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Da análise das massas à compreensão do autoritarismo 1 Elisa Zwick 2

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Da análise das massas à compreensão do autoritarismo1

Elisa Zwick2

1. Introdução

O tema da autoridade, tal como desenvolvido pelos autores da primeira geração da Teoria Crítica, encontra suas bases no diálogo com as obras de Freud. O pensamento freudiano, alocado na esfera de estudos sociológicos, tem como pressuposto central o fato de que o problema da dominação mantém uma face psicológica que precisa ser explorada. Inaugura-se uma perspectiva de compreensão das singularidades da dominação num momento histórico posterior ao analisado por Marx e pelo marxismo clássico. Assim, as bases da Teoria Crítica primeva são demarcadas pelos textos de cunho social do pai da psicanálise, em que, a partir da compreensão do indivíduo, mas sem descuidar da sociedade, se situam os fundamentos do debate sobre o autoritarismo na chave frankfurtiana.

Uma das obras de singular contribuição ao debate sobre o autoritarismo é

“Psicologia das massas e análise do eu”, de Freud (2015, 2017 [1921]) em especial se formos pensar nas conexões com as análises de Horkheimer (1936, 2015) em

“Autoridade e família”. Nesse estudo tematizaremos elementos que se destacam dessa tese de Freud sobre as massas e o referido escrito de Horkheimer, inclusas outras reflexões da Teoria Crítica, apresentando alguns dos aspectos da singular relação entre Teoria Crítica e psicanálise. Assim, esta análise veicula pensar sobre os traços do autoritarismo em suas atuais manifestações.

2. As massas por Freud

2 Professora do magistério superior na Universidade Federal de Alfenas (Unifal-MG), doutoranda no programa de Pós-Graduação em Sociologia na Universidade Estadual de Campinas (IFCH/Unicamp), doutora e mestre em Administração pela Universidade Federal de Lavras (Ufla). Graduada em Administração pela Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul (Unijuí/RS).

E-mail: elisa.zwick@unifal-mg.edu.br.

1Texto apresentado no 45º Encontro Nacional da Anpocs, ocorrido de 19 a 27 de outubro de 2021.

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A compreensão de que a análise de Freud em “Psicologia das massas e análise do eu”, obra publicada em 1921, tornou-se um marco para uma nova abordagem psicológica dos problemas sociais constituiu-se um ponto central e importante na corrente leitura acadêmica. Há mais de uma década, em curso ministrado sobre Freud, Vladimir Safatle mencionou que a psicologia das massas seria o esboço de uma “teoria da regressão”, onde as massas exercem a manifestação da horda originária. Tal tendência “estaria inscrita na organização social das sociedades modernas de massa”

(SAFATLE, 2009, p. 10).

Já no início da obra, Freud (2017, p. 35) vai afirmar que “a oposição entre psicologia individual e psicologia social ou das massas, que à primeira vista pode nos parecer muito significativa, perde muito de sua nitidez ao ser examinada mais a fundo”3 . Esta frase nos coloca em meio a um turbilhão de ideias, uma vez que aloca definitivamente Freud como um teórico da sociedade e, nos faz perceber dialeticamente o indivíduo em seus aspectos particulares. É uma leitura inédita que põe em conexão, na fala de um estudioso dos problemas da psique, mobilizações individuais e estruturas sociais construídas pelo ser humano, exigindo que se compreenda a ação individual colada à uma leitura psicanalítica.

Trata-se de uma abordagem que passou a ser fundamental para compreender a sociedade, visto que, doravante, na teoria social, percebeu-se que o modo como o indivíduo se socializa e internaliza as normas tem conexão com o como ele se relaciona consigo próprio. Sem dúvida, compreender que os dramas do inconsciente reverberam à vida social, sendo concomitantemente moldados por ela, causa uma mudança importante nas visões acerca da relação indivíduo e sociedade. Isso significou considerar, também, em medida relevante, a influência das determinações materiais na constituição do sujeito.

Endo e Sousa (2017, p. 11) localizam a leitura estabelecida por Freud em 1921 como uma continuidade a “Totem e Tabu”, obra de 1913, que também traz a reboque os escritos de 1927, 1930 e 1939 . Mas, se nesta primeira obra, Freud mantinha uma leitura4

4Que são, respectivamente: “O futuro de uma ilusão”, “O mal-estar na cultura” e “O homem moisés e a religião monoteísta”.

3“Der Gegensatz von Individual- und Sozial- oder Massenpsychologie, der uns auf den ersten Blick als sehr bedeutsam erscheinen mag, verliert bei eingehender Betrachtung sehr viel von seiner Schärfe”

(FREUD, 2015, p. 33, tradução nossa).

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antropológica dos caminhos percorridos à maturação do indivíduo e ao progresso social, ilustrando a passagem da natureza à cultura, em “Psicologia das massas e análise do eu”

Freud discorre sobre “as consequências propriamente políticas do que tinha sido elaborado no livro de 1913” (SAFATLE, 2009, p. 63). Da visão antropológica à política, reverbera como ponto relevante que a compreensão da constituição do humano perpassa pela apreensão de sua história, não apenas a particular, mas também a social, e nesta aquilo que se revela na relação que estabelece enquanto “animal político”.

Para fazer esta, que é uma leitura psicossociológica da sociedade, Freud baseia-se amplamente em “Psychologie des Foules”, de Gustave LeBon e, mais adiante, debate com outros autores que escreveram sobre o assunto, como McDougall, Trotter e Tarde. Embora considere LeBon um autor carente de originalidade, por sua obra conter uma revisitação a clássicos, Freud chega a uma primeira conclusão importante a partir dele, mais tarde também explorada pelos autores da Teoria Crítica: “na massa o indivíduo é colocado sob condições que lhe permitem se livrar dos recalcamentos de suas noções de impulso inconscientes” (FREUD, 2017, p. 44). Depois, Freud apresenta alguns recursos que suprimem a personalidade consciente do indivíduo quando integra uma massa: o contágio, a sugestionabilidade e aregressão. A união desses elementos suspende as faculdades dos indivíduos, de modo que a massa se torna “tão intolerante quanto crédula na autoridade” (FREUD, 2017, p. 51). Um dos principais conceitos, que antecede os mencionados, é o deidentificação, sobre o qual valeria uma análise a parte.

O desencadear do processo de identificação implica tomar o outro como seu ideal, o que inicia na relação dos filhos para com os pais na infância, de modo que

“desempenha um papel na pré-história do complexo de Édipo” (FREUD, 2017, p. 98).

A suspeita de Freud é de que os indivíduos em massa se conectam segundo a natureza de uma das facetas da identificação, sendo o líder o elo de afeto nesse grupo.

Transfere-se para o contexto amplo o movimento de constituição do indivíduo em família, acarretando a reprodução social do perfil desenvolvido particularmente.

O Führer (líder), para Freud um representante de “baixa estatura”, carrega a inabilidade do grupo em lidar com os seus próprios sentimentos, advinda dessa constituição interna pessoal. A partir do processo de identificação, o estabelecimento de um líder mais ou menos autoritário perpassa pela compreensão do “eu ideal” e do “ideal do eu”. O primeiro se refere a um ideal de onipotência ou identificação, com

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personalidade transmissora de autoridade e orgulho, enquanto o segundo é um modelo a partir do qual o sujeito se conforma.

O líder despótico representa, assim, um “ideal do eu”. A pré-condição psíquica que embasa o “ideal do eu” é distinta da exigida na constituição do “eu ideal”, que permitiria a ascendência de uma liderança de caráter transparente e democrático. O formatar dessa figura imagética do líder despótico perpassa por um processo de sedução e criação de dependência para com seu subordinado, nos moldes do que Freud qualificou como um processo de hipnose que, exercido coletivamente, permite a submissão automática e, por conseguinte, a instauração do domínio autoritário. É justo o automatismo dessa relação que impede o indivíduo mediano, integrante da massa, a elaborar uma reflexão mais apurada sobre aquilo que ele está reproduzindo e que sociedade está edificando. Socialmente, torna-se mais fácil a capturado para a ascensão da liderança autoritária, em especial se atentarmos aos apelos do caráter da propaganda fascista (ADORNO, 2005).

Diante das características atribuídas por Freud à formação da horda, o líder despótico emerge como elemento inerente à constituição originária da organização social. Podemos afirmar que tais manifestações são aprimoradas a cada vez que se forma um sistema totalitário. O ódio é elemento integrante da identificação para com esse sistema, onde os indivíduos enxergam motivações para a formação de coesão grupal, que resulta em um pacto que redime o “pecado original”, descrito em “Totem e Tabu”. Assim, mesmo que os seguidores do líder possam almejar a autoridade, essa associação de sentimentos extremos, necessária à coesão grupal, tem como resultado a eleição e exaltação de um líder cujas características são as mais temerosamente autoritárias dentre o grupo todo.

Nesta investigação arguta do retorno aos sentimentos crus da horda primitiva, conclui-se que a massa tem forte vocação para a aceitação de afirmações categóricas, sem mediação contextual ou histórica. Em tempos de uma racionalidade moderna, podemos entender que esse comportamento, dentre outros fatores sociais, tende a aumentar qualitativamente também em proporção ao grau de deformação educacional do indivíduo, tanto básica, quanto funcional ou avançada. Lembrando da distinção mais tarde pautada por Adorno (2010), entreBildunge Ausbildung, é notável que em países de economia frágil, certamente a existência de uma consciência elevada passa bem mais

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ao largo da massa. Embora devamos contrapor que, tanto nos países de avantajado ranking econômico como nos de configuração oposta, não se elimina o fato das tendências educacionais serem firmemente controladas pelos grupos dominantes.

Se, global e unitariamente, o indivíduo pode estar mais sujeito à segunda distinção adorniana, para Freud, embasado em LeBon, há uma queda brusca do nível de racionalidade do indivíduo em meio à massa, havendo um inevitável retorno à horda primitiva. O fascínio exercido pelo líder, a conquista de “prestígio”, como demarca Freud, afeta diretamente as massas e as paralisa. Por conseguinte, o trabalho do líder fascista ou despótico é facilitado pois, sob hipnose coletiva regressiva, o grau de violência das massas está assegurado. O papel do Führer, tendo sido debatido nesses termos, é fato que faz com que Freud assegure ter avançado para além das percepções de LeBon, criticado por ter minimizado a importância do tema.

O domínio do líder despótico não é algo dado a partir de uma instância qualquer.

Segundo Safatle (2009), o que tornou esse trabalho de Freud original foi o fato de colocar no centro da análise duas instituições importantes para tal organização social: a Igreja e o Exército. Ele as refere como significativas manifestações de massa que congregam as problemáticas do humano. Ao serem assim destacadas, Freud chama a atenção ao fato de que representam a forma institucionalizada mais acabada que aglutina a força degeneradora do caráter. Freud (2017) vai adiante ao dizer que não se trata apenas de perceber em grupos desorganizados um potencial que permite a regressão do indivíduo à horda primitiva, mas de uma nova análise que situa a importância dos representantes legítimos de construção da ordem social enquanto veiculadores e constituidores do potencial regressivo.

Também segundo ele, a repressão sexual serve à união da massa, visto o impedimento da relação a dois dar lugar ao líder e, assim, ser a força motora da unidade em um grupo. Ou seja, os privilégios doFührer são formados graças à condenação do gozo individual, sendo ele – o líder – receptor de toda a energia libidinal em forma de seu contrário, o ódio, uma inversão lógica que se dá justo porque trata-se de uma energia não realizada harmonicamente, de modo positivo.

Diante disso, para estancar o ideario despótico, podemos concordar com o princípio “faça amor, não faça guerra”, alardeado mais tarde nas canções e militância de John Lennon por ocasião da guerra do Vietnã. Isso pois, o fato de pessoas aderirem a

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um sistema despótico de governo é, para Freud, um resultado de frustração em suas vidas pessoais e descompensação sexual.

Haveremos de concordar também na dificuldade de outra reação possível quando a vida particular circula no âmbito da infelicidade. Aliás, a felicidade também fora objeto de análise no texto de Freud (2010), quando reflete sobre como as pessoas não conseguem reagir a seus dramas pessoais, não raro porque essa reação foi bloqueada pelo sistema religioso em que acreditam, que lhes absorve a felicidade. Via religião, portanto, aprende-se a canalizar para o líder, consciente ou inconscientemente, a expressão erótica, que passa a ser transformada em obediência cega a princípios mal elucidados, que descambam ao exercício do perverso.

O governo do despótico é, assim, desenvolvido basilarmente por qualquer tipo de sistema fechado em crenças e que não assume contradições. Trata-se de uma sublimação motivada por um pensamento único e unívoco, que coloca no Führer a carga do pai da horda primitiva. Além disso, por meio da identificação, os indivíduos em massa unem-se para compor a força que tem uso destrutivo. Ao constituírem uma sensação de poder onipotente, eliminam a carga da culpa individual por ceder e amplificar os impulsos destrutivos, acelerando a corrosão do sistema social.

3. As contribuições de “Autorität und Familie” e outros escritos

A análise de Freud, um marco para uma nova abordagem psicológica dos problemas sociais, talvez tenha adquirido esse caráter graças ao arcabouço constituído pelos autores da Teoria Crítica. Nessa contribuição, é de destaque a elaboração intelectual de Horkheimer e das obras e autores interconexos dos anos 1920-1930.5 Analisando esses escritos, podemos afirmar que há uma relação entre autoridade e autoritarismo pressuposta na dialética da história humana. Entendemos que essa relação se revela pela compreensão que o conjunto de autores da Teoria Crítica expressa ao diagnosticar a realidade de seu momento histórico, de modo que pode ser entendida como uma constelação sócio-histórica em ‘movimento dialético’.

5Além de “Autoridade e família”, texto aqui central, também cabe lembrar dois outros textos essenciais à fundamentação teórica da Escola de Frankfurt: o discurso de Horkheimer ao tomar posse na direção do Instituto, “A presente situação da filosofia social e as tarefas de um Instituto de pesquisas sociais” (1999 [1931]) e o texto “Teoria tradicional e Teoria Crítica” (1980 [1937]).

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Nesta relação entre autoridade e autoritarismo, a formação de um sistema autoritário pode ser vista como a frustração da pretensão de autoridade. Havendo a falha da autoridade, o sistema social descamba ao autoritarismo como resposta possível, num movimento de autoconservação. Dito de outro maneira, há uma conjuntura em que, na leitura freudiana, a dicotomia entre o princípio do prazer (Eros) e o instinto de morte (Thanatos) governa o comportamento das massas.

Podemos dizer também que isso significa que a cada tempo histórico pertence um modo de exercício da autoridade. A esse modo, são determinantes condições sociais e econômicas que, aliadas a motivações psicológicas, facilitam para que se desenvolvam determinadas características do indivíduo e, por conseguinte, da sociedade como um todo. Os movimentos sociometabólicos inerentes a distintos tempos desenvolvem os princípios do autoritarismo como uma doença social difundida em distintas eras e em distintas regiões geográficas. Há uma amplificação disto, criando um eco social de grandes proporções, à medida que determinadas condições são privilegiadas pelas forças dominantes.

Por isso as considerações de Freud e dos autores da Teoria Crítica são de caráter atemporal. Ao dizer, por exemplo, que reunidos em massa, os indivíduos estão sob condições que os livram do recalcado, Freud fornece a matriz de comportamento humano arraigado no seu desenvolvimento primevo, quanto ao qual a dificuldade em se desfazer é algo explicado pela natureza humana. As massas, que suspendem as faculdades racionais do indivíduo, os revelam intolerantes em medida desproporcional ao seu comportamento isolado.

No texto filosófico de Horkheimer nos “Studien über Autorität und Familie”, ele defende que a menor partícula social, o indivíduo, é apresentado como a síntese da história humana, aglutinando na memória as suas sequelas e externando-as na forma do sofrimento em sua relação para com o outro, com os objetos materiais e o mundo que o cerca. O avanço às sociedades modernas, tal como as conhecemos hoje, não reduz a importância dessa manifestação primeva, apenas reconfigura seus atores e confere-lhes novos instrumentos de ação, sem alterar sua essência.

Na coletânea dos “Studien über Autorität und Familie”, onde situa-se o texto

“Autorität und Familie”, acreditava-se que a família é a instituição essencial que confere os moldes de estrutura de personalidade e ação aos indivíduos. Ao desvendar os

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traços fundamentais de caráter aprendidos na família, se encontraria, portanto, a chave para compreender a constituição do caráter fascista que envolvia a sociedade alemã.

Nesse caminho, que vai de um sujeito particular para a sociedade em geral, as descobertas de Freud tiveram papel fundamental para os desdobramentos dos achados dos autores da Teoria Crítica. Sem elas, o grupo não teria unido o tema da subjetividade psíquica ao materialismo de Marx.

Assim, aceitando a análise freudiana, Horkheimer (1936) interpreta que há uma luta do filho contra o pai para superá-lo, o que já está posto no complexo de Édipo. A mediocridade do Führer é atrativa para a massa, sendo justamente essa característica que suspende o ego individual privado (a luta do filho contra o pai), colocando em seu lugar uma outra identificação, de caráter regressivo. As massas se identificam com um indivíduo de estatura inferior com relação à do pai burguês, num sentido totalmente regressivo, substituído pela identificação com uma autoridade estranha, impessoal, o que se reflete no todo social como algo muito piorado.

Horkheimer (1936) não considera o pai apenas como uma instância repressora, mas como aquele que aponta para além disso e representa segurança para o filho.

Mesmo que não falte ao pai burguês o caráter autoritário, havendo na família problemas, a célula familiar permite o diálogo e certa audiência às diferenças individuais, enquanto na relação com o dirigente autoritário o indivíduo é sempre aniquilado, pois permanece sob o domínio desse líder das massas, não havendo nenhuma tendência simbólica ou real para a sua superação.

A família burguesa contém, portanto, aspectos positivos a serem observados. É um núcleo de resistência para que o indivíduo possa construir relações humanitárias e estabelecer identidade. Podemos considerar este um dos principais aspectos positivos da autoridade sob o olhar de Horkheimer (1936). Para ele, a autoridade exercida a partir de um ponto de referência próximo e sem exageros não constitui um mal. Antes uma referência. Acreditar na autoridade como elemento social mediador é um caminho na escuridão que pode ter sido adotado para preservar aquilo que ainda resta do potencial da família para dissolver o caráter autoritário.

Do lado positivo do conceito de autoridade também podem ocorrer exageros.

Enquanto um modelo a ser seguido, apresentando superioridade, força e experiência diante do mundo e da vida, o pai pode induzir a uma formação educativa um tanto

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perfeccionista, ou então submissa, em seus filhos. Qualquer um dos resultados pode conduzi-los a escolhas cuja potência de sucesso consideram superiores, no entanto, sem aperceberem-se das falhas (o que pode até mesmo ser voluntário). A família unicelular burguesa alemã, retrato desse comportamento, levou Horkheimer (1936) a perceber essa medida em que a relação familiar está dialeticamente sujeita às determinações sociais, inclusive ligadas ao caráter, como se pode ver nos escritos de Fromm (1974).

Em meio a tríade logicamente engendrada entre cultura, autoridade e família, no texto de Horkheimer (1936),o indivíduo sendo apresentado como a síntese da história humana, aglutina na memória as suas sequelas. Passa a externalizá-las na forma do sofrimento em sua relação com o outro, com os objetos materiais e com o mundo que o cerca. Flutuações a que os indivíduos da geração burguesa são submetidos, não raro os tornam alvos fáceis de sistemas autoritários.

Tendo essa tendência se alastrado às demais classes sociais, visto o seu espelhamento na burguesia, compreender o sucesso de um sistema despótico como o nazifascismo enquanto o produto do conservadorismo moderno passa a ser mais acessível. O grau de autoritarismo – ou uma força de autoridade supostamente positiva por parte do próprio pai – a que os filhos foram submetidos caseiramente, incide para o mundo, tornando o complexo social uma prisão psíquica constituída a partir de um passado repressor particular.

4. Persistência do autoritarismo

Dentre tantas teorias sobre o autoritarismo as elaborações da Teoria Crítica em conexão com a psicanálise possuem uma singular contribuição para o tema, especialmente por serem escritos oriundos de um dos períodos mais perversos da modernidade. A densidade dessas elaborações permitiu compreender sobre o investimento pulsional realizado pelo Estado autoritário, que passa a fixar seus parâmetros de ação, influenciando comportamentos com relação a estratos maiores da sociedade.

Partindo da microesfera para a macro, alcança desde a economia e a política até os padrões estéticos e culturais, atingindo fatalmente as esferas mais sensíveis que compõem a vida em sociedade e que estão sob o jugo do chamado interesse público.

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Para que tudo se alcance com êxito, dentre os mecanismos hoje utilizados, não se dispensa a coleta e tabulação de dados sobre a população alvo, a exemplo das plataformas virtuais preenchidas até mesmo voluntariamente, que facilitam o acesso às informações precisas para efetivar a dominação.

Trata-se de um contexto em que emergem figuras bizarras como a de um líder não nacionalista, uma personificação decaída e escancarada de interesses dominantes, cujo estereótipo mantém-se fortificado pela influência da hipnose via redes sociais.

Diante desta “atualização” da figura doFührer, os mesmos recursos utilizados à época da ascensão do nazismo para o domínio das massas continuam a ser empregados. Mas as falsas novidades são propagadas com tecnologia mais amplificadora.

No entanto, o líder despótico dos tempos atuais desfaz-se de alguns dos artifícios apontados pelos teóricos dos anos 1920, como o de criar um sentimento nacional nas massas. Mas continua a reforçar laços tradicionais, como os estabelecidos via religiosidade e família, exaltados via propagação de expressões de apelo à fé e divulgação do modelo ideal de união amorosa. Ambos são apelos que reforçam estereótipos de uma sociedade conservadora, autoritária, de padrão único para que o indivíduo se estabeleça em sociedade. Eles permanecerão na tônica do dia enquanto nos desdobramentos do dilema indivíduo-sociedade não houver um trato mais apurado das questões psicanalíticas. Não apenas delas, pois a sociedade precisa caminhar, sobretudo, em prol da resolução da desigualdade social, que fundamenta uma série de pobrezas que alimentam a ascensão de governos despóticos.

Parece que há um esforço para que o comandante tirano deseje possuir a liberdade. Desdenhando-a a todo momento, através do jogo da sedução perversa, que é artifício dos espertos para capturar à armadilha da destruição, ele conseguiu aprisionar a grande massa. Nesse contexto, há uma servidão, senão individual, é resultante do clamor de uma massa que imitou a horda primitiva. Trata-se de um voluntariado artificialmente produzido diante da falta de consciência crítica, da falência do Estado e das políticas públicas, todos devorados pelas mãos das práticas econômicas neoliberais, aqui propulsionada pela mão visível do latifúndio improdutivo.

Historicamente, a ignorância sempre facilitou métodos de coerção e submissão.

Independente se sob a forma física ou econômica, a coerção é artifício empregado pelos opressores para constranger a luta pela sobrevivência. Decorre que juntar recursos para

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a sobrevivência objetiva, em suas necessidades mais básicas, relega o indivíduo à esfera da natureza, retirando-o da complexidade subjetiva que a vida poderia assumir. Lá no nível da subjetividade, o ser humano teria condições de estabelecer as conexões sociais mais elevadas de pertencimento, de acolhimento e de reconhecimento pleno, contribuindo verdadeiramente para o desenvolvimento da humanidade em todo o seu potencial. No entanto, cultivar a liberdade em todo o seu valor é premissa que encontra entraves em qualquer empreendimento conjunto, no que Freud também concordou.

5. Considerações Finais

O que é preciso fazer para extirpar o protótipo autoritário da configuração atual?

Talvez conhecer e controlar os poderes que nos consomem internamente e convergem a esta cega submissão a um outro que nada nos dá, apenas nos retira o que é mais valioso.

O exercício do autoconhecimento é muito válido como algo que precisa ser feito individualmente, para o qual o tempo de agora é muito propício para que cada qual reflita sobre seu papel social. Condições materiais não deveriam ser empecilho, mas pré-requisito inerente ao mundo civilizado. Para prosperarmos a um quadro favorável, uma política de governo e de Estado que assegure condições tranquilas é o mínimo adequado. Mas não é esta a realidade corrente na realidade brasileira, diante da retomada do crescimento dos índices de pobreza.

O espírito do tempo atual ainda carrega o dilema da autoconservação e sacrifício, apontado pelos frankfurtianos (ADORNO e HORKHEIMER, 1997), e bem retrata essa motivação intrínseca do ser humano em, por um lado, esquivar-se das obrigações e, do outro, ser vítima dessa postura. Espelhando o comportamento de Ulisses, é uma dialética que tem morada nas reações daquele sem-máscara negacionista, que pensa estar disfarçado em meio à massa, a exemplo doninguém. E assim segue com sucesso a atualização do dilema de Ulisses em tempos pandêmicos.

A semiformação que funda essa conduta, que carrega uma consciência degenerada, é atrelada aos mais perturbados padrões da evolução social a que atingimos na humanidade. Freud, que nos esclareceu sobre a escravidão em nossa própria casa, pode elucidar esse impulso de morte que aceita a liderança de quem nada comanda, cujo status resulta de arranjos possíveis apenas diante de uma massa desinformada das

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feridas da sua própria história, como indivíduo e como nação. O colapso eminente se dá, primordialmente, por falta de autoconhecimento e, depois, de resolução. E, assim, da mesma forma que na construção do processo de produção vigente, em que renunciamos ao direito à liberdade, também o fizemos com relação ao direito à vida. Submetemo-nos por uma decisão movida pelo medo de lutar, por um lado, e pelo domínio da hipnose de um líder despótico, do outro.

Ao autoritarismo aplicado à configuração social atual, carece, portanto, compreender que os apelos de autocuidado são, sobretudo, apelos culturais. O momento para que provemos alguma inserção nas qualidades mais nobres da humanidade pode ser apresentado. É claro que o bárbaro continuará depositando indiferença à vida, pois ter a própria sobrevivência ameaçada não parece ser o suficiente para humanizá-lo. O desafio posto em prol da preservação da vida também continuará carecendo de habilidades espirituais e materiais para ser cumprido.

Estamos em meio a uma luta cujo pano de fundo é o da própria existência calcada em inúmeras dicotomias: ser ou ter, servidão ou liberdade, democracia ou ditadura, passividade ou agressividade, enfim, entre Eros e Thanatos. Longe de qualquer dogmatismo, são dualidades que nos afligem e apontam “o conteúdo essencial da vida, e por isso o desenvolvimento cultural pode ser caracterizado sucintamente como a luta da espécie humana pela vida” (FREUD, 2010, p. 142). Esta é uma luta que se trava em termos bastante singulares no Brasil atual, não esquecendo, porém, do quanto na história já foram reeditadas versões autoritárias tão peculiares quanto nossas jabuticabeiras e recheadas de mitos tão falaciosos quanto o fundador.

Referências

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Referências

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