ais, ar, ar, ais. abbaacca ia, al, al, ia, ia, arca, arca, ia. abbaacca io, eira, eira, io, io, á, á, io. abbaacca oso, ia, ia, oso, oso, enos, enos, oso. abbaacca

ores, ata, ata, ores, ano, edes. abbaXX

ia, mi, vi, ia, ia, ado, ado, ia. abbaacca emos, ura, ura, emos, emos, ais, ais, emos. abbaacca qui, ida, ida, mi, ti, eu, eu, vi. abbaacca

er, ias, ias, er, er, em, ém, er. abbaacca

eço, ando, ando, eço, eço, er, er, eço. abbaacca ou, itas, itas, ou, ou, ia, ia, ou. abbaacca ai, é, é, ai, ai, ente, ente, ai. abbaacca

di, eja, eja, qui, im, ores, ores, si. abbaacca41

41 Rogério Chociay cita que existem rimas imperfeitas, quando o poeta quebra o padrão rígido. Para

evitar uma conotação pejorativa, o autor prefere chamar o fenômeno de rimas incompletas. Diz ainda: se deixarmos de nos escravizar por esse ideal de simetria e pensarmos que o fundo orquestral buscado pelo poeta não o obriga a prender-se a esquemas rígidos que só podem levar à

(15)

63

ente, ela, ela, ente, ente. abbaa

ais, ais, ente. aab

anto, ar, ar, anto, anto, eiro, eiro, anto. abbaacca

qui, ar, ar, mi, ci, el, el, vi. abbaacca

agem, ir, ir, agem, agem, arca, arca, agem. abbaacca

ou, ir, ir, ou, ou, lá, ta, ou. abbaacca

ão, io, io, ão, ão, ea, ea, ão. abbaacca

eiro, undo, undo, eiro, eiro, ada, ada, eiro. abbaacca

ás, é, é, ás, ás, ou, ou, ás. abbaacca

ês, ia, ia, ês, ês, ada, ada, ês. abbaacca

sou, ossa, tra, oo, ô, er, er, só. aXXaabba42

ê, eira, eira, ê, é, uco, uco, é. abbacddc

á, er, er, há, á, á, udo, udo, há. abbaaacca osa, ato, ato, osa, osa, apo, apo, osa. abbaacca hiu, ejas, ejas, iu, iu, eira, eira, iu. abbaacca ulha, ela, ela, ulha, elha, elha, ulha, ulha. abbaccaa eres, ém, ém, eres, eres, aste, aste, eres. abbaacca

i, ém, em, i. abba

i, ado, ado, i. abba

agem, ados, ados, agem, agem, esta, esta, agem. abbaacca er, ado, ado, er, er, anos, anos, er. abbaacca

i, ero, ero, i, i, ar, ar, i. abbaacca

ão, ados, ados, ão, ão, ana, ana, ão. abbaacca

aça. X

ela, ela, aça, aça, á, á, aça. aabbccb43

adas, ilho, ilho, adas, adas, eito, eito, adas. abbaacca

ais, erno, erno, ais. abba

ais, ogo, ogo, ais. abba

rã, rã, há, lá, ão, ão, ei, ei, ão. aabbccddc

ossa, eu, eu, osa, osa, anto, anto, osa. abbaacca44

endo, ente, ente, endo, endo, al, al, endo. abbaacca ado, isto, isto, ado, ado, ude, úde, ado. abbaacca ença, emos, emos, ença, ença, ela, ela, ença. abbaacca ado, er, er, ado, ao, ido, ido, ado. abbaacca

oa, ete, ete, oa, oa, ão, ão, oa. abbaacca

ada, sus, sus, ada, ada, és, és, ada. abbaacca

exaustão, ao fastio, facilmente constatamos a riqueza de efeitos que podem trazer à linha melódica do poema essas imperfeições , libertando-o da monotonia que o padrão soante puro pode acarretar CHOCIAY, Rogério. Teoria do verso. São Paulo: McGraw-Hill do Brasil, 1974, p. 186). Mais à frente, relata opinião de Mattoso Camara: A rima, como efeito acústico da repetição de um motivo, traz em si o germe da monotonia. A rima imperfeita justifica-se, portanto, esteticamente como um meio de quebrar essa monotonia sem abandono da correspondência dos sons Idem, p. 186). Em alguns versos do Auto revelam-se algumas rimas imperfeitas/incompletas, como no caso da sequência: di/qui/im/si.

42 Observem-se nesta sequência as rimas imperfeitas/incompletas em: sou/oo/ô/só.

43 Se se juntar as duas sequências de versos dessas duas estrofes, teremos aça, ela, aça, aça, à, à, aça. 44 Rimas imperfeitas/incompletas em ossa/osa/osa/osa.

(16)

64

arda, ente, ente, arda, arda, ado, ado, arda. abbaacca ada, adas, adas, ada, ada, ente, ente, ada. abbaacca ia, eira, eira, ia, ia, ingos, ingos, ia. abbaacca

ória X

ram, ram, á. aab

á, ença, ença, á, á, ade, ade, á. abbaacca

ir, eira, eira, ir, ir, ença, ença, ir, abbaacca

ama, az, az, á, á, ês, ês, á. Xaabbccb

ar, ato, ato, ar, ar, iços, iços, ar. abbaacca ir, eos, eos, ir, ir, iça, iça, ir. abbaacca

é, ia, ia, é, é, íso, isso, é. abbaaca45

al, ados, ados, al, al, undo, undo, al. abbaacca olhos, az, az, olhos, olhos, osa, osa, olhos. abbaacca inas, é, é, inas, inas, ada, ada, inas. abbaacca

eo, eu, eu, eo, eo, ono, ono, eo. abbaacca

ar, ando, ando, ar, ar, i, i, ar. abbaacca

hora, ou, ou, ora, ora, ida, ida, ora. abbaacca eiro, este, este, eiro, eiro, ir, ir, eiro. abbaacca

á, ões, ões, á, á, ão, ão, á. abbaacca

eu, az, az, eu, eu, el, el, eu. abbaacca

úda, enha, enha, uda, uda, inhos, inhos, uda. abbaacca ão, im, im, ão, ão, ados, ados, ão. abbaacca ela, or, or, ela, ela, oa, oa, ela. abbaacca ês, iz, iz, ês, eis, eito, eito, ês. abbaacca emos, el, el, emos, emos, or, or, emos. abbaacca estes, ão, ão, estes, estes, eiro, eiro, estes. abbaacca agem, ar, ar, agem, agem, esse, esse, agem. abbaacca or, tatis, tatis, or, or, ina, ina, or. abbaacca el, ei, ei, el, el, ícia, icia, el. abbaacca eus, ava, ava, eus, eus, ea, ea, eus. abbaacca istis, orum, orum, istis, istis, edos, edos, istis. abbaacca ados, ães, ães, ados, ados, istas, istas, ados. abbaacca or, iz, iz, or, or, omba, omba, or. abbaacca

á, ais, ais, á, á, ado, ado, á. abbaacca

or, emo, emo, or, or, ei, ei, or. abbaacca

ais, er, er, ais, ais, eo, eo, ais. abbaacca

osos, el, el, osos, osos, ência, ência, ossos. abbaacca46

airos, orum, orum, airos, airos, onte, unt, airos. abbaacca47

al, ados, ados, al, al, io, io, al. abbaacca al, i, i, al, is – rima defeituosa em i/i/is. abbab48

á, edo, edo, á. abba

á, az, az, á. abba

45 Rimas imperfeitas/incompletas em íso/isso.

46 Rimas imperfeitas/incompletas em osos/osos/osos/ossos. 47 Observem-se as rimas toantes em onte/unt.

(17)

65

ada, er, er, ada, ada, oa, oa, ada. abbaacca

ado, iz, iz, ado, ado, iz, iz, ado. abbaabba

ás, erno, erno, ás, ás, iz, iz, ás. abbaacca era, ado, ado, era, era, ins, ins, era. abbaacca eiro, idos, idos, eiro, eiro, ente, ente, eiro. abbaacca ão, orço, oço, ão, ão, ar, ar, ão. abbaacca49

el, ir, ir, el, el, ado, ado, el. abbaacca isso, eira, eira, íso, iso, aço, aço, isso. abbccdda ório, eiro, eiro, ório, ório, ados, ados, ório. abbaacca

ar, as, as, ar, ar, el, el, ar. abbaacca

ura, ida, ida. ABB

ais, ória, ória, ais, ais, ida, ida. abbaaBB ores, ura, ura, ores, ores, ida, ida. abbaaBB ais, is, is, ais, ais, em, ém, ais. abbaacca

essa, isto, isto, essa. ABBA

eos, ando, ando, éus, al, eja, eja, al. abbacddc50

Observa-se nesse esquema que a sequência abbaacca é a mais frequente, somando 88 estrofes.

Além das rimas em posição final de versos, o dramaturgo-poeta usa algumas

rimas internas, como se observa nos exemplos a seguir:

Estrofe 1: atesa aquele palanco / e despeja aquele banco; Estrofe 3: e alija aquela driça;

Estrofe 16: que cá nos entenderemos. / Tomarês um par de remos / veremos como remais;

Estrofe 23: chegar a ela chegar a ela;

Estrofe 29: Lá me fica de rondão / minha fazenda e alhea. / Oh onzena como és fea / e filha de maldição;

Estrofe 38: mija n agulha mija n agulha;

Estrofe 42: Nom cures de mais linguagem / esta é tua barca esta;

Estrofe 108: Que diz esse Arrais que diz? (estrofe 91); memória por Deos memória.

Recursos retóricos:

Como em qualquer texto poético, encontram-se no Auto da Barca vários recursos de ornamento, estudados e classificados nas várias retóricas, antigas e medievais. O levantamento que fiz pretende ser apenas demonstrativo e não

49 Observem-se as rimas toantes em orço/oco.

50 Observem-se as rimas metafônicas na sequência em: eos/éus. Rogério Chociay diz que essas

rimas reduzem o padrão, mas enriquecem-se os efeitos . Explica que esse tipo de rima empregado desde o Classicismo é chamado por Joaquim Ribeiro de rima metafônica (CHOCIAY, op. cit., 1974, p. 188).

(18)

66

analítico; também não é um longo rol - apenas elenquei os principais e mais evidentes, mas necessários uma vez que esses artifícios estão ligados à questão da forma, objeto deste breve estudo.

Stephen Reckert afirma que no desenvolvimento de seus temas,

Vicente uses not only the typical cancioneiril device of polyptoton (amar, amor, amado, amador, desamado)51 but the syllogistic structure, with its insistent polysyndeton and its proliferation of causal and adversative logical connections (maior, e mais, que, e, nam,

e pois, ainda que, que fará, e sendo), equally characteristic of the cantigas de amor52.

E acrescenta que esse uso é próprio do Cancioneiro de Resende, by a fireworks display of anáforas, antíteses, quiasmos […], epizeuxes e processo fónicos como aliterações e rimas internas that give it malleability53 .

Seguem-se alguns exemplos desses artifícios retóricos:

Aliterações

Em P: Vai pera a ilha perdida / e há de partir logo ess'hora. / Pera lá vai a senhora? (Estrofe 4);

Isso eu nam o tomava / eram lá percalços seus / nom som peccatus meus / peccavit uxore mea. (Estrofe 88);

Essa gente que aí está / pera onde a levais? / Pera as penas infernais. / Dix nom vou eu pera lá (Estrofe 92).

Em S: Senhor a vosso serviço. / Parece-me isso cortiço. (Estrofe 4);

Entremos pois que assi é. / Ora senhor descansai / passeai e sospirai / (...) / Oh barca como és ardente (Estrofe 21);

Que te pês hás d ir si si. / Quantas missas eu ouvi / nom me hão elas de prestar? / Ouvir missa então roubar / é caminho peraqui. Estrofe .

Em T: Parece-te a ti assi. / Em que esperas ter guarida? (Estrofe 6);

Onzeneiro meu parente. / Como tardastes vós tanto? / Mais quisera eu lá tardar. (Estrofe 25).

Em V: Venha prancha e atavio / levai-me desta ribeira. / Nam vindes vós de maneira / pera ir neste navio / essoutro vai mais vazio / a cadeira entrará / e o rabo caberá / e todo vosso senhorio. (Estrofe 12);

Vos me venirés a la mano / a la mano me veniredes. (Estrofe 14).

Em C: Pero Vinagre beiçudo / rachador d Alverca hu ha. / Capateiro da Candosa /

antrecosto de carrapato / hiu caga no sapato / filho da grande aleivosa. (Estrofe

35-36);

51 Para esse artifício, emprego a designação de paronomásia.

52 RECKERT, Stephen. From the resende songbook. Londres: Dept of Hispanic Studies, Queen Mary

and Westfield College, 1998, p. 87.

(19)

67

Como poderá isso ser / confessado e comungado? / E tu morreste escomungado /

nom o quiseste dizer (Estrofe 43).

Em Q: Que me queres? / Queres-me passar além? / Quem és tu? / Samica alguém. / Tu passarás se quiseres / porque em todos teus fazeres (Estrofe 39);

E disse-me que a Deos prouvera / que fora ele o enforcado / e que fosse Deos louvado / que em bôora eu cá nacera / e que o senhor m escolhera / e por bem vi beleguins / e com isto mil latins / mui lindos feitos de cera. (Estrofe 104).

Anáforas

Que leixo na outra vida / quem reze sempre por mi. / Quem reze sempre por ti (Estrofe 6);

Nam há aqui outro navio? / Nam senhor que este fretastes (Estrofe 8) Pera onde é a passagem? / Pera a infernal comarca. (Estrofe 27).

Anástrofes

Oh nom praza a sam Marçal / com a ribeira nem com o rio / cuidam lá que é desvario / haver cá tamanho mal. (Estrofe 99);

Nem guardião do moesteiro / nom tinha tam santa gente / como Afonso Valente / que é agora carcereiro. (Estrofe 105).

Antítese

A antítese no Auto se revela principalmente nos dois principais personagens: o Diabo (representando o Mal) e o Anjo (representando o Bem).

Assonâncias

Oh caça oh iça iça. / Oh que caravela esta. / Põe bandeiras que é festa / verga alta

âncora a pique. / Ó poderoso dom Anrique / cá vindes vós que cousa é esta? (Estrofe 3);

Ou da barca oulá ou / havês logo de partir? (Estrofe 28).

Registre-se que algumas assonâncias se dão nas onomatopeias: hi hi hi hi hi hi hi / hiu hiu / hu ha / hump hump, etc.

Comparações

Guarde-me Deos d espingarda / mais de homem denodado / aqui

estou tam bem guardado / como a palha n albarda. Estrofe ;

Santa Úrsula nom converteo / tantas cachopas como eu / todas salvas polo meu / que nenhũa se perdeo. (Estrofe 73);

Eu te direi que ele diz: / que fui bem aventurado / em morrer dependurado / como o tordo na buiz / e diz que os feitos que eu fiz / me fazem calonizado. (Estrofe 102);

Se Garcia Moniz diz / que os que morrem como fiz / são livres de Satanás. (Estrofe 103);

Nem guardião do moesteiro / nom tinha tam santa gente / como Afonso Valente / que é agora carcereiro. (Estrofe 105);

(20)

68

Definitio

Um padre tam namorado / e tanto dado a virtude / assi Deos me dê saúde / que eu estou maravilhado (Estrofe 54);

Eu sou ũa mártela tal / açoutes tenho levados / e tormentos soportados / que ninguém me foi igual (Estrofe 70);

E eu som apostolada / angelada e martelada / e fiz cousas mui divinas (Estrofe 72)

Enjambements

Calaste dous mil enganos / tu roubaste bem trint anos / o povo com teu mester. (Estrofe 43);

Escrito estás no caderno / das ẽmentas infernais. (Estrofe 49).

Enumerações

Três almários de mentir / e cinco cofres de enleos / e alguns furtos alheos / assi em jóias de vestir / guarda-roupa d encobrir / enfim casa movediça / um estrado de cortiça / com dous coxins d encobrir. Estrofe ;

E eu som apostolada / angelada e martelada / e fiz cousas mui divinas. (Estrofe 72);

Azará pedra meúda / lodo, chanto, fogo, lenha / caganeira que te venha / má corrença que te acuda. (Estrofe 79).

Eufemismos

Pera onde é a passagem? / Pera a infernal comarca. ((Estrofe 27). Apesar do adjetivo anteposto já indicar o inferno, o verso é ambíguo e registra o abrandamento do substantivo comarca .

E pera onde é a viagem? / Pera o lago dos danados. / Os que morrem confessados / onde tem sua passagem? (Estrofe 42).

Hipérbatos

Esta é. Que demandais? (Estrofe 10);

Eu pera o paraíso vou. / Pois quant eu mui fora estou / de te levar para lá. (Estrofe 28);

Essa barca que lá está / leva quem rouba de praça. / As almas embaraçadas. (Estrofes 47-48);

Escrito estás no caderno / das ẽmentas infernais. (Estrofe 49); Ora já passei meu fado / e já feito é o burel. (Estrofe 107);

Isto muito em seu siso / e era santo o meu baraço / eu nam sei que aqui faço. (Estrofe 108).

Hipérboles

Como podrá isso ser / que m escrivia mil dias? (Estrofe 18);

Calaste dous mil enganos / tu roubaste bem trint anos / o povo com teu mester. (Estrofe 43).

Interjeições

Oh que tempo de partir / louvores a Berzebuu (Estrofe 2); Oh caça oh iça iça. / Oh que caravela esta (Estrofe 3);

(21)

69

Ah barqueiros nam me ouvis? / Respondê-me. Oulá ou. (Estrofe 9);

Oh que maré tam de prata / um ventezinho que mata / e valentes remadores (Estrofe 14);

Ah nom praza ò cordovão / nem à puta da badana / s é esta boa traquitana / em que se vê Joan Atão Estrofe .

Ironias

Embarqu a vossa doçura / que cá nos entenderemos. / Tomarês um par de remos / veremos como remais / e chegando ao nosso cais / todos bem vos serviremos. (Estrofe 16). O Diabo usa palavras de cortesia para dar a ilusão de quem será servido será o pecador;

Dá-me licença te peço / que vá ver minha molher. / E ela por nam te ver /

despenhar-s -á dum cabeço. (Estrofe 19);

Gentil padre mundanal / a Berzabu vos encomendo. (Estrofe 53); Santo descorregedor / embarcai e remaremos. (Estrofe 83)

Máximas, ditos populares

Tua molher é tinhosa / e há de parir um sapo / chentado no guardenapo / neto de cagarrinhosa (Estrofe 36);

Quando o recolher se tarda / o ferir nom é prudente / ora sus mui largamente / cortai na segunda guarda (Estrofe 59);

Sois livres de todo mal / mártires da madre igreja / que quem morre em tal peleja /

merece paz eternal (Estrofe 116).

Metáfora

Terra é bem sem sabor (Estrofe 5);

Esta espada é roloa / e este broquel rolão. / Dê vossa reverença lição / d esgrima que é cousa boa (Estrofe 57).

Metonímia

Nam se embarca tirania / neste batel divinal (Estrofe 11);

E porque de generoso / desprezastes os pequenos / achar-vos-ês tanto menos / quanto mais fostes fumoso (Estrofe 13);

Oh onzena como és fea / e filha de maldição (Estrofe 29);

Tua simpreza t abaste / para gozar dos prazeres (Estrofe 39).

Onomatopeias

hi hi hi hi hi hi hi (Estrofe 6);

Ò inferno? Eramá. / Hiu hiu barca do cornudo / Pero Vinagre beiçudo / rachador d Alverca hu ha. (Estrofe 35);

Furta cebola hiu hiu / escomungado nas erguejas (Estrofe 37);

Hiu hiu lanço-te ũa pulha / de de pica na aquela / hump hump caga na vela. (Estrofe 38);

Tai rai rai ra rã, ta ri ri rã / tarai rai rai rã, tai ri ri rã / tã tã, ta ri rim rim rã hu há.

(22)

70

Ta ra ra rai ram, ta ri ri ri ri ram / tai rai ram ta ri ri ram, ta ri ri ram/ u á. (Estrofe

63).

Paralelismos

Que leixo na outra vida / quem reze sempre por mi. / Quem reze sempre por ti (Estrofe 6);

Esperar-me-ês vós aqui / tornarei à outra vida / ver minha dama querida / que se

quer matar por mi. / Que se quer matar por ti? (Estrofe 17).

Paronomásias

Quanto ela hoje rezou / antre seus gritos e gritas (Estrofe 20); Quanto ela bem chorou. / Nom há i choro d alegria? Estrofe ;

Como poderá isso ser / confessado e comungado? / E tu morreste escomungado / nom o quiseste dizer (Estrofe 43);

Ita ita dai cá a mão / remarês um remo destes / fazê conta que nacestes / pera nosso companheiro. (Estrofe 84);

Isso eu nam o tomava / eram lá percalços seus / nom som peccatus meus / peccavit uxore mea. (Estrofe 88);

E este barqueiro zomba / jogatais de zombador? (Estrofe 91);

Eu mui bem me confessei / mas tudo quanto roubei / encobri ao confessor. (Estrofe 93);

Oh nom praza a sam Marçal /com a ribeira nem com o rio / cuidam lá que é desvario / haver cá tamanho mal. Estrofe 97);

Agora nam sei que é isso / nam me falou em ribeira / nem barqueiro nem barqueira / senam logo ò paraíso. (Estrofe 108);

Perífrases

Vai pera a ilha perdida / e há de partir logo ess'hora [Inferno] (Estrofe 4);

Para onde levais gente? / pera aquele fogo ardente / que nom temestes vivendo [Inferno] (Estrofe 53);

A justiça divinal / vos manda vir carregados / por que vades embarcados / nesse batel infernal [Deus] (Estrofe 97).

Pleonasmos

Parece-te a ti assi. (Estrofe 6);

Ora mui muito m espanto / nom vos livrar o dinheiro. (Estrofe 25); E quem te dixe a ti isso? (Estrofe 69);

Parecês-me vós a mi / como cagado nebri / mandado no Sardoal (Estrofe 98).

Prosopopeia

Nam vindes vós de maneira / pera ir neste navio / essoutro vai mais vazio / a cadeira entrará / e o rabo caberá / e todo vosso senhorio (Estrofe 12);

Oh que maré tam de prata / um ventezinho que mata / e valentes remadores (Estrofe 14);

Cá lha darão de marfim / marchetada de dolores / com tais modos de lavores / que estará fora de si (Estrofe 22).

(23)

71

Quiasmos

Vos me veniredes a la mano / a la mano me veniredes (Estrofe 14); Ao inferno todavia / inferno há i pera mi? (Estrofe 15);

Ó pragas pera papel / pera as almas odiosos / como vindes preciosos / sendo filhos da ciência. (Estrofe 95);

À barca à barca mortais / barca bem guarnecida / à barca à barca da vida. (Estrofe

112);

À barca à barca senhores / barca mui nobrecida / à barca à barca da vida. (Estrofe

113).

Metaplasmos Aférese

À barca à barca senhores / barca mui nobrecida / à barca à barca da vida (Estrofe 113).

Arcaísmos

À barca à barca u u / asinha que se quer ir. / Oh que tempo de partir / louvores a Berzebuu (Estrofe 2);

Que leixo na outra vida / quem reze sempre por mi (Estrofe 6);

Quem reze sempre por ti / hi hi hi hi hi hi hi / e tu viveste a teu prazer / cuidando cá guarecer / porque rezem lá por ti (Estrofe 6);

Vai tu muit ieramá / atesa aquele palanco / e despeja aquele banco / pera a gente que vinrá (Estrofe 12);

Samicas de caganeira (Estrofe 34).

Crase

À barca à barca oulá (Estrofe 1);

atesa aquele palanco / e despeja aquele banco / pera a gente que vinrá. (Estrofe 1).

Ectlipse

Esta barca onde vai ora / que assi está apercebida? (Estrofe 4); Ver minha dama querida / que se quer matar por mi (Estrofe 17).

Epêntese:

Ora senhor descansai / passeai e sospirai / entanto vinrá mais gente (Estrofe 21).

Hiato poético

Em boa hora feito feito (Estrofe 2);

Haveis padre de viir (Estrofe 65).

Prótese

Esta barca onde vai ora / que assi está apercebida? (Estrofe 4).

Sinalefa/elisão

(24)

72

Despeja todo esse leito (Estrofe 2).

Síncope:

Como podrá isso ser / que m escrivia mil dias? (Estrofe 18); Que sabroso arrecear (Estrofe 67).

Substantivação

Quando o recolher se tarda / o ferir nom é prudente / ora sus mui largamente / cortai na segunda guarda (Estrofe 59).

Tmese

E porque de generoso / desprezastes os pequenos / achar-vos-ês tanto menos / quanto mais fostes fumoso (Estrofe 13);

Esperar-me-ês vós aqui / tornarei à outra vida / ver minha dama querida / que se

quer matar por mi (Estrofe 17).

Línguas

O fenômeno do bilinguismo pode ser detectado em toda a produção cancioneiril portuguesa e castelhana, dos fins do séc. XV ao século XVI. Na época de Gil Vicente (assim como aparece no Cancioneiro Geral de Garcia de Resende), o bilinguismo em Portugal não se restringia ao castelhano como era de se esperar, pela proximidade geopolítica de Portugal e Castela. As recorrências latinas são muitas como revitalização cultural de séculos, amparada pelo Humanismo.

Quanto ao conceito de "bilinguismo", Ivo Castro divide-o em dois: uma segunda língua, que on entend une langue non maternelle que le locuteur apprend et emploie en immersion dans un territoire qui est propre à cette langue ; outra é a língua estrangeira, aquela qui est apprise et employée par des locuteurs qui ne la possèdent pas comme langue maternelle, hors des frontières propres à cette langues . Quanto aos poetas portugueses que escreviam em castelhano, comenta Castro – citando inclusive Gil Vicente:

Le public du Cancioneiro de Resende ou des vers castillans de Sá de Miranda et de Gil Vicente était surtout portugais et lusophone. Les écrivains des nouvelles générations, qui faisaient partie de ce public, s inspiraient naturellement du castillan de leurs prédécesseurs quand ils voulaient écrire en castillan54.

54 CASTRO, Ivo. Sur le bilinguisme littéraire castillan-portugais. Arquivos do Centro Cultural Calouste

(25)

73

Além do português, duas línguas são utilizadas por Vicente no Auto, o castelhano (e consequentes castelhanismos) e o latim (não apenas palavras, mas frases representadas nos diálogos principalmente do Corregedor e do Procurador, a quem responde o Diabo (e a certa altura até mesmo o Parvo, caso interessante se comparado à linguagem extremamente popular de Joane). Seguem-se alguns exemplos:

Castelhano/castelhanismo

Vos me venirés a la mano / a la mano me veniredes (Estrofe 14); neste rio esta aventura / de prazeres ou dolores (Estrofe 22); Entra tolazo enuco / que se nos vai a maré (Estrofe 34);

Bejo-vos las mãos juiz. / Que diz esse Arrais que diz? (Estrofe 91);

Solamente pera o barqueiro / nom me leixarom nem tanto (Estrofe 25).

Latim

Dix nom vou eu em tal barca / estoutra tem avantagem (Estrofe 27); Deo gracias, som cortesão (Estrofe 51);

Dix nom vou eu pera lá / Outro navio está cá / muito milhor assombrado (Estrofe

92).

Mas além dessas recorrências a palavras latinas, é extenso o uso de frases latinas nos diálogos do Procurador e do Corregedor, com o intuito de pontuar a função social desses personagens – sabe-se que Gil Vicente não nomeia a maioria de seus personagens nos autos, pois a ele interessa focar na função social desses e como eles se servem dessa para cometer os delitos abominados pelo dramaturgo em seus autos moralizantes. Apenas como mostra, seguem-se alguns diálogos do Corregedor e do Diabo:

Oh que isca esse papel / pera um fogo que eu sei. / Domine memento mei. / Non es

tempus bacharel / imbarquemini in batel / quia judicastis malícia. / Semper ego in justicia / fecit e bem per nivel (Estrofe 87);

A largo modo adquiristis / sanguinis laboratorum / ignorantes peccatorum / ut quid

eos non audistis. / Vós Arrais nonne legistis / que o dar quebra os pinedos? /

Os dereitos estão quedos / sed aliquid tradidistis (Estrofe 89).

Registre-se que o latim que usa Vicente é aquele de gosto popular – arremedando o latim culto; parece que a intenção do dramaturgo é o de denegrir os que fazem uso de sua função social para explorar; no caso do uso desse latim (que poderíamos

(26)

74

chamar de macarrônico), a ironia é transparente. Observe-se ainda que o bilinguismo se mostra nos diálogos na mistura do português com o latim.

Conclusão:

Apesar de polêmicas relacionadas à questão da forma e do gênero no âmbito dos estudos literários, parece claro que ambos os termos fazem parte de uma preocupação própria de estudiosos da Literatura. Se forma não se desvincula ao conteúdo, e vice-versa – como discorre, por exemplo, Emil Staiger: na criação […] metro, rima e ritmo surgem em uníssono com as frases. Não se distinguem entre si, e assim não existe forma aqui e conteúdo ali55 –, hoje em dia a questão da

definição e das aplicações de forma e gênero parece ser menos controversa do que no passado. Não há dúvida de que o artista engenhoso procura na forma um meio de expressar o conteúdo que deseja revelar, valendo-se da tradição mas também da inovação. É o que fez o dramaturgo-poeta Gil Vicente em suas peças. Se a tradição poderia dar certo conforto ao leitor/espectador, a inovação abria-lhe a possibilidade de enxergar ou sentir as coisas não apenas por um único olhar.

A análise ora apresentada teve como intuito apresentar de forma sucinta, mas o mais acurado possível, os recursos formais usados por Gil Vicente em seu antológico Auto da Barca do Inferno. Pôde-se observar que o registro poético que o dramaturgo emprega em seu texto é o mesmo que caracteriza as produções – ao menos as poéticas, reitero – dos séculos XV e XVI. Mesmo que inovando em muitos pontos, Vicente mantém a tradição ao fazer uso de artifícios próprios de sua época, mas inova – talvez mais em conteúdo, haja vista colocar em escrita um texto dramático completo, o que o faz ser o iniciador de um teatro pleno, em português. Artigo recebido em: 15.04.2018

Artigo aceito em: 24.07.2018

55 STAIGER, Emil. Conceitos fundamentais da Poética. 3. ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997,

Referências

Documentos relacionados

O construto estilo e qualidade de vida é explicado pelos seguintes indicadores: estilo de vida corrido realizando cada vez mais trabalho em menos tempo, realização

Levantamos previamente como uma possibilidade à idéia de que existem grandes impactos econômicos, sociais, estruturais, culturais e ambientais na região do litoral norte como um

9.5.2.5 Caso não mais existam candidatos às vagas ofertadas nos itens 2.6 (incisos I e II) e 2.7(incisos I e III), elas serão ofertadas, prioritariamente, para candidatos ao inciso

A exposição tabágica ambiental encontra-se ligada ao aparecimento de resultados adversos para a saúde, sendo relatada uma relação de causalidade com doen- ças respiratórias, como

[r]

A inferência se dá por meio de duas operações: uma lógica, em que estabelecemos uma implicação (por exemplo: se [somente o Chico ficou em recuperação], então os outros

Na primeira sessão são apresentados os resultados do estudo (representações dos pais e das crianças acerca dos estilos parentais práticos), a estrutura do programa e todos

Em conclusão, os resultados deste estudo mostraram que o alongamento da cadeia muscular respiratória realizado na postura “rã no chão com os braços abertos”, do método de RPG,