Ricardo Lopes Cardoso e Natan Szuster
Na edição de março de 2008 foi publicado o artigo “A mais ‘nova Lei das S/A’”, comentando sobre as alterações na Lei 6.404/76 (Lei das Sociedades por Ações, LSA) promovidas pela Lei 11.638/07.
Naquela ocasião, ainda pairavam dúvidas sobre as práticas contá- beis que as empresas brasileiras deveriam adotar no próprio ano de 2008 (data-base 31 de dezembro) e havia uma grande incógnita sobre o efeito tributário das alterações efetuadas.
Passado um ano, o marco regu- latório da contabilidade financeira das companhias abertas brasilei- ras sofreu novas alterações com a edição da Medida Provisória 449, de 03/12/2008 (MP 449) e a emissão de 13 pronunciamentos e uma Orientação pelo Comitê de Pronunciamentos Contábeis (CPC).
Ressalte-se que a MP 449 alterou diversos dispositivos da LSA (al- guns haviam sido alterados no ano
anterior pela Lei 11.638), bem como da legislação do Imposto de Renda (IR). Os padrões emitidos pelo CPC, alinhados aos IFRS (International Financial Reporting Standards), já foram homologados pela Comissão de Valores Mobiliários (CVM) e pelo Conselho Federal de Contabilidade (CFC), o que não deixa dúvidas quanto à exigibilidade de sua adoção pelas empresas brasileiras (companhias abertas e limitadas de grande porte).
Entendimento
Um fato a destacar foi o grande entrosamento ocorrido entre as entidades reguladoras contábeis brasileiras e a Receita Federal do Brasil, pois foi encontrada no final uma solução muito equilibrada que acarretou na desejada segurança para as empresas e para todos os agentes do mercado. Se o acordo não tivesse sido obtido, muitas situações complexas poderiam ter ocorrido.
Vejamos as principais alterações realizadas em 2008 na regulação da contabilidade societária brasileira. Ini- cialmente, apresentamos as alterações promovidas pela MP 449:
Pôs fim na confusão entre contabilidade societária e contabilidade tributária, mediante a criação do Regime Tributário de Transição (RTT), ao qual as empresas con- tribuintes do IR pelo lucro real ou pelo lucro presumido
A mais nova
“nova Lei das S/A”
poderão optar caso queiram gozar da neutralidade tributária na convergência aos padrões internacionais.
Entende-se por neutralidade tributária o fato de as recei- tas e despesas reconhecidas na contabilidade societária por conta da adoção das práticas contábeis “inovadas”
pela Lei 11.638/07 e pela própria MP 449/08, seguindo de forma plena os IFRS, não serem tributáveis nem de- dutíveis da base de cálculo do IR. Tal regime é chamado de transitório (segundo “T” de RTT) pelo fato de a MP 449/08 ter “estabelecido a obrigação” de o Congresso Nacional alterar definitivamente a Legislação Tributária em sintonia ao “princípio da neutralidade tributária” até 2010. Mas, como gatilho, estabelece que o RTT vigorará até que a legislação tributária seja alterada nesse sen- tido, mesmo que o referido prazo não seja observado pelo Congresso. Com isso, espera-se, a dissociação efe- tiva entre a Contabilidade Societária (contabilidade) e a Contabilidade Tributária (fiscalidade) — algo previsto, em 1976, pelo então ministro Mário Henrique Simonsen, na redação original do artigo 177 da LSA, mas distorcido pela Secretaria da Receita Federal (atual Receita Federal do Brasil). Ressalte-se que o RTT não se restringe ao IR, também abrange as contribuições CSLL, PIS/PASEP e COFINS.
Aumenta e aprimora o conteúdo informacional mínimo que devem conter as Notas Explicativas elaboradas pe- las empresas brasileiras. Tal aprimoramento é alinhado à evidenciação prevista nos IFRS e objetiva que as em- presas utilizem este instrumento como um parâmetro para informar efetivamente o que deve ser de conhe- cimento dos usuários externos, para que estes tenham conhecimento da empresa, suas transações e situação financeira e econômica.
Altera a estrutura do Balanço Patrimonial, mediante a criação do grupo Ativo Não-Circulante, que é composto pelo Realizável a Longo Prazo, Investimentos, Imobiliza- do e Intangível. Além disso, alterou o nome do Exigível a Longo Prazo para Passivo Não-Circulante (PNC) e eli- minou o Resultado de Exercícios Futuros (seu conteúdo deve ser reconhecido como Receitas Diferidas, no PNC).
Na prática, esta alteração reveste de legalidade a Deli- beração 488/05 da CVM e dirimi dúvidas que surgiram
com a edição da Lei 11.638/07, pois elimina o somatório Ativo Permanente e, principalmente, extingue a conta Diferido, afinal as Despesas Pré-Operacionais e dos Gastos com Pesquisas não são mais capitalizadas (conforme o Pronunciamento CPC 04, sobre Ativos Intangíveis, homologado pela Deliberação CVM 553/08).
O novo posicionamento seguin- do as normas internacionais determina que tais despesas de organização devem ser reconhe- cidas na apuração do resultado no período no qual foram incor- ridas; por outro lado, os gastos com desenvolvimento de novas tecnologias e projetos quando ativados, devem ser reconhecidos no Intangível.
Altera a estrutura da Demonstra- ção do Resultado do Exercício
As despesas de
organização
devem ser
reconhecidas
na apuração do
resultado no
período no qual
foram incorridas
(DRE), substituindo o Resultado Não-Operacional (Receitas Não- Operacionais menos Despesas Não-Operacionais) por “Outras Receitas e Outras Despesas”. Isso é importante, pois pelo “princí- pio” da essência sobre a forma, não é relevante saber se tal re- sultado é “Não-Operacional”, isto é, decorrente de atividades não elencadas no estatuto da com- panhia (ou contrato social) como atividade-fim. O relevante é dis- criminar o resultado em recorren- te e eventual. Nesse ponto, surge um problema: no texto original da Lei 6.404/76 (ainda em vigor) já consta como componente do Resultado Operacional o item
“Outras Despesas Operacionais”
(art. 187, inciso III), e agora, a MP 449 cria o item “Outras Receitas e Outras Despesas Operacionais”
fora do Resultado Operacional. Sabendo que o espírito de MP 449 é adequar os padrões contábeis nacionais aos internacionais, deveria seguir a estrutura simplificada de DRE prevista no parágrafo 103 do IAS 01.
Ampliou os poderes regulatórios da CVM no que tange à matéria contábil, entretanto, tal qual previsto na Lei 11.638, vincula tais poderes à adoção dos padrões in- ternacionais de contabilidade no Brasil.
Alterou o conceito de coligada (para fins da adoção do método da equivalência patrimonial). Agora a identi- ficação de entidade coligada não está mais atrelada à participação societária detida pela investidora (que antes era de no mínimo 10% do capital social da inves- tida); e passa a ser determinado pelo fato de a inves- tidora exercer “influência significativa” na investida.
Entendendo-se por influência significativa o poder de a investidora “participar nas decisões das políticas financeira ou operacional da investida, sem controlá-la”.
Independentemente da identificação de tais poderes, pressupõem-se sua existência quando a participação societária da investidora for de pelo menos 20% do capital votante da investida.
Em seguida, comentamos a vinculação entre os pronunciamentos emitidos, em 2008, pelo CPC e a nova redação da LSA:
CPC “00” — Pronunciamento Conceitual Básico, Estru- tura Conceitual: consiste em condição sine qua non à adoção dos IFRS no Brasil, posto que antes de se adotar regras específicas de contabilização, é necessário har- monizar os conceitos fundamentais e as características qualitativas da informação contábil. Ressalte-se que o referido Pronunciamento Conceitual Básico tem por base o Conceptual Framework emitido, em 2001, pelo International Accounting Standards Board (IASB), que está sendo revisado e até 2011 deverá ser alterado, numa iniciativa conjunta entre o IASB e o Financial Accounting Standards Board dos Estados Unidos. Portanto, deve ser verificado este Pronunciamento como de caráter transitório.
CPC 02 — Efeitos das mudanças nas taxas de câmbio e conversão de demonstrações contábeis: através desse
Foi disciplinado
o processo de
contabilização
das transações
operacionais
e financeiras
efetuadas em
moeda estrangeira
pronunciamento tem-se a base para que seja efetuada a conversão de demonstrações contábeis para outra moeda. Sua aplicação abrange as empresas brasileiras que possuem investidas no exterior na conversão de moeda estrangeira para real e também as empresas brasileiras que traduzem suas Demonstrações Contábeis elaboradas originalmente em reais para outra moeda, normalmente o dólar. É também disciplinado o processo de contabilização das transações operacionais e finan- ceiras efetuadas em moeda estrangeira.
CPC 03 — Demonstração dos Fluxos de Caixa (DFC) e CPC 09-Demonstração do Valor Adicionado (DVA):
tratam de demonstrações que se tornaram obriga- tórias por força da Lei 11.638 e que, mesmo já sendo amplamente elaboradas e divulgadas pelas empresas brasileiras, principalmente pelas S/A certificadas pela Bovespa como adotantes de práticas diferenciadas de governança corporativa, ainda não havia sido regula- mentada no Brasil. Ressalte-se que no vácuo legal, as empresas brasileiras adotavam as estruturas sugeridas pelo Manual de Contabilidade das Sociedades por Ações (Iudícibus, Martins e Gelbcke), desde a 5ª edição (de 1999).
CPC 04 — Ativo Intangível: sua edição foi fundamental para viabilizar a contabilização de ativos no grupo ho- mônimo do ativo “criado” pela Lei 11.638, e foi, ainda, determinante para a eliminação do grupo Diferido (o que foi feito pela MP 449). Ressalte-se que o conteúdo deste pronunciamento não compreende todos os ativos intangíveis, posto que não aborda o tratamento do ágio decorrente da expectativa de benefícios futuros, o que será tratado no CPC-15, Combinação de Negócios, cuja audiência pública se encerrou em 04/12/2008, mas que devido à complexidade somente será emitido em 2009.
CPC 05 — Divulgação sobre Partes Relacionadas: esta- belece os parâmetros informativos necessários para que uma empresa apresente divulgações de suas operações efetuadas com partes relacionadas. O objetivo é propi- ciar ao usuário o entendimento de situações que podem ocorrer ou não, com preços e condições diferenciadas às praticadas usualmente, devido a um relacionamen-
to específico com entidades ou pessoas que possuem vinculação com a empresa.
CPC 06 — Operações de Arren- damento Mercantil : também é fundamental à adoção dos padrões estabelecidos pela Lei 11.638, muito embora a Resolu- ção CFC 921/01 já estabelecesse o reconhecimento contábil dos contratos de arrendamento mer- cantil de forma semelhante à prevista neste pronunciamento (as diferenças entre essas duas normas são superficiais), o que efetivamente viabiliza a “correta contabilização” do arrendamento financeiro (conforme estabele- cem essas normas) é o RTT criado pela MP 449. Afinal, um grande incentivo para a contratação de
Ampliaram-se os poderes da CVM à matéria contábil, mas
foram vinculados à
adoção dos padrões
internacionais de
contabilidade no
Brasil
arrendamento financeiro era a imediata e integral dedutibilida- de fiscal das contraprestações de- vidas (ou pagas) mês a mês. Sem o RTT tal dedutibilidade estava ameaçada. (Este Pronunciamento deverá ser aplicado apenas pelas empresas arrendatárias.)
CPC 07 — Subvenção e Assistên- cia Governamentais: uma vez que a Lei 11.638 restringiu o uso da conta Reservas de Capital e, segundo os IFRS, as subvenções e assistências governamentais são reconhecidas como receita (por competência), a edição deste pronunciamento é fundamental à adoção dos IFRS no Brasil. Regis- tre-se que sem o RTT as empresas brasileiras poderiam criar barrei- ras à adequada contabilização dessas transações, afinal, o reco- nhecimento de incentivos fiscais
como receita poderia suscitar na RFB a possibilidade de tributação — o que seria um contra-senso tributar-se um incentivo fiscal.
CPC 08 — Custos de Transação e Prêmios na Emissão de Títulos e Valores Mobiliários: no momento que uma empresa capta recursos no mercado financeiro através da emissão de ações, como IPO, ou de títulos de dívidas, incorre em custos de transação, normalmente significa- tivos, que são incorridos de forma totalmente direta a esta operação. Este pronunciamento determina o pro- cedimento para uma apropriação racional dos encargos vinculados a um financiamento ao longo do período de acordo com o método de custo amortizado. Os custos de transação incorridos na emissão de ações devem ser destacados em conta redutora do patrimônio líquido.
(Esta norma veio preencher uma lacuna que existia e que ocasionou a republicação de Demonstrações Con- tábeis de uma importante empresa brasileira na sua operação de abertura de capital.)
CPC 10 — Pagamento Baseado em Ações: as opções de ações (stock options) vinham sendo contabilizadas de forma idiossincrática pelas empresas brasileiras, ade- mais, a Lei 11.638 estabeleceu que fossem reconhecidas no resultado do exercício, mesmo quando não fossem reconhecidas como despesa (a alteração promovida pela MP 449 não modificou a essência do texto da Lei 11.638 neste ponto), consequentemente, este pronun- ciamento regulamenta a nova redação da LSA e dirimi dúvidas decorrentes das receintes alterações.
CPC 11 — Contratos de Seguro: este procedimento determina as normas contábeis e de evidenciação para as seguradoras, abrangendo os contratos de seguro e resseguro. Este pronunciamento também aborda instrumentos financeiros emitidos pelas seguradoras com característica de participação discricionária que é um direito contratual de receber, como complemento de benefícios garantidos, benefícios adicionais. Este Pronunciamento terá uma segunda etapa para abranger novas operações previstas no IFRS 4.
CPC 12 — Ajuste a Valor Presente: a necessidade de se ajustar a valor presente os direitos e as obrigações reconhecidos no ANC e no PNC, conforme previsto na
Os gastos com
desenvolvimento
de novas
tecnologias e
projetos quando
ativados, devem
ser reconhecidos
no intangível
nova redação da LSA, fez suscitar dúvidas com relação ao critério de ajuste, principalmente quanto à taxa de desconto e à contrapartida do ajuste. Tais dúvidas são dirimidas neste pronunciamento. Ressalte-se que este é o primeiro pronunciamento emitido pelo CPC que se autodeclara baseado em princípios (principles oriented, em confronto com os antigos padrões que eram rules oriented).
CPC 13 — Adoção Inicial da Lei 11.638/07 e da Medida Provisória 449/08: em função das diversas alterações efetuadas na LSA, e como o próprio nome deste pro- nunciamento sugere, sua edição ainda em 2008 era fun- damental. A rigor, trata-se de uma versão simplificada do IFRS 01 e focada nas principais divergências entre as “antigas” práticas contábeis brasileiras e os padrões internacionais, mormente, relacionados às matérias alteradas pela Lei 11.638 e/ou MP 449. Na edição desse Pronunciamento ocorreu também um bom-senso dos normatizadores que demonstraram uma grande preo- cupação com os custos de aplicação dos procedimentos, o que é previsto no parágrafo 44 do CPC “00”, como a limitação do “equilíbrio entre custo e benefício” da informação contábil.
CPC 14 — Instrumentos Financeiros: Reconhecimento, Mensuração e Evidenciação: a alteração realizada pela Lei 11.638 na contabilização de instrumentos financei- ros, estabelecendo-se a marcação a mercado para títu- los destinados à negociação imediata ou disponíveis para venda, suscitou dúvidas com relação ao critério de mensuração do valor justo e ao reconhecimento da contrapartida do ajuste. Tais dúvidas são dirimidas neste pronunciamento. Ressalte-se que este pronun- ciamento alcança títulos representativos de hedge, entretanto, é uma versão simplificada dos IAS 39 e IAS 32, tal qual a Circular 3.068/01 do Banco Central do Brasil, observada pelas instituições financeiras desde 31/12/2002.
Registre-se que o único pronunciamento do CPC não coberto pela presente revisão é o CPC 01, de 2007, que trata da Redução ao Valor Recuperável de Ativos (im- pairment), cujo conteúdo foi perfeitamente recepcionado pela nova redação da LSA.
Em função de todas essas alte- rações na contabilidade societária brasileira, aproveitamos para rei- terar as últimas palavras do artigo publicado no ano passado: “Logo, os cálculos de dividendos, remune- ração de executivos e indicadores de desempenho (para fins gerenciais e covenant) [serão] afetados”, o que demanda a busca imediata e genera- lizada por capacitação no tema.
Outro aspecto relevante é que os leitores devem ser cientes que novas mudanças serão adotadas, conforme o cronograma estabelecido pelo CPC, para que se tenha uma plena adequa- ção às normas internacionais. Além dessas, há também as mudanças pre- vistas na agenda conjunta FASB/IASB na busca da redução de divergências entre o U.S. GAAP e os IFRS.
Respectivamente professor da EBAPE/FGV e professor da UFRJ