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Limites e possibilidades da Democracia Deliberativa

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Academic year: 2021

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Limites e possibilidades da Democracia Deliberativa

Profª Msª Barbara Johas1

Resumo

A democracia deliberativa constitui-se como uma alternativa teórica que busca articular participação política substantiva e forma institucional, procurando novas alternativas ao modelo de democracia liberal. Os deliberativistas propõem ampliar o espectro de participação dos cidadãos para além do ato de votar, incorporando os processos de deliberação da sociedade civil na regulação da vida pública. Portanto, o modelo deliberativo funda-se nas noções de comunicação e de deliberação pública. Daí decorre que a estrutura deste modelo de legitimação democrática tem como umas de suas questões centrais, e também mais problemáticas, a definição da estrutura institucional que viabiliza (ou não) uma participação pública e plural. O objetivo desta comunicação é discutir as possibilidades e limites dessa teoria.

O Deliberativismo: Uma Teoria da Legitimidade Democrática.

Um dos elementos de maior importância para as teorias democráticas, como é sabido, é o modelo de sociedade que a ela corresponde; em contrapartida, não existe um consenso quanto ao tipo de sociedade civil mais adequado para uma política democrática moderna. Dito de outra maneira, a relação entre modelos normativos de democracia, projetos de democratização, estruturas, instituições e dinamismo da sociedade civil constitui-se enquanto elemento de difícil definição dentro das várias teorias democráticas. O foco chave para os democratas deliberativos, como bem colocado por Bernard Manin, consiste na necessidade de alterar radicalmente a perspectiva comum para as teorias liberais e para o pensamento democrático, qual seja, entender que a fonte de legitimidade não é a vontade pré-determinada dos indivíduos, mas ao invés disso o processo da sua formação, em suma, a própria deliberação, (1987, pp. 351ff). A maior disputa dos democratas deliberativos é descartar qualquer noção de preferências fixadas e as substituir por um processo de aprendizagem através do qual as pessoas podem chegar a acordos racionalmente construídos acerca de questões pública, com o objetivo de reter um julgamento político confiável e aceitável. Em questão não está a simples imposição de um padrão de racionalidade abstrato, pré-concebido, mas sim um comprometimento com a política como um processo de aprendizagem sempre aberto, ilimitado e contínuo no qual os

1Atividade vinculada ao Projeto de Pesquisa "Direitos humanos, cosmopolitismo, cidadania e teoria

política:questões teóricas e problemas práticos", financiado pela Fundação Araucária e UEL, e desenvolvida junto ao grupo "Estudos em Teoria Política" (GETEPOL-CNPq).Professora na Universidade Estadual de Londrina(UEL), Doutoranda em Ciência Política pela Unicamp.

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papéis do ‘professor’ e do ‘currículo’ são levantados, e onde a questão do que se deve ser aprendido tem que ser estabelecida no próprio processo de aprendizagem (Offe e Preuss, 1991, p. 168). Os participantes chegam a uma decisão não através da determinação de quais preferências tem maior apoio numérico, mas ao determinar quais propostas o coletivo pode aceitar como as mais razoáveis(no sentido de aceitabilidade racional) e que são apoiadas pelas melhores razões. Esse modelo de processo democrático reclama um conjunto de ideais normativos para a sua existência, quais sejam: inclusão, igualdade, razoabilidade e publicidade.

Como Offe e Preuss colocaram: ‘Parece ser uma longa tarefa pensar sobre os ajustes e processos que poderiam gerar uma pressão seletiva em favor desse tipo de aprendizagem reflexiva e de preferências abertas, como oposto as preferências fixas que são derivadas inteiramente de determinantes situacionais, crenças rígidas ou enganos próprios’ (1991, p. 168). Deste modo, as teorias da democracia deliberativa consistem em um conjunto de princípios que tencionam estabelecer termos justos de cooperação política em uma sociedade democrática,em suma, para esta abordagem, nas sociedade complexas pós-convencionais nenhum grupo de valores ou perspectivas específicas podem alegar sua corretude e validade por elas mesmas, mas são válidas somente na medida em que elas podem ser justificadas publicamente. Nesta linha, pontos de vistas individuais precisam ser testados através dos embates sociais que levam em conta o ponto de vista dos outros, ou seja, os entendimentos sociais acerca das questões públicas são compreendidos a partir da perspectiva das interações intersubjetivas.

Desta forma o modelo deliberativo tem como um de seus elementos formadores o ‘princípios de reciprocidade’, ou seja, é necessário uma ênfase sobre aqueles locais e procedimentos de formação de preferência e aprendizagem que se encontro nos ambitos da política e da sociedade civil. Isso exige que a adoção de um modo de ação intersubjetivo na formação e defesa de preferências, aquilo que Habermas denominou como ação performativa. A teoria democrática deve se auto guiar para os projetos constitucionais que ajudam a construir no processo da própria política a oportunidade de aprender e testar publicamente as visões dos cidadãos. Neste modelo os atores políticos não somente expressam as preferências e interesses mas interagem uns com os outros com o objetivo de equilibrar as circunstâncias de inclusão igualitária. Na medida em que tal interação requer que os participantes desenvolvam uma postura aberta e atenta aos outros, tendo como mote a justificação e alegação de suas propostas em termos aceitáveis para todos, a orientação dos participantes se constrói no caminho que vai de considerações para consigo mesmo até uma orientação em

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direção ao que é público. Interesses e preferências continuam a ter um lugar nos processos de democracia deliberativa, mas não como dados e exógenos ao processo. Muitos proponentes da democracia deliberativa enfatizam que esse modelo conceitualizam o processo de discussão democrática não como simples formas de expressão e registro de pontos de vista subjetivos estruturados por interesses, mas como processos transformadores das preferências, interesses, crenças, e julgamentos dos participantes.

Através do processo da discussão pública com a pluralidade de diferentemente formas de compreensão, as pessoas frequentemente ganham novas informações, aprendem por diferentes experiências acerca de seus problemas coletivos ou descobrem que suas opiniões iniciais estão fundamentadas em elementos preconceituosos e/ou resultado da falta de informações acerca do problema em questão, ou que elas tem compreendido mal a relação de seus próprios interesses para com os outros, em suma a democracia deliberativa pressupõem uma processo de articulação intersubjetiva das preferências, ou como poderíamos dizer, se fundamenta na noção de preferências refinas e reflexivas, nas quais se expressa o resultado de uma confrontação consciente e racional de pontos de vista opostos, conflito este que baseado em processos públicos da expressão da razão dialógica permitem a construção de entendimentos racionalmente motivados, que ultrapassam a perspectiva monológica do voto como resultado de preferências subjetivas e se assenta na participação públicas das várias vozes.

Tendo em vista que a perspectiva deliberativista busca discutir as fontes de legitimação dos Estados democráticos, entendendo que tais fontes só podem advir da participação política dialógica, coloca-se como questão fundamental para a teoria democrática a necessidade de uma análise que não apenas se debruce sobre os contextos nos quais as pessoas formam pontos de vistas e testam suas opiniões, mas também sobre os tipos de mecanismos que estão em operação nas democracias e que reforçam entendimentos sociais consolidados e/ou possibilitam espaços para a criação de novas formas de compreensão social, em suma coloca-se como importante o exame dos diversos espaços de expressão e participação da sociedade civil, alguns do quais retardam e outros que estimulam a deliberação e o debate.

A Democracia Deliberativa em J. Habermas

No interior do debate sobre a democracia, J. Habermas desponta como um autor que busca uma “via alternativa” frente aos modelos Liberais e Republicanos.Em especial colocando-se contra as interpretações da democracia enquanto um procedimento para escolha

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de representantes em intervalos de tempo regulares. O modelo discursivo defendido por Habermas integra duas tradições teóricas tidas como antagônicas na historia do pensamento político, o Republicanismo e o Liberalismo. Em consonância com o republicanismo reserva uma posição central para o processo político de formação da vontade, sem contudo ver na constituição jurídico-estatal um elemento de segundo plano, para além disso, a teoria do discurso concebe os direitos fundamentais e princípios do Estado de direito como uma resposta conseqüente à pergunta sobre como institucionalizar as exigentes condições de comunicação do procedimento democrático. A teoria discursiva não torna a efetivação de uma política deliberativa dependente de um conjunto de cidadãos coletivamente capazes de agir, mas sim da institucionalização dos procedimentos que lhe digam respeito. Ela não opera por muito tempo com o conceito de um todo social centrado no Estado e que se imagina em linhas gerais como um sujeito destituído de ação guiado por um objetivo. Tampouco situa o todo em um sistema de normas constitucionais que inconscientemente regram o equilíbrio do poder e de interesses diversos de acordo com o modelo de funcionamento do mercado. Ela se desliga de todas as figuras de pensamento que sugeriram atribuir à ação de auto-determinação dos cidadãos a um sujeito social totalizante, ou a aqueles que buscaram identificar o domínio anônimo da lei a sujeitos individuais concorrentes entre si. Em face destas discussões é importante ressaltar a mudança de paradigma defendida por Habermas: saindo da filosofia do sujeito para uma compreensão intersubjetiva das relações sociais, presentes em processos de entendimento mutuo que se constituem, por uma lado, na forma institucionalizada de aconselhamentos em corporações parlamentares, bem como, por outro lado na rede de comunicação formada pela opinião pública de cunho político.

A formação da opinião e da vontade que se dá de maneira informal desemboca em decisões eletivas institucionalizadas e em resoluções legislativas pelas quais o poder criado por via comunicativa é transformado em poder administrativamente aplicável. Como no modelo liberal, respeita-se o limite entre Estado e sociedade; aqui porém, a sociedade civil, como fundamento social das opiniões públicas autônomas, distingue-se tanto dos sistemas econômicos de ação quanto da administração pública. Dessa compreensão democrática resulta a exigência de um deslocamento dos pesos que se aplicam a cada um dos elementos na relação entre os três recursos a partir dos quais as sociedades modernas satisfazem sua necessidade de integração e direcionamento, a saber: o dinheiro, o poder administrativo e a solidariedade. Disto decorre que as implicações normativas tornam-se claras: o poder integrador da solidariedade, que não se pode mais tirar apenas das fontes da ação

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comunicativa, precisa desdobrar-se sobre opiniões públicas autônomas e amplamente disseminadas, e sobre procedimentos institucionalizados por via jurídico-estatal para a formação democrática da opinião e da vontade; além disso, ele precisa também ser capaz de afirmar-se e contrapor-se aos dois outros poderes, ou seja, ao dinheiro e ao poder administrativo. A partir desta perspectiva discursiva tem-se uma compreensão diferente acerca da legitimidade e da soberania popular. Na concepção liberal a formação democrática da vontade tem exclusivamente a tarefa de legitimar o exercício do poder político, no qual o resultado eleitoral equivale a uma ‘concessão’ para o exercício de tal poder e seus ocupantes devem prestar contas para a opinião pública e para o parlamento. Na concepção republicana, a formação democrática da vontade tem a função de constituir a sociedade como uma coletividade política e de manter viva a cada período eleitoral a lembrança deste ato fundador. O governo é parte de uma comunidade política que se administra a si própria, e não o topo de um poder estatal separado.

Com a teoria do discurso uma nova perspectiva entra em cena, nesta procedimentos e pressupostos comunicacionais da formação democrática da opinião e da vontade funcionam como importantes canais de disseminação da racionalização discursiva das decisões de um governo e administração vinculados ao direito e à lei. Racionalização ultrapassa o significado de uma mera legitimação, transformando-se na própria ação de constituição do poder. O poder administrativamente existente transforma seu estado de simples agregado apenas se for retroalimentado por uma formação democrática da opinião e da vontade que não apenas exerce posteriormente o controle do exercício do poder político, mas que também o programe, de uma maneira ou de outra. Ultrapassando esta dimensão o poder político constitui-se somente como um elemento de ação, ou seja, um sistema parcial primordialmente vinculado a decisões coletivas vinculativas, enquanto que as estruturas comunicativas da opinião pública formam uma rede amplamente dispersa de sensores que reagem às pressões das situações problemáticas do todo social deixando transparecer a dinamicidade própria da sociedade civil.

Segundo Habermas, não há dúvidas de que a teoria política até o momento não logrou equacionar de modo sério à tensão entre a soberania popular e os direitos humanos, entre a liberdade dos modernos e a liberdade dos antigos. As duas grandes abordagens teóricas presentes na teoria política, o republicanismo – que remonta a Aristóteles e ao Humanismo cívico – e o liberalismo – que remonta a Locke – não conseguiram equilibrar a tensão

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existente entre esses dois elementos, direitos humanos e soberania popular, devido mesmo à sua forma de abordar essa relação, ou seja, para Habermas, a ênfase unilateral em um dos elementos da equação levou a uma perspectiva equivocada, que compreende tal relação de uma forma hierárquica, levando cada uma dessas correntes a ver-se “obrigada” a dar primazia a um dos elementos, no processo de constituição da estrutura teórica (cf.HABERMAS, 2001,pg 146/147). Dessa maneira, é fácil entender por que as teorias do direito racional construíram duas respostas para as questões sobre a legitimação dessa estrutura. A soberania popular, de um lado, se expressa nos direitos à comunicação e participação, assegurando a autonomia pública dos cidadãos. De outro lado, o domínio das leis garantido pelos direitos humanos está fundamentado nos direitos clássicos liberais, que permitem o desenvolvimento da autonomia privada de membros da sociedade civil. Fixados tais pontos de vista, o direito legitima-se como o meio garantidor igualmente das autonomias privada e pública. Apesar dessa articulação efetuada pelo direito, a filosofia não tem levado a sério à tarefa de dissolver a tensão entre tais elementos, se quisermos, entre o dilema liberdade dos antigos x liberdade dos modernos.

Para Habermas, as interpretações sobre a relação entre as duas faces da autonomia não têm conseguido operacionalizar a equiprimordialidade dessa relação, atribuindo sempre uma ênfase maior a algum dos elementos da equação. Para que essa interdependência possa receber a expressão merecida, Habermas argumenta que é necessário considerar “o procedimento democrático a partir de pontos de vista da teoria do discurso” (HABERMAS, 2004,a, p. 299-300). Devido mesmo à própria configuração da sociedade moderna, marcada pelo pluralismo de visões de mundo, o processo democrático é o que pode fornecer a base legitimadora para o processo de construção legal, a partir de uma perspectiva procedimental discursiva, que integra de maneira equiprimordial direitos humanos, enquanto possibilitadores da práxis de autodeterminação, e soberania popular, enquanto elemento legitimador do próprio processo.

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Não há dúvidas quanto à firme fundamentação que os direitos humanos possuem, do ponto de vista moral; o que, porém, é importante ressaltar é a necessidade de atentar

2 Regulamentações que podem requerer legitimidade são justamente as que podem contar com a concordância de possivelmente todos os envolvidos como participantes em discursos racionais. Se são discursos e negociações – cuja justeza e honestidade encontram fundamento em procedimentos discursivamente embasados – o que constitui o espaço em que se pode formar uma vontade política racional, então a suposição de racionalidade que deve embasar o processo democrático tem necessariamente de se apoiar em um arranjo comunicativo muito engenhoso: tudo depende das condições sob as quais se podem institucionalizar juridicamente as formas de comunicação necessárias para a

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para o fato de que a dimensão moral não pode ser concebida, nem tampouco empregada, como base única para a construção do direito, uma vez que a própria ideia de autonomia jurídica do cidadão requer que este participe como coautor desse código legal. Todavia, esses cidadãos já não possuem mais a livre escolha dos meios pelos quais podem efetivar sua autonomia, em suma, “a idéia de autolegislação democrática não tem opção senão validar-se a si mesma no médium do direito” (HABERMAS, 2000, p. 301). Entretanto, para institucionalizar os pressupostos comunicativos necessários para o processo de coautoria na formação legislativa, ou seja, a garantia dos direitos políticos, é preciso que a autonomia privada dos sujeitos do direito esteja assegurada. Se os direitos fundamentais, responsáveis pela garantia da autonomia privada, não forem assegurados, não é possível a existência do médium pelo qual se institucionalizam juridicamente as condições de desenvolvimento da autonomia pública e, portanto, do cidadão do Estado, o que leva à compreensão da equiprimordialidade existente entre Soberania popular e Direitos humanos, que se traduzem, em uma segunda dimensão, na interdependência entre autonomia privada e pública. Na esteira dessas discussões, surge uma perspectiva jurídica procedimental, que vê no processo democrático o meio pelo qual é possível operacionalizar a interdependência entre os elementos outrora tidos como antagônicos: Soberania popular e Direitos Humanos; Autonomias privada e pública, utilizando-se de uma perspectiva procedimental discursiva sobre a construção do direito positivo.

De acordo com Habermas, para compreender adequadamente essa relação faz-se necessário partir de uma perspectiva intersubjetivista, segundo a qual os direitos são derivados do próprio pertencimento há uma associação de jurisconsortes livres e iguais. Na mesma linha intersubjetivista de compreensão, esses direitos somente possuem legitimidade sob o reconhecimento recíproco das liberdades igualmente distribuídas; desse modo, esse caráter de reconhecimento integrativo atribui ao próprio direito uma força estruturadora. Mesmo possuindo uma forma abstrata, a solidariedade permanece como um recurso social

criação legitima do direito. A almejada coesão interna entre direitos humanos e soberania popular consiste assim em que a existência de institucionalizações jurídica de uma pratica civil do uso público das liberdades comunicativas seja cumprida justamente por meio dos direitos humanos. Direitos humanos que possibilitam o exercício da soberania popular não se podem impingir de fora como uma restrição. (HABERMAS, 2004,a, p. 300).

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do qual a autodeterminação democrática não pode desvincular-se, se pretende construir um direito legítimo3.

De acordo com Habermas, o conceito procedimentalista, sob o qual seu paradigma está apoiado, não se confunde com os preceitos fundamentais contidos na figura do contrato. Contraria a perspectiva na qual a norma jurídica procedimental da liberdade de contrato é assegurada tão somente pela liberdade de arbítrio cujo objetivo é possibilitar o procedimentalismo puro. O conceito procedimentalista da teoria habermasiana ocorre do entrecruzamento do processo de entendimento mútuo com outros de convenção, “bem como a ocorrência de procedimentos jurídicos e discursivos tais, que com eles só se garanta a justiça procedimental incompleta” (HABERMAS, 2004,a, p. 390).

As condições comunicativas, que possibilitam a livre circulação de informações e razões, permitem que se processem soluções de problemas e meios de aprendizagem sem, contudo, encontrar-se livre da dependência do encaminhamento de contribuições propriamente substanciais, haja vista que as normas jurídicas não podem gerá-las espontaneamente4. A posição habermasiana compreende que a garantia de liberdades subjetivas iguais é dependente do nível de clareza possível dos envolvidos, no que diz respeito a uma adequada interpretação das necessidades em questão e acerca dos pontos de vida relevantes, procedendo de tal forma que exerça, ao mesmo tempo seu papel enquanto cidadão do Estado, utilizando-se para isso do uso público de suas liberdades comunicacionais, com o objetivo de construir um consenso racionalmente motivado e processado, democraticamente, sobre as questões coletivamente importantes. “Essa concatenação interna (e recíproca) entre autonomia privada e pública, quando a entendemos corretamente, não é de forma alguma trivial, mas constitui, sim, o âmago normativo do

3 “Só são legítimas as regulamentações que tratam com igualdade o que é igual e com desigualdade o que é desigual, ou seja, as que também asseguram liberdades subjetivas de modo efetivo; e só se devem esperar regulamentação legítima como essas quando os cidadãos fazem uso de suas liberdades comunicativas em comum, de maneira que todas as vozes tenham iguais chances de ser ouvidas” (HABERMAS, 2004,a, 384).

4 Assim, o recurso efetivo às autonomias privada e pública, que se pressupõem mutuamente, é ao mesmo tempo uma condição para que os direitos civis sejam adequadamente interpretados e garantidos, além de utilizados de maneira cada vez mais abrangente em seu teor universalista. Pelo fato de que a reprodução do direito, considerada normativamente, sempre significa a efetivação de uma associação de jurisconsortes livres e iguais, à qual todos os partícipes estão vinculados no respeito eqüânime de uns pelos outros, não surge nenhuma lacuna no processo circular da viabilização e asseguramento recíproco da autonomia privada e pública, ao menos não para uma autonomia social que devesse ser preenchida pela solidariedade dos partícipes de maneira diversa da que aliás já resulta do status próprio ao cidadão de um Estado. (HABERMAS, 2004,a, p.384).

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paradigma procedimentalista” (HABERMAS, 2004, p. 391). Como elemento de mediação entre termos que aparentemente são antagônicos, está o direito. Primeiramente, seu papel parece ser paradoxal, pois seu objetivo é conter o aspecto conflituoso da liberdade subjetiva via um ordenamento que garante a igualdade e que somente pode ser coerciva na medida em que são reconhecidas como legítimas no interior das liberdades comunicacionais que se desenvolvem nesse espaço.

Desse modo, a reconstrução do espaço público ocorre, segundo Habermas, dentro de uma perspectiva emancipatória, quando se contemplam procedimentos racionais, discursivos, participativos e pluralistas, que permitam aos atores que se apresentam na esfera pública um entendimento comunicativo e uma auto-regulação, fonte da legitimidade das leis. Nem o espaço doméstico nem o da produção contêm esse potencial. O modelo habermasiano amplia a esfera da atividade política, fecundando-a com os influxos comunicativos provenientes da sociedade civil; nesse modelo, as bases normativas da democracia estão em uma teoria da razão pós-metafísica, ou seja, na teoria da ação comunicativa e, de forma mais latente, na noção de discurso enquanto forma reflexiva desse tipo de ação5.

Dessa forma, o conceito de política deliberativa só pode ter referência empírica quando é delimitado à diversidade de estruturas comunicativas, na qual se forma uma vontade comum: não apenas por um autoentendimento de caráter ético, mas também pela busca de equilíbrio entre interesses divergentes e do estabelecimento de acordos, da checagem da coerência jurídica, de uma escolha de instrumentos racionais e voltada a um fim específico, e por meio, enfim, de uma fundamentação moral. Dessa forma, os modelos apresentados como uma forma de tipologia ideal podem impregnar-se e complementar-se. A política dialógica e a instrumental, quando as formas de comunicação estão respectivamente institucionalizadas, podem entrecruzar-se no médium das deliberações.

5 Para Habermas, apesar da importância do papel desempenhado pelos discursos de autoentendimento mútuo, em especial no que tange ao sentido de integração social, no interior de sociedades pluralistas – cultural e socialmente –, existem ações voltadas aos interesses e orientações de valor. Portanto, a justiça e a honestidade dos acordos se medem pelos pressupostos e procedimentos que precisam, eles mesmos, de uma justificação racional e até mesmo normativa sob o ponto de vista da justiça. Diversamente do que se dá com questões éticas, as questões de justiça não estão relacionadas desde a origem a uma comunidade em particular. O direito firmado politicamente, caso se pretenda legítimo, precisa ao menos estar em consonância com princípios morais que reivindiquem validação geral, para além de uma comunidade jurídica concreta (cf. HABERMAS, 2003,b, p. 285).

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Tudo depende, portanto, das condições de comunicação e procedimento que conferem força legitimadora à formação institucionalizada da opinião e da vontade.

O modelo de democracia sugerido por Habermas baseia-se nas condições de comunicação, sob as quais o processo político supõe-se capaz de alcançar resultados racionais, justamente por cumprir-se em todo o seu alcance, de modo deliberativo. Quando o cerne da teoria democrática passa a ser o conceito procedimental de política deliberativa, tem-se como resultado um modelo diferente tanto da posição liberal do Estado como defensor da sociedade econômica quanto da republicana, que vê o Estado como uma comunidade ética.

Seguindo as proposições de Habermas é importante destacar que tal compreensão da esfera pública politicamente ativa, intermediadora entre Estado e sociedade, precisa ser reavaliada, à medida que Estado e sociedade se interpenetram mutuamente, a partir de um desenvolvimento histórico concreto pelo qual passaram as sociedades ocidentais e que fora descrito pelo teórico em seu livro Mudança Estrutural da Esfera Pública, provocando o surgimento de uma esfera intermediária, ordenada por um direito social que vai se constituindo de relações semiprivadas e semipúblicas. De acordo com o teórico é preciso fixar-se no conceito de opinião pública, num sentido comparativo. Na base desse processo comparativo, é possível desenvolver critérios para definir o grau do caráter público da opinião. Esse modelo permite confrontar dois setores de comunicação politicamente relevantes: 1) opiniões informais, não-públicas, pessoais; 2) opiniões formais, institucionalmente autorizadas. As opiniões informais diferenciam-se pelo seu grau de obrigatoriedade social, que pode ser de cunho moral, legal e/ou político, de sorte que a essas opiniões corresponde um campo de ação determinada, que, neste caso, é a esfera de opinião quase-pública. Em contrapartida, as opiniões formais estão vinculadas às instituições reconhecidas e circulam em um espaço restrito e, embora tais opiniões quase públicas possam ser remetidas a um amplo público, elas não preenchem as condições de um pensamento público conforme o modelo liberal. Enquanto opiniões institucionalmente autorizadas, elas são sempre privilegiadas e não alcançam nenhuma correspondência recíproca com a massa não-organizada do público (cf. HABERMAS, 2003,b, p.286).

O grau de caráter público de uma opinião pode ser medida pelo seguinte: até que ponto esta provém da esfera pública interna à organização de um público constituído por associados e até que ponto a esfera pública interna à organização se comunica com uma esfera pública externa que se constitui no intercâmbio jornalístico

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publicitário através dos mídias e entre organizações sociais e instituições estatais. (HABERMAS, 2003,b,p. 288).

A partir de tais colocações, fica clara a ambivalência estrutural da própria esfera pública, tal qual concebida por Habermas, correspondente ao seu grau de deliberação e de poder decisório: de um lado, encontramos a esfera pública geral, caracterizada pelo debate público de problemas; por outro lado, há a esfera pública procedimentalmente regulada, na qual reside o papel efetivamente decisório; ou seja, nela repousa o sistema político, que é o responsável pelas decisões que refletem os interesses e influências da esfera pública geral ou dos locais de discussão extra-institucional6.

Esta separação efetuada por Habermas entre duas dimensões da esfera pública esta ligada a sua compreensão dos processos de modernização sofridos pelas sociedades ocidentais. Habermas, em sua teoria da ação comunicativa, sustenta uma diferenciação entre sistema e mundo da vida, como o resultado de problemas modernos. O sistema é composto por dois subsistemas, o Estado e o mercado. A racionalidade que opera no interior de tais processos é a ação pautada na racionalidade instrumental. Em contrapartida, o mundo da vida estrutura-se por meio da ação comunicativa e refere-se a todo o quadro societário compartilhado – tradição, cultura, solidariedade e cooperação. Na compreensão do autor,

[...] o agir comunicativo distingue-se, pois, do estratégico, uma vez que a coordenação bem sucedida da ação não está apoiada na racionalidade teleológica dos planos individuais de ação, mas na força

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Nas palavras de Habermas:A formação da opinião, desatrelada das decisões, realiza-se em uma rede pública e inclusiva de esferas públicas subculturais que se sobrepõem uma às outras, cujas fronteiras reais, sociais e temporais são fluidas. As estruturas de tal esfera pública pluralista formam-se de modo mais ou menos espontâneo, num quadro garantido pelos direitos humanos. E através da esfera pública que se organiza no interior de associações movimentam-se os fluxos comunicacionais, em princípio ilimitados, formando os componentes informais da esfera pública geral. Tomados em sua totalidade, eles formam um complexo “selvagem” que não se deixa organizar completamente. Devido à sua estrutura anárquica, a esfera pública geral está muito mais exposta aos efeitos de repressão e de exclusão do poder estatal – distribuído desigualmente –, da violência estrutural e da comunicação sistematicamente distorcida, do que as esferas públicas organizadas do complexo parlamentar, que são reguladas por processos. De outro lado, porém, ela tem a vantagem de ser um meio de comunicação isento de limitações, no qual é possível captar melhor novos problemas, conduzir discursos expressivos de auto-entendimento e articular, de modo mais livre, identidades coletivas e interpretações de necessidade. A formação democrática da opinião e da vontade depende de opiniões públicas informais que idealmente se formam em estruturas de uma esfera pública política não desvirtuada pelo poder. De sua parte, a esfera pública precisa contar com uma base social na qual os direitos iguais do cidadão conseguiriam eficácia social. (HABERMAS, 1997,tomo I, p. 32) .

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relacionalmente motivadora dos atos de entendimento, portanto, numa racionalidade que se manifeste nas condições requeridas para um acordo obtido comunicativamente. (HABERMAS, 1990, p. 72).

Com a modernização, esses sistemas se desequilibraram no que tange à sua integração. Esse processo foi denominado por Habermas uma “colonização do mundo da vida”: se, por um lado, o mundo da vida responde pela produção da integração social, o sistema, pautado na ação instrumental, é responsável pela “integração sistêmica”, que se caracteriza pela reprodução social. O desequilíbrio entre essas instâncias de racionalidade ocorre devido a uma disseminação do caráter sistêmico sobre o mundo da vida. Porém, esse desequilíbrio, que é uma marca das modernas sociedades, possibilita uma ampliação das estruturas comunicativas. O conflito entre Estado, mercado e mundo da vida leva este último a organizar-se em movimentos sociais fundadores da democracia que, na visão de Habermas, são a institucionalização no sistema político, nas sociedades modernas, dos princípios normativos da racionalidade comunicativa.

A esfera pública constitui o local de disputa entre os princípios divergentes de organização da sociabilidade, sendo que os movimentos sociais são os atores que reagem à reificação e burocratização, propondo a defesa das formas de sociabilidade ameaçadas pela racionalidade sistêmica. Tais movimentos disputam com o Estado e o mercado a preservação de um espaço autônomo e democrático de organização, reprodução cultural e formação de identidade e solidariedade. Nessa perspectiva, essa teoria discursiva propõe uma teoria normativa das interações sociais, baseada na capacidade racional da utilização cotidiana da linguagem. As interações são comunicativas quando os participantes estruturam seus planos de ação de forma consensual, com base em um acordo mútuo fruto da avaliação intersubjetiva de pretensões de validade. Para Habermas, a propensão ao entendimento mútuo constitui o telos imanente do uso da linguagem, assim como um meio de integração societal insubstituível. Sendo o agir comunicativo dependente de um interação linguística voltada ao entendimento, os participantes de tal processo comunicativo precisam coordenar suas ações com vista à definição cooperativa dos planos de ação, tendo como base o mundo da vida compartilhado intersubjetivamente. O entendimento linguístico tem como base de sua interação a pretensão de validade em cada ato de fala proferido, ou através dos dissensos estabelecidos acerca dessas pretensões de validade que foram colocadas em suspenso pelo processo discursivo.

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Esta estrutura teórica é sustentada por uma idéia de deliberação argumentativa, que atribui à esfera pública o papel de tornar-se o local da deliberação comunicativa, aonde as diversas concepções se colocam em contato, proporcionando uma rede de procedimentos comunicativos que se aproximam da realização do princípio democrático. A deliberação democrática envolveria uma soberania popular procedimentalizada e um sistema político ligado a redes periféricas de uma esfera pública política.

Nesta perspectiva, a esfera pública constitui-se no local onde os cidadãos podem problematizar publicamente uma condição de desigualdade de foro íntimo. As ações deliberativas dos cidadãos permitem que estes problematizem a sua exclusão dos arranjos políticos através de um princípio de deliberação social denominado princípio democrático. Para que a articulação entre a teoria do discurso e o processo de legitimação dos direitos positivos possa torna-se efetiva, Habermas desenvolve o princípio democrático, que postula: “apenas são válidas aquelas normas-ação que contam com o assentimento de todos os indivíduos participantes de um discurso racional” (HABERMAS, 1995, p.45). Segundo ele, deste modo ocorre uma modificação da forma de constituição da legitimidade do processo democrático, visto que, neste caso, a legitimidade democrática das decisões políticas não pode fundamentar-se na regra da maioria, mas tem de fundar-se no processo de discussão racional entre indivíduos que fazem um uso público da razão, produzindo, desta forma, um consenso racionalmente motivado. Desta maneira, o princípio democrático é o responsável por conferir legitimidade ao processo de implementação das normas e direitos positivos, visto que as decisões tomadas pelo parlamento são efetivamente influenciadas pelos influxos comunicativos da esfera pública geral.

Desta forma o teórico alemão constrói sua teoria acerca da legitimidade democrática tendo como uma de suas preocupações fundamentais a conservação de espaços “livres das determinações sistêmicas” que possam articular um mundo da vida racionalidade e os subsistemas do Estado e do mercado. Nesse sentido, a leitura da democracia a partir da teoria do discurso vincula-se a uma abordagem distanciada para a qual o sistema político não é nem o topo nem o centro da sociedade, nem muito menos o modelo que determina sua marca estrutural, mas sim um sistema de ação ao lado dos outros. Como a política consiste em uma espécie de ponto de apoio reserva na solução de problemas que ameacem a integração, ela certamente tem de poder se comunicar pelo médium do direito com todos os demais campos de ação legitimamente ordenados, seja qual for o seu direcionamento ou

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estrutura. Se o sistema político, no entanto, depende de outros desempenhos do sistema, isso não se dá em um sentido meramente trivial; ao contrario, a política deliberativa, realizada ou em conformidade com os procedimentos convencionais da formação institucionalizada da opinião e da vontade, ou informalmente, nas redes da opinião pública, mantém uma relação interna com os contextos de um mundo vital cooperativo e racionalizado. Justamente os processos comunicativos de cunho político que passam pelo filtro deliberativo dependem de recursos deste mundo vital que se formam de maneira espontânea ou que, em todo caso, só podem ser atingidos com grande dificuldade, caso o caminho escolhido para se tentar alcançá-los seja o do direcionamento político.

Democracia Deliberativa em debate

A partir do modelo deliberativista de democracia que fora defendido e construído por Habermas muitos teóricos, não só provenientes das Ciências Sociais, passaram a discutir os alcances e limites da proposta habermasiana, os principais pontos de discussão versão sobre o peso dado a um formalismo procedimental no interior da teoria, assim como a inexistência de um formato institucional voltado para os processos deliberativos. O conceito de racionalidade comunicativa como elemento possibilitador da construção da imparcialidade nos processos argumentativos tem sido criticado por alguns teóricos deliberativistas como um conceito que pode encobrir as relações de poder existentes nas sociedades, James Tully adverte dos perigos de um único modelo de raciocínio deliberativo. Grupos dominantes, que tem suas próprias maneiras habituais de raciocínio, sempre as apresentam como ‘canônicas, como universais, ou como exclusivamente aceitável’ (TULLY, 2002, p. 223). No ocidente, esse resultado tem sido alcançado tipicamente através da apresentação de formas particulares de raciocínio cultural e histórico como a maneira democrática ou moderna de alguém se apresentar e ser ouvido – a maneira ‘livre e igual’ de deliberar. O resultado tem sido um modelo conflitual de argumento, orientado a ganhar uma troca com os oponentes ao invés de buscar uma compreensão e um ajustamento mútuo. O modelo imparcialista promove uma forma singular de raciocínio acima de todas as outras e, conseqüentemente, falha em enxergar como ele próprio é moldado por identidades e práticas lingüísticas e sociais e questões culturais. Se o imparcialismo é orientado para um consenso produzido pela ‘força do melhor argumento’, então algumas vozes serão repudiadas como fracas, uniformizadas ou irracionais, e silenciadas ao longo do caminho (conf. TULLY, 2002; e YOUNG, 200, pp. 52-80).

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De acordo com Tully é necessário ter em mente que as práticas diferentes de raciocínio são fundamentadas em regras sociais distintas, repertórios locais, gêneros de argumentação e maneiras habituais de relacionamento intersubjetivo. Essas formas históricas e culturais de conhecimento e de convívio social são as bases intersubjetivas das práticas culturalmente diversas da deliberação. Existem inúmeras formas de questionamento social, no entanto o raciocínio imparcialista arrisca-se a excluir tudo isso em uma busca perversa do aceitável. De acordo com Tully uma ordem política legítima constitui-se em uma ordem continuamente ‘conciliadora’ ou ‘negociadora’, sempre aberta aos questionamentos discursivos – a prática crítica do pensamento e ação que previne a esclerose política e a indesejável sedimentação institucional.

Para o autor, ‘o primeiro e talvez o único universalizável princípio de deliberação democrática é audi alteram partem, “sempre escute o outro lado”, pois há sempre algo para ser aprendido através do outro lado’ (TULLY, 2002, p. 218). De acordo com esta perspectiva o raciocínio imparcialista é um argumento desenvolvido para retirar o foco das discussões do campo das relações de poder, ou seja, a imparcialidade argumentativa constitui-se no elemento possibilitador de discussões racionalmente motivadas e que direcionam a discussão deliberativa para um consenso racionalmente motivado a partir da força dos melhores argumentos. Uma vez que os pressupostos da racionalidade comunicativa constituem o pano de fundo possibilitador das posições imparciais fruto do uso público da razão orientada ao consenso motivado racionalmente. Contudo este raciocínio imparcialista tem sido fortemente criticado devido a seu grau de abstração e da sua auto-limitação no que tange a concepção de quais são os melhores argumentos. Rejeita-se fortemente a argumentação de que a deliberação sob as condições certas – livre de coerção e relações de poder – seja o elemento central na constituição da legitimidade das leis e políticas públicas. O elemento neufrágico não é uma avaliação das possibilidades de uma deliberação em condições inatingíveis que seguem regras argumentativas muito abstratas, mas uma melhor compreensão da natureza e significado da deliberação sob condições ‘não ideais’. (conf. FARRELY, 2004).

A crítica do ideal de imparcialidade na democracia deliberativa é feita um passo a frente por Iris Young, que aponta alguns aspectos problemáticos da perspectiva imparcialista. Em primeiro lugar, o ideal de imparcialidade expressa uma ficção, pois ele recai na suposição de que as pessoas podem transcender suas particularidades quando engajadas na deliberação. Em segundo lugar, o ideal de imparcialidade ‘reprime a diferença’ nesse caso, como Tully também nota, ele busca reduzir as formas complexas do raciocínio em um simples modelo de raciocínio conjunto. Em terceiro lugar, ele falsamente reduz uma multiplicidade de pontos de

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vistas possíveis no mundo para somente um ponto de vista – a visão que, supostamente, ‘todos os sujeitos racionais podem adotar’ (YOUNG, 1990, p. 100).

Para alguns deliberativistas os princípios da democracia deliberativa são independentes como também processuais (COHEN 1996; GUTMAN E THOMPSON 1996). Estes teóricos são críticos da abordagem puramente processualista defendida por Habermas, pois ela não capta o valor dos direitos básicos. Em Democracia e Discordância Gutmann e Thompson defendem uma avaliação da democracia deliberativa que inclua princípios independentes como também processuais. Esses incluem a liberdade básica e oportunidade justa, tais princípios são estendidos para as pessoas não somente pelo interesse da deliberação democrática, mas também pelo interesse da reciprocidade, respeito mútuo e integridade (GUTMANN e THOMPSON, 1996, p. 17). Mas se princípios independentes, ou até mesmo princípios processuais, são construídos na avaliação deliberativa de democracia então parece que os democratas deliberativos precisarão se engajar no mesmo tipo de acomodação teórica criticada por eles nas teorias da justiça, (Conf. FARRELY, 2004). Muito do debate atual entre os democratas deliberativos consiste exatamente nesse tipo de acomodação teórica. Princípios diferentes, processuais e/ou independentes, são defendidos como os princípios de democracia por teóricos democratas, contudo esses próprios princípios não são o resultado de qualquer processo democrático real.

Por exemplo, em ‘Qual tipo de Igualdade Política a Democracia Deliberativa Requer?’ Jack Knight e James Johnson examinam os tipos diferentes de igualdade deliberativa que os democratas deveriam defender. Eles argumentam que a deliberação democrática ‘requer oportunidade igual de acesso as influências políticas (KNIGHT e JOHNSON, 1997, p. 292). Porque os democratas deliberativos estão interessados nos efeitos que a distribuição social do poder tem na participação efetiva do processo deliberativo que eles próprios estão engajados em considerações acerca de qual “tipo” de igualdade faz-se necessária para o desenvolvimento de uma política deliberativa, debate este encontrado também nas teorias da justiça. Dessa maneira o espaço entre os teóricos da justiça e a democracia parece se estreitar significativamente. Como os teóricos da justiça, os democratas deliberativos estão preocupados com a distribuição de recursos materiais. O controle de recursos individuais tem um impacto na posição destes em relação ao processo deliberativo e dessa maneira alguns democratas deliberativos buscam considerar os efeitos que a distribuição social de poder e recursos têm na participação efetiva do processo deliberativo (Conf. FARRELY, 2004). Mesmo em Habermas é possível encontrar considerações sobre o papel, relativamente

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definidor, da distribuição social de recursos em especial na sua definição dos direitos básicos que definem a própria estrutura de todo ordenamento jurídico.

Alguns autores democratas deliberativos têm buscado salvar o ideal de democracia deliberativa do que consideram como uma aparente assimilação do constitucionalismo liberal, em especial no que tange ao modelo habermasiano de construção da legitimidade com base nas considerações de uma deliberação guiada por princípios constitucionais básicos. John Dryzek, por exemplo, argumenta que a democracia deliberativa perde a sua posição crítica quando ela é assimilada com o constitucionalismo liberal. A democracia é um projeto dinâmico e aberto e quando o estado liberal é visto como a chave para facilitar a deliberação autêntica as mudanças das realidades empíricas do mundo são ignoradas. De acordo com o autor o Estado liberal está sujeito as restrições impostas pela economia política capitalista transnacional. Neste modelo econômico a primeira tarefa de todos os Estado é manter a confiança dos investidores potenciais e correntes, para evitar perda de capital. Essa condição imperativa de elaboração de políticas introduz um elemento perigoso de condicionalidade o que na pratica real da deliberação acaba por reduzir drasticamente o alcance e a profundidade das definições da agenda pública. (DRYZEK, 2000, p. 29).

As proposições de Habermas quanto à possibilidade de construção de entendimentos pautados em processos argumentativos neutros com relação a concepções de bem e/ ou interesses particulares tem sido alvo de inúmeras críticas; de acordo com Gutmann e Thompson a imparcialidade impõe um tipo de moral absolutista: os raciocinadores imparciais em busca do melhor argumento não podem reconhecer que os discordantes devem ter boas razões para as posições que eles sustentam. Consequentemente, os democratas deliberativos como Gutmann e Thompson acentuam a importância de reconhecer que os interlocutores não são necessariamente discordantes por serem raciocinadores pobres, ou estarem direcionados unicamente por interesses parciais. Ao contrário faz-se necessário a construção deliberativa de razões aceitáveis mutuamente ou, caso não seja possível chegar a tal acordo, a elaboração de ajustamento consistente com respeito mútuo (cf. GUTMANN E THOMPSON, 1996, p. 79ff). Nesse contexto, a justificação pública requer que um cidadão ofereça razões que podem ser aceitas por outros que estão simplesmente motivados a encontrar razões aceitáveis mutuamente, em suma, no interior do processo deliberativo os cidadãos deveriam orientar-se por um raciocínio que seja justificável mutuamente e mutuamente ajustável. Gutmann e Thompson referem-se a essa posição como a busca por ‘uma discordância moral ou econômica’ (Idem, p.84). A deliberação pública deve ser buscada a partir da perspectiva da construção de argumentos que minimizam as rejeições das posições discordantes evitando um

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conflito desnecessário na caracterização do ponto de vista dos seus oponentes. O objetivo é buscar ‘pontos significantes de convergência entre a própria compreensão de alguém e daquelas dos cidadãos cujas posições, tomadas na sua forma mais compreensiva, alguém deve rejeitar’ (Idem, p. 85).

A posição habermasiana compreende que a garantia de liberdades subjetivas iguais é dependente do nível de clareza possível dos envolvidos, no que diz respeito a uma adequada interpretação das necessidades em questão e acerca dos pontos de vista relevantes, procedendo de tal forma que exerça ao mesmo tempo seu papel enquanto cidadão do Estado, utilizando-se para isso do uso público de suas liberdades comunicacionais, com o objetivo de construir um consenso racionalmente motivado e processado democraticamente, sobre as questões coletivamente importantes. “Essa concatenação interna (e recíproca) entre autonomia privada e pública, quando a entendemos corretamente, não é de forma alguma trivial, mas constitui, sim, o âmago normativo do paradigma procedimentalista”. Iris Marion Young faz uma importante crítica deste tipo de posição, considerando-a uma variante liberal da democracia deliberativa; para a autora, os teóricos deliberativistas deveriam rejeitar as posições que defendem pressupostos tais como: o principio de que a deliberação é culturalmente neutra e universal; e que o processo de discussão que objetiva alcançar entendimento deve ou começar com a compreensão compartilhada ou acatar um bem comum como seu objetivo.

Young argumenta que certos deliberativistas, ao tentarem sair do campo da defesa da imparcialidade, acabam por adentrar um terreno também ele problemático para a perspectiva deliberativista, a saber, da defesa da resolução de acordos pautados no bem comum. Em outras palavras, se as discussões partirem de uma noção de compreensão compartilhada ou aceitarem que o objetivo da deliberação seja o de alcançar um bem comum, então dever-se-ia deixar pouco espaço para a dimensão transformadora das políticas deliberativas. Para resguardar a democracia deliberativa contra essa consequência conservadora, Young propõe ver as diferenças de cultura e perspectivas sociais como um recurso que enriquece a transformação do processo deliberativo ao invés de algo que deva ser superado. Ela defende a concepção de democracia comunicativa (YOUNG, 1996), que reconhece a necessidade de uma concepção mais expansiva de comunicação política que não interprete os argumentos de uma forma culturalmente imparcial. Nem todas as culturas expressam a si mesmas num discurso que seja assertivo e confrontacional. Se o objetivo é assegurar que o processo democrático inclua essas outras pessoas e grupos, dever-se-á conceber a deliberação em outros moldes que não o confrontacional. Para Young os democratas deliberativos como

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Gutmann, Thompson e Habermas têm como objetivo principal que os desacordos deveriam ser resolvidos pela força do melhor argumento e não pela dependência econômica ou domínio político. Mas, se uma determinação da ‘força do melhor argumento’ em si privilegia certas pessoas, então a inclusão no processo deliberativo é ameaçada. Para essa tendência de exclusão, Young sugere que os democratas deliberativos apoiem uma concepção ampliada de comunicação democrática

Tem-se debatido muito, no interior das teorias democráticas, sobre a institucionalização da participação social no processo de definição de agendas públicas e da normatização do direito. No interior destas discussões, a teoria de Habermas tem recebido diversas críticas. Para Avritzer (AVRITZER, 2000, p. 40), cuja posição ilustra bem a critica de inúmeros autores a Habermas, existe uma contradição no interior da teoria de Habermas: de um lado, o conceito de deliberação funda todo o processo de legitimação dos direitos políticos, na medida em que o poder administrativo não possui a capacidade de gerar legitimidade. De outro lado, ele não é capaz de produzir arranjos institucionais, porque a sua forma não supõe nada mais que a influência em relação ao sistema político. Desta maneira, o autor deixa de dar um formato institucional à democracia deliberativa, de acordo com Habermas a institucionalização destes espaços tem como consequência um rompimento com a dinamicidade social que lhe era presente devido mesmo ao seu formato fluido e não burocrático, para Habermas institucionalizar os espaços de interação intersubjetiva do mundo da vida significa abrir as possibilidade de uma colonização sistêmica destes espaços pelas lógicas do poder e do dinheiro.

Dentro destas discussões acerca da institucionalização ou não dos espaços participativos Jean Cohen defende que, “porque os membros de uma associação democrática consideram os procedimentos deliberativos a fonte da legitimidade... eles preferem instituições nas quais as conexões entre deliberação e resultados sejam mais evidentes do que instituições nas quais tais conexões sejam menos claras”. (COHEN, 1989, p. 73). A tentativa teórica de Cohen consiste na transformação do processo de discussão argumentativa proposto por Habermas em um processo de deliberação institucional. Sue objetivo é, portanto, a de transformar o consenso sobreposto e hipotético numa forma de operação das instituições políticas, dentro de uma situação de pluralismo. Cohen defende que pode haver decisões que não ocorram por consenso e que, ainda assim, sejam legítimas. O argumento utilizado é o de que se o processo de decisão, ainda que por maioria, for um processo inclusivo e pautado na

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troca de razões, tal processo será aceito pela maioria enquanto legítimo (COHEN 1989; p.73)7.

A forma institucional se torna importante, dentro deste modelo de democracia deliberativa, na medida em que se constitui como um aparato de procedimentos, tanto formais quanto informais, que possibilitam reduzir ou eliminar os riscos que se apresentam à democracia deliberativa, tais como o populismo ou o elitismo, assim como permitir a formação de um processo que minimize as desigualdades e possibilite que as individualidades se desenvolvam sem produzir efeitos negativos para a sociabilidade.

Avritzer (2000, p.44), procurando responder à questão de qual seria a forma e os locais da institucionalização desta deliberação pública, argumenta que estes locais seriam os fóruns entre o Estado e a sociedade, nos quais se devem assegurar arranjos específicos que garantem a participação política. Em sua visão, os arranjos deliberativos argumentativos assumem a ideia de que a sociedade atual possui tal nível de pluralismo que a existência de sociedades parciais já é um fator que não pode mais ser relevado a um segundo plano, constituindo-se como ponto central nas discussões a respeito da democracia. Assim, coloca-se como um problema para a teoria democrática deliberativa a necessidade de procurar incentivar formas de socialização da informação assim como formas de experimentação que possibilitem a acomodação das diferenças em arranjos administrativos novos. Estes arranjos devem ocorrer fora do Estado, em um espaço capaz de dar ao processo argumentativo a flexibilidade necessária, assim como a possibilidade de interferência concreta na definição das políticas públicas e nos processos de normatização social. Os seus resultados, porém, devem ser capazes de vincular os atores de tal forma que os frutos de suas discussões gerem as instituições capazes de acomodar o pluralismo das sociedades democráticas atuais.

7 A crítica de Cohen no que diz respeito a noção de consenso em Habermas , aponta para uma questão importante e que esta relacionada com questões de tradução. Habermas não pressupõem como resultado objetivo das interações discursivas intersubjetivas a produção de um consenso, nos termos de um entendimento homogêneo e compartilhado por todos que exclui e/ou elimina o conflito. Em Habermas o resultado dos processos de interação discursiva podem, por seu caráter procedimental no âmbito das praticas deliberativas, construir entendimento racionalmente motivados, o que não significa pressupor a ausência do conflito. As interações são conflitivas nas sociedades modernas justamente pela existências de múltiplas concepções de bem. Desta forma para o teórico alemão serão os processos de desenvolvimento da racionalidade comunicativa na dimensão do discurso que podem construir entendimentos racionais mínimos. Em geral o termo alemão (Verständnis) foi traduzido para o inglês e para as linguas latinas como consenso, entretanto nos parece que no interior do constructo teorico habermasiano a melhor tradução para este termo seria entendimento e não consenso, uma vez que especialmente nas linguas latinas o termo consenso é carregado de uma certa substancialidade, na medida em que nos remete exatamente a ideia da ausência de conflito e de homogeneidade, noções estas que não estãopresente de forma substantiva na teoria discursiva de Habermas.

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Para Avritzer, James Bohman faz uma tentativa de integrar elementos dialógicos a uma concepção de razão pública e, ao mesmo tempo, de integrar os públicos informais com algum elemento capaz de institucionalizar a deliberação pública. Assim, Bohman transforma a influência quase fictícia dos públicos no sistema político em uma real influência. Desta forma, é possível pensar em um processo público de institucionalização da democracia deliberativa (AVRITZER 2000; p.43).

“[o] êxito de uma forma deliberativa de democracia depende da criação de condições sociais e de arranjos institucionais que propiciem o uso público da razão. A deliberação é pública na medida em que estes arranjos permitam o diálogo livre e aberto entre cidadãos capazes de formular juízos informados e racionais em torno às formas de resolver situações problemáticas” (BOHMAN, 2000, P.49).

Frente as questões sobre o lugar da participação na teoria deliberativa uma importante contribuição é dada pelos teóricos J. Cohen e A. Arato em seu livro Civil Society and Political Theory, os teóricos oferecem uma interpretação na qual a sociedade civil ocupa um lugar especifico nos processos de interação entre o mundo da vida e os subsistemas (Estado/Mercado). A tese central apresentada pelo autores, consiste na defesa de que o conceito de mundo da vida, tal como apresenta Habermas, tem dois níveis distintos que, se diferencia e clarificada adequadamente, permitiria apontar com precisão o lugar exato da sociedade civil dentro da estrutura geral de uma perspectiva deliberativa das democracias contemporâneas. De um lado, o mundo da vida se refere a reserva de tradições conhecidas implicitamente, e os pressupostos existentes que são incorporados na língua e na cultura aos quais os indivíduos recorrem na vida diária(este portanto constitui o primeiro nível do mundo da vida). Esta existência estruturada linguisticamente de conhecimento, a reserva de nossas convicções imóveis, e as formas de solidariedade e competência que se utiliza e das quais dependem são incorporadas pelos atores. Assim, os indivíduos não podem nem sair de seu mundo da vida nem colocá-lo em duvida como um todo. Especialmente nestes níveis Habermas integrou os conceptos de cultura de Parsons, dando lhe, contudo, as estruturas de significado e recursos lingüísticos interpenetrantes em vez de um sistema que mantém os limites.

Por outro lado, segundo Habermas o mundo da vida possui três componentes estruturais: cultura, sociedade e personalidade, estes podem ser diferenciados uns dos outros.

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Na medida em que os atores se entendem mutuamente e estão de acordo sobre sua situação, compartilham uma tradição cultural. Na medida em que coordenam sua ação por meio de normas reconhecidas intersubjetivamente, atuam como membros de um grupo social solidário. À medida que os indivíduos crescem dentro de uma tradição cultual e participam da vida no grupo, internalizam as orientações de valor, adquirem competências de ação generalizadas e desenvolvem identidades individuais e sociais. A reprodução do contexto cultural-linguistico, mas também da segunda dimensão do mundo da vida – seus componentes institucionais e sociológicos – ocorrem por meio da comunicação. Isto implica nos processos reprodutivos de transmissão cultural, integração social e socialização.

A discussão que faz Habermas dos componentes estruturais do mundo da vida se concentra na reconstrução das formas de construção do conhecimento, das solidariedades, das quais se depende para os processos de integração social, e das competências abstratas das personalidades que a cultura coloca a nossa disposição. Mas esta reconstrução implica um conjunto de instituições que não podem igualar-se nem com o conhecimento dos antecedentes culturais nos quais se apoia, nem com os mecanismos de direção que coordenam a ação na economia (dinheiro) e das organizações formalmente organizadas, estruturadas burocraticamente (poder). De acordo com os teóricos é aqui, no nível institucional do mundo da vida, que se pode arraigar o conceito de sociedade civil acessível hermeneuticamente por estar integrado socialmente. Este conceito incluiria todas as instituições e formas associativas que requerem a interação comunicativa para sua reprodução, e que dependem principalmente dos processos de integração social para coordenar a ação dentro de suas fronteiras. Para Cohen e Arato é possível entender este nível institucional da sociedade civil a partir de uma analise da interação dos meios próprios aos subsistemas e a dimensão do mundo da vida, ou seja, o dinheiro e o poder político requerem, para seu estabelecimento e fundamentação como meios, uma institucionalização no próprio mundo da vida do qual estão diferenciados. Isto é possível mediante os mecanismos da lei civil (ou privada) e da lei pública, respectivamente. Estes mecanismos constituem e estão enraizados em dois complexos distintos de instituições: o privado e o público. Desta forma se observamos a partir dos sistemas de direção, o modelo de três partes(proposto por Habermas) se articula como um modelo de quatro partes entendido nos termos de uma duplicação não só da esfera pública, mas também da esfera privada, neste modelo as esfera pública e privada não são vistas como mediações, mas sim como esferas dentro do mundo da vida. Desta forma podemos entender o conceito de sociedade civil como a estrutura institucional de um mundo da vida moderno estabilizado pelos direitos

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fundamentais, que incluíram dentro de seu campo as esferas do público e do privado constituídas a partir de sua relação intrínseca com o mundo da vida. As instituições dos direitos fundamentais representam um componente essencial da modernização do mundo da vida porque sua estrutura pós-convencional esta ligada a princípios legais ao invés de regras normativas, assim como pelo fato de que os direitos podem contribuir para a modernização em um sentido da diferenciação. Portanto, este espaço apenas pode ser definido no contexto de uma forma adequadamente moderna de cultura política que valoriza a auto-organização societal e a publicidade. A pratica dos direitos e das correspondentes formas de aprendizado social ajudam, por sua vez, a estabelecer precisamente esta cultura política.

Os princípios legitimadores da democracia e dos direitos são compatíveis apenas com um modelo de sociedade civil que institucionalizada a comunicação democrática em uma multiplicidade de públicos e define as condições de autonomia individual liberando a esfera intima de todas as formas tradicionais, assim como modernas, de desigualdade e carência de liberdade. O modelo de direitos que aqui é requerido uniria os direitos de comunicação (a esfera pública) e os direitos da esfera intima (ou privada) no centro do catálogo de liberdade constitucional. Estes teriam prioridade sobre todos os direitos políticos, econômicos e sociais, que só constituiriam seus pré-requisitos. O estabelecimento deste catálogo sem dúvida significaria a institucionalização de um novo modelo de sociedade civil.

Segundo os autores esta teoria tem como objetivo contribuir para a descolonização do mundo da vida, processo este que tem se desenvolvido na atualidade por meio da penetração das lógicas do dinheiro e do poder no seu interior, em especial os autores enfatizam a contribuição possível desta teoria para a transformação cultural no sentido de quebrar o padrão de realimentação seletiva desenvolvido no interior da cultura. Em resumo, o horizonte do conceito de sociedade civil esta fundamentado na conservação dos limites entre os diferentes subsistemas e o mundo da vida, assim como na influência de considerações normativas baseadas nos imperativos de reprodução do mundo da vida, sobre as esferas de ação organizadas formalmente. Os contextos do mundo da vida, liberados dos imperativos do sistema, poderiam então abrir-se para permitir a substituição, quando forem convenientes, de normas asseguradas tradicionalmente por normas formadas comunicativamente, o aspecto auto-limitador da teoria se refere as restrições da coordenação comunicativa das ações no núcleo institucional da própria sociedade civil, em lugar de impor este principio organizador a toda a sociedade e desdiferenciar assim os mecanismos de direção e, portanto, a sociedade

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como um todo. Em Cohen e Arato a sociedade civil, enquanto âmbito institucionalizado do mundo da vida, é o espaço no qual as lógicas próprias de cada âmbito da sociedade entendida em dois níveis se entrecruzam em processo conflitivos coordenados comunicativamente. Esta interação pressupõem a criação de esferas no interior dos subsistemas (Estado e Mercado) nas quais a sociedade civil pode se expressar e estabelecer a política de influencia, ou seja, a sociedade civil muito mais que um âmbito reativo aos expansionismos próprios dos subsistemas opera como ambiente ofensivo em relação ao Estado e ao Mercado buscando, dentro destes espaços de representação, participar concreta e propositivamente da construção das normatividades sociais de toda ordem.

Alguns autores têm se debruçado no estudo das formas concretas nas quais esta participação política dos diversos atores sociais poderiam se expressar por meio de arranjos institucionais específicos; um dos mecanismos de participação freqüentemente mencionados é o surgimento de orçamentos participativos que, de acordo com Santos, manifestam-se como tentativas de articulação entre representatividade e participação cidadã concreta8.

Na interpretação de Avritzer, tais princípios abrangentes podem manifestar-se em três formas institucionais participativas. Primeiro, em assembléias regionais no interior das quais há uma participação individualizada, que é aberta a todos os cidadãos e cujas regras são decididas coletivamente. O segundo ponto está ligado a um princípio distributivo, que tem a capacidade de modificar as desigualdades preexistentes em relação à distribuição de bens públicos. E em terceiro lugar existe uma ferramenta de combinação entre o processo participativo de deliberação e o poder político. Estas “garantias institucionais” para autores como Bohman, Cohen e Avritzer são os elementos responsáveis por uma definição de democracia deliberativa em sentido forte, ou seja, constituem-se nas garantias legais da prática deliberativa pública tornando o modelo mais estruturado do que aquele oferecido por Habermas que defende a não institucionalização destes espaços participativos, de acordo com estes teóricos estes espaços não seriam engolidos pelas lógicas sistêmicas como argumenta Habermas, pois a sociedade civil possui uma lógica que também lhe é própria outro fator

8 tais espaços possuem três características principais: “(1) participação aberta a todos os cidadãos sem nenhum status especial atribuído a qualquer organização, inclusive as comunitárias; (2) combinação de democracia direta e representativa, cuja dinâmica institucional atribui aos próprios participantes a definição das regras internas; e (3) alocação dos recursos para investimentos baseada na combinação de critérios gerais e técnicos, ou seja, compatibilização das decisões e regras estabelecidas pelos participantes com as exigências técnicas e legais de ação governamental, respeitando também os limites financeiros.” (Santos, 2002, p. 66)

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