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45º Encontro Anual da ANPOCS

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Academic year: 2022

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45º Encontro Anual da ANPOCS

19 a 27 de outubro de 2021

GT 42 – Teorias do Autoritarismo

O fascismo italiano como ideologia de guerra:

Nacionalismo, Arditismo e Futurismo

Luciana Aliaga Universidade Federal da Paraíba Sabrina Areco Universidade Estadual do Maranhão

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Introdução

O nacionalismo, o futurismo e o arditismo eram ideologias difundidas na Europa no período anterior à Primeira Guerra Mundial (1914-1918). Porém, na Itália, houve uma combinação particular entre essas ideologias, a experiência nacional da guerra e a crise do pós guerra, desembocando na valorização da violência e do voluntarismo de massa como instrumentos políticos. Tal confluência ideológica imprimiu uma fisionomia específica aos movimentos italianos de extrema direita, servindo para a mobilização dos primeiros fasci di combatimento, o que não ocorreu do mesmo modo em outros países europeus.

O objetivo do presente artigo, assim, consiste em discutir como essas ideologias foram articuladas com a experiência da guerra e mobilizadas pelo fascismo italiano. Importante notar que existe certo consenso acerca da ausência de ideologias originais produzidas pelo fascismo, ou pode-se dizer, falta de um substrato teórico robusto e ossatura cultural expressiva (cf.

D’ORSI, 2010), fazendo com que o movimento dos fasci se parecesse mais com uma “colagem de diversas ideias políticas e filosóficas, um alveário de contradições” (ECO, 2020, p. 32). Não obstante, é importante notar que na Itália o fascismo articulou e deu corpo, de maneira original em relação aos demais países no período entreguerras, à diferentes ideologias e expressões culturais e estéticas que estavam difundidas e desarticuladas entre si na Europa das primeiras décadas do séc. XX.

Chamamos a atenção nesse sentido para o fato de que, a despeito da heterogeneidade e fragilidade filosófica de seu ideário, existia um centro articulador capaz de moldar e conectar variadas expressões culturais, políticas e estéticas, permitindo que formassem um só corpo no fascismo. Em solo italiano, esse agregado de ideias díspares encontrou na experiência da guerra (tanto no conflito, quanto no pós-guerra) um campo de atração que permitiu sua reordenação e junção, fundamental para o impulsionamento do movimento fascista em seus primeiros anos.

Partindo da perspectiva nomeada de história das ideologias, a pesquisa que fundamenta o presente artigo foi orientada por duas linhas gerais. A primeira linha considera que os agentes políticos atuam a partir das ideologias disponíveis e, ao fazê-lo, também induzem momentâneas ou duradouras mudanças nas mesmas. A segunda abordagem oferece relevo às ideologias em suas diversas formas de manifestação, não limitadas às elaborações de textos ou obras consagradas (POCOCK, 2013). Assim, ao tratar do nacionalismo, do arditismo e do futurismo

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como ideologias disponíveis que, ao se combinarem e se reestruturarem, tornaram-se componentes da ideologia fascista, será possível abordar seus usos historicamente situados nas elaborações da extrema direita italiana, o que implica em destacar também a dimensão transnacional do autoritarismo do começo do século XX.

1. Nacionalismo

A ideia de nacionalismo está ligada ao movimento de criação dos Estados nacionais na Europa. Sua origem remonta ao século XVIII e à Revolução francesa e, nessa vertente, está vinculada ao liberalismo, à democracia e ao republicanismo e, ainda, aos movimentos populares e, mais tarde, socialistas e operários. Neste cenário, a França foi um centro de desenvolvimento das ideologias nacionalistas. No século XIX, no entanto, a expressão

“nacionalismo” foi escassamente mobilizada nos debates e textos políticos franceses para, na década final deste mesmo século, ser retomada por M. Barrès em uma publicação de 1892.

Houve, contudo, um deslocamento importante nesses dois usos da expressão: no primeiro momento, tratava-se de articular nação e nacionalismo como um projeto social e político que deslocava o princípio da autoridade do soberano para o povo francês. Mais tarde, na formulação de Barrès, nacionalismo aproxima-se de uma definição mais próxima daquela que tinha espaço no debate alemão e que se ligava à ideia de que nação era algo não a ser criado e sim preservado, posto que seria a realização do espírito nacional marcado por características étnicas e culturais compartilhadas pelo povo. Portanto, no final do século XIX, na definição de Barrès, “o nacionalismo é a aceitação de um determinismo” e não produto da “vontade geral”, como argumentaram os republicanos do século XVIII. Assim, no final do século XIX e começo do século XX, na França em particular, o nacionalismo fixou-se como ideologia conservadora (RÉMOND, 1992; WINOCK, 2014) .

Como ideologia, portanto, o nacionalismo impõe aos sujeitos e movimentos que a mobilizam a tarefa difícil de se diferenciar da ideia de nacional e de se distinguir dos fenômenos históricos concretos a partir dos quais a ideia foi retomada. É preciso considerar por essa razão que sua definição não é fixa, dependendo de elementos macroestruturais, isto é, aqueles relacionados à modernização e desenvolvimento das economias capitalistas (GELLNER, 2006;

HOBSBAWN, 1990), mas também de processos contingentes como as tradições locais e as lutas políticas nas quais o nacionalismo foi empenhado (BRUBAKER, 1996). Daí deriva sua ambivalência, que pode ser demonstrada pelo fato de que o termo foi mobilizado tanto por povos que aspiravam a criação de Estados soberanos e a libertação do jugo colonial, assim

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como por movimentos de direita e extrema-direita, associados a perspectivas imperialistas. Há, portanto, nacionalismos e não meramente nacionalismo. Não obstante, é preciso considerar que o traço mais geral do fenômeno consiste no fato de o nacionalismo ser uma ideologia de matriz europeia e que se vincula à modernidade e ao processo de homogeneidade interna, obtida pela construção de uma identidade nacional (cf. GELLNER, 2006; HOBSBAWN, 1990). Porém, para Gellner (2006), o nacionalismo foi um instrumento utilizado pelas sociedades industriais para comunicação e homogeneização, não havendo qualquer relação com a teoria e a retórica dos ideólogos do século XVIII e nem a I Guerra seria um evento central para se compreender o nacionalismo.

A abordagem sobre a qual acenamos acima, que considera o nacionalismo em suas diferentes expressões e usos por grupos políticos distintos, porém, nos encaminha para uma interpretação divergente de Gellner (2006) em alguns aspectos. Em primeiro lugar, o papel da ideologia deve ser considerado em cada espaço nacional e, no caso da Itália e da França, os intelectuais foram relevantes. Também há uma relação bem demonstrada pela literatura, tanto sobre a Itália quanto sobre a França, que sublinha o liame entre o fortalecimento do nacionalismo e a Primeira Guerra Mundial (D’ORSI, 2010; RÉMOND, 1992; WINOCK, 2014).

É possível afirmar, portanto, que historicamente e de forma ampla, isto é, como fenômeno europeu e com consequências mundiais, o processo de concentração de capitais favoreceu a formação de impérios capitalistas, cuja concorrência e disputas para o controle das colônias notadamente contribuíram com o estouro do conflito mundial (cf. FRESU, 2017). Da mesma forma, no período entreguerras, movimentos anti-imperialistas e de libertação colonial, principalmente após a Revolução Russa de 1917, tiveram como reação diferentes nacionalismos em toda a Europa.

A questão que também se colocou a Gellner foi: porque houve adesão de diferentes estratos sociais ao nacionalismo (HOBSBAWM, 1990)? E, ainda, porque sua vertente de direita e extrema-direita avançou em países como a Alemanha e a Itália, enquanto nos anos de 1920-1930 deixou de ser um movimento de massa na França? Na virada do século XIX e XX, França, Itália, Áustria e Alemanha, especialmente entre as classes médias baixas, existiram significativos movimentos nacionalistas de direita e extrema-direita, já marcados pela xenofobia e antissemitismo e, posteriormente, pelo racismo, tendo no nazismo alemão a manifestação mais articulada de nacionalismo e raça (cf. TUCCARI, 2010, p. 343). Pode-se

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questionar ainda, se no início do séc. XX já se percebia claramente que o nacionalismo estabelecera sólidos liames com o racismo e que se espalhara pela Europa (cf. HOBSBAWN, 1990, p. 129-133), porque foi apenas na Alemanha que se viu surgir o nazismo?

Dando um passo além da análise de Gellner, vários estudos têm demonstrado como a oposição ao internacionalismo e aos movimentos socialistas e comunistas consiste em uma chave interpretativa importante para responder a tais questões. Brustein e Berntson (1999) exploraram a ideia de que a configuração dos movimentos socialistas e comunistas de cada país, isto é, a força da “ameaça vermelha”, ajudam a entender o caso da Alemanha e da Itália.

Portanto, a atuação dos ideólogos ou intelectuais e a mobilização da ideologia nacionalista por parte dos grupos políticos detêm relevância ao menos para os casos da Itália e da França, como casos paradigmáticos, mas opostos.

Na França, em particular, dois eventos são importantes para a compreensão do pensamento nacionalista e a orientação de direita que a caracterizou no século XX. O primeiro foi o boulangismo (1886-1889). Movimento de crítica ao regime parlamentar e à classe política, foi agitado por grupos políticos de diferentes orientações em defesa a um tipo de republicanismo plebiscitário apoiado no personalismo do General Georges Boulanger.

Gradualmente, as bandeiras do boulangismo - revisão constitucional, antiparlamentarismo e grandeza da pátria - foram assimiladas pela direita. O segundo foi o Affaire Dreyfus (1894 a 1906), conjunto de eventos iniciados com a condenação por espionagem do capitão Dreyfus, judeu, acusado de fornecer informações para a Alemanha. O caso foi emblemático porque enquanto se evidenciava a injustiça da acusação, antissemitas utilizaram os acontecimentos para fortalecer e difundir o ódio aos judeus. O caso ganhou maior repercussão com o artigo de E. Zola, J'accuse, publicado nas páginas do jornal L'Aurore em 13 de janeiro de 1898, que era na ocasião já bastante celebrado por sua literatura.

O debate foi, assim, um marco na mobilização de intelectuais, que passaram por um forte processo de engajamento: por um lado, republicanos, socialistas e grupos de orientação mais progressista assumiram a posição pró-Dreyfus, enquanto a extrema-direita assimilou o discurso antissemita. O discurso da direita e extrema-direita articulava, a partir do Affaire Dreyfus, a ideia da existência de um inimigo interno - os judeus - tratados como usurpadores e também vistos como parte de uma elite banqueira internacional e amalgamou-se com a oposição às classes políticas presente no debate nacional, assim como com a noção de povo e pertencimento que tinha como referenciais o catolicismo e a origem étnica.

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Esse passou a ser o conjunto de ideias que identificava a direita francesa, seus partidos e movimentos. Deve-se destacar que a mobilização de intelectuais, a circulação de revistas e panfletos, a realização de encontros e comícios, isto é, o contexto político e intelectual agitado, reorganizou as direitas pré-existentes fazendo com que passasse a existir movimentos ruidosos e de rua, como as ligas, radicais em suas manifestações anti-parlamentares - que distinguia essa nova direita dos grupos que a antecederam. O ambiente intelectual era, contraditoriamente, infiltrado pelo desprezo pela palavra e pela dúvida de sua eficacidade em um mundo marcado pela valorização da força: “a poesia de Gabriele d'Annunzio, infiltrações nietzschianas, romances de Kipling compõem uma vasta epopeia da ação, um romance viril cujo nacionalismo é um capítulo e que exalta os valores da força, das virtudes ativas” (WINOCK, 2014, p. 190).

E, apesar da elaboração teórica do nacionalismo proposta por M. Barrés e C. Maurras e que se apoiaram sobretudo na valorização do Antigo Regime, portanto, na atribuição à Igreja e à monarquia a função de estabilizar os conflitos e instabilidade trazidos pela República - e que figurou com a mais sofisticada formulação nacionalista do período - na França o nacionalismo também era composto por grupos que propunham o “sobressalto da energia contra o verbalismo, revolta do temperamento contra a razão” (WINOCK, 2014, p. 190).

Na primeira década do século XX, portanto, o nacionalismo francês viveu um período de desenvolvimento teórico e obteve forte adesão popular, sendo mesmo considerado um movimento de massa. Nesse período, radicais como Barrés e Maurras da Action française, antigos monarquistas orleanistas ou bonapartistas e republicanos conservadores - ou seja, novas e velhas organizações e movimento de direita e extrema-direita - passaram a ser todos nacionalistas de alguma maneira posto que essa ideologia sofreu um desenvolvimento e

“exerce uma sedução tão forte que se impõe seu tom, seu estilo, seus métodos, às outras direitas, mesmo àquelas mais antigas” (WINOCK, 2014, p. 198).

A partir de 1901, contudo, partidos e movimentos de esquerda organizaram-se: primeiro os radicais-socialistas e, em 1905, a SFIO (Section française de l'Internationale ouvrière) unificou pela primeira vez os socialistas. No início da Primeira Guerra (1914), o nacionalismo foi o fundamento da Union sacrée (1914-1918), arranjo político conduzido por Raymond Poincaré no qual o partidos de esquerda e também sindicatos, ou seja, a SFIO e CGT (Confédération Générale du Travail) - comprometeram-se em um pacto republicano e democrático (WINOCK, 2014; RÉMOND, 1992) - o que aconteceu em outros países da Europa.

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Depois do apogeu da primeira década, no entanto, o nacionalismo foi perdendo gradualmente espaço no debate francês, em especial depois da vitória na guerra. Resistiu, no entanto, o forte sentimento antigermânico e que levou à ocupação do Ruhr (1923) no governo de Raymond Poincaré. Com a eleição do Quartel des gauches (1924), a intransigência com a Alemanha por parte do Estado foi deixada de lado, da mesma forma que o nacionalismo.

Depois da crise de 1929, contudo, essa ideologia ganhou força em países como Japão, Alemanha e Itália, permanecendo limitada no terreno francês. Com a recuperação do território da Alsace-Lorraine, não havia reivindicações territoriais a fazer e, como argumentou Winock (2014, p. 223), “os vencedores são sempre pacíficos”. O deslocamento para a esquerda, assim, indicava a derrota, ao menos temporária, do nacionalismo de direita gestado na transição do século XIX para o século XX no país.

Assim, embora o conjunto dos nacionalismos surgidos cinquenta anos antes de 1914 tivessem em comum “a rejeição dos novos movimentos socialistas proletários”, especialmente em função de seu internacionalismo (HOBSBAWM, 1990, p. 146), na França em particular, a Union Sacrée (1914-1918) teve êxito em agrupar a direita e a esquerda, ou seja, os socialistas e os sindicatos, monarquistas e republicanos conservadores, sob a ideia de defesa nacional. As vitórias legislativas do Cartel des gauches a partir de 1921, por sua vez, são uma expressão eleitoral da fragilidade do nacionalismo como forma política na sociedade francesa. A vitória na guerra, como acenado, também teve um papel central na crise do nacionalismo no país.

A situação foi bastante diversa na Itália. O nacionalismo encontrou expressão na frustração de amplos setores das classes médias, desvalorizados pela crise econômica, humilhados politicamente por não participar dos espólios de guerra e assustados pela pressão dos grupos subalternos no primeiro pós-guerra (cf. ECO, 2020; FRESU, 2017). Os primeiros Fasci di combatimento foram organizados em 1919 sob a liderança de B. Mussolini e compostos majoritariamente por membros da pequena burguesia urbana, oficiais da reserva, jovens atraídos pelo “mito dos arditi de guerra” e pelo nacionalismo intervencionista, além de empresários da grande indústria e proprietários agrários (cf. FRESU, 2017; D’ORSI, 2010) que, após o fim da guerra passaram a intensificar suas críticas aos governos liberais, aos estrangeiros e aos socialistas.

Desse modo, apontava-se os responsáveis pela crise e ao mesmo tempo criava-se uma nova identidade para a nação baseada na força e na virilidade, fazendo ressurgir o orgulho nacional. Sob o fascismo os interesses supremos da nação seriam superiores aos interesses

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pessoais, de grupos e de classes, e, se fosse necessário, dever-se-ia “sacrificar uma geração inteira no interesse das gerações futuras”, opondo “ao critério de classe socialista da repartição, o critério nacionalista do aumento da produção”1. Para colocar os interesses da nação acima dos interesses particulares, portanto, era preciso enfrentar os inimigos, especialmente os socialistas (cf. MARIÁTEGUI, 2010).

Por essa razão, como observa Eco (2020, p. 51), a obsessão da conspiração contra os inimigos da nação, que eram aqueles de pensamento ou comportamento diverso, estava na raiz da psicologia do fascismo. Assim, o fascismo operava como um exército civil-voluntário, sustentado por associações agrárias e industriais. Seus militantes eram armados frequentemente com a ajuda de comandos militares territoriais, apoiados diretamente ou indiretamente nas hierarquias militares, mas como um corpo paralelo, cuja referência militar advinha dos arditi da Primeira Guerra (cf. D’ORSI, 2010).

2. O Arditismo

Originalmente o termo arditismo não se referia a uma ideologia, mas sim a uma estratégia militar desenvolvida no contexto da Primeira Guerra e utilizada pelas potências europeias em conflito. A estratégia consistia na criação de uma tropa militar de elite ou de assalto e representava a manifestação mais moderna das infantarias, cuja novidade residia na criação de tropas especiais e melhor armadas, modificando a prática de fornecer igual armamento à maior parte dos soldados. Tal mudança estava ligada às inovações tecnológicas dos armamentos, como a utilização de tanques, por exemplo. Formadas por soldados voluntários, que deveriam ter menos de 25 anos, a criação das tropas de assalto ajudou a difundir a ideia do soldado-especialista que se popularizou na Segunda Guerra. Esse soldado era, de alguma forma, privilegiado na estrutura do Exército: sua alimentação era melhor e mais abundante e, sobretudo, eram tropas motorizadas (KITTLER, 2003).

A estratégia foi utilizada pelas forças prussianas e sob comando do General Erich von Falkenhayn em 1918. A formação das tropas de elite na Itália, por sua vez, foi oficializada em

1 Essas são palavras de Cayetano Polvorelli, um dos mais conhecidos membros do fascismo e correspondente político do Popolo d’Italia, jornal fundado por Mussolini para divulgação das ideias fascistas (cf. MARIÁTEGUI, 2010, p. 153).

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julho de 1917 sob comando do General Capello da Segunda Armada. Antes disso, a partir de 1915, ações militares foram feitas por tropas especiais, mas receberam nomes diversos (KITTLER, 2003; ROSSI, 2011). Em 1917, o termo arditismo foi empregado pela primeira vez oficialmente para referir-se a essa elite das forças armadas italianas. Tal como na Alemanha, eram tropas ofensivas e móveis. O termo arditi como adjetivo significa literalmente “audazes”, por isso utilizado para nomear os soldados voluntários agrupados em unidades de ataque que formavam a elite no campo de batalha; esse “novo exército de voluntários” formava “um véu entre o inimigo e a massa de recrutas” (GRAMSCI, 1975, p. 60).

O espírito unitário que se difundia entre os arditi contrapunha-se à origem social heterogênea das tropas - operários e pequeno-burgueses - e de formação cultural diversa, como estudantes e não-alfabetizados, futuristas, especialmente entre oficiais, interventista de esquerda (ROSSI, 2011). A dimensão ideológica particular do grupo, em um primeiro momento, pode ser definida com uma “retórica antissistema, hostilidade à burguesia não- interventista, aos socialistas pacifistas, ao clero [simpatizante dos austríacos que dominavam parte da Itália], ao parlamentarismo neutralista” (GENTILI, 2010, p. 27), o que permitiu conciliar homens com posições políticas distintas como anarquistas, republicanos e nacionalistas. A presença dos futuristas e de Filippo Tommaso Marinetti, fundador do movimento, entre os membros das tropas de elite, ajudou a construir uma ideologia que distinguia os arditi das demais partes do exército: “o mito da ação, da luta extrema, da guerra regenerativa, mesmo da morte” (GENTILI, 2010, p. 27) e a ideia de que a partir dos arditi se formariam os novos homens para a Itália regenerada pela guerra.

Marinetti, em seus diários de guerra, afirmou que havia no grupo uma “disciplina elástica” (BENEDETTI, 2012). De fato, relatos acerca de conflitos com os carabinieri e de indisciplina militar foram constantes e o comportamento violento também os caracterizava já neste período da Primeira Guerra. Na Batalha de Caporetto (1917), na qual se opuseram o Império Austro-húngaro e o Reino da Itália, os arditi foram responsabilizados por insubordinação, roubo e violência, “tendo realizado saques, depredações e crimes de ainda maior gravidade”, o que gerou o “fuzilamento de soldados como punição” (ROSSI, 2011, p.

35). Por parte do oficialato os arditi passaram a ser vistos como elementos desestabilizadores.

Como forma de restabelecer a hierarquia militar, primeiro tratou-se de excluir os soldados que poderiam ser exemplos de “delinquência, indisciplina e anarquia”, para posteriormente reduzir as tropas até que em 1919-1920 elas foram oficialmente extintas (ROSSI, 2011). Porém, se a

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violência dos arditi era exacerbada mesmo em tempos de guerra, como poderia se adequar à vida civil e aos tempos de paz? O governo do primeiro ministro Vittorio Emanuele Orlando orientou o retorno dos arditi assimilando-os em atividades públicas, o que não foi efetivo. Por outro lado, a volta dos soldados ocorreu em uma economia em crise, com desemprego e aumento no preço dos alimentos (ROSSI, 2011; GENTILI, 2010).

No dia primeiro de janeiro de 1919 foi fundada a Associazione fra gli arditi d’Italia, dirigida por Mario Carli, também responsável pelo jornal L’Ardito, ambos com sede em Milão.

A associação era formada por membros de diferentes disposições ideológicas, sendo disputada por três frações: nacionalistas, futuristas e fascistas. Mario Carli, em 1922, portanto às vésperas da Marcha sobre Roma, afirmou:

Os Arditi d'Italia foram os verdadeiros fundadores do fascismo. Mas do fascismo da primeira hora, que foi o vingador da guerra revolucionária e foi o movimento mais ousado de esquerda e que prometeu entre outras coisas a terra aos camponeses e a gestão das fábricas aos produtores (GENTILI, 2010, p. 28).

A direita e a extrema-direita eram formadas, naquele momento, principalmente pelos nacionalistas. Entre 1919 e 1920, no entanto, os centros industriais da Itália tornaram-se polos de luta operárias e greves, alimentadas pela carestia dos produtos alimentícios e politizadas pelas notícias que chegavam da revolução bolchevique na Rússia a partir de 1917. Esse período ficou conhecido como biennio rosso. A partir de 1919, portanto, com as grandes greves que foram organizadas por ferroviários e trabalhadores do serviço postal, os nacionalistas reagiram criando a Unione popolare antibolscevica. A iniciativa consistia, inicialmente, em encontrar estratégias para continuar as atividades destes setores. A relação entre os nacionalistas e os grupos industriais e empresariais tornou-se mais nítida, incluindo-se o financiamento para as atividades do grupo. A Unione antibolscevica fez de Roma “um tipo de laboratório político para a nascente direita subversiva”, quando o fascismo era minoritário e contraditório ideologicamente. Neste laboratório foi elaborado o “paradigma para a subsequente criação e desenvolvimento do esquadrismo dos camicie nere” (GENTILI, 2010, p. 34).

Em Roma, também em 1919, foi criada a milícia paramilitar Sempre pronti per la Patria e per il Re, outra organização que antecipou a larga utilização das esquadras pelos fascistas.

Dessa forma, a entrada em cena dos arditi num contexto de crise social em 1919 marcou “um verdadeiro salto de qualidade na luta política entre classes subalternas e classes hegemônicas,

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na medida em que introduziu o uso de meios modernos e técnicas ofensivas em uma chave contrarrevolucionária e antipopular” (GAROFALO, 2010).

Desde 1918, nas intervenções no jornal Popolo d’Italia, Mussolini saudava os arditi como os guerreiros italianos, que com suas bombas e adagas destruiriam todos que se colocassem no caminho da Grande Itália. Com o fim da Primeira Guerra, Mussolini buscou explorar politicamente o mal-estar generalizado causado pela crise, apropriando-se dos motivos ideológico-sentimentais do arditismo, inserido na Itália pelos ex-combatentes de guerra (cf.

FRESU, 2017, p. 57-58) e assimilando a defesa feita pelos nacionalistas de uma iniciativa autoritária contra a classe política. A partir de 1919, com o biennio rosso e a readequação da posição de Mussolini, era possível indicar o fascismo como a simbiose entre futuristas e arditi, sendo o arditismo o segmento que elaborou a coreografia militar e estética fascista, fornecendo elementos como o uniforme - a camicie nere - ritos e hinos (GENTILI, 2010).

A partir daí, o arditismo passou a ser usado no contexto italiano para definir uma atitude típica de alguns setores da sociedade, especialmente da pequena burguesia, e posteriormente incorporou-se à ideologia do fascismo. “Em pouco tempo um pacto provisório foi formado e o antissocialismo fora o cimento comum que uniu arditi, futurismo e fascismo” [e também o nacionalismo], que entre 1919 e 1920 se tornaram um “único bloco orgânico” (cf. GALASTRI, 2019, p. 280).

A ideologia dos arditi de guerra foi, de fato, fundamental para a organização dos fasci, que constituíam tropas de assalto cujos principais objetivos consistiam na destruição sistemática das organizações do movimento socialista camponês e operário e em menor medida também dos movimentos católicos. Eles defendiam uma guerra civil contra seus inimigos.

Importante observar, nesse sentido, que o que diferenciava o fascismo de qualquer outra forma de ditadura consistia no fato de que a prática da violência não estava apenas centrada no governo, mas dispersa na sociedade civil, por meio de um movimento de massas. Em função dessa guerra, em 1920 os fasci passaram a ser compostos pelos “camisas negras”, que eram grupos de jovens armados arregimentados e, não raramente, contratados, que formavam um verdadeiro exército (cf. D’ORSI, 2010).

Entre 1921 e 1922 os fasci conseguiram um salto de qualidade em termos organizativos e simbólicos, o que os habilitou a fundar um partido em novembro de 1921, que pode ser definido como um “partido-milícia” (cf. D’ORSI, 2010). Os fasci obedeciam a mesma “lógica”

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dos arditi durante a guerra, isto é, eram organizações privadas (voluntárias) armadas – combinadas com forte componente nacionalista. O arditismo forneceu, assim, o fundamento cultural e ideológico para levar as massas fascistas à ação. Em outros termos, o arditismo consistiu num dos mais importantes elementos de caráter moral, cultural e psicológico capazes de despertar a “paixão”, ou, pode-se dizer, capazes de mover as esquadras fascistas à ação.

Segundo Gramsci (1975), contudo, os exércitos que necessitavam dos arditi durante a Primeira Guerra não eram os mais poderosos, mas os mais fracos e desorganizados. Gramsci observou nesse sentido que o arditismo como função político-militar “ocorreu nos países politicamente não homogêneos e enfraquecidos, tendo como expressão um exército nacional pouco combativo e um estado-maior burocratizado e fossilizado na carreira” (GRAMSCI, 1975, p. 122). Para o autor, quando uma organização estatal está debilitada, com um exército enfraquecido, formam-se organizações armadas privadas (cf. GRAMSCI, 2007, 133,121).

Deste modo, os fasci indicavam um Estado em crise, cujas instituições ordinárias não eram mais capazes de manter a ordem, o que o obrigava, portanto, ao uso contínuo e regular da força e da violência.

Importante perceber que na Alemanha, como na Itália, a herança da guerra foi também apropriada pela direita. Porém, durante o conflito mundial, entre as tropas germânicas vigoraram mecanismos a partir de baixo para conter os membros das tropas de assalto, impedindo que se consolidasse uma cisão ideológica e política desse segmento com os demais membros. Na Itália, ao contrário, condições específicas tornaram possível que os arditi não apenas se politizassem e se diferenciassem das tropas regulares, como também encontrassem continuidade no fascismo. Deve-se ressaltar nesse sentido que tanto as iniciativas intelectuais e organizacionais feitas por segmentos do arditismo na Itália, como é o caso de Mario Cardi, fundador da associação e do jornal L’Ardito, como também o papel de Marinetti na configuração de uma ideologia vinculada ao arditismo e à experiência de guerra foram fundamentais para a mobilização dos primeiros fasci. Elementos conjunturais que, com as mobilizações e greves do biennio rosso, assim como a atuação política de Mussolini em articular os arditi e o partido fascista - então ainda construção - fizeram com que a existência das tropas de assalto acabasse por ter uma dimensão ideológica e política importante a ponto de ser insuficiente tratá-las apenas como um episódio passageiro da história militar da Itália.

3. O Futurismo

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O futurismo, nascido em Paris em 1909, sob direção do Italiano Filippo Tomaso Marinetti, rapidamente se difundiu pela Europa, alcançando em poucos meses também as Américas e a Ásia. Manifestos voltados para a pintura, escultura, música, teatro e arquitetura delinearam as propostas do futurismo entre 1909 e 1912. O seu primeiro foco foi Paris, não apenas pela formação de Marinetti integralmente em escolas francesas, mas principalmente porque ali estava o polo europeu dos novos desenvolvimentos artísticos, servindo perfeitamente como uma plataforma de lançamento do futurismo no cenário internacional (cf.

BERGHAUS, 2019; CESCUTTI, 2014). Com sua difusão, o futurismo, assim como o cubismo, o expressionismo e o dadaísmo, conseguiu afirmar-se como um movimento artístico de vanguarda europeu, não especificamente italiano ou francês (cf. SCHLESENER, 2015, MARIÁTEGUI, 2010, TROTSKY, 1980).

Muitos jornais e revistas da Europa e de outros continentes passaram a difundir as ideias e atividades futuristas, atraindo grande atenção de artistas e críticos. Nesse processo de recepção e difusão do futurismo pode-se identificar diferentes respostas internacionais. Entre elas se encontram aquelas positivas, principalmente em função das novas formas de descrever as conquistas técnicas e industriais, assim como a valorização do novo estilo de vida moderna.

Também ocorreram, no entanto, recepções de caráter crítico mais elevado, não porque os artistas desaprovassem as ideias futuristas, mas porque já existiam ideias semelhantes circulando naquele contexto específico que desejavam afirmar sua originalidade. Por último, em determinados contextos, Marinetti foi considerado um homem de negócios à caça de notoriedade, que buscava causar escândalos meramente para atrair publicidade para o seu movimento. Importante notar, contudo, que nem sempre essa recepção ocorreu de modo informado, isto é, a partir das traduções dos manifestos e, portanto, de modo coerente com as ideias do movimento. Muitas vezes as informações chegavam de modo bastante distorcido e vago (cf. BERGHAUS, 2019).

Na França, embora Marinetti tenha conquistado considerável estima por sua mediação cultural entre o universo estético italiano e francês, ele não logrou estabelecer o futurismo como uma nova escola literária. Sua recepção não foi unívoca, no entanto grande parte dela foi caracterizada por julgamentos negativos, que rejeitaram o futurismo, condenando a “ultrajante excentricidade das ideias futuristas (seu antitradicionalismo, belicismo e misoginia)”

(CESCUTTI, 2014, p. 119). Como ressalta Tatiana Cescutti, a recepção de obras ou ideias fora de seu contexto nacional original são determinadas por elementos culturais da nação receptora,

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como, por exemplo, a posição que é reservada para autores estrangeiros. Na França atribuía-se uma posição inferior à literatura italiana em contraste com a literatura francesa. Além disso, ocorria uma representação estereotipada de escritores italianos, em grande parte determinada por uma tradição de caricaturas de imigrantes italianos consolidada entre os sécs. XIX e XX (cf. CESCUTTI, 2014). De modo geral, pode-se dizer que a produção cultural italiana encontrava escassa valorização na França. Se até o séc. XVIII a cultura italiana havia sido uma força dominante na cultura francesa, a partir do séc. XIX essa situação se inverteu e a França passou a ter uma influência prevalente sobre o mundo cultural europeu, inclusive sobre a Itália.

De modo que a rejeição do futurismo no universo artístico e intelectual francês se deu por razões estranhas à própria estética e à literatura (cf. CESCUTTI, 2014).

Com efeito, como observa Ekaterina Lazareva (2015, p. 477), a Primeira Guerra desencadeou uma significa transformação e reorganização dos círculos de vanguarda existentes, com impactos diversos nos diferentes ambientes nacionais, dando origem, por exemplo, ao expressionismo alemão, por um lado, e a “politização da estética”, como no futurismo italiano e russo, por outro. Na Rússia, ao contrário da França, a difusão das traduções dos primeiros manifestos, ainda em 1909, coincidiu com uma renovação integral na pintura e na literatura que desde logo se identificou com o movimento de Marinetti. A partir do contato com os métodos de publicidade empregados pelos futuristas, os artistas russos começaram a organizar debates públicos e diversas ações que atraíram grande atenção. Em função disso, os críticos e jornalistas cunharam em 1913 o termo “cubo-futurismo” para designar a produção artística russa daquele momento. Isso porque o futurismo nunca foi na Rússia uma expressão fiel das ideias de Marinetti, ao contrário, junto ao futurismo, as vanguardas russas incluíam o expressionismo, o primitivismo e o cubismo. A despeito disso, o neologismo “futurismo” foi rapidamente introduzido no discurso cultural russo, sendo usado tanto pela imprensa e críticos de arte, quanto pelo público em geral (cf. BERGHAUS, 2019; BUDANOVA, 2015).

Nem mesmo a misoginia de Marinetti, que desafiava as mulheres da vanguarda artística russa, impediu a formação de uma ala feminista do movimento futurista russo. Pelo contrário, desde o início dos anos 1910 as mulheres, tanto quanto os homens, adotaram a retórica da violência em suas ações públicas e engajaram-se amplamente na arte de guerra, que tradicionalmente era de domínio masculino (cf. BUDANOVA, 2015). No entanto, é importante notar, segundo Natália Budanova (2015, p. 173), que os futuristas russos nunca subscreveram totalmente a perspectiva eugenista da guerra de Marinetti. Diferente disso, a beligerância

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futurista nos últimos anos antes do primeiro conflito mundial caracterizava-se mais como uma metáfora para expressar sua atitude para com a sociedade contemporânea e o estabelecimento na arte de uma espécie de “guerra retórica” contra seus inimigos ideológicos e estéticos internos. De todo modo, com o êxito do futurismo na Rússia, em 1914 Marinetti fez uma visita ao país e conheceu os artistas de Moscou e de São Petersburgo. Suas palestras tiveram excelente recepção de público e de crítica, as vanguardas artísticas, no entanto, sempre insistiram na importância de afirmar o caráter inerentemente russo da sua revolução artística, diferenciando- se do futurismo italiano (cf. BERGHAUS, 2019).

Na Itália, o futurismo se difundiu principalmente por meio da revista literária futurista Lacerba e de uma coluna na revista La Voce. A recepção do movimento na terra natal de Marinetti, contudo, ocorreu através da mediação da cultura francesa e sua difusão europeia, uma vez que desde o início as publicações francesas tiveram prioridade sobre as italianas (cf.

CESCUTTI, 2014). Importante notar nesse sentido que nos anos iniciais da guerra o ambiente cultural europeu estava fortemente caracterizado pela retórica patriótica e pela exaltação militar. Nesse contexto, o futurismo italiano, ao lado do nacionalismo de cariz reacionário,

“acrescentou à representação da guerra a ideia de progresso e higiene da humanidade, uma prova de maturidade da própria civilidade” (FRESU, 2017, p. 42). Os primeiros futuristas italianos, com efeito, defendiam a entrada na guerra, valorizavam a “velocidade, a violência e o risco e, de certa maneira, estes aspectos pareciam próximos do culto fascista da juventude”

(ECO, 2020, p. 37). A guerra era, portanto, um importante liame entre o futurismo, o nacionalismo e, a partir de 1919, com o fascismo.

De fato, de acordo com Mariátegui (2010, p. 238), Marinetti teria sido um dos mais ativos agentes belicistas italianos. Isso se deveu ao fato de a guerra ter “dado aos futuristas uma ocupação adequada a seus gostos e aptidões” enquanto a paz lhes tinha sido hostil. Isso porque o movimento experimentou um momento de descenso no imediato pós-guerra, com a vitória eleitoral do Partido Socialista e do Partido Católico, mas se reabilitou logo em seguida com o fascismo, tornando-se um dos seus “elementos espirituais e históricos” (MARIÁTEGUI, 2010, p. 238-239). A despeito disso, a partir de 1920, Marinetti se afastou dos fasci di combattimento, inicialmente reorientou o movimento para o recém fundado Partido Comunista, em 1921, mas depois se desiludiu e se afastou de ambos, lançando um novo programa artístico para o futurismo (cf. BERGHAUS, 2019).

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A despeito disso, para Mariátegui não é equivocado considerar Marinetti “como um dos forjadores psicológicos do fascismo” uma vez que ele foi o elemento fundamental a incitar a juventude italiana “ao culto à violência, ao desprezo dos sentimentos humanitários, a adesão à guerra, etc.”. Além disso, o futurismo “opõe à ideia coletivista da Igualdade a ideia individualista da Desigualdade. Arremete contra a justiça, a Fraternidade e a Democracia”. Não obstante, “politicamente, o futurismo foi absorvido pelo fascismo”, esquecendo o seu passado anticlerical, mancomunando-se com a Igreja e com a Monarquia, fazendo confluir “todas as forças tradicionalistas, todas as forças do passado” (MARIÁTEGUI, 2010, p. 239)2.

Os primeiros adeptos do movimento futurista italiano, de fato, rejeitavam o moralismo e o passado, valorizavam um conteúdo artístico, estético e político que remetia ao futuro, à velocidade, à mudança. Mas já antes de sua absorção pelo fascismo, apesar das críticas demolidoras que faziam ao status quo, contraditoriamente suas obras baseavam-se fortemente nos desenvolvimentos tecnológicos do capitalismo industrial do final do século XIX. Além disso, como nos chama a atenção Schlesener (2015, p. 82), “uma das contradições do movimento foi chamar-se futurista e aliar-se ao que havia de mais conservador na política”.

Para Trotsky o que explicaria essas contradições seria o caráter revolucionário burguês do futurismo, que ao se combinar com as diferentes burguesias nacionais, tomava contornos diferentes (cf. TROTSKY, 1980).

Na Itália, os “intervencionistas”, isto é, aqueles que defendiam a entrada na guerra, eram – de acordo com Trotsky – os republicanos, os maçons, os sociais-chauvinistas e os futuristas. Uma vez que o fascismo se afirmou por métodos revolucionários, isto é, por meio de um movimento de massas armado, não foi mera coincidência que o futurismo italiano tenha desembocado no fascismo (TROTSKY, 1980, s/p.). Trotsky aponta, portanto, para uma assimilação ideológica por afinidades que se referiam tanto ao elemento da ação revolucionária e da violência, quanto a um caráter comum de classe do fascismo e do futurismo. Dito de outro modo, ambos foram movimentos de matriz pequeno-burguesa que na Itália se rebelaram contra a ordem liberal e contra o socialismo, em favor da recuperação da produção capitalista e do Estado autoritário.

Na Rússia, ao contrário, a revolução democrática de 1917 se debatia contra o passado, contra o Antigo Regime, o que imprimiu contornos diferentes ao futurismo russo. Nesse país,

2 Ver também MARINETTI, 2008.

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especialmente na Revolução Russa, apesar da crise econômica, o futurismo reconheceu-se na guerra civil e no conteúdo artístico, estético e político de superação do passado absolutista e no anseio do futuro e da mudança (cf. LEACH, 2018). Destarte, o movimento futurista, composto majoritariamente por elementos burgueses, assumiu, portanto, um conteúdo progressista e democrático de acordo com Trotsky (1980).

Não obstante tudo isso, a militância futurista na Rússia permaneceu restrita à esfera da intelligentsia, sem nunca ter aderido à luta operária. Nas palavras de Robert Leach (2018, p.

50), “os futuristas convocaram uma revolução de espírito para acompanhar a revolução política”, isto é, a relação entre os artistas futuristas e a revolução bolchevique não se baseava numa completa adesão, mas, antes, em uma “aliança”, fundada em fracas afinidades ideológicas, que impactaram na falência de qualquer colaboração em projetos artísticos ou editoriais. Na Rússia, o principal crítico do futurismo era o líder bolchevique Leon Trotsky.

Para ele, “por trás da exagerada recusa do passado pelos futuristas” não se escondia um ponto de vista operário, “mas o niilismo do boêmio”, “da ala esquerda semipauperizada da intelligentsia” (TROTSKY, 1980, s/p).

De todo modo, é possível afirmar, que o futurismo, ao transmigrar, assimilava conteúdos estéticos, políticos e culturais diferentes, a depender principalmente das ideologias disponíveis no contexto de recepção. Desse modo, o futurismo se moldou, ainda que provisoriamente, de formas diversas e mesmo contraditórias com seus princípios fundamentais.

Essa modulação se dava, portanto, de acordo com as ideologias (especialmente com a forma de nacionalismo presente), com os valores culturais e com os rumos dos embates sócio- políticos em cada país, especialmente aqueles referentes à Primeira Guerra e à revolução bolchevique na Rússia.

Apontamentos finais

Como procuramos demonstrar, a análise do fascismo histórico indica a necessidade considerá-lo em sua heterogeneidade ideológica e, ainda, a circulação transnacional de ideias no período, assim como as suas diferentes expressões em cada contexto nacional. Ao tornar mais adequada a leitura do fascismo histórico, também são problematizadas as analogias históricas entre o fascismo e as formas autoritárias do presente. Isso porque a construção de um consenso autoritário, como o caso italiano demonstra, depende da forte mobilização de elementos políticos e culturais de cada formação nacional em seu tempo histórico preciso.

Nesse sentido é preciso considerar que ao migrar, as ideologias são moldadas e recriadas a

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partir dos contextos nacionais, de modo que não existe, por exemplo, um nacionalismo, mas diferentes “nacionalismos”. Embora seja possível identificar um contexto histórico comum de nascimento e um quociente mínimo de significados, concretamente essa ideologia desenvolveu-se de modos diferentes na Itália, na Alemanha, na França e na Rússia, por exemplo, expressando-se politicamente de maneira diversa no contexto da Primeira Guerra e no decorrer dos anos posteriores.

Deste modo, esses apontamentos históricos e metodológicos são fundamentais também para a compreensão das ideologias e dos governos de extrema direita que têm emergido em todo o mundo na última década. Chamamos a atenção para a existência de ideologias autoritárias que ressurgem no contexto internacional, mas que se concretizam em cada país em profundo diálogo com a cultura local, com as ideologias nacionais e com o passado. São ideologias reacionárias, que, como observou Mariátegui (2010) fazem confluir “todas as forças tradicionalistas, todas as forças do passado”. Mas qual passado? Certamente as ideologias do tradicionalismo e do anti-humanismo do Ocidente europeu circulam nas sociedades sob sua influência, contudo, esse passado não pode ser entendido como um arquivo morto que possa ser transplantado mecanicamente à situação presente, pelo contrário, as ideologias mudam ao migrarem geográfica e temporalmente, ou, mais especificamente, são recriadas a partir da cultura de recepção. Deste modo, as ideologias reacionárias no Brasil contemporâneo, a despeito de apresentarem a semântica da violência e do voluntarismo, semelhantes à do fascismo italiano, carregam as marcas do passado colonial e militarista tanto quanto do tradicionalismo cristão e conservador, que, a despeito de serem compostas pela cultura ocidental compartilhada, não podem ser entendidas de forma apartada da nossa própria história e cultura.

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