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Narrativas sobre os cursos de Especialização em Modelagem Matemática da década de 1980: considerações teóricas e metodológicas

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Academic year: 2021

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LEONI MALINOSKI FILLOS1

Resumo:

O presente artigo pretende expor os pressupostos teóricos e metodológicos que orientam uma pesquisa em desenvolvimento, em nível de doutorado, cuja temática traz para o cenário de investigação a inserção da Modelagem Matemática no âmbito da formação de professores de Matemática no Brasil. A pesquisa tem como objetivo analisar a dinâmica de idealização e desenvolvimento dos primeiros cursos de Especialização em Modelagem Matemática, realizados em Guarapuava/PR, nos idos de 1980, e os determinantes políticos e sociais para a sua efetivação no contexto da formação continuada daquela década. Empreendemos, para tanto, uma pesquisa de caráter qualitativo e optamos pela História Oral como metodologia para produção e tratamento dos dados, com a utilização de depoimentos de professores que estiveram diretamente envolvidos com os cursos. Nesse texto, apresentamos um referencial teórico-metodológico que busca justificar a utilização das narrativas como recurso à pesquisa acadêmica, especialmente como temos mobilizado/utilizado no GHOEM e, em particular, num de seus projetos de ampla abrangência que é a constituição de um mapeamento da formação e atuação de professores de Matemática no Brasil.

Introdução

No início da década de 1980, novos desafios foram conferidos às escolas com a expansão das oportunidades educacionais às classes populares e, consequentemente, com a necessidade de melhoria das condições estruturais de ensino e aprendizagem no espaço escolar. Tornou-se intenso o debate sobre a importância da atualização do professor, em função das mudanças nos conhecimentos, nas tecnologias e no mundo do trabalho, que passaram a exigir a implantação de políticas públicas em resposta a problemas característicos do sistema educacional e iniciativas para formação continuada de professores para dar conta das novas demandas.

As instituições de ensino superior, públicas e privadas, foram chamadas para atender as novas exigências e potencializar o aprimoramento da formação profissional básica obtida no curso de graduação. Disseminaram-se, nessa época, cursos de pós-graduação lato sensu, em nível de aperfeiçoamento ou especialização, para a qualificação do professor, com olhar para a iniciação à pesquisa. Tais cursos passaram a ser realizados nas mais distintas instituições do país, muitas vezes a partir de parcerias entre instituições de ensino superior e/ou da colaboração de pesquisadores.

A Fundação Faculdade Estadual de Filosofia, Ciências e Letras de Guarapuava (Fafig), atualmente Universidade Estadual do Centro-Oeste (Unicentro), no início da década de 1980, em parceria com professores do Instituto de Matemática, Estatística e Computação

1 Universidade Estadual Júlio de Mesquita Filho – UNESP/Rio Claro, mestre em Educação, apoio Fundação

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Científica, da Universidade Estadual de Campinas (IMECC - Unicamp), promoveu um curso em nível de especialização a professores de Matemática, especialmente aos que estavam em exercício nas salas de aula. Este curso foi coordenado por Rodney Bassanezi, que também atuou como professor juntamente com uma equipe de docentes da Unicamp e de outras instituições.

Na ocasião, Bassanezi propôs uma alteração no programa tradicional de pós-graduação, abdicando de aulas expositivas e estimulando os participantes a fazer uma visita a empresas de Guarapuava e a levantar problemas para serem investigados, como no ramo de suinocultura e da construção civil. Desse modo, questões da realidade impulsionaram a realização deste curso, considerado o pioneiro na área de Modelagem Matemática na formação de professores, que abriu perspectivas para a realização de dezenas de outros cursos nos mesmos moldes, em diversas instituições de Educação Superior do Brasil (BIEMBENGUT, 2009).

Nossa pesquisa buscará analisar a dinâmica de idealização e realização deste curso de formação continuada e os enraizamentos para a disseminação de outras Especializações realizadas sob a mesma perspectiva no país. Pretendemos investigar como o curso foi concebido, realizado e vivenciado pelos professores ministrantes e gestores da faculdade e interpretar os determinantes políticos e sociais que colaboraram para a sua realização em Guarapuava, as relações dos sujeitos na apropriação/difusão do conhecimento e as contribuições dessa modalidade de formação continuada desenvolvida na época para a prática de sala de aula e para a consolidação da Modelagem Matemática no âmbito da Educação Matemática no Brasil.

Para atingir nossos objetivos seguimos uma trilha, a memória, que representa nosso elo com o passado e nos permite a aproximação das experiências, pontos de vista e emoções de professores que ministraram aulas nesses cursos e estiveram diretamente envolvidos no planejamento e organização das aulas. Colocamo-nos, portanto, a ouvir os professores, testemunhas oculares que vivenciaram e propagaram as primeiras experiências ao acreditar nas potencialidades da Modelagem Matemática na formação docente.

Valemo-nos, para tanto, da perspectiva da História Oral como metodologia de pesquisa, pois acreditamos ser possível, por meio da narrativa de professores, conhecer práticas e experiências que até o momento não fizeram parte da história oficial. Como justifica Thompson (1992, p. 22), a história oral “pode ser utilizada para alterar o enfoque da própria história e revelar novos campos de investigação; pode derrubar barreiras que existem entre professores e alunos, entre gerações, entre instituições educacionais e o mundo

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exterior”; e na produção da história, “pode devolver às pessoas que fizeram e vivenciaram a história um lugar fundamental, mediante suas próprias palavras” (THOMPSON, 1992, p. 22).

Nessa perspectiva, apresentamos nesse texto um referencial teórico-metodológico que busca justificar a utilização das narrativas como recurso à pesquisa acadêmica, especialmente como temos mobilizado/utilizado no Grupo em História Oral e Educação Matemática (GHOEM) e, em particular, num de seus projetos de ampla abrangência que é a constituição de um mapeamento da formação e atuação de professores de Matemática no Brasil, do qual nossa proposta está em sintonia. Também apresentamos os passos empreendidos até o momento para dar conta de nossa questão principal de pesquisa, tendo as narrativas como fonte principal na produção de dados: Como os primeiros cursos de Modelagem Matemática foram concebidos, realizados e vivenciados por professores ministrantes e gestores e quais suas implicações para o ensino e a aprendizagem da Matemática?

Narrativa e experiência: considerações teóricas

Ao longo da nossa existência vivemos imersos em narrativas. Narramos

acontecimentos, fenômenos, experiências, sentimentos, outras pessoas, a nós mesmos. Somos tanto escritores como leitores de nossas próprias vidas e em nossas relações com o outro, não fazemos mais “que contar/imaginar histórias, ou seja, narrativas, que são um modo básico de pensar, de organizar o conhecimento e a realidade” (BOLÍVAR, DOMINGO, FERNÁNDEZ, 2001, p. 19).

As narrativas, mais do que trazer à tona histórias de um passado e possibilitar a criação de discursos sobre o presente, nos constituem enquanto seres humanos. Por meio de narrativas, produzimos conhecimento sobre nós mesmos, sobre os outros e sobre nosso cotidiano, revelando-nos através da singularidade de nossas memórias e de nossos saberes. Elas permitem aflorar nossas subjetividades, sensibilidades, intencionalidades, nossas verdades. Como nos dizem Clandinin e Connelly (2015, p. 48), “a vida – como ela é para nós e para os outros – é preenchida de fragmentos narrativos, decretados em momentos históricos de tempo e espaço, refletidos e entendidos em termos de unidades narrativas e desconti-nuidades”.

No Grupo História Oral e Educação Matemática (Ghoem), as narrativas são concebidas como fontes historiográficas de pesquisa, sendo exercitadas por meio dos parâmetros metodológicos da História Oral. São produzidas, em geral, por meio de entrevistas e têm possibilitado uma gama variada de estudos relativos à cultura escolar e ao papel da

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Educação Matemática nessa cultura. Inscrevem-se, assim, pesquisas que evidenciam o campo da Educação Matemática em frentes de investigação, tais como: história da Educação Matemática, abordagens sobre matemática inclusiva, análise de livros antigos de matemática ou voltados ao ensino de matemática e o uso de narrativas para a formação de professores que ensinam matemática. Ou seja, a Educação Matemática “é a ‘nossa cidade’, ela é algo que vemos uns nos outros e faz com que nos reconheçamos como pessoas que têm interesses em comum” (GARNICA, 2015a, p. 38).

Concomitantemente às trajetórias de investigação, tratamos de constituir um referencial teórico-metodológico que justifique a utilização das narrativas como recurso às nossas pesquisas. Buscamos, para tanto, respaldo em teóricos como Walter Benjamin (1987), Clandinin e Connelly (2015), Bolivar, Domingos e Fernandez (2001) e Jorge Larossa (2002), entre outros.

Para Benjamin (1987), a narrativa representa uma forma artesanal de comunicação, pois é por meio dela que as pessoas se comunicam e/ou partilham suas experiências. O conceito central de sua filosofia é, portanto, a experiência e, como expressão desta, a narrativa que para ele seria a forma mais adequada ao ser humano de se comunicar. Contar histórias, para o filósofo, é a arte de contá-las de novo, e ela [a narrativa] se perde quando as histórias não são mais conservadas.

Segundo Benjamin (1987), a narrativa tem a capacidade de suscitar nos ouvintes os mais diversos conteúdos e estados emocionais, uma vez que, diferentemente da informação, ela não nos fornece respostas, ela se reconstrói na medida em que é narrada, “conserva suas forças e depois de muito tempo ainda é capaz de se desenvolver” (p. 8). A experiência vivida e transmitida pelo narrador tem o poder de sensibilizar e fazer o ouvinte assimilar as experiências de acordo com as suas próprias experiências, evitando explicações e abrindo-se para diferentes possibilidades de interpretação. Narrar, portanto, é “a faculdade de intercambiar experiências” (BENJAMIN, 1987, p. 198).

Clandinin e Connelly (2015), nessa mesma direção, entendem os seres humanos como organismos contadores de histórias que, individual e socialmente, vivem vidas relatadas. Ou seja, as pessoas “vivem histórias e no contar dessas histórias se reafirmam. Modificam-se e criam novas histórias” (p. 27). As histórias vividas e contadas educam a si mesmos e aos outros. Os autores percebem a narrativa como o modo pelo qual as pessoas experienciam o mundo e entendem a Educação como o estudo da experiência.

Referindo-se à pesquisa narrativa, Clandinin e Connelly (2015) atribuem um duplo sentido à narrativa: como um fenômeno que se investiga e como um método de investigação.

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A narrativa, nesse entendimento, pode ser útil tanto como instrumento na pesquisa, quanto como método, pois possibilita ao pesquisador representar e entender a experiência humana e, consequentemente, a aprendizagem, as transformações. Em se tratando da pesquisa nas ciências sociais, eles defendem que a experiência educacional deve ser estudada narrativamente (CLANDININ; CONNELLY, 2015).

Bolívar, Domingo e Fernandez (2001) entendem que a existência é construída narrativamente dentro de uma estrutura similar a uma narrativa literária, com um começo, uma sequencialidade, uma trama. É por meio de narrativas que os seres humanos interpretam a sua própria existência e a dos outros, descrevem acontecimentos e vidas, dão um sentido ao passado e ao presente. O modo como recontam suas histórias – aquilo que enfatizam ou omitem, sua posição como protagonistas ou vítimas, a relação que estabelecem entre quem conta e quem ouve -, reflete o que podem declarar de suas próprias vidas. A forma narrativa é, pois, um modo de ordenar a experiência, de construir a realidade, de atribuir significado ao vivido (BOLÍVAR, DOMINGO, FERNÁNDEZ, 2001).

As experiências passadas de pessoa para pessoa são, deste modo, a fonte para a qual os narradores recorrem (BENJAMIN, 1987a). Entendemos que ao narrar o ser humano simultaneamente produz e compartilha experiências com seus interlocutores. Produz experiências porque ao refletir sobre suas vivências, ele ressignifica acontecimentos, “repensa e reinventa sua vida, se responsabilizando pelos atos e, portanto, podendo imaginar possibilidades de atuação futura” (BOLÍVAR, DOMINGO, FERNÁNDEZ, 2001, p.33). Compartilha experiências porque ele se comunica, interage com o interlocutor; as histórias deixam de ser somente dele e passam a fazer parte da vida do outro, que pode reinterpretá-las de acordo com suas formas de pensar, sentir e agir (LARROSA, 1998).

A experiência é, portanto, o ponto central e basilar da pesquisa narrativa, uma vez que a narrativa permite pensar o vivido, comunicar, explicitar e construir sentidos sobre as experiências. No Ghoem, assumimos a experiência no sentido de que não é aquilo que passa, mas aquilo que nos passa, que nos acontece, que nos toca e, ao nos passar, nos forma, nos transforma (LARROSA, 2002).

A experiência é em primeiro lugar um encontro ou uma relação com algo que se experimenta, que se prova. O radical é periri, que se encontra também em periculum, perigo. A raiz indo-européia é per, com a qual se relaciona antes de tudo a idéia de travessia, e secundariamente a idéia de prova. [...]. O sujeito da experiência tem algo desse ser fascinante que se expõe atravessando um espaço indeterminado e perigoso, pondo-se nele à prova e buscando nele sua oportunidade, sua ocasião. A palavra experiência tem o ex de exterior, de estrangeiro, de exílio, de estranho e também o ex de existência. A experiência é a passagem da existência, a passagem de um ser que não tem essência ou razão ou fundamento, mas que simplesmente “ex-iste” de

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uma forma sempre singular, finita, imanente, contingente (LARROSA, 2002, p. 25).

Nesse sentido, Larrosa (2002) nos diz que a experiência afeta de algum modo os sujeitos, deixa marcas, produz afetos, deixa alguns vestígios, alguns efeitos. O saber da experiência “é um saber particular, subjetivo, relativo, contingente, pessoal. Se a experiência não é o que acontece, mas o que nos acontece, duas pessoas, ainda que enfrentem o mesmo acontecimento, não fazem a mesma experiência” (p. 27). O acontecimento pode ser comum às pessoas, mas a experiência é única, subjetiva e de forma alguma pode ser repetida. “O saber da experiência é um saber que não pode separar-se do indivíduo concreto em quem encarna” (LARROSA, 2002, p. 27).

Entendemos assim que cada narrativa é singular, legítima e irrefutável. Não buscamos confrontar verdades, comprová-las ou julgá-las, ou ainda afirmar se o dito e vivido são enunciações “verdadeiras ou falsas”. O importante é o que a pessoa registrou de sua história, o que experienciou, o que é real para ela e não os acontecimentos em si. “Os pontos de vista (as verdades do sujeito e das outras fontes disponíveis) são postos em diálogo, sem que uma fonte seja valorada de modo diferente, posto que cada um desses recursos abre a possibilidade de conhecer perspectivas alternativas, ainda que não poucas vezes conflitantes” (GARNICA, 2015a, p. 44).

Considerando a multiplicidade de pontos de vista, as narrativas permitem perceber “que o passado comportava muitos outros futuros além daqueles que se efetivaram no presente" (GARNICA, 2015a, p. 41).Permitem trazer à tona histórias multifacetadas que por vezes se repetem, por vezes são completamente opostas, confundindo aquele que as interpreta, diante da pluralidade de representações, da não linearidade da memória que se manifesta carregada de valores e afetos individuais ou coletivos.

Nessa ótica, a narrativa representa a memória em movimento, pois ao relembrar o narrador reacende e revive utopias e sonhos, reconstrói a atmosfera de outros tempos, reativa embates políticos e ideológicos, reacende emoções (THOMPSON, 1987, apud DELGADO, 2003). Ao ativar a memória, ele atribui significados aos acontecimentos, através de uma trama interpretativa que possibilita aos que se apropriam da narrativa tecer outros significados, estabelecendo assim “um processo contínuo de ouvir/ler/ver, atribuir significado, incorporar, gerar textos que são ouvidos/lidos/vistos pelo outro, que atribui a eles significados e os incorpora, gerando textos que são ouvidos/lidos/vistos...” (GARNICA, 2010, p. 36).

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Garnica (2015b) enfatiza que um dos modos possíveis de motivar e registrar narrativas é a História Oral, um recurso da pesquisa acadêmica que permite ao narrador se criar e se recriar em suas narrativas, ao mesmo tempo em que é reconduzido para o interior das práticas científicas. Essa recondução provoca alterações radicais às práticas historiográficas, uma vez que o objeto pesquisado não é mais visto como algo fixo, mas sim, é percebido em suas manifestações mais diversas, em suas apropriações pelos sujeitos, sob os mais diversos pontos de vista e também a partir do olhar do outro.

A metodologia da História Oral, conforme temos praticado no Ghoem, integra-se ao conjunto de esforços de um grupo de pesquisadores - provenientes de diversas partes do Brasil - de produzir fontes e de registrar versões de diferentes sujeitos sobre suas experiências relativas à Educação Matemática, num processo que vem se constituindo com a própria prática de pesquisa. É uma metodologia que destaca a memória, a oralidade, as experiências de vida como fundamentais para compreender fenômenos que se pretende investigar.

No âmbito dos trabalhos produzidos no Ghoem, as narrativas nos aproximam das memórias de atores do processo educativo e possibilitam o acesso a experiências e subjetividades dos sujeitos que de outro modo não seriam possíveis. No ato de contar sobre suas experiências, professores, ex-professores, gestores, funcionários, alunos, pais, enfim, os participantes do sistema de escolarização tornam possível a compreensão das alterações e permanências que envolvem a Educação Matemática ao longo do tempo, seja em relação às práticas no interior das salas de aula, como metodologias, avaliação e relação professor/aluno; seja em relação às práticas para além dos muros escolares, como formação de professores, políticas públicas e a matemática produzida em comunidades distintas.

Desse modo, as narrativas oportunizam compreensões sobre os sentidos que os indivíduos dão aos acontecimentos para além do objeto pesquisado. Permitem perceber tensões, problematizar conflitos e contradições vividos no “chão de sala de aula” e trazer à tona, com riqueza de detalhes, informações que não podem ser encontrados em documentos. Além disso, o mergulho nas experiências dos atores do processo educativo escolar traz elementos para se repensar a formação do professor e as condições postas atualmente para o ensino e aprendizagem em sala de aula.

Nosso percurso até aqui

Nessa pesquisa de abordagem qualitativa, nos orientamos pelos pressupostos teóricos seguidos no Ghoem de que a História Oral possibilita a criação de fontes documentais, produzidas a partir da memória dos entrevistados. Tais fontes funcionam como disparadores

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de perspectivas, ocasionando uma busca por outras fontes documentais e bibliográficas para que ocorra uma interpretação plausível dos dados produzidos. A História Oral destaca, assim, “a importância da memória, da oralidade, dos depoimentos, das vidas e das pessoas julgadas essenciais – sob algum ponto de vista – para compreender os ‘objetos’ que as investigações pretendem focar” (GARNICA, 2007, p. 17).

Considerando a questão de pesquisa e os objetivos, julgamos essenciais para a nossa investigação os depoimentos dos professores que estiveram diretamente envolvidos com os primeiros cursos de Especialização em Modelagem Matemática, desenvolvidos em Guarapuava (PR), nos idos de 1980. As narrativas por eles produzidas permitem compreendermos o modo que ordenam suas experiências, como interpretam sua inserção e atuação nos cursos, os significados que atribuem ao vivido. Colocamo-nos, portanto, à escuta, favorecendo que nossos colaboradores se constituíssem como sujeitos históricos, deixassem suas marcas e se reinventassem no ato de narrar. E de quem são as vozes que nos colocamos à escuta?

A partir de pesquisa documental nos arquivos da Unicentro2, obtivemos uma relação dos professores que trabalharam no curso de Especialização em Ensino de Matemática, desenvolvido entre os anos de 1983 e 1984, na Fundação Faculdade Estadual de Filosofia, Ciências e Letras de Guarapuava. Tal curso foi coordenado pelo professor Rodney Carlos Bassanezi, e é considerado o pioneiro na formação de professores, com enfoque na Modelagem Matemática, desenvolvido no Brasil (GAZZETTA, 1989; FIORENTINI, 1996; BARBOSA, 2001; SILVEIRA, 2007). Entendemos assim que Bassanezi deveria ser o primeiro a ser entrevistado, devido a sua intensa atuação nessa Especialização, pois além de coordenar, também ministrou disciplinas no curso. Entramos em contato com Bassanezi e ele prontamente aceitou colaborar. Depois contatamos outros dois professores, Eduardo Sebastiani Ferreira e Regina Buriasco, cujos nomes também estavam elencados na relação de professores do referido curso. Realizamos assim as três primeiras entrevistas da pesquisa.

Após realizarmos essas entrevistas, percebemos que não era possível falar em ‘o curso’ de Especialização de Guarapuava, pois as experiências sobre os vários cursos dessa modalidade realizados na Fafig se misturam na memória dos docentes colaboradores. Ora eles se referem a acontecimentos de um curso, ora de outro, sem precisar o período que ocorreram. Desse modo, vasculhamos novamente os arquivos da Unicentro para obter dados dos outros

2 A Unicentro foi criada pela Lei nº 9.295, de 13 de junho de 1990, com a fusão de duas Faculdades: a Fundação

Faculdade Estadual de Filosofia, Ciências e Letras de Guarapuava – Fafig, e a Faculdade de Educação, Ciências e Letras de Irati – Fecli.

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cursos de Especialização na área de Matemática, desenvolvidos até o final da década de 1980. Constatamos que foram ao todo cinco cursos realizados na instituição, respectivamente nos seguintes períodos: de 1981 a 1982, de 1983 a 1984, de 1985 a 1986, de 1988 a 1989 e de 1989 a 1990.

Obtivemos nessa busca outras listas de docentes que trabalharam nessas especializações e definimos outros dois colaboradores: Maria Salett Biembengut e Dionísio Burak, que ministraram disciplinas, respectivamente, no último e nos dois últimos cursos. Nossa motivação em entrevistá-los se deve também por serem dois pesquisadores de bastante atuação no campo da Modelagem Matemática.

Em todas as entrevistas que realizamos, os colaboradores nos apontaram uma rede de pessoas que estiveram envolvidas nas especializações, sendo professores, gestores ou alunos, tanto de Guarapuava, como de outros lugares. Contatamos informalmente muitas dessas pessoas e, assim, pudemos definir os demais colaboradores da pesquisa. As entrevistas foram realizadas com outros sete professores: dois estatísticos do IMECC, Sidnei Ragazzi e Paulo Roberto Mendes Guimarães; dois professores da área de Matemática Aplicada do IMECC, João Frederico da Costa Meyer e Sílvio Pregnolatto; e três professores de Matemática da Fafig/Unicentro: Nelson Zagorski e Irene Raquel Garcia, coordenadores dos cursos de pós-graduação na década de 1980, e Vitor Hugo Zanette, primeiramente aluno e depois organizador dos cursos.

Após cada entrevista, realizamos a transcrição literal das falas e, em seguida, compusemos a textualização, ou seja, um texto editado em que eliminamos ideias repetidas e os traços mais marcantes da oralidade. Realizamos também correções gramaticais e reordenamos a escrita, buscando dar fluência à leitura, porém tentando manter o tom de cada colaborador, de modo que ele se reconheça no seu modo de falar.

Ambas as fases, transcrição e textualização, são de extrema importância para o pesquisador, pois possibilitam a familiarização às falas dos colaboradores em seus tons mais profundos e se constituem em um exercício de comunicação com o entrevistado, uma vez que, ao produzir tais textos, o pesquisador tem a oportunidade de discutir com o colaborador as proximidades e distanciamentos do que foi dito. A transcrição e a textualização representam também um primeiro exercício de análise dos dados da pesquisa.

Nosso próximo passo é mergulhar em cada narrativa em suas singularidades e convergências para tentar tecer compreensões de nosso tema de pesquisa para além dos documentos escritos disponíveis, buscando entrelaçar as compreensões a um referencial teórico que inclua considerações sobre a legislação vigente à época dos cursos de

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especialização, do contexto sócio-político de nosso país e do cenário da formação continuada da década de 1980. Pretendemos sair de nossas fronteiras de investigação, beber em fontes diversas e problematizar o que nossos colaboradores disseram, indicando as potencialidades e limites de nossas ações e seus fundamentos, sem apagar as “cicatrizes” da pesquisa, ou seja, os confortos e desconfortos nos caminhos que trilhamos.

Considerações finais

Ao refletir sobre as potencialidades da narrativa a partir do movimento teórico-metodológico adotado pelo Grupo de História Oral e Educação Matemática podemos afirmar que a narrativa é uma forma privilegiada de compreender o outro, de aflorar as subjetividades, de dar sentido às experiências e de olhar o passado com as lentes do presente. As narrativas constituem-se em fontes substanciais de conhecimento e potencializam um profundo processo de reflexão sobre as vidas dos outros e sobre nossa própria vida.

Em nossa pesquisa produzimos intencionalmente onze fontes históricasque focalizam as experiências vividas por pessoas que estiveram diretamente envolvidas com os primeiros cursos de Especialização em Modelagem Matemática no Brasil na formação de professores. São onze narrativas em que ecoam vozes muitas vezes harmônicas, outras dissonantes, sobre como os sujeitos ressignificam o vivido, para quais pontos de vista dão destaque, quais sentidos dão para suas experiências e às dos outros. Tais vozes, costuradas umas às outras e reunidas a outros documentos escritos, nos permitem a compreensão da dinâmica de idealização e desenvolvimento desses primeiros cursos e, por extensão, dos movimentos da Educação Matemática no Brasil.

Estamos cientes de que ao optarmos pelas narrativas orais estamos adentrando em um território que se mostra repleto de significações e reinterpretações, mas também de ambiguidades e tensões. Afinal, cada sujeito constrói uma narrativa acerca de seu passado, produz sentidos para as suas experiências, sob o seu ponto de vista, trazendo não “uma vida como de fato foi, e sim uma vida lembrada por quem a viveu” (BENJAMIN, 1987b, p. 37).

Referências

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Referências

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