JOSÉ FÉLIX RIBEIRO
ECONOMISTA
A evolução da economia portuguesa foi caracterizada nos últimos vinte anos por três processos:
– um forte crescimento do sector não mercantil da economia devido à ampliação das funções do Estado na oferta de “bens de mérito” (educação, saúde e cobertura de riscos individuais), e na realização de transferências para as famílias, como contrapartida da “poupança forçada”captada pelo Estado,no âmbito do sistema de segurança social; – uma profunda modernização do sector mercantil e “não transaccionável” da economia, onde se concentraram grandes investimentos destinados, por um lado, a reabsorver elevados défices acumulados desde a década de 60 (e só progressivamente reabsorvidos com a disponibilização de fundos estruturais da União Europeia) e, por outro, a introduzir novas soluções tecnológicas e novos serviços que estas tornaram possíveis;
– uma limitada mudança na carteira de bens e serviços transaccionáveis, em que se destacaram os investimentos directos estrangeiros no sector automóvel e da electrónica, e a deslocação para novos segmentos em actividades exportadoras tradicionais (do turismo associado ao golf, à produção de papel e ao forte crescimento do sector do calçado).
Portugal
recua
face à
Este padrão de desenvolvimento foi aprofundado pelo choque que representou a adesão de Portugal à União Económica e Monetária (UEM), na ausência de políticas que limitassem alguns dos seus impactos “perversos” no funcionamento da economia portuguesa. Assim:
– a queda das taxas de juro desencadeou uma forte procura de crédito ao consumo e ao investimento residencial das famílias;
– a perda de competitividade nas exportações e a compressão das margens, conjugadas com o processo anterior, levou a uma reorientação em larga escala da actividade empresarial para a zona dos bens e serviços não transaccionáveis.
P
RESSÕES EXTERNAS
AO AJUSTAMENTO ESTRUTURAL
Em anos recentes a economia portuguesa tem estado sujeita a três grandes forças de ajustamento estrutural:
– por um lado, os compromissos assumidos no âmbito do Pacto de Estabilidade e Crescimento (PEC) forçam a uma redução na zona de actividades, sob a responsabilidade do Estado, com uma gradual transferência para a área mercantil não tran-saccionável, sob a forma de parcerias público/-privadas que reforçam a tendência dos actores empresariais (de alguma dimensão) a concentrarem-se no “concentrarem-serviço” do mercado doméstico;
– por outro lado, a concorrência das economias emergentes, e dos novos Estados membros da União Europeia, veio reduzir drasticamente as oportunidades de crescimento assentes nas actividades exportadoras com que Portugal se apresentou nos mercados internacionais, nas duas últimas décadas, levando a uma inevitável queda do investimento privado endógeno, na área dos bens e serviços transaccionáveis, por dificuldade em
encontrar novas actividades em que seja antecipável um crescimento sustentado de exportações; – por outro lado ainda, uma mudança duradoura do
patamar dos preços do petróleo e gás natural, com um grande impacto numa economia com grande intensidade energética do produto, e forte dependência de combustíveis fósseis importados; esta mudança adiciona-se à anterior, para antecipar um processo de degradação continuado da balança corrente, se mais nada acontecesse.
O contexto internacional, que se pode hoje antecipar para o período 2007/15, é altamente gravoso e muito complexo para Portugal devido a cinco factores:
– uma competição acrescida nos bens e serviços, nomeadamente a que vai ser determinada pela entrada de novos competidores nos produtos e serviços menos exigentes em qualificações, e pela ascensão das economias emergentes, ao longo das cadeias de valor de actividades em que conseguiram “entrar”; esta dinâmica exigirá a Portugal uma deslocação ainda mais pronunciada (mas também mais diversificada) para serviços pessoais (turismo, turismo residencial, serviços de saúde e reabilitação), em paralelo com a exploração de novas oportunidades em indústrias e serviços de maior valor acrescentado, com mais intensidade de tecnologia e mais exigentes em qualificações; – uma forte competição mundial pelos talentos e
qualificações resultantes da necessidade das eco-nomias mais desenvolvidas prosseguirem na exploração da sua base de conhecimentos científicos, em direcção a inovações tecnológicas, quando vão enfrentar um processo de envelhecimento da sua população activa; esta competição pelos talentos torna evidente que uma aposta na formação sem incentivos paralelos ao investimento, por parte de operadores multinacionais (empresas e universidades), que
localizem em Portugal actividades mais sofisticadas, virá a determinar uma fuga acelerada dos recursos humanos (de maior valor), formados em Portugal, bem como uma crescente procura de serviços de ensino superior junto de instituições localizadas fora do País; – uma alteração prolongada nos mercados energéticos,
traduzindo-se na elevação dos preços para um patamar mais elevado, e uma crescente volatilidade, não só imputável a factores geopolíticos, como ao desaparecimento de mecanismos de regulação que funcionaram desde os anos 80 do século XX. Portugal vai experimentar uma elevação da sua factura energética que afectará a já deficiente compe-titividade nos sectores de bens e serviços transaccionáveis, acompanhada por custos crescentes do modelo de funcionamento energético da economia portuguesa. Este modelo traduz-se no crescimento das emissões de gases com efeito de estufa muito para além dos compromissos que assumiu no quadro da União Europeia, relativamente ao cumprimento do protocolo de Kyoto; os problemas de sustentabilidade ambiental daquele modelo estão intimamente associados ao padrão de mobilidade, por sua vez, inequivocamente, ligado a uma urbanização extensiva e segregadora de funções, que tem caracterizado as formas de ocupação do território; – um forte impacto das alterações climáticas em
actividades em que Portugal tem maior com-petitividade a curto prazo, como são as actividades de turismo e turismo residencial, cuja sustentabilidade irá depender da disponibilidade de recursos hídricos, fortemente afectados pela recorrência de secas e pela poluição dos lençóis freáticos, irá exigir medidas de mitigação no que se refere aos impactos das alterações climáticas sobre as zonas costeiras;
– uma evolução demográfica marcada por um triplo envelhecimento, da população em geral, da população activa e da população idosa, com distintos
Portugal e a
justaposição
de “três
economias”
Para facilitar a avaliação da situação da
economia e sociedade portuguesas, e
dos desafios que se lhe colocam, é
vantajoso considerar que a economia
portuguesa pode ser decomposta, em
termos de análise estrutural/funcional,
em três grandes tipos de actividades:
– a produção de serviços não
mercantis, da responsabilidade do
Estado, incluindo serviços de que
tem monopólio por corresponderem
a funções de soberania, e serviços
em que assegura uma oferta
dominante e que correspondem a
necessidades básicas da população
(educação, saúde, cobertura de
riscos individuais e sistema de
pensões). O que caracteriza este
grande tipo de actividades é a
inexistência de mecanismos de
competição, como forma de
incentivar a eficiência, e uma escolha
de prestadores determinada pelo
Estado;
impactos sobre o potencial de crescimento da economia e a sustentabilidade dos sistemas de saúde e protecção social;
Face a estes factores enquadramento, a economia e a sociedade portuguesas encontram-se numa posição muito desfavorável:
– a economia portuguesa tem uma oferta de bens e serviços transaccionáveis com a qual não é possível encarar uma retoma da trajectória de convergência, já que não assegura um aumento de produtividade da economia que seja paralelo, a longo prazo, com a criação de emprego mais qualificado e mais bem remunerado em actividades sujeitas à competição internacional;
– num período de globalização, a economia portuguesa tem vindo a recentrar-se nas relações económicas de proximidade, quer de proximidade geográfica (com uma cada vez maior integração com a economia de Espanha), quer de proximidade linguística (com um investimento internacional centrado no Brasil). Apenas o investimento directo da Alemanha em Portugal quebrou este padrão, tendo constituído o principal factor de diversificação e modernização na oferta exportadora do País; – a economia portuguesa tem um nível de qualificação
de recursos humanos que torna difícil a mobilidade para novas actividades com maior valor acrescentado, não só nas camadas etárias intermédias, presentes no mercado de trabalho, como nos jovens; esta deficiência não deve, no entanto, fazer esquecer os avanços que se verificaram, na intensificação da escolaridade a todos os níveis de ensino, resultando de um lastro de baixa escolarização nas camadas etárias mais maduras da população activa, de valores muito elevados de abandono escolar e de uma clara insuficiência da oferta de ensino em áreas tecnológicas e/ou profissionalizantes;
– a produção de bens e serviços
mercantis, mas pouco
transaccionados
internacionalmente, em que a
competição existe e resulta, no
essencial, da introdução de novos
operadores que acedem ao
mercado interno, quer instalando-se
nele, quer prestando serviços à
distância mediante o uso de
tecnologias da informação. Este
grupo de actividades inclui o
imobiliário, a construção, obras
públicas, os serviços de distribuição,
os serviços às empresas, os serviços
às famílias, as indústrias de rede e,
em parte, os serviços financeiros;
– a produção de bens e serviços que
são objecto de intenso comércio
internacional, dos quais se destacam
os que integram a “carteira de
actividades” exportadoras do País, de
que se destacam três tipos: bens e
serviços cuja competitividade assenta
na existência e valorização de
recursos naturais (do turismo às
cerâmicas); bens cuja competitividade
assenta na oferta de mão-de-obra
com baixas qualificações e baixos
salários, em segmentos de trabalho
intensivo; bens cuja competitividade
assenta na escala de produção e nas
qualificações médias dos recursos
humanos.
– a economia portuguesa apresenta um peso excessivo, em termos europeus, de sectores “abrigados” da competição internacional, nos quais, por razões institucionais, ou de gestão da concorrência, não existem incentivos ao aumento da produtividade, da eficiência e da inovação; parte destes sectores são controlados pelo Estado e são responsáveis pelo maior peso relativo da despesa pública em Portugal;
– a sociedade portuguesa, sendo uma sociedade que procura protecção da competição, é simultaneamente uma sociedade com níveis de pobreza elevadíssimos, em termos europeus, que encontram a sua explicação no deficiente nível de qualificações, na baixa produtividade de muitas das actividades de que depende o rendimento das famílias e de uma herança de deficiente cobertura por sistemas de pensões minimamente satisfatórios para a população mais idosa; – a economia portuguesa apresenta uma intensidade energética, e um ritmo de crescimento nas emissões de gases com efeito de estufa, que a tornam muito vulnerável, quer a alterações bruscas e sustentadas no mercado do petróleo e gás natural, quer à crescente exigência, a nível europeu, de actuações no sentido da sua redução.
No período 2007/15 Portugal tem que retomar uma trajectória de crescimento sustentado, assente num crescimento significativo da produtividade e numa criação de emprego progressivamente mais qualificado. Só assim pode gerir, com alguma margem de liberdade, o “choque demográfico” resultante do envelhecimento da população e do aumento de encargos sobre os sistemas de pensões de saúde, pressões que se efectuarão, qualquer que seja o modelo adoptado para estes sistemas. Neste horizonte são quatro as principais incertezas estruturais:
– como dinamizar a parte da economia que exporta bens e serviços por forma a assegurar no futuro um
crescimento sustentado, reduzindo o endividamento externo e criando empregos com maior pro-dutividade para as gerações mais jovens? E, nomeadamente, como reforçar a capacidade de Portugal atrair investidores e talentos estrangeiros que contribuam decisivamente para uma mudança na “carteira de actividades transaccionáveis”? – como reduzir significativamente a parte não
mercantil da economia, contribuindo para a consolidação orçamental, num período em que a dinâmica demográfica e o ajustamento estrutural da economia às novas condições de concorrência vão sobrecarregar as finanças públicas, por via das pensões, dos custos com a saúde e com os subsídios de desemprego? E, nomeadamente, até que ponto aceitará a sociedade transferir a oferta de serviços de educação, saúde e cobertura de riscos individuais para o mercado, com uma intervenção supletiva do Estado, garantindo o acesso, mas não oferecendo directamente os serviços?
– como introduzir mais competição nos serviços orientados para o mercado doméstico, das famílias e das empresas, por forma a reduzir custos, estimular a inovação e diversificar as soluções organizativas? E, nomeadamente, passando a encarar as indústrias de rede, não como bases privilegiadas de acumulação patrimonial, mas como uma base de competitividade da economia?
– como preparar a transição de uma economia e sociedade assentes na mobilidade e no acesso a energias fósseis a preços acessíveis, para uma economia capaz de explorar a fundo as oportunidades da “virtualidade”, como substituto da mobilidade, e de introduzir novas soluções tecnológicas e organizativas que prefigurem uma mobilidade sustentável, que não assente na continuação do investimento nas formas mais pesadas e rígidas de oferta de serviços de transporte? ><