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Filho és, Pai serás: da clareza monossémica da uniformidade, à conciliação com a ambivalência

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Academic year: 2021

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Filho és, Pai serás:

da clareza monossémica da uniformidade, à conciliação com a ambivalência

Luís Santos (FCHS - Universidade Fernando Pessoa e IEP – Universidade do Minho – Portugal) Conceição Nogueira (IEP – Universidade do Minho – Portugal)

Paternidade; Modernidade; Pós-Modernidade

ST 21 - Masculinidades e paternidade: leituras feministas e de género

Nos meados do século XX, os convencionais papéis masculinos e femininos, altamente hierarquizados e baseados numa forte diferenciação sexual no interior da família, pareciam solidificados, sendo que a sua problematização não suscitou particular interesse para os cientistas sociais (Leandro, 2001).

Aceite como a mais antiga das instituições sociais humanas, a família apresenta-se com um carácter universal, embora com variações de sociedade para sociedade e de geração em geração, quanto às suas formas de organização e funcionamento. De acordo com Saraceno & Naldini (2003), a família revela-se como um dos lugares privilegiados de construção social da realidade, mediante a construção social dos acontecimentos e relações aparentemente mais naturais. Sendo da ordem do social, a existência da família não é imune a um conjunto de regras que emanam da sociedade, não sendo por isso correcto encerrá-la numa única definição conceptual e muito menos estática (Leandro, 1991).

Nesse sentido, falar hoje de família, ou, de forma mais correcta, de famílias, exige um alargamento das ideias científicas, fruto de uma época onde a diversidade assume maior relevo na cena pública, traduzindo-se naquilo que, a este propósito, se convencionou designar de novas formas de família (Alarcão & Relvas, 2002). Tal facto, remete-nos a todos para a necessidade de pensarmos em contextos familiares que mais não serão do que variantes ao ciclo vital que nos habituámos a estudar (Alarcão & Relvas, 2002).

O aumento da esperança média de vida, a percentagem crescente de pessoas mais velhas e as inovações biológicas no domínio da procriação são apenas alguns exemplos que conferem a esta instituição um rejuvenescimento, responsável por uma maior complexidade face ao seu conhecimento (Segalen, 1999).

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perspectiva construcionista social e discursiva (Brandth & Kvande, 1998; Marsiglio, 1995), ancorada numa leitura pós-moderna.

Assumindo o nosso referencial epistemológico pós-moderno, esforçar-nos-emos agora, por um lado, por desafiar as construções discursivas da modernidade, que associam a paternidade à masculinidade hegemónica (Connell, 1995) e, por outro, em dar visibilidade a diversos constrangimentos ocasionados por um tipo de coerção, exercido pela modernidade, que se alimenta da ânsia de dominação e do medo do espaço aberto (Bauman, 2007), silenciando, assim, uma pluralidade de perspectivas e vivências por parte dos homens e restringindo, por fim, o alargamento do espaço do possível (Talburt & Steinberg, 2007).

Comecemos pelas construções discursivas. Ser pai ou ser mãe implica, desde logo, falarmos de realidades distintas, da mesma forma que ser homem ou mulher, gay ou lésbica. Tal como refere Leal (2004), para lá do que as leis consagram e de eventuais direitos e deveres conferidos a ambos os progenitores, não podemos ignorar o incontornável peso da tradição – característica da modernidade – e a tácita circunstância de os filhos serem das mães, facto que exige considerarmos diferentes categorizações que reconfiguram os humanos em termos de sexo e identidade sexual, mas também de classe, idade ou raça (Levy, 2004). Esta classificação binária, assente numa peremptória motivação de tornar o mundo governável (Bauman, 2007), domesticando os estranhos, ou seja, todos os que escapam aos cânones da dita normalidade, visa, na sua génese, o controlo de qualquer forma de ambiguidade, favorável ao questionamento da tão desejada ordem construída pela modernidade.

A análise crítica desta classificação binária convida-nos, porém, a questionar a [aparente] clareza monossémica de uma uniformidade que se traduz num poder simbólico (Bourdieu, 1989) que actua enquanto elemento de organização das práticas sociais e que encoraja, legitima e favorece importantes desigualdades estruturantes (Neves, 2007), tornando, a partir daqui, possível identificar diversos constrangimentos alimentados por aquilo que Bourdieu (1999) designa por violência simbólica.

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“Ser homem é, para além da óbvia antinomia com a mulher, assumir um papel (…) uma função que devemos cumprir. O papel é o de uma sociedade profundamente marcada pela ideia de Pai-Família, na qual cresci e da qual, obviamente, não me posso libertar. (…) Senti, e sinto, ainda, a necessidade de cumprir esses papéis perante a minha família ou amigos, tais como casar, ter filhos e demonstrar uma apetência sexual pelo sexo oposto”.

O excerto que acabámos de ler reporta-se a um homem de 29 anos, solteiro, com formação académica superior, sem filhos e com uma orientação sexual não normativa. Convidado a reflectir sobre a imposição destes papéis que, conforme nos referiu, sente necessidade de cumprir, eis que nos refere o seguinte: “Estes papéis são absolutamente necessários, na minha opinião. Não diria

que me façam sentir confortável, mas aceito-os”.

É a partir desta percepção incorporada da ordem das coisas, estruturada em conformidade com as próprias estruturas de dominação imposta aos indivíduos – no caso concreto, aos homens – que podemos afirmar, corroborando Bourdieu (1999), que os actos de conhecimento dos indivíduos são, por vezes, inequívocos actos de reconhecimento e de submissão. A este propósito, Bourdieu (1999, p.1) acrescenta: “E também vi sempre na dominação masculina, e na maneira como é

imposta e sofrida, o exemplo por excelência dessa submissão paradoxal, efeito daquilo que chamo a violência simbólica, violência branda, insensível, invisível para as suas próprias vítimas, que se exerce no essencial pelas vias puramente simbólicas da comunicação e do conhecimento ou, mais precisamente, pelo desconhecimento, do reconhecimento ou, no limite, do sentimento”.

Esta linha de pensamento, que acreditamos alheia à ideia de uma sexualidade enquanto modo de satisfação de uma diversidade de motivações, revela uma desvalorização da influência da cultura e da sociedade, bem como dos significados e das relações de poder entre as pessoas (Quartilho, 2003). É neste contexto que a associação entre procriação – logo, heterossexualidade – e normalidade se torna muito clara (Vaz, 2003). É neste contexto, também, que ficam igualmente claras diversas formas de exclusão, assiduamente reforçadas por um discurso pretensamente científico, alimentado por um, ainda infelizmente vasto, conjunto de profissionais das áreas das ciências médicas e humanas e sociais (Moita, 2001).

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34 anos, solteiro, com formação académica superior e que se apresentou no nosso estudo como sendo homossexual:

“Para mim, ser Pai faz parte da minha identidade e é para sempre, irreversivelmente. É muito importante, fundamental. O desejo de ser Pai surgiu na adolescência, desde que fui tio e me impliquei bastante. [Devido ao facto de ser homossexual] soube que não seria fácil, mas não desisti

da ideia. Sempre soube que seria uma questão de tempo até concretizar as coisas. Partilhei com o meu ex-companheiro, mas ele sempre achou que não seria o momento. Sabia que teríamos sempre que o fazer via adopção singular. Quando vi que as circunstâncias eram as ideais, dei o passo, e partilhei com a minha família e amigos. Todos acharam uma óptima ideia, à excepção dos meus pais que ficaram inicialmente mais apreensivos, com um certo receio de que seria uma grande responsabilidade, mas depois rapidamente acederam”.

A análise do discurso da passagem anterior coloca em evidência, em nosso entender, a impossibilidade do projecto da modernidade e uma necessidade de conciliação com a ambivalência (Bauman, 2007), favorável à aceitação de um compromisso com a diversidade característica da existência humana. São vozes insubmissas como esta que nos permitem quebrar um silêncio que, nas palavras de Miller (1979 cit. in Morris, 2007), nega a existência da diferença, apoiando a [falsa] ideia de que a cultura dominante é a única cultura, no caso, o homem que: “filho [heterossexual] é, pai será”.

Face ao exposto, consideramos que analisar a paternidade como um direito, um dever ou, simplesmente, uma possibilidade significa adoptar posicionamentos teóricos, epistemológicos e, fundamentalmente, políticos, distintos. Inclinamo-nos para aceitar o discurso moderno, sempre em busca da ordem, como um discurso que afirma a paternidade como um direito, direito esse que, desde cedo, se torna, também, um dever a ser cumprido por todos os homens que, mantendo-se na pele de desacreditáveis (Goffman, 1963), vão adoptando posições de alinhamento (Goffman, 1963) ou resistência (Bourdieu, 1999).

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legitimidade? É neste contexto que nos parece interessante convocar a teoria queer, “(…) pois esta

pede-nos que reinventemos o que somos e o que sabemos de forma criativa” (Moris, 2007, p.30), salvaguardando, porém, como nos lembra Popper (1994), o reconhecimento de que não vale a pena procurarmos certezas.

Referências Bibliográficas

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