Ultra-sonografia na avaliação das afecções
agudas do sistema músculo-esquelético.
Parte I: afecções não-traumáticas
Rafael Burgomeister Lourenço
1, Gustavo Alcoforado Franco Lima
1, Ricardo Tadao Yonezaki
2,
Rubens Mitsuo Tanaka
2, Marcelo Rocha Correia da Silva
2, Miguel José Francisco Neto
3,
Marcelo Buarque de Gusmão Funari
4Artigo de Revisão
Recebido para publicação em 6/7/2007. Aceito, após revisão, em 14/10/2008.
Trabalho realizado no Hospital Israelita Albert Eins-tein, São Paulo, SP.
1 Médicos Radiologistas, Plantonistas do Serviço de
Imagem do Hospital Israelita Albert Einstein.
2 Médicos Radiologistas do Serviço de Imagem do
Hospital Israelita Albert Einstein.
3 Doutor em Radiologia, Médico Assistente do
Ins-tituto de Radiologia do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (InRad/HC-FMUSP), Chefe do Serviço de Ultra-Sonografia do Serviço de Imagem do Hospi-tal Israelita Albert Einstein.
4 Doutor em Radiologia, Médico Assistente do
Ins-tituto de Radiologia do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (InRad/HC-FMUSP), Coordenador do Depar-tamento de Imagem do Hospital Israelita Albert Einstein.
Correspondência: Dr. Rafael Burgomeister Lou-renço. Serviço de Medicina Diagnóstica e Preven-tiva (Departamento de Imagem). Rua Albert Eins-tein, 627/701, 4º andar, Morumbi. São Paulo, SP, 05651-901. E-mail: rafaburgo@einstein.br
Resumo
A ultra-sonografia é um método eficaz na avaliação de afecções agudas acometendo o sistema músculo-esquelético, constituindo importante arma propedêutica nos serviços de atendimento de urgência. O ultra-som permite a avaliação de ampla variedade de lesões de origem não-traumática, tais como lesões infecciosas articulares ou extra-articulares, e a avaliação de lesões não-infeccio-sas, tais como doenças bursais e tendíneas agudas ou agudizadas. Será apresentada breve revi-são das principais indicações do exame ultra-sonográfico, ilustrada com casos típicos provenien-tes de arquivo digital, sendo discutidos os achados fundamentais para a caracterização e o diag-nóstico das afecções não-traumáticas mais freqüentes. Todos os casos apresentados procuraram o serviço de pronto-atendimento do nosso hospital devido a queixas agudas relacionadas ao siste-ma músculo-esquelético.
Descritores:
Ultra-som; Sistema músculo-esquelético; Artrite infecciosa; Celulite; Tendinopatia; Bursite.
A
fecções agudas do sistema músculo-esquelético constituem queixas freqüentes nos serviços de urgência. Apesar de comumente não se associarem a risco de morte, atrasos terapêuticos podem acarretar danos permanentes, incapacidade e depen-dência. A avaliação radiológica é o método de escolha na avaliação inicial de lesões ósseas, porém tem baixa acurácia na avaliação das partes moles[1]. A ressonância magnética possui valor indiscutível na avaliação do sistema músculo-esquelético, entretanto, o alto custo operacional e a disponibilidade restrita limitam sua utiliza-ção no ambiente de urgências. Este cenário permitiu a incorporautiliza-ção da ultra-sono-grafia (US) no arsenal diagnóstico das afecções músculo-esqueléticas no ambiente de urgências[2]. A US é um método de baixo custo, amplamente disponível e dotado de excelente resolução, permitindo avaliações dinâmicas em tempo real[1,3–7]. Ape-sar de geralmente limitada à avaliação de partes moles superficiais, a US pode per-mitir o diagnóstico de diversas afecções do sistema músculo-esquelético, com acu-rácia suficiente para garantir resolutividade diagnóstica e terapêutica[2].DISCUSSÃO
A US possui variadas aplicações, podendo ser utilizada no estudo de lesões trau-máticas ou não-trautrau-máticas acometendo o sistema músculo-esquelético[1–6]. Adicio-nalmente, representa um método prático e eficaz na orientação de procedimentos invasivos diagnósticos ou terapêuticos[4–6,8]. O conhecimento das principais aplica-ções do estudo ultra-sonográfico é importante na prática do radiologista envolvido
Compõem as indicações mais consagradas da US. Destacam-se a avaliação de afecções infecciosas articu-lares ou extra-articuarticu-lares e a avaliação de lesões infla-matórias não-infecciosas, tais como as bursopatias e ten-dinopatias.
a) Lesões infecciosas
Infecção de partes moles superficiais – A celulite é muito comum na prática hospitalar[5]. Acomete indis-criminadamente qualquer grupo etário, sendo facilitada por fatores como estase, má higiene, lesões da pele e imunocomprometimento. O quadro ultra-sonográfico é caracterizado por espessamento e hiperecogenicidade de partes moles superficiais, com borramento e padrão em “mosaico” do subcutâneo (Fig. 1A). Este aspecto é inespecífico, indistinguível do edema não-infeccioso, a não ser que achados associados como aumento da vas-cularização ou complicações infecciosas estejam presen-tes[4,5,9] (Fig. 1B). Atenção especial deve ser dedicada a pesquisa de condições predisponentes, extensão do aco-metimento e presença de complicações associadas, es-pecialmente abscessos, fístulas viscerais e extensão a compartimentos específicos (osteomielite, pioartrite, piomiosite, bursite ou tenossinovite supurativas)[4,5].
tuito[4], sendo caracterizada por irregularidades da su-perfície óssea cortical, espessamento periosteal e cole-ções (subperiosteais ou em partes moles), eventualmente apresentando comunicação com a cavidade medular através de roturas corticais[5,9] (fístulas).
Piomiosite – Acomete comumente grandes grupa-mentos musculares dos membros inferiores. É caracte-rizada por aumento volumétrico do ventre muscular, hiperecogenicidade difusa (edema) e hiperemia[5] (Fig. 2). Nos casos avançados se identificam focos hipoecogêni-cos irregulares, caracterizando edema acentuado ou áreas de necrose[4]. O coalescimento destes focos pode resultar na formação de abscessos.
Pioartrite – A artrite séptica é uma condição grave, resultando em seqüelas limitantes quando não diagnos-ticada e tratada precocemente[4–6]. Acomete indivíduos de todos os grupos etários, porém é mais freqüente e deletéria na faixa pediátrica. As articulações mais comu-mente acometidas são o quadril, joelho, ombro, cotovelo e tornozelo[4,5]. Qualquer paciente com sintomas infec-ciosos, dor periarticular e derrame articular deve ser encarado com portador de pioartrite. A US é um mé-todo altamente sensível na detecção de derrame articu-lar[4,6,7,10], cujo valor preditivo negativo confere ao clínico
Fig. 1 – (A) Celulite: espessamento e hiperecogenicidade da pele e do subcutâneo, com borramento e aspecto em “mosaico” da gordura, indis-tinguível do edema por estase ou traumático. (B) Aumento da vascularização sugerindo acometimento inflamatório, associado a pequena área de liquefação central.
Fig. 3 – (A) Pioartrite do ombro (pós-operatório): derrame articular gleno-umeral com material particulado (**) e espessamento sinovial (seta). (B) Pioartrite do quadril: derrame articular (**) com aumento da vascularização capsular e periarticular. (C) Derrame inflamatório no recesso articular anterior do cotovelo (**).
mitantes (Fig. 3). Dentre os diagnósticos diferenciais se destacam as sinovites inflamatórias assépticas, especial-mente a sinovite transitória do quadril (Fig. 4). b) Lesões não-infecciosas
Tendinopatias – Podem ter causas diversas, relacio-nadas a acometimento inflamatório, infeccioso, traumá-tico ou por hipersolicitação/sobrecarga, resultando em lesões agudas ou crônicas (com eventuais episódios de agudização).
As tendinoses acometem tendões sem bainha sino-vial, sendo particularmente comum o comprometimento dos tendões calcâneo, patelar e quadricipital, além do
Fig. 1 – (C) Celulite e abscesso: área de liquefação geográfica, com paredes irregulares e conteúdo hipoecogênico (+...+). (D) A extensa coleção isoecogênica no dorso do pé (setas) foi identificada mais facilmente durante a compressão dinâmica. (E) Abscesso no mento (seta), com extensão profunda, em contato com a superfície óssea mandibular (***), sem sinais francos de osteomielite associada.
segurança suficiente para o rastreamento de outras afec-ções[5]. O principal achado ultra-sonográfico envolve a detecção de derrame articular, freqüentemente asso-ciado a material particulado (débris)[4–6]. Comumente há espessamento sinovial e hiperemia periarticular
conco-Fig. 2 – Piomiosite pós-injeção intramuscular: aumento volumétrico e hiperecogenicidade da musculatura glútea (****), assimétrica em relação ao lado sadio (seta curva), sem coleções; alterações inflamató-rias em partes moles superficiais (seta reta), compatíveis com celulite. O uso de transdutor de baixa freqüência (2–5 MHz) permitiu melhor análise das estruturas profundas.
manguito rotador (especialmente o supra-espinhal). Os achados ultra-sonográficos envolvem espessamento ou afilamento tendíneo, desorganização arquitetural, he-terogeneidade textural e hipoecogenicidade focal ou difusa[7,8,11–13]. Tais achados estão relacionados a dege-neração intratendínea e focos de microrroturas de fibras com acúmulo de material necrótico, tecido de granula-ção, edema e hemorragia[7]. Maiores graus de degene-ração podem predispor a roturas, caracterizadas por áreas de descontinuidade de fibras, preenchidas por líquido[8,12,13](Fig. 5A).
As tenossinovites acometem tendões envolvidos por bainha sinovial, sendo particularmente comum o com-prometimento dos tendões da cabeça longa do bíceps braquial e dos tendões flexores e extensores das extremi-dades. Os achados ultra-sonográficos envolvem disten-são líquida da bainha peritendínea, espessamento sino-vial e hiperemia[7,14], eventualmente associados a sinais de degeneração, como os observados nas tendinoses (Figs. 5B e 5C).
das calcificações no interior de bursas, na cavidade ar-ticular ou no osso subjacente, com intensa inflamação reacional.
Bursopatias – Afecções bursais também podem evo-luir com dor intensa, devido a episódio agudo ou agudi-zação de bursopatia crônica. A localiagudi-zação periarticular, próxima a proeminências ósseas, determina sintomas que podem ser equivocadamente imputados a alterações articulares ou tendíneas. Muitas vezes estas condições estão associadas e a US pode caracterizar o componente predominante, orientando a terapêutica. O padrão ul-tra-sonográfico típico envolve distensão líquida da bur-sa, espessamento parietal e do revestimento sinovial, eventualmente associados a hiperemia[7,14] (Figs. 7A e 7B). O acometimento de bursas profundas, como das bursas subacromial-subdeltóidea e trocantérica, comu-mente se associa a alterações tendíneas, como lesões dos tendões do manguito rotador ou glúteos. Bursas super-ficiais, como a pré-patelar, infrapatelar superficial e ole-craniana, estão predispostas a acometimento traumático ou inflamatório/infeccioso[13], devendo ser diferenciadas de coleções ou tumores[10] (Figs. 7C e 7D).
Bursites químicas resultam da irritação pela depo-sição de substâncias como sangue ou depósitos
cristali-Fig. 5 – (A) Tendinopatia do supra-espinhal: tendão heterogêneo, espessado e hipoecogênico, apresentando foco de descontinuidade de fibras preenchido por líquido, caracterizando rotura parcial (seta). (B) Lesão aguda por hipersolicitação dos tendões do II compartimento sinovial extensor do punho: distensão da bainha por líquido anecogênico, sem espessamento sinovial significativo. (C) Tenossinovite infecciosa acome-tendo o tendão tibial anterior: distensão da bainha sinovial por líquido espesso (seta) associada a hipertrofia sinovial.
Fig. 4 – Sinovite transitória do quadril: derrame articular hipoeco-gênico (**) e espessamento sinovial (seta), aspecto indistinguível da pioartrite pelos métodos de imagem.
Fig. 6 – Paciente jovem, referindo dor aguda no ombro. Calcificação compacta no tendão subescapular (A) e calcificação amorfa protruindo junto à superfície bursal do tendão supra-espinhal (B), com discreto espessamento das paredes da bursa subacromial-subdeltóidea associado. Estes achados são compatíveis com tendinopatia calcária, provavelmente relacionada a migração ou reabsorção dos depósitos cristalinos loca-lizados no tendão supra-espinhal. Radiografia simples (C) demonstrando facilmente a densa calcificação no subescapular (seta). A calcificação do supra-espinhal é tênue, sendo de difícil detecção radiográfica (cabeça de seta).
Fig. 7 – (A) Bursite subacromial-subdeltóidea aguda: distensão líquida (**) com acentuado espessamento parietal e sinovial (seta). (B) Sinovite caracterizada por hiperemia ao Doppler. O acometimento de bursas profundas, como as bursas su-bacromial-subdeltóidea e trocantérica, freqüentemente se associa a alterações ten-díneas locais (lesão do manguito rotador ou tendões glúteos). (C) Bursite pré-patelar: imagem sagital com o joelho em flexão demonstrando a bursa localizada superficialmente à patela (**), distendida por líquido hipoecogênico (seta). (D) Bursite olecraniana: material espesso (seta) distendendo a bursa, superficial ao olécrano (***).
nos. O aspecto ultra-sonográfico é idêntico ao das de-mais bursites, associando-se à caracterização de coágu-los ou depósitos cristalinos intrabursais.
Rotura de cistos poplíteos – O cisto de Baker re-presenta um recesso da bursa do semimembranoso/ gastrocnêmio medial[7,13] e comumente sinaliza afecção da cavidade articular, devido à comunicação freqüente entre ambos[12,15]. Algumas artropatias inflamatórias determinam a produção de enzimas que podem causar erosão parietal, hemorragia, rotura e extravasamento do conteúdo do cisto[7,8,11,15]. O quadro clínico envolve edema e empastamento assimétricos agudos, simulando
trombose venosa profunda. Os achados ultra-sonográ-ficos envolvem acúmulo de líquido no subcutâneo ou compartimento intermuscular da perna, edema de par-tes moles, além de irregularidades e má delimitação parietal do cisto[7,8] (Fig. 8).
REFERÊNCIAS
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Abstract. Ultrasonographic assessment of acute musculoskeletal dis-eases. Part I: non-traumatic lesions.
Ultrasonography is accurate in the evaluation of acute musculo-skeletal injuries and became an important diagnostic method in the urgency department. Ultrasonography allows evaluation of di-verse non-traumatic lesions, as infectious articular or extra-articu-lar lesions, and non-infectious diseases, as acute tendon or bur-sal diseases. This article review the role of sonographic assess-ment in the acute musculoskeletal setting, illustrated with cases from soft copy archives, discussing the main aspects of the most common musculoskeletal complains in the urgency department. Keywords: Ultrasound; Musculoskeletal system; Infectious arthritis; Cellulites; Tendon disease; Bursitis.
Fig. 8 – Rotura aguda de cisto de Baker: acúmulo focal de líquido no subcutâneo da perna (***), com edema de partes moles (seta); irre-gularidades com má delimitação das paredes do cisto; o quadro clínico deste paciente era sugestivo de trombose venosa profunda.