A Academia Nacional e Imperial dos Guardas-Marinha: esboço de um balanço historiográfico militar.
Luana de Amorim Donin∗
Resumo: O despertar da mudança do olhar da História sobre as instituições militares trouxe o surgimento de uma produção acadêmica que buscou novos entendimentos do militar nas conjunturas econômicas, políticas e sociais dos mais diversos períodos cronológicos. A partir desta nova conjuntura historiográfica, este trabalho tem como objetivo estabelecer reflexões acerca desta nova historiografia militar, tendo como ponto central uma comparação entre estudos sobre as instituições militares – Exército e Marinha - no período de meados século XIX.
Palavras-Chaves: Império do Brasil, História Militar, Marinha Imperial.
Abstract: The awakening of changing the look of history on the military institutions brought the emergence of an academic research that sought new understanding of the economic situations in the military, political and social implications of various chronological periods. From this new context of historiography, this paper aims to establish thoughts about this new military history, having at its center a comparison of studies on military institutions - the Army and Navy - during the mid nineteenth century.
Key Words: Empire of Brazil, Military History, the Imperial Navy.
Podemos afirmar que o Século XIX foi o tempo da transformação, pois neste período temos em escala mundial um encontro de diálogos entre novas e velhas concepções. Uma luta de paradigmas que tentavam se estabelecer como ideologia principal da sociedade emergente. Esta conjuntura foi consequência das revoluções políticas e sociais que precederam este século. Fatos que trouxeram repercussões e objetivos reformulados que deveriam ser alcançados pelo Estado-nação que se formava nos territórios ao redor do mundo. A busca das novas civilizações era a máxima da razão, ciência e progresso, além de um novo impulso social. Entretanto, apesar de tantas novidades ainda persistiam características dos velhos tempos que insistiam em coordenar a nova transformação. Persistência e ruptura andaram lado a lado nos Oitocentos, e o Brasil também estava inserido neste contexto histórico tão rico e
2 complexo. Foi dentro do processo amplo descrito que as corporações militares deixaram os resquícios de uma ideologia militar baseada no Antigo Regime, para uma nova concepção contemporânea, onde o elemento militar tornou-se um profissional inserido em uma instituição administrativamente coerente e subordinado ao novo Estado. E com isso, toda a forma de relação entre os indivíduos militares, a sociedade e a corporação foi modificada,
assim como vários valores do militarismo.1
Na historiografia atual, o tema militar começa a despertar a atenção dos
historiadores. Ao analisar a produção acadêmica recente, pode-se, como aponta Loureiro,2
encontrar uma busca pelo entendimento do militar nos campos social, político e econômico – um exame do objeto de estudo recheado de novas visões teóricas, formuladas pelos intercâmbios feitos com outras Ciências Sociais, em que se pressupõe a renuncia de uma história militar baseada em narrativas de guerras e dos grandes feitos pessoais e passa-se a analisar as instituições militares como agentes da construção da sociedade e inseridas nos debates de sua temporalidade.
O Exército é, sem dúvida, a instituição mais visitada pelos pesquisadores, pois os militares dessa corporação encontram-se envolvidos em inúmeros momentos históricos do Brasil. Desde a Independência até a recente Ditadura militar, o Exército foi um importante ator no cenário político, o que fez muitos pesquisadores debruçarem-se sobre sua história para entender sua formação, enquanto grupo, na composição da sociedade. Por causa dessa
trajetória histórica apresentada, muitos trabalhos acadêmicos3 remontam ao período imperial
com o intuito de enxergar o momento em que ocorreu o início da formação do Exército e do seu caráter interventor na política e na sociedade. Contudo não só de soldados do Exército se compunha o panorama militar imperial, duas outras instituições também completaram o organograma das tropas brasileiras: A Marinha Imperial e a Guarda Nacional.
1 VAGTS, 1959:13-99.
2 LOUREIRO, 2010.
3 Não é pretensão do presente trabalho relacionar a gama de estudos sobre a Guarda
Nacional4, e sim estabelecer um balanço de uma determinada historiografia que se debruça
sobre o Exército na primeira metade do século XIX, e a partir desta reflexão trazer para o debate questões que se relacionam com a falta de estudos acadêmicos sistemáticos sobre a Marinha Imperial.
Pode-se apontar que, até a metade do século XIX, inexistiu no Brasil uma corporação militar fundada nos princípios de hierarquia e disciplina. E é essa a tese mais geral compartilhada por uma historiografia aqui escolhida como representante dos estudos sobre o
Exército. Os trabalhos acadêmicos de Adriana Barreto5, José Murilo de Carvalho6 e John
Schulz7, ao analisarem esse objeto de estudo, convergem, com sutis variações, para um
mesmo período temporal de transformação da corporação. Ou seja, no geral, e com algumas conclusões diferenciadas, tais autores entendem que, quando se iniciou a conformação e consolidação do Estado Imperial, também se iniciaram inúmeras reformas no seio da instituição militar que, aos poucos, transformam-na em instrumento da mentalidade liberal e profissional. Os três trabalhos apontados apresentam cortes temporais diversos, mas, em conjunto, formam um panorama geral sobre o Exército, no período que vai de fins da Regência até o início da República.
Na primeira metade dos Oitocentos, o ser militar era estar próximo ao Imperador e usufruir, de certa maneira, das vantagens trazidas pelas relações de poder entre os elementos aristocráticos do Império. O Exército, como corporação, estava inserido no complexo jogo das relações entre esferas políticas e, por muito tempo, apoiou a Elite política e o governo. Mesmo que uma historiografia mais tradicional aponte um esvaziamento das forças de linhas nas primeiras décadas dos anos de 1830, devido aos distúrbios políticos pós-abdicação de
D.Pedro I e um antagonismo latente entre militares e civis na sociedade brasileira8, no bojo
das reformas conservadoras, quando se buscaram a centralização do poder e a
4 Ver: FERTIG, 2010. ; CASTRO, 1962. ; RODRIGUES; FALCON & NEVES, 1981. 5 SOUZA, 2005.
6 CARVALHO, 2005 7 SCHULZ, 1994. 8 Ver COELHO, 1976.
4
homogeneização de uma Elite política,9 surgiu um projeto de reformulação do Exército como
um ponto central para consolidação de tais práticas. Como aponta Souza, a Reforma militar é
uma das estratégias monopolistas implantada pelas forças centralizadoras. (SOUZA, 2005,
p. 65)
Este projeto político conservador de busca de uma renovação das tropas de linhas imperiais esteve dentro de um movimento maior de consolidação do Estado Imperial, onde se tentou estender o seu braço administrativo a todas as esferas jurídicas. Com isso houve, no Exército, um aumento da pressão para a organização de procedimentos técnico-administrativos e para a uniformização dos documentos, buscando-se inserir a instituição militar na máquina burocrática do governo. Para Adriana Barreto, esse fenômeno pode ser o indicador da transformação do Exército e de sua cultura organizacional para os moldes do militarismo mais moderno – ou seja baseado em parâmetros de disciplina e hierarquia.
Tais transformações que trouxeram o Exército para um campo político baseado na ordem, na civilização e na neutralidade acabou por dar início a um sentido de identidade de corporação. Cada vez mais, as reformas visaram a padronizar os oficiais e mantê-los longe das questões sociais. Com isso, o Exército, apesar de absorver os elementos propagados pelos conservadores, passou a também enxergar as contradições desse projeto. Pode-se dizer que, com o passar dos anos, a tensão Civil-Militar ganhou novos contornos.
Estruturada essa noção, pode-se fazer um caminho de interpretação para as obras de Jonh Schulz e José Murilo de Carvalho. Suas pesquisas têm como objetivo principal entender a composição social do corpo de oficiais, ou seja; estão mais preocupados com o estudo da estrutura interna da corporação, sem muito articulá-la com fatores externos ao campo militar. Ambos concordam que o Exército passou por uma modernização profissional em meados do século XIX, o que acarretou uma mudança da corporação frente ao governo Imperial, culminando num futuro rompimento com a proclamação da República.
As reformas da década de 50, introduzidas pelo Ministro de Guerra Manoel Felizardo de Souza e Mello, apresentaram novas regras que trouxeram a carreira militar para o âmbito
9CARVALHO, 2006.
5 profissional e tornou-a regulada pelo talento individual. Tal conduta foi fundamental para a reestruturação do Exército. Para Schulz, o programa de reformas difundidas nessa década de 1850 representou uma busca empreendida desde o Regresso, em que se visava à conciliação do liberalismo com a ordem. E dentro dessa perspectiva maior, pode-se olhar as diversas organizações que compunham o quadro organizacional para examinar na prática as mudanças dentro da oficialidade. Como aponta José Murilo de Carvalho a Escola Militar teve grande participação nessa homogeneização da elite militar.
Reunindo as informações trazidas pelos autores citados, pode-se traçar um perfil militar de meados do Século XIX. Encontra-se a instituição do Exército em plena transformação na década de 1850. Novas regras e reformas trouxeram para o grupo de oficiais uma nova dimensão da ordem e da hierarquia militar, colocando-os próximo às aspirações políticas e interesses de uma determinada Elite política da Conciliação. Portanto, pode-se concluir que o elemento militar era altamente integrado e participativo a uma noção imperial, em que se buscaram os avanços do liberalismo e da civilização, pautados na ordem e na manutenção de sistemas contraditórios a esse movimento como a Escravidão. Ao inserir o Exército numa órbita mais moderna do militarismo liberal, o próprio governo construiu uma identidade militar dentro da corporação, afastando as possíveis semelhanças e redes de poder onde militares e civis coabitassem. Nesse momento, surgiu dentro da corporação um grupo de jovens militares críticos que enxergavam as contradições do projeto político imperial consolidado, iniciando os fundamentos de uma visão militar como corporação de defesa da Nação. Com o passar dos anos, tal tensão tornou-se latente, trazendo o rompimento completo da Instituição Militar do Exército com o Governo Imperial.
Diante da análise empreendida a partir de uma determinada historiografia acerca do Exército, passemos a refletir o espaço dado pelos trabalhos acadêmicos ao estudo da Marinha Imperial, e especificamente a Academia Nacional e Imperial dos Guardas-Marinha. A
Armada Imperial, com exceções de alguns trabalhos10, não obteve a atenção da academia,
sendo sua história escrita pela própria instituição com cunho memorialista, sem uma
6 problemática crítica ou de relação com a História política, social e econômica do Brasil Império. Por isso, se faz necessário estabelecer uma nova leitura política e social da trajetória da instituição naval em meados de Século XIX.
Ao explicitar as teses historiográficas que abordam a trajetória política e social do Exército no período de construção do Estado Imperial depara-se com um processo conflituoso de estabelecimento de uma nova ordem militar. Pela documentação apresentada pelos trabalhos sobre a Marinha Imperial, também se encontram decretos que indicam uma tentativa
de mudança do elemento militar naval.11 O que demonstra que essa instituição naval também
fez parte de um processo identificado com as novas bases ideológicas e políticas de formação
das Forças Militares, no momento onde o Estado Imperial brasileiro estava imerso na
discussão do seu próprio arcabouço, onde não há uma definição da sociedade e de suas esferas de poder.
Este movimento maior pode ser mapeado mais claramente ao acompanhar a trajetória de uma instituição de ensino do oficial naval, que era um dos pilares da cultura organizacional do sistema naval brasileiro: a Academia Nacional e Imperial dos Guardas-Marinha.
A Academia de Marinha, como era comumente conhecida em meados dos Oitocentos, foi uma instituição de ensino militar, que durante os anos do Império do Brasil ficou encarregada da formação do oficialato da Armada Imperial. Contudo, apesar de ser nomeada assim no contexto de Independência do Brasil, esta instituição militar, na verdade, derivou da instituição de ensino militar transferida de Portugal para o Brasil junto com a Corte
joanina, que era denominada Real Companhia e Academia dos Guardas-Marinha.12 Instalada
no Rio de Janeiro, no Mosteiro de São Bento, a Academia transladou para o Brasil uma cultura militar portuguesa formada no processo de organização do aparato militar, que se inicia ainda no século XVIII. Ou seja, tal escola pode ser inserida num contexto maior de modificação das estruturais herdadas do período colonial e que se transformaram ao longo do Século XIX , em conjunto com a própria conformação do Estado Brasileiro. De 1831 a 1858,
11 CAMINHA, 1986.
12Sobre Historia da Academia de Marinha ver: ALBUQUERQUE, 1979; ALBUQUERQUE, 1982; BOITEUX,
7 a Academia Nacional e Imperial dos Guardas-Marinha sofreu inúmeras reformas que tendiam a construção do perfil de oficiais mais profissionais e técnicos – como apontada pelos autores inseridos em uma historiografia da própria instituição.
Todavia, a Academia de Marinha mesmo tendo passado por esse processo de
modificação das bases educacionais militares e tecnológicas,13continuou, segundo Carvalho,
sendo espaço da aristocracia e das famílias tradicionais da força naval, ligadas às elites
políticas mantenedoras do projeto político imperial.14 A tese mais difundida ao se abordar a
Armada Imperial neste determinado período se resume à conclusão de que a Marinha, e consequentemente suas instituições, não realizaram a passagem para uma construção de uma organização militar moderna subordinada aos interesses do Estado.
Entretanto, a rápida análise em algumas documentações referentes ao período podem de certa forma relativizar esta visão costumeira que é difundida por essa tese. Nos Relatórios do Ministro da Marinha, encontra-se uma preocupação de qual o caráter se quer estabelecer no ensino do Oficial Naval, e alguns ministros citam outras Marinhas, como a inglesa e francesa, como exemplos de um futuro para a noção de militarismo naval se quer nesta
conformação do Estado Imperial.15 Em uma primeira constatação da discussão levantada
pelos relatórios dirigidos a Assembleia Geral Legislativa nos anos das reformas desta Academia de Marinha, a preocupação era determinar a formação de um oficial militar mais envolto com os procedimentos técnicos no mar ou torná-los mais científicos e humanísticos. A tentativa de problematização demonstra que era uma preocupação da Elite política da época não só a formação educacional, mas também o sentido do militarismo a ser seguido. Ou seja, precisamos de uma análise mais sistemática sobre este universo, e consequentemente um melhor mapeamento das reais ligações entre a esfera militar naval e a própria sociedade civil imperial.
13 Ver Decreto 2.163 de 01/05/1858. BRASIL. Leis, decretos, etc. Colleção das Leis do Império do Brasil. Rio
de Janeiro: Imprensa Nacional, 1858.
14 CARVALHO, op. cit. Visão sustentada pela maioria dos estudos sobre o Exército aqui utilizados como apoio
para o entendimento da exclusão da Marinha Imperial do processo de formação do Estado Imperial.
15 BRASIL. Ministério da Marinha. Relatórios dos Ministros da Marinha. Rio de Janeiro: Typographia
8 O estudo apenas das características sociais dos militares navais não são suficientes para se determinar uma não passagem desta instituição para os moldes de uma contemporaneidade inaugurada em meados do século XIX. E com isso, um novo caminho se abre aos olhos desta historiografia militar renovada.
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