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Educação escolar indígena e etnomatemática: um diálogo necessário

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Academic year: 2022

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Esse artigo foi publicado no livro Etnomatemática: papel, valor e significado, em 2004, pela Editora Zouk.

Educação escolar indígena e etnomatemática:

um diálogo necessário

José Pedro Machado Ribeiro Rogério Ferreira

Vimos há bastante tempo apresentando preocupações comuns frente aos seguidos e distintos impactos que atingem a dinâmica cultural dos povos indígenas brasileiros. Há três anos estamos efetivamente envolvidos com a educação escolar indígena e, dos trabalhos conjuntos que seguidamente desenvolvemos, pudemos chegar há algumas conclusões que nos parecem úteis serem compartilhadas. Por isso – pretendendo aproximar o leitor do caminho por nós trilhado em busca de uma melhor compreensão da complexidade hoje vivida pelos indígenas do país – resolvemos escrever um texto de modo dialogado. Os frutos que temos alcançado vinculam-se diretamente à atitude dialógica por nós construída no seio da relação que mantemos com povos culturalmente diferenciados. Nesta atitude, enxergamos uma possibilidade de conduzir as conseqüências do contato interétnico para um novo patamar qualitativo. Os diferentes, ao se valorizarem mutuamente, têm a oportunidade de estabelecer um espaço comunicacional rico em novidades. A desconstrução de signos advindos de um eixo cultural preconceituoso se vê facilitada no contexto deste espaço e, nesse sentido, a identidade pode ver-se reconstruída em liberdade de pensamento.

Rogério – José Pedro, sabemos que você vem desenvolvendo, no estado do Amapá, uma pesquisa junto a um curso de formação de professores destinado à população Wajãpi. No estado do Tocantins, numa ação comum, temos trabalhado na formação de professores indígenas de seis etnias distintas: Krahô, Apinajé, Xerente, Karajá, Xambioá e Javaé. Já no estado de São Paulo, também no âmbito da formação de

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professores, lidamos com outras cinco nações: Guarani, Kaingang, Krenak, Terena e Tupi-Guarani. Além disso, trabalhamos em um projeto de escolarização de agentes indígenas de saúde junto às etnias Rikbaktsa, Nambiquara, Arara, Cinta Larga e Suruí – nos estados de Rondônia e Mato Grosso.

Gostaria de iniciar o nosso texto dialogado dizendo que o contato que venho estabelecendo com parte da imensa diversidade cultural brasileira a cada dia mais fortalece os desejos que inicialmente conduziram os meus passos ao encontro das causas indígenas. Ao meu ver, a história do Brasil necessita ser recontada e redimensionada por meio do olhar de quem se viu brutalmente invadido e não por meio de palavras falseadas que parecem querer perpetuar nas páginas de livros didáticos adotados, equivocadamente, por grande parte das escolas brasileiras. A valorização da diferença não participa do passado sócio-político-cultural nacional. Penso que atuar enquanto sujeito transformador dessa realidade torna-se uma ação primeira para todos que prezam pela integridade do indivíduo. Vejo as suas concepções bem próximas a estas. As suas motivações iniciais, porém, já não são assim tão conhecidas. Por isso, lhe pergunto: o que tem te aproximado das questões indígenas e, mais especificamente, da educação escolar dos indígenas brasileiros?

José Pedro – Rogério, de certo modo, a valorização da diferença vem ao encontro da resposta que tenho para sua pergunta. As minhas preocupações com questões relativas às classes dominadas de nossa sociedade vêm sendo alimentadas continuamente desde os primeiros dias de minha vida. Como filho de pequenos produtores rurais, estampa-se na minha pessoa, ou pelo menos estampava, dois intrigantes estigmas: o de “pouca cultura” e o de “coitadinho, como sofre!”. Um homem ou uma mulher marginalizada e excluída das relações sociais, políticas e econômicas de nossa sociedade, a meu ver, é vítima de um violento processo de injustiça social. Porém, na realidade, constitui-se em uma pessoa que possui e utiliza modos próprios de se relacionar com o meio, conforme suas concepções e maneiras de ver o mundo.

Na universidade, enquanto docente, trabalhando em projetos ligados à alfabetização de adultos e junto aos alunos de Licenciatura em Matemática e Especialização em Educação Matemática, estive diante de situações de penúria, marcadas por precárias condições nas quais sobrevive grande parte da população nacional – quando subordinada a freqüentar falidas escolas públicas e precários programas de alfabetização. Rogério, convivendo com essas realidades diversas de exclusão social, em que as instituições estão colocadas para garantir a inserção da

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população nas tomadas de decisão a respeito de questões nacionais – pelo menos nos discursos do poder dominante – sou levado ao encontro das questões ligadas à exclusão e à marginalização em que vive parte do povo brasileiro.

O encontro com a etnomatemática e, em seguida, a minha participação nos cursos de formação de professores e agentes indígenas que você mencionou, possibilitaram direcionar minhas reflexões e preocupações para questões voltadas aos povos indígenas brasileiros. Isto, de certo modo, reflete as minhas aspirações no contexto dos povos socialmente marginalizados. Desta forma, é salutar que estejamos empenhados em possibilitar que essa relação de contato com o indígena ocorra da forma mais harmônica possível e pautada no reconhecimento e respeito mútuos.

Neste contexto, como produto dessa relação de contato, a escola – presente na realidade das aldeias indígenas brasileiras – merece um olhar especial por parte do sujeito: o indígena. Ela pode assumir um papel de significância no meio sócio-político- cultural em que estiver inserida. Nesta direção, segundo Ubiratan D’Ambrosio1, conciliar a necessidade de ensinar a matemática dominante e ao mesmo tempo dar o reconhecimento para a etnomatemática das suas tradições é o grande desafio da educação escolar indígena. Rogério, como você vem enfrentando esse desafio nos trabalhos por você desenvolvidos?

Rogério – O contato entre povos indígenas e não indígenas torna-se cada vez mais intenso. A realidade das aldeias é rapidamente transformada quando laços de dependência são fortalecidos pela sociedade que domina. Por isso, José Pedro, penso que o desafio apontado pelo professor Ubiratan D’Ambrosio faz total sentido no contexto de uma escola que pretende contribuir para a valorização da identidade de quem se encontra social e politicamente marginalizado. Compreender o conhecimento não indígena – e o imaginário da população que o utiliza enquanto saber materno – é algo que hoje está diretamente relacionado à sobrevivência dos povos indígenas. Os seus próprios saberes, porém, necessitam estar no centro de qualquer ação educacional voltada para a superação do desafio que aqui discutimos. Assim, não haverá sobreposição de uma cultura à outra, não haverá espaço para hierarquizações baseadas em discursos tecnológicos equivocados. A sua língua é fundamental, a sua matemática é

1 D’AMBROSIO, U. Etnomatemática. Elo entre as Tradições e a Modernidade, Coleção Tendências em Educação Matemática, Autêntica, Belo Horizonte, Brasil, 2001.

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fundamental, o seu universo é a base para construção de uma educação escolar autônoma e, de fato, diferenciada.

Estes pensamentos têm me servido de guia. Por isso, nos trabalhos que venho desenvolvendo junto à educação escolar indígena, tenho procurado partir do saber local para, num segundo momento, lidar com outras formas de explicar, aprender e conhecer.

Esse percurso, só tem se viabilizado por meio do diálogo e da pesquisa. Sem eles, a relação não se estabelece – ou, no mínimo, torna-se complicada – e a imparcialidade na compreensão de mundos distintos torna-se distante. Os quereres das pessoas envolvidas no processo educacional precisam ser amplamente compreendidos e discutidos a fim de tornar legítima a prática escolar. Quem efetivamente conhece as necessidades de um povo é o próprio povo e isso em nada impede a construção harmoniosa de um ambiente multicultural. A escola, por exemplo – diferentemente de outras instituições que se aproximaram/aproximam das aldeias – é hoje considerada uma necessidade por grande parte dos indígenas brasileiros. Ao meu ver, eles a compreendem enquanto um fator que possibilita a inclusão político-social do indígena na sociedade que lhe envolve.

Caminhando nessa direção, gostaria de lhe perguntar se você acha que a escola nas aldeias se constitui em mais um elemento que promove a aculturação no seio das comunidades indígenas ou se ela pode, de fato, contribuir para os seus interesses?

José Pedro – Esse tema levanta questões muito interessantes. Cada sociedade concebe espontaneamente os saberes e as “instituições” advindas de sua própria cultura – que podem assumir um patamar de alta significância no seu contexto. Por outro lado, isto não ocorre aos que provém de uma realidade externa. Neste caso, geralmente ocorre resistência para aceitar o conhecimento outro enquanto um elemento que vem contribuir positivamente para realidade sócio-cultural do povo.

Os contatos dos europeus com os povos indígenas brasileiros estiveram marcados pela presença de instituições, crenças, conhecimentos e expressões culturais nas quais prevalecia o olhar impositivo do dominador/invasor. Substituíam, se necessário, os elementos culturais dos povos culturalmente distintos, ou mesmo eliminavam pessoas, para, em contra-partida, propagarem os conhecimentos, ditos civilizados, com a clara intenção de assumir todo o espaço indígena, seja ele territorial, político, social, econômico ou cultural. As construções por eles realizadas, físicas ou não, foram estabelecidas em prol de uma imposição definitiva do conhecimento dominante sobre o conhecimento por eles considerado menor ou primitivo. Neste contexto, uma escola destinada ao indígena aparece como um elemento fundamental na

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pretensão de garantir a expansão da dominação dos novos territórios e, assim, fortalecer o poder dominante nacional. Como agente, que atua na direção contrária aos interesses étnicos, a escola passa, então, a representar um elemento negativo que não aspira os anseios dos povos indígenas – os quais, há tempos, vêm tentando sobreviver e reconstruir-se por meio da valorização de uma identidade bruscamente violentada.

Agora, Rogério, uma escola – no âmbito das aldeias indígenas – que atua em favor da valorização dos interesses e do respeito aos indígenas, pode exercer um papel positivo e viabilizar a eles mais um caminho favorável à construção de seus conhecimentos, conforme as suas pretensões. Eles possuem formas próprias de aquisição e construção de conhecimentos – fruto da evolução histórica de sua civilização. Elementos pertencentes a saberes alheios podem, assim, desencadear uma dinâmica estranha no espaço dos seus cotidianos. E, como bem sabemos, tal dinâmica nem sempre possui um perfil positivo. Por isso, torna-se vital, a quem participa da educação escolar indígena, compreender o conhecimento como algo plural e a escola como um instrumento em harmonia com a diversidade cultural.

As incursões realizadas por agentes – a mando do poder dominante – desde o século XVI, provocaram profundas cicatrizes nas nações indígenas brasileiras. As suas línguas, costumes, hábitos, mitos e, de uma maneira mais ampla, as suas culturas foram, cada uma ao seu modo, extremamente afetadas. Poucas sofreram menor interferência.

As relações multiculturais, na maioria das vezes, foram estabelecidas por ações desrespeitosas, intolerantes e preconceituosas. Estar ciente deste quadro e, mesmo assim, persistir posicionando os indígenas à margem da sociedade dominante parece algo que só se justifica pelo ponto de vista da perversidade.

Hoje, a busca por inclusão social e reconhecimento, enquanto povos culturalmente diferenciados, está presente no desejo de muitos indígenas. Neste contexto, para conceber uma escola que pretende executar ações, junto ao alunado indígena e voltada aos seus interesses, é fundamental que ela atue de forma diferenciada. Na diferença, podem existir instrumentos voltados para a condução do processo de aprendizado do conhecimento não indígena – aqueles julgados fundamentais pelos indígenas para exercer suas relações multiculturais – que objetivem alcançar uma inserção social e política junto ao poder da sociedade dominante. Neste sentido, conduzida pelos próprios indígenas, a escola surge como uma boa opção e pode atender aos seus próprios interesses, respeitando os seus costumes, hábitos, crenças – de acordo com suas concepções sócio-político-culturais. Mas sabemos, Rogério, que a maioria dos profissionais da educação que hoje atuam nos cursos de formação de

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professores indígenas, que a cada dia mais se multiplicam pelo território brasileiro, não são indígenas. Você encara esse fato como uma contradição?

Rogério – Não vejo neste fato uma contradição. Pelo contrário, estando ciente de que a escola não participa das tradições indígenas e que as suas maneiras de educar são outras, concebo a formação de professores enquanto um espaço de comunicação que visa dar suporte ao indígena na sua complexa tarefa de construir uma escola diferenciada e significativa no âmbito da sua realidade. Assim afirmo, por comumente observar, no interior das aldeias, currículos e práticas educacionais estereotipadas sendo diariamente utilizados por professores indígenas. Isto não se trata de incapacidade, como absurdamente pregam os preconceituosos. Trata-se de um processo vicioso que invade as mais variadas realidades por meio de um discurso escolar que em muito se aproxima do vazio. O problema maior é que quando essa onda toca os saberes indígenas, o prejuízo é infinitamente superior ao ocorrido em localidades onde o contexto escolar compreende o conhecimento geral da população. Por isso, é fundamental efetivar um processo dialógico de formação de professores que conte com a participação de educadores não indígenas – compromissados e conhecedores das causas indígenas – suficientemente livres das amarras que vêm caracterizando diversos modelos de escolarização por todo o mundo.

Não é um processo simples retirar das entranhas da escola os valores nascidos no contexto da sua origem. Uma formação centrada no diálogo intercultural, contando com a participação de indígenas e não indígenas, pode contribuir para a compreensão dos vários elementos que se relacionam à educação formal conseqüente da cultura européia – o que tende a viabilizar não só uma reflexão crítica por parte dos indígenas, como também intervenções que reflitam as suas necessidades. Além disso, um ambiente pedagógico que efetiva uma troca contínua entre as partes, mostra o contato entre diferentes em uma outra perspectiva, onde a harmonia – como você bem destacou – é ponto essencial.

Mas, José Pedro, não resta dúvida que a estrutura pedagógica, conduzida por não-indígenas, hoje adotada por vários cursos de formação de professores – destinados às etnias brasileiras – precisa ser compreendida como algo transitório, como um caminho que tem como meta conduzir os professores indígenas a assumirem, de modo fundamentalmente crítico, a sua própria formação. Hoje, vários educadores, de diferentes etnias, já fazem parte de alguns quadros de formadores, principalmente no âmbito da língua materna. Em um futuro breve, espero que os professores não indígenas

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que venham a participar dos cursos o façam por terem sido previamente convidados por uma coordenação indígena. Neste caso, a possibilidade de pessoas descomprometidas preencherem espaços indevidos estará minimizada. Espero, também, que a comunidade escolar urbana aflore as suas sensibilidades e passe a ter a humildade de dialogar com as lideranças educacionais indígenas, que a cada dia mais se fortalecem, a fim de aprender uma outra atitude, a fazer diferente, a desestabilizar – conscientemente – os padrões escolares que vêm sendo robótica e cotidianamente mecanizados.

Ainda, nesse mesmo sentido, digo que se os que hoje conduzem a formação de professores atuarem voltados para os padrões da sociedade em que vivem e esquecerem o universo cultural dos sujeitos em formação, certamente o diálogo não ocorrerá e, como conseqüência, a contradição – por você mencionada – estará estabelecida. Por isso, é necessário que os não indígenas estejam próximos da realidade das pessoas com as quais mantêm um vínculo pedagógico. Estando distantes dos conhecimentos indígenas, os formadores farão da educação escolar mais um elemento favorável à aculturação.

Penso que a formação de professores indígenas mantém uma relação direta com o florescimento de uma intelectualidade autônoma – carregada de conhecimentos indígenas e não-indígenas – que possa debater em igualdade de condições com qualquer ideário organizacional próprio da sociedade dominante. Por isso, a minha atuação é carregada de esperança. Não uma esperança passiva, mas, de mãos dadas ao educador Paulo Freire, uma esperança baseada na ação.

José Pedro – Tenho grande satisfação em compartilhar com suas idéias. Sem dúvida, uma ação efetivamente libertadora, carregada de esperança, possibilita à educação escolar indígena conduzir os envolvidos no processo a transcender suas concepções, a aprofundar suas visões de mundo. O profissional da educação que foca seu olhar e suas ações nos interesses do sujeito do aprendizado, estabelece suportes para superação da ignorância de um em relação aos saberes do outro. A falta de conhecimento relativa aos valores culturais de um determinado povo, que muitas vezes é evidenciada quando distintos grupos sócio-culturais se encontram, não se constitui em uma via de mão única. Com relação aos povos indígenas brasileiros, o sentido da via – costumeiramente

“convencionado” – parte dos indígenas para com a sociedade nacional envolvente. Mas, contrariamente a esse estigma, flagra-se com maior facilidade a ignorância dos não indígenas frente ao conhecimento, aos valores, costumes e saberes das várias etnias brasileiras. Participar passivamente das relações multiculturais, ou nelas fazer uso do

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poder dominante, faz com que essa via de mão dupla torna-se falha, o que leva a escola indígena a não funcionar como um instrumento em consonância com a sociedade a qual se destina.

A formação de professores indígenas aponta para uma atitude em prol da superação dessa “ignorância entre culturas”. Agora, o entendimento de que essa formação é suficiente para que seja construída uma intelectualidade indígena está pautado em uma compreensão errônea a respeito da realidade do outro, além de reforçar ainda mais o poder da ação do dominador sobre o dominado. Estou convicto de que a estrutura educacional sustentada por ações de respeito, reconhecimento, compreensão e valorização nas relações multiculturais, juntamente com a formação de professores, viabiliza o fortalecimento de todo o processo. Mas, também tenho convicção de que o meio educacional é apenas um elemento neste universo.

Toda estrutura de formação que não esteja sustentada por novos paradigmas, tais como o respeito à diferença, o diálogo intercultural e a diversidade do conhecimento, carece sensibilizar-se para transformar qualitativamente as ações educacionais exercidas junto aos professores indígenas. Os agentes responsáveis pela orientação – indígenas ou não – possuindo esses valores interiorizados nos seus modos de olhar e agir, perante a realidade organizacional da cultura indígena, levam consigo meios favoráveis para a consolidação da autonomia, viabilizando, assim, a inserção política dos marginalizados nas suas relações com a sociedade envolvente.

Neste contexto, a formação é um veículo que contribui para o diálogo dos indígenas com os que atualmente detêm poder na sociedade nacional; “de igual para igual”. Rogério, encaminhando o nosso texto dialogado, gostaria que você fizesse alguns apontamentos a respeito da questão: como a escola indígena poderá contribuir para a superação da dependência social, política, econômica e cultural em que se encontra as sociedades indígenas brasileiras?

Rogério – A sua pergunta toca num ponto que julgo fundamental às futuras pretensões dos povos indígenas brasileiros. A superação da dependência necessita ser pensada por todos, num esforço conjunto, a fim de transcender uma situação que há tempos está colocada e que, continuamente, vem massacrando a dignidade daqueles que há pouco mais de quinhentos anos, num repente inimaginável, foram violentamente posicionados à margem dos interesses unilaterais da população recém-chegada. Quando me envolvo com a educação escolar indígena, a todo instante vislumbro essa superação. Tento contribuir para a construção de uma escola indígena que retire o dominador da sua base

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e, assim, constitua um meio que oportunize o surgimento de respostas para as questões que vêm da sua realidade. Apesar disso, não há como posicionar o ambiente educacional escolar enquanto uma solução mágica para os problemas específicos de cada uma das etnias. Ele é apenas mais um elemento que tem a possibilidade de voltar- se para uma transformação significativa. A intelectualidade que aqui defendemos também se enquadra nesse contexto. Por meio dela, abre-se à possibilidade do indígena fazer-se ouvir politicamente em uma paisagem onde o pensamento comum é discriminatório naquilo que se refere às suas causas.

A qualidade da saúde nas aldeias também é um fator importante na busca pela autonomia. Educação e saúde podem caminhar juntas a fim de contribuir para a superação das necessidades cotidianas, que grande parte dos indígenas têm, de buscar socorro em aparatos que são próprios das cidades. Equilibrar-se junto ao universo local, do ponto de vista intelectual – onde os saberes nascidos no “etno” do indivíduo são elementos centrais – e também do ponto de vista do equilíbrio físico e psicológico, é um aspecto essencial quando se objetiva ser politicamente forte frente às lideranças que, apesar de morarem ao lado, determinam as leis a serem seguidas.

Um povo que luta por sua autonomia não tem como aceitar a imagem infantilizada, a eles associada, construída por instituições que dizem buscar solução para os seus problemas. A própria história contada em vários dos livros didáticos brasileiros fortalecem essa imagem equivocada. Ver alguém como tutelado, por exemplo, é algo que fulmina toda uma estrutura de conhecimento nascida em liberdade de pensamento, no cerne dos seus próprios sons, cantos, verdades. Da sua terra, alma, dizeres. Dos seus sonhos, vida, fazeres. Enfim, do seu ser. Com o outro decidindo por mim estará minimizada a minha chance de influenciar. Estarei sendo violentado pela influência alheia, por alguém que não sabe o que quero, o que pretendo para aqueles que comigo formam uma civilização diferenciada.

Isso, você bem sabe meu amigo José Pedro, é muito mais do que poetizar. É fazer da língua materna, que a mim foi concedida pelo habitat cultural no qual nasci, uma luz favorável aos indígenas do Brasil. A língua traz consigo uma forma de compreender o mundo e uma maneira de com ele se relacionar. Como imaginar o que sentem os povos que perderam as suas palavras? E mais: como estabelecer um diálogo onde as partes se compreendam em profundidade?

José Pedro – Compreender o sentido que a língua representa para a cultura de um povo é ir além do contexto escolar. As civilizações utilizam a língua em relações

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comunicativas múltiplas e, assim, estabelecem as suas relações sociais. A língua constitui-se em muito mais que um conjunto limitado de palavras estruturadas, ela reflete a forma de compreender, de explicar, entender, lidar com as artes, as técnicas, os costumes, os hábitos, os comportamentos presentes e expressos no meio cultural de um povo. Assim, ao ocorrer a perda – parcial ou total – de uma língua por meio da incorporação ou sobreposição de uma outra língua, incalculáveis prejuízos recaem sobre os valores e expressões culturais de toda uma realidade étnica.

Rogério, como exemplo, destacarei uma questão nascida como fruto de nossa ação comum no curso de formação de professores destinado ao povo Akwẽ-Xerente (estado do Tocantins) e da pesquisa de campo por você realizada junto a esse povo2. A estrutura da sociedade Xerente é organizada por meio de metades. A unidade – o todo – é constituída no encontro de uma metade com a parte que lhe falta. A lógica dual do pensamento, que participa da realidade cotidiana do povo, está presente das mais variadas formas no âmbito dos seus conhecimentos. Em particular, nos conhecimentos por nós chamados matemáticos, podemos ressaltar a contagem. Os números, que são expressos e utilizados por meio dos dedos das mãos e dos pés, têm significados associados à realidade em que vivem. Na língua são expressos os números de um a quatro e os nomes a eles dados também ganham significação no contexto do seu universo cultural dual. No pensamento Xerente o número um não representa algo completo. O inteiro numérico, refletindo o saber que o compreende, é constituído pela junção de duas metades, o que forma um sistema etnomatemático dual. Desta forma, como traduzir um conhecimento de um povo expresso na sua língua para a língua de um outro povo, cuja estrutura apresenta outra lógica?

A manutenção de uma língua é uma forma vital de contribuir para o fortalecimento da cultura como um todo e, principalmente, para cultura do povo que a construiu. No Brasil muitos povos e línguas desapareceram sem deixar vestígios.

Algumas sociedades indígenas perderam suas línguas, conseqüentemente, grande parte de sua cultura. Atualmente, no estado de Pernambuco – por exemplo – residem sete etnias indígenas, a saber: Atikum, Fulniô, Kambiwá, Kapinawá, Pankararu, Truká e Xukuru. Eles deixaram de se comunicar em suas línguas nativas. Sofreram processos de destruição etnoculturais, mesmo assim conservaram importantes elementos da sua cultura, os quais se apresentam nos seus costumes, hábitos, crenças, entre outros.

Acreditar na reconstrução e aprendizado da língua em prol do fortalecimento das

2 FERREIRA, R. A Educação Escolar no Universo Akwẽ-Xerente, in Metamorfopsia da Educação: Hiatos de uma Aprendizagem Real, Alexandre Dias e Rogério de Almeida (Org.), Zouk, São Paulo, 2002.

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expressões culturais justifica e fortalece a vontade de construir uma escola bilíngüe que caminhe na direção dos interesses dos indígenas. Nesse sentido, cabe a pergunta:

porque, neste contexto, torna-se importante o aprendizado da língua dominante? É preciso compartilhar, dialogar, estabelecer uma comunicação ativa com a sociedade que, apesar de diferente, está em todos os cantos da chamada nação brasileira. É fundamental compreender que neste país o que existe de fato é uma enorme diversidade de nações – que precisam comunicar-se – e que querer tratar os diferentes como mecanicamente iguais é, no mínimo, uma atitude política preconceituosa.

Podemos afirmar, sensíveis ao pensamento holístico presente em várias das realidades indígenas brasileiras, que cada um dos acenos que parte das expressões culturais de um determinado grupo étnico possui um mesmo patamar de importância.

Inclusive a etnomatemática, caro Rogério, que por sinal é um termo nascido na língua envolvente objetivando valorizar os saberes colocados, por meio do domínio, à margem do conhecimento dito científico.

Rogério – Vários profissionais não-indígenas de matemática trazem consigo uma cultura fechada nascida no contexto ocidental deste conhecimento específico. O imaginário que criam muitas vezes não os deixa raciocinar livremente e faz com que concebam padrões locais enquanto verdades universais. Transformam um saber vivo e plural, intimamente ligado à realidade de quem o constrói, em algo inerte e, mesmo assim, o caracterizam como uma estrutura que supera a opinião das pessoas, mesmo daquelas que possuem princípios equivalentes aos seus. Quando tais profissionais se aproximam da educação escolar destinada aos indígenas, um problema de grandes proporções fica estabelecido. Este mantém um vínculo estreito com o processo catequizador continuamente observado nas relações interétnicas brasileiras. Assim, em nome de uma tecnologia não compreendida, fica ainda mais fragilizada a identidade cultural das etnias social e politicamente excluídas.

A etnomatemática vem quebrar com toda essa lógica academicista. Junto a ela, surge um novo olhar, uma postura distinta que naturalmente flui para a qualidade, para a alteridade, para a descentralização. Ao buscar compreender o que advém de uma outra realidade, se aproxima da educação escolar, da antropologia, da hermenêutica, da psicologia e de vários outros campos que a conduzem para um patamar transdisciplinar de múltiplas possibilidades. A abertura que traz junto a si, valoriza o diálogo, o saber ouvir, a crítica, a ética, a autonomia, a esperança. Nela não há espaço para visões discriminatórias. Deste modo, promove outras histórias para a realidade dos excluídos.

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Histórias que os posicionam enquanto sujeitos, diferentemente do que tem constantemente ocorrido.

Por todos esses motivos, José Pedro, a atitude que faz com que a educação escolar indígena se encontre com a etnomatemática é uma mostra de respeito à diferença e, portanto, uma ação para a paz entre os povos. Neste encontro, valorizam-se conhecimentos distintos sem hierarquizá-los. Dá-se voz a quem precisa urgentemente fazer-se ouvir.

José Pedro – Também vejo que o sentido da educação é buscar a paz entre todos. No meu entender, a etnomatemática é um meio para realizar leituras do mundo, em particular do sistema escolar. Neste sentido, ela busca valorizar as relações interculturais entre as diferentes civilizações. Nos trabalhos que estamos desenvolvendo juntos, em várias localidades do Brasil, com as etnias já mencionadas aqui, podemos observar cotidianamente situações que expressam essa valorização. Nossas ações sempre estiveram sustentadas por concepções pautadas no diálogo e no respeito à diferença. Ao adentrarmos no ambiente escolar/formador levamos conosco o peito aberto com a pretensão não somente de conduzir as orientações no processo de aprendizagem, mas, também, de sentirmo-nos maiores por compreender um pouco mais o conhecimento e as individualidades emocionais das pessoas com as quais conversamos; pessoas de distintas culturas conhecendo-se mutuamente.

A etnomatemática floresce, no contexto pedagógico, como um condutor para compreensão não-conflituosa das expressões culturais entre grupos distintos. Assim, conduz a uma relação intensa de troca e partilha entre saberes locais. Por isso, acreditamos que uma escola indígena que caminha de mãos dadas com a etnomatemática contribui para a formação, entre os indígenas, de uma dinâmica cultural que – apesar de não participar das tradições de outros tempos – traz junto a si as atuais necessidades do povo junto ao qual se estabelece. É o que sentimos e apostamos ser possível.

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