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Vou fazer minha obrigação -

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Academic year: 2021

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João Ferreira Dias

Colóquio O que é religião em África?

Identidade, Pertença e Prática Ritual.

Universidade Lusófona de

Humanidades e Tecnologias

“Vou fazer minha

obrigação” -

A religião como tradição, dever e fazer

em contexto Yorùbá e no

Candomblé de matriz Jeje-Nagô

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INTRODUÇÃO

Apesar de Kishimoto (1961) ter afirmado que cada contexto gera uma definição própria de religião, a experiência da alteridade tem sido feita, longue durée, sob categorias de análise de tradição escolar europeia. A história da alteridade, fundacional das ciências sociais, não esteve livre de choques culturais entre um background judaico-cristão e as tradições autóctones que foram, em boa medida, demonizadas, ao sabor das missões cristãs, como bem demonstram os relatos de missionários, comerciantes e viajantes ao continente africano. Missionários como Baudin (1884), Bouche (1885), Borghero (1872) et al. são exemplos de produtores de preconceitos e cujos relatos não foram devidamente filtrados por inúmeros cientistas sociais que os reproduziram e fizeram destes prova em matéria de ‘estudo-de-caso’.

Questões como a dicotomia entre ‘sagrado’ e ‘profano’ (Eliade 1958) ou a oposição conceptual entre ‘religião' e ‘magia’ (de Vries 1962; Claude Rivière 1997) imperaram durante o séc. XX e souberam permanecer no novo milénio. A procura do universal alimentou o pensamento científico ao longo do último século, quer pela interpretação do religioso como humanização das leis naturais Lévi-Strauss (1966) que casa perfeitamente como a teoria dos human-like models de Guthrie et. al. (1980).

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‘extra-humano’ numa perspetiva de dever e fazer, i. e., de “obrigação” e de experiência pelo ato/rito.

SOBREVOO CONTEXTUAL

Os Yorùbá enquanto identidade coletiva são o resultado de um longo processo histórico iniciado com a expansão do império de Ọ̀yọ́ e sob o poder mítico-originário de Ilé-Ifẹ̀ a partir do séc. XV, cuja reafloração acontece no séc. XVIII, depois da ocupação Nupe, a quem os povos de Ọ̀yọ́ apelidam de Tapa. O processo histórico da formação da identidade Yorùbá, enquanto tal, ocorre, todavia, quando o império constava como nostalgia e os Yorùbá eram, em bom rigor, uma ‘comunidade imaginada’ nos termos de Anderson (1991). A partir de 1830 o império de Ọ̀yọ́ é dissolvido num ataque jihadista levado a cabo pelo Califado de Sókótó e pelo Emirado de Ilorin (Peel 2000).

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En passant os Yorùbá são um compósito de identidades locais que

ocupam grande parte da Nigéria e em menor proporção o Togo e a República do Benim (o ex-Dahomé) e que estão divididos em subgrupos étnicos como: Ẹgbá, Ẹgbádo, Ọ̀yọ́, Ijéṣà, Ìjẹ̀bú, Ifẹ̀, Ondo, Ilọrìn, Ibàdàn, Kétu, entre outros.1

O Candomblé, por seu turno, é o resultado de um processo histórico menos diluído no tempo, constituindo-se como uma criação dinâmica fruto da simultânea resistência e ressignificação identitária dos escravos oriundos do Golfo da Guiné, diante de uma realidade na qual eram escravos e atentavam cultural e religiosamente contra o status quo católico português que cimentava a sociedade baiana dos séc. XVIII e XIX. No meio deste ‘trauma cultural’2 os negros escravos e libertos

souberam codificar as suas tradições através do sincretismo religioso, num engenhoso mecanismo de auto-preservação, ao mesmo que iam definindo o corpus doutrinário do que viria a ser o Candomblé baiano. Apesar da base Yorùbá e Fon do Candomblé baiano, os elementos angolano-congoleses contribuíram para este compósito religioso, num processo de interpenetração entre povos proto-Yorùbá, Ewe-Fon e Angolano-Congoleses, fazendo emergir uma identidade própria afro-brasileira, ao mesmo tempo que se instituíam as ‘nações de Candomblé’ numa ressignificação das nações políticas africanas dos espaços de origem (Ferreira Dias 2012).

RELIGIÃO: UM PROBLEMA CONCEPTUAL EM CONTEXTO YORÙBÁ

                                                                                                               

1 Sobre as problemáticas identitárias Yorùbá e a sua construção nativa e em diáspora cuidámos de tratar

no artigo “Dos ‘Nàgó’ da Bahia aos ‘Pọ́rtúgérè’ de Lisboa: um olhar sobre identidade e religião em Diáspora”, a ser publicado pelo Caderno de Estudos Africanos do CEA-ISCTE no nº25, (janeiro-junho) de 2013.

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Como referido anteriormente, a categoria de ‘religião' comporta uma herança conceptual judaico-cristã cujos pressupostos dificilmente podem ser plasmados em contextos que não esses, como Horton (1993) já anunciava. Um tendencial traçar de fronteiras conceptual entre ‘religião’ e ‘magia’ que encontramos em Hammond (1970) mas também posteriormente em Claude Rivière (1997), ou entre ‘religião’ e ‘ritual’ com Christine Bell (1992) é ainda um decalque ocidental resultado de um estruturalismo que inclui ou exclui. Todavia, o modelo de pensamento africano expressa-se melhor pela inclusão do que pela exclusão. É pois essencial retomar Versnel (1991), de alguma forma negligenciado em favor de um conforto conceptual, quando este recordava que tanto ‘magia’ quanto ‘religião' não existem, como quem relembra que as ciências sociais produziram as amarras conceptuais das quais não se conseguem libertar para observar o mundo. O uso das categorias locais é amplamente mais produtivo do que mapear as atividades humanas como ‘laicas’ ou ‘religiosas’, ‘sagradas’ ou ‘profanas’, ‘mágicas’ ou ‘religiosas’, e por aí adiante.

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Ògún e se constitui como atividade de Òkó, Òrìṣà-agricultor. Ademais, grande parte das celebrações no espaço Yorùbá ocorrem por ocasião das colheitas e do plantio, porque somente a gestão dos Òrìṣà permite que a terra seja fértil e alimente os que prestam honrarias, veja por exemplo as comemorações para Òrìṣà Ògiyán em Èjìgbò.

Tais exemplos ilustram a necessidade de pensar para além das fronteiras clássicas de definição de ‘religião'; o operatório em contexto judaicodescendente não é necessariamente operatório em contextos onde a semântica teocêntrica se aplica. É precisamente por essa razão que optámos por rejeitar as categorias de ‘monoteísmo’, ‘politeísmo’ e ‘panteão’ para o contexto Yorùbá em trabalho anterior (Ferreira Dias 2011e), em favor de uma lógica de pensamento mais dinâmica que ilustre a pluridimensionalidade com que o espaço de análise, i.e. o objeto de estudo, se constrói. Se é facto que no Sistema de Ifá parece existir uma lógica hierárquica que aponta para um panteão, não é menos verdade que o mesmo somente existe em função de uma narrativa em torno do ser-supremo Olódùmarè. No referente aos Òrìṣà o sistema é difuso. Ademais, e mais importante ainda, o sistema de Ifá é somente um dos vários segmentos do espaço Yorùbá. O culto dos Ancestrais, os cultos locais das divindades, os cultos no compound (agbo-ilé) e as relações individuais que se tecem entre os sujeitos e os Òrìṣà, são outras formas de relação com o ‘extra-humano’, que se entrecruzam e vão compondo novas significações: o culto individual de Ọ̀ṣun em Òṣogbo comporta um imaginário da divindade diferente do culto a Ọ̀ṣun em função de Ṣàngó ou das Ìyámi, por exemplo.

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alternativa, nomeadamente enfocando os sentidos de “dever/obrigação” e “fazer”.

Robin Horton (1993) compreende as ‘religiões’ africanas em termos de atitudes de explicação, previsão e controlo e comunhão. Diante do nosso ‘estudo-de-caso’, compreende-se que a proposta de Horton encontra terreno fértil. Primeiro porque os sistemas divinatórios oferecem um quadro explicativo para os acontecimentos passados e presentes e oferecem previsões para o futuro; segundo, porque tomado o conhecimento das causas de determinados acontecimentos, geralmente consequência da ação de uma entidade ‘extra-humana’ a exigir pagamento de uma dívida ou prestação de honrarias, aí a ação ritual cumpre a função de controlar os elementos extra-humanos; terceiro, comunhão porque a ‘religião’ em contexto Yorùbá contém um sentido civil, i. e., é produtora de socialização e sentimento comunitário, razão pela qual Jacob Olupona (2001) fala em “civil religion in Òṣogbo”.

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as divindades a agir em favor dos agentes religiosos. Por fim, a eficácia pressupõe que o rito levado a cabo surta efeito, pois como refere Horton (1993: 29) o imaginário africano – e isto é particularmente verificável no caso Yorùbá – aceita mal que uma divindade não aja em consonância com o prescrito no ritual apenas porque decidiu não o fazer.

Importa ainda frisar que a presente teoria não deve ser tomada em partes, i. e., não se deve adentrar por uma observação das categorias propostas de modo dissociado. É, pelo contrário, na interpenetração dos conceitos propostos que melhor se entende uma lógica de pensamento que mais inclui do que exclui. A eficácia é o resultado de uma boa comunicação e de uma eficiente manipulação.

Dever e fazer, e a ‘tradição’ como “religião” propriamente

dita

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numa atitude de ‘conhecimento’, muito resultantes das manifestações externas das entidades: efeitos naturais como chuva, vento, tempestade, e efeitos físicos como doença, melhora ou incorporação. Portanto, a ‘crença’ é substituída pelo ‘conhecimento’. É, pois, a partir da noção de ‘conhecimento’ como sinónimo de existência, que se adentra pela noção de “dever” ou “obrigação”. Uma vez que as entidades ‘extra-humanas’ existem, cabe aos indivíduos o dever de lhes prestar culto. No caso dos ancestrais, Bàbá-Éégún, a sua existência é o âmago da identidade familiar. Eles existem porque são os antepassados e a sua negligência poderá trazer consequências sérias como doença, morte ou esterilidade das mulheres. É portanto o “dever” (ou “obrigação”) que impera como paradigma de relação. As técnicas rituais de relacionamento com os ancestrais são a mesma face às divindades-Òrìṣà: sacrifício animal, oferendas alimentares, pedidos e agradecimentos, celebrações públicas; pois tanto os ancestrais quanto as divindades comem, bebem, e dançam através dos seus iniciados em fenómenos de transe/possessão.

O facto dos ‘seres extra-humanos’ se imporem no quotidiano dos indivíduos faz com que os mesmos revelem a sua eficácia. Os acontecimentos derivados da sua ação são pois prova da sua existência e geralmente entendidos como manifestações de poder ou de exigência de oferenda/sacrifício. São, pois, os ritos para aplacar, reverenciar, agradecer ou requerer determinado acontecimento que servem de contrato entre as entidades ‘extra-humanas’ e os indivíduos. No entanto, como tais ritos possuem um caráter coercivo, em boa parte dos casos, não se pode assumir uma identidade de simples devoção, sendo antes o cumprimento de um dever (a atitude de “acreditar” é uma componente que vem subjacente ao “conhecer”).

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simultâneo dever para com as entidades ‘extra-humanas’ e uma manipulação das mesmas. Tal facto significa que a ‘religião’ ou melhor o modelo de relação com o extra-humano assumido em contexto Yorùbá comporta marcadamente uma ideia de fazer. Sacrificar um animal, por exemplo, é relacionar-se com a entidade ‘extra-humana’, fazer o sacrifício é fazer relação.

Como vimos com Tooker, entre os Akha a noção de “costume” ou “tradição” surge como conceito para o que designamos por “religião”. Pese embora a formulação de ‘invenção da tradição’ (Hobsbawm & Ranger 1992) deva sempre ser levada em consideração, particularmente como modelo teórico, é imperativo tomar as categorias autóctones. Entre os Yorùbá com os quais temos interagido o termo “religião” é raras vezes utilizado nos seus discursos. No lugar deste “tradição” surge como o termo mais recorrente. Práticas mais ou menos fixadas que fazem do modelo de relação com o ‘extra-humano’ algo dinâmico, funcional e técnico (embora possuam também uma vasta mitologia que fundamenta as práticas rituais), e que vêm sendo transmitidas de geração em geração num continuum idealizado (vide Hobsbawm & Ranger 1992), conferindo identidade e memória coletiva. Esta noção de “tradição” enquanto sinónimo de “religião" e como cimento social, é particularmente interessante. Ao passo que a “religião” pressupõe uma atitude de “crença”, a “tradição” surge como um dado adquirido, uma realidade evidente e vivencial. A “religião” expressa como “tradição” é a própria marca cultural e identitária. A memória Yorùbá ritualizada é pois o ativo cultural fabricado ainda com o Renascimento Lagosiano (Matory 2005).3

                                                                                                               

3 Apesar dos Yorùbá terem uma perceção de memória histórica construída em função de uma

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... e o Candomblé

O Candomblé nasce, como vimos, do trânsito esclavagista entre o Golfo do Benim e a Bahia de Todos os Santos, com enfoque aos séc. XVIII e XIX, período do Ciclo do Benim (LÉPINE 2001). Apesar de se ter mesclado com o catolicismo popular de tradição portuguesa, em função do contexto sociocultural em que os escravos são inseridos, o Candomblé preserva parte da estrutura de pensamento sobre o ‘extra-humano’ trazido nos navios negreiros, independentemente de sabermos que o pensamento (proto-)Yorùbá de então era já fruto de um longo processo história de ressignificação contínua em função dos diálogos inter-religiosos com o Islão e o Cristianismo; ou como diz Peel (2000) “at

a time when “Yoruba traditional religion” was less precisely that than part of the communal furniture” (p.11).

Pese então toda esta reconfiguração identitária afro-brasileira que acompanha a reconfiguração africana, a verdade é que os modelos de relação com o ‘extra-humano’ permanecem válidos. Uma ideia de “tradição” marca profundamente a identidade histórica do Candomblé. Reconhecendo que o Candomblé é uma “religião” de resistência e preservação, mesmo quando se trata de uma ideia nova em função de um modelo antigo (Ferreira Dias 2011d), uma noção partilhada de “tradição” surge entre os afro-brasileiros.4 Não apenas está presente uma percepção

de “tradição” como um continuum referencial face a África e ao momento fundacional do Candomblé mas também uma noção de “tradição” como modelo litúrgico e estético, pese a tensão entre “tradição” e “modernidade” cada vez mais marcante (Lima s.d.). Enquanto entre os Yorùbá a noção de “tradição” se mescla com a linhagem e a história

                                                                                                               

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local, no Candomblé “tradição” reporta a uma ideia de África e um ethos enquanto modelo de ser (ética) e fazer Candomblé.

Referimo-nos, anteriormente, à “religião” (recorde-se que o termo é usado com cautela e numa perspetiva funcional do texto, uma vez que propomos a noção de “modelo de relação com o extra-humano”) Yorùbá como marcada pelas noções de “tradição”, “dever” e “fazer”. Postulamos também que tais conceitos podem servir de medidor conceptual do Candomblé, como já tratado para “tradição”.

O Candomblé é uma “religião” iniciática e profundamente ritualizada. Não obstante a presença da mitologia são os ritos que marcam a identidade do culto. A dança e os cantos como marca litúrgica (AMARAL e SILVA 1992b) estão bem patente. Cantar é agir ritualmente, dançar é expressar ritualisticamente a mitologia e fazer do corpo o templo. Isto significa que o Candomblé é também uma “religião” que se faz. Faz-se Candomblé através das iniciações, dos sacrifícios e oferendas rituais de louvação, agradecimento ou pedido, e as celebrações públicas, chamadas de xirê (do Yorùbá sìré, designando alegria, brincar, celebrar).

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