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12º Encontro da ABCP 19 a 23 de outubro de 2020 Evento online

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12º Encontro da ABCP 19 a 23 de outubro de 2020

Evento online

Área Temática: Política Internacional

RESISTÊNCIAS A CORTES INTERNACIONAIS DE DIREITOS HUMANOS: AVALIANDO O PAPEL DA MEGA-POLÍTICA NAS RETIRADAS DE ESTADOS MEMBROS

Mikelli Marzzini L. A. Ribeiro Departamento de Ciência Política - UFPE

Ernani Carvalho

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Resumo

Existem hoje em torno de 24 cortes internacionais funcionando. No âmbito da Ciência Política e nas Relações internacionais, uma nova agenda vem focando em avaliar o processo de resistência dos Estados em acatar as decisões dessas instituições internacionais. Uma forma específica de resistência é a saída de Estados-parte de cortes regionais de direitos humanos (CRDH). Este artigo está particularmente interessado em investigar esse fenômeno. Partindo das ideias de Ran Hirschl, o trabalho objetiva avaliar se a investida das CRDH em questões de mega-política pode ser considerada uma condição necessária para a saída de Estados-membros. O artigo mapeia os casos de saídas e ameaças de saída das três cortes regionais de direitos humanos existentes, a ideia central foi verificar se a mega-política foi fator presente, e se esteve vinculada às justificativas para a saída ou a ameaça de retirada e um fator de desinstitucionalização (desjudicialização).

Palavras-chave: judicialização da mega-política. Cortes Regionais Direitos Humanos. Backlash.

Abstract

There are currently 24 courts operating in the international realm. As a new agenda, Political Scientist and in International Relations scholars has been focusing on assessing the patterns of resistance that states are posing to comply with the decisions of these international institutions. A specific form of resistance is to withdraw from these institutions, a matter specially striking with regards to regional human rights courts (HRC). This article is particularly interested in investigating this phenomenon. Based on Ran Hirschl’s ideas, this work aims to assess whether the HRC's rulings on mega-politics issues can be considered a necessary condition for the exit of member states. The article maps withdrawal cases as well as the threats of withdrawing from the three existing regional human rights courts, the central goals were to verify whether mega-politics was present, and whether its presence was linked to the justifications for leaving or the threat of withdrawal.

Keywords: judicialization of mega-politics. Human rights Courts. Backlash.

Introdução

Assim, se por um lado o mundo pós-II Guerra estabeleceu a dinâmica bipolar na política internacional, por outro trouxe um aprofundamento da institucionalização internacional; uma institucionalização de caráter liberal, liderada pelos Estados Unidos. Foi o

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que Ikenberry (2009) chamou, por exemplo, de ordem internacional liberal 2.0 – sendo a 1.0 a criada no entre guerras.

Com o fim da Guerra Fria e a ascensão dos EUA como a única superpotência, acadêmicos chegaram a enxergar uma ordem internacional liberal consolidada: o fim da história (Fukuyama, 1992). Isso pode ser visto, por exemplo, com o destravamento do Conselho de Segurança (Glanville, 2014), com a emergência de uma organização internacional de caráter comercial: a Organização Mundial do Comércio – que posteriormente passou a incorporar Estados fora do eixo liberal ocidental, como a China – até a maior participação e emergência de diversas outras estruturas institucionais internacionais, como aquelas derivadas de tratados internacionais temáticos específicos, como as de meio ambiente (Hurrell, 2007).

No campo particular dos direitos humanos, o processo de aprofundamento institucional durante o século XX foi bastante significativo. Os Estados usaram seus direitos de soberania para criar instituições internacionais formais que passariam restringir esta própria soberania (Forsythe, 2006, p. 28). De um período iniciado timidamente, por apenas uma Declaração política (portanto não-vinculante): Declaração Universal de Direitos Humanos (1948), passou-se à criação de uma grande quantidade de tratados e instituições internacionais, passou-sejam elas intergovernamentais, independentes não-judiciais ou mesmo de órgãos adjudicatórios, como as cortes internacionais (Donnelly, 1999).

Nesse sentido, os Estados trazem, com essas novas instituições, a possibilidade de indivíduos – seus próprios cidadãos – questionarem decisões das instituições domésticas perante organismos internacionais. Algumas vezes, as decisões de órgãos internacionais sobre questões internas possuem, inclusive, caráter vinculante, como no caso das mencionadas cortes internacionais.

A história do institucionalismo liberal internacional, apesar de progressista, não esteve livre de desafios. O conflito bipolar foi um exemplo disso. Mais recentemente, a despeito da intensificação do processo de globalização, a emergência da fatores domésticos vem colocado questionamentos essas instituições. Especificamente no que concerne às instituições de direitos humanos, casos são paradigmáticos, como a notória contestação da autoridade do Conselho de Direitos Humanos da ONU. Marcada, inclusive, pela saída mais recente dos Estados Unidos1, seguindo uma tendência do governo Trump2.

Esse paper objetiva analisar esse tipo de resistência/ataque à um grupo particular de instituições internacionais: as cortes regionais de direitos humanos (CRDH), considerando que essas cortes tendem a judicializar assuntos sensíveis politicamente para os Estados. Mais

1 Os EUA se juntaram à Eritreia e a Coreia do Norte como os únicos países que se recusam a participar das reuniões e das deliberações feitas no CDH.

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especificamente, objetiva-se analisar as principais questões associadas à saída de Estados que efetivamente deixaram as CRDH ou que ameaçaram sair desses organismos. Nesse sentido, são objetos de análise desse paper as três cortes regionais existentes (Corte Interamericana de Direitos Humanos, a Corte Europeia de Direitos Humanos e a Corte Africana dos Direitos Humanos e dos Povos).

O olhar teórico que direciona as análises desse paper está lastreado a ideia de mega-política, desenvolvida por Ran Hirschl (2008). Como podemos definir mega-política? Se trata de assuntos de grande relevância política que muitas vezes causa divisões e define o Estado. “Tais assunto vão desde resultados eleitorais e corroboração de mudanças de regime até questões de guerra e paz, de identidade coletiva fundamental e de processos de construção de uma nação relativos à própria natureza e definição da mesma” (Hirschl, 2012). A partir desse conceito, procura-se responder a seguinte questão: julgamentos sobre assuntos de mega-política é uma condição necessária para que haja resistência de Estados a CRDH? Assim, avalia-se se a judicialização da mega-política esteve presente ou não nos casos centrais que dão ensejo à saída ou a ameaça de retirada.

Metodologicamente o trabalho está centrado na análise de congruência para a comparação entre casos (George, Bennett, 2005). As fontes para encontrar justificativas são retiradas de posicionamentos oficiais e, sobretudo, da literatura que analisou os casos. Outros trabalhos já fizeram uma sistematização parecida dessa literatura, nesse sentido, eles são utilizados como norte (e.g. Soley; Steininger, 2018; Voeten, 2019).

Esse trabalho pretende contribuir para uma analise mais ampla dos mecanismos de uso das cortes internacionais e o problema da judicialização da política nessas instituições. De forma adicional, são oferecidos alguns insights (condições) os quais possam ser futuramente testados em conjunto.

Judicialização da Política e Relações Internacionais

Desde o início dos anos 2000, a literatura especializada vem trazendo novamente o Direito Internacional ao centro das discussões da Ciência Política e das Relações Internacionais. Entende-se que esse seja um fenômeno crescente que teve seu impulsionamento desde as discussões sobre regimes internacionais já na década de 1980 (Krasner, 1982). No começo do século XXI, autores passaram a falar da ideia de legalização da política internacional (Abbott et. al, 2000). Mais recentemente, a questão ramifica-se para uma discussão sobre a judicialização das relações internacionais (Alter; Hafner-Burton; Helfer, 2019) ou da judicialização da política doméstica em cortes internacionais (Ribeiro, Ramanzini, Santos, 2020).

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A judicialização da política, que passa a fazer recentemente parte das relações internacionais, há algum tempo já é identificada nas dinâmicas políticas domésticas (Hirschl, 2011). A ideia de supremacia constitucional, que passou a vigorar na maioria dos países do mundo, principalmente após a ascensão de regimes democráticos depois da queda de governos autoritários no Leste Europeu, América Latina, Ásia e África, possibilitou o surgimento e/ou fortalecimento de cortes constitucionais, as quais passaram a julgar questões sensíveis de direito e políticas públicas dos governos, atuando em determinadas situações com veto players de mudanças institucionais no plano nacional.

Apesar de toda essa amplitude “a literatura de ciência política abordando a judicialização da política ao redor do mundo permanece surpreendentemente incipiente. O termo judicialização sofre de indistinção analítica; ele é muitas vezes usado de forma abrangente para se referir a processos distintos, mesmo que inter-relacionados” (Hirschl, 2012).

No plano internacional, a judicialização, quando ela existe, ameaça diminuir a soberania dos Estados e a autonomia dos governos. A natureza e a extensão do envolvimento judicial na política internacional cresceram de forma bastante significativa no período pós-Guerra Fria. Algo que é entendido como derivado do surgimento de novas características, dentre elas o aumento no número de cortes internacionais e consequente ativação das velhas e das novas cortes e outros órgãos adjudicatórios por atores interessados, bem como pela ampliação do direito de atores não-estatais demandarem os próprios Estados nessas jurisdições externas (Alter; Hafner-Burton; Helfer, 2019).

Não obstante haja uma diversidade de órgãos adjudicatórios não-judiciais que influenciam a política internacional, como cortes arbitrais e organismos criados por tratados internacionais (a exemplo do Comitê de Direitos Humanos), as cerca de 24 cortes internacionais em funcionamento são as instituições mais evidentes. Esse tipo de judicialização é mais saliente nas situações em que cortes decidem para além de medidas específicas para um caso, procurando impor medidas de não-repetição (Hillebrecht, 2014). Por vezes, decisões de cortes internacionais requerem medidas como mudanças de legislação aos parlamentos estatais e a criação de políticas públicas específicas a serem seguidas pelo Executivo (Ribeiro; Ramanzini, Santos, 2020). Por causa desses padrões de interferência, a judicialização da política no plano externo pode levar a resistências e processos de reversão do nível de institucionalização.

Os processos de resistências dos Estados sob as decisões dos órgãos adjudicatórios internacionais podem ser pontuais (pushbacks), ou mesmo mais intensos, que até ameacem as próprias instituições, o que a literatura em língua inglesa vem classificado como backlash: processos constantes e sistemáticos de crítica à instituição, bem como graves padrões de não-cumprimento de suas decisões (Soley; Steininger, 2018).

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No âmbito doméstico, resistências a decisões indesejadas das cortes constitucionais são geralmente feitas por meio de iniciativas dos Executivos ou dos parlamentos, onde, por meio de projetos de leis ou alterações das constituições, ocorre reação a decisões politicamente indesejadas, uma espécie de "overturned" (Hrischl, 2008, 2011). Já no plano internacional, uma das possíveis respostas políticas às decisões negativas das cortes internacionais é a rejeição de sua jurisdição.

As resistências a cortes internacionais são particularmente notadas no caso das cortes regionais de direitos humanos (CRDH), pela sensibilidade política das temáticas abordadas. Muitas vezes, essas resistências levam Estados a deixarem o organismo – seja como uma ação deliberada para minar o órgão ou apenas como meio para anular os efeitos do órgão sob a política doméstica.

As justificativas para deixar uma corte de direitos humanos – ou as ameaças – são variadas. Elas podem ser fundamentadas no problema social envolvendo da temática tratada por determinada decisão (exemplos: aborto, imigração, pena de morte), ou mesmo uma defesa enfática da soberania estatal (quando há a percepção de que a demanda feita por determinada corte é uma interferência na política doméstica).

Isso leva ao seguinte questionamento: existe alguma condição necessária que faz um Estado deixar uma corte internacional de direitos humanos? O nosso argumento é que decisões que vão ao encontro da concepção de mega-política – estabelecida por Ran Hirschl (2008, p. 94) como assuntos da mais alta significância política que normalmente definem e dividem sociedades – seria essa condição. Ou seja, algumas decisões destas cortes atingem de forma demasiadamente sensível questões do contexto político e social dos Estados (Madsen; Ceublak: Weibusch ,2018, p. 201).

Essa é uma nova agenda de pesquisa. Enquanto autores já vêm buscando há algum tempo explicar por que Estados criam Cortes Internacionais de Direitos Humanos (Moravcsik, 2000), no caso específico deste trabalho, a investigação centra-se em quando eles resistem a elas ao ponto de deixá-las. Do ponto de vista de abordagem em relações internacionais, este paper traz ao centro da discussão o papel das preferências dos atores domésticos nas ações dos Estados no âmbito das instituições internacionais, uma agenda de pesquisa que passa a ser identificada com as abordagens do novo liberalismo (Moravcsik, 1997).

Resistência de Estados a Cortes internacionais de direitos humanos: um efeito da judicialização da mega-política?

Em seu artigo sobre judicialização da mega-política: “The Judicialization of Mega-Politics and the Rise of Political Courts”, Ran Hirschl (2008) diferencia judicialização da mega-política do que ele classifica como a judicialização da mega-política ordinária, do dia-a-dia. Hirschl

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identifica três níveis de judicialização, no primeiro estariam questões de devido processo, questões criminais e de direitos e liberdades civis, em um segundo nível, estaria o processo de revisão de atos da administração pública, aqui encontrando-se a revisão, por meio de cortes, de políticas públicas específicas diversas; no terceiro nível de judicialização seria no qual a mega-política se encontra.

Para essa diferenciação, o autor lembra que é preciso ter um entendimento claro do que é política. Como há uma zona cinzenta entre o que são assuntos puramente políticos e questões políticas que estão na alçada dos poderes judiciários, há uma dificuldade em mapear a interferência indesejada do judiciário na dinâmica política por meio da judicialização. Hirschl (2008) lembra que o contexto social de um país se torna elemento relevante para identificar assuntos controversos: uma temática pode ser tabu para determinada sociedade (como política de cotas ou aborto) e não ser para outra. E avaliar essa diferenciação contextual torna-se crucial para entender quando a judicialização da mega-política ocorre.

Hirschl (2008) se vale de exemplos para demonstrar quais assuntos são da mais alta significância política. São diversa ilutrações que o autor apresenta, questões que vão desde assuntos de segurança nacional, política externa, políticas macroeconômicas, até decisão de resultados das eleições, ou mesmo questões socialmente divisionistas, tais quais a temática da imigração em certos países ocidentais. Para citar alguns exemplos, são representativas no texto decisões diversas pelas supremas cortes dos países, como a que versa sobre a definição de Israel como Estado judeu e democrático, o papel da religião na Turquia e na Índia, questões envolvendo uso de tortura contra terroristas em Israel, sobre o status da língua francesa no Canadá, sobre desqualificação e impedimento de candidaturas de políticos, justiça de transição na América Latina, entre tantos outros (Hirschl, 2008). De modo geral, os julgamentos sobre assuntos de mega-política nos Estados envolvem a participação de cortes nacionais em assuntos políticos com alta carga de divisão social – ou o que o autor chama de “watershed political issues” (Hirschl, 2008, p. 99).

A partir dessa lista exemplificativa fornecida pelo autor, o primeiro passo desta pesquisa foi tentar organizar as ideias de forma sistemática, criando categorias dedutivas. Assim, a lista abaixo expõe sete categorias, das quais seis foram retiradas das ideias trazidas pelo texto (theory-driven). A sétima advém da combinação entre a definição de judicialização da mega-política e os assuntos encontrados nas análises dos casos; portanto, uma categorização que combina inferências dedutiva e indutiva (data-driven).

Essa foi a forma encontrada para nortear as análises. É claro que há limitações quanto a isso. Possíveis casos que se enquadrariam no entendimento do autor sobre mega-política podem ter ficado de fora, além disso, sempre há uma subjetividade nesse tipo de procedimento, a qual pode desaguar em certa arbitrariedade na elaboração das categorias. São dificuldades e limitações de pesquisas qualitativas dessa linha. O importante aqui foi

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operacionalizar a teoria de alguma forma que permitisse comparação entre os casos, de modo a verificar se condições e resultados variam de forma esperada (George; Bennett, 2005).

Tabela 1: Categorias de análise

Categorias Questões judicializadas

Prerrogativas centrais do Executivo São questões envolvendo políticas de segurança nacional, como decisões sobre questões de terrorismo; política externa, tal qual a participação de tropas no exterior, decisões sobre legalidade de movimentos separatistas; ou, ainda, políticas sociais e econômicas, casos como sistemas universais de saúde, políticas de austeridade fiscal, entre outros.

Processos político-eleitorais Casos em que cortes são chamadas a decidir sobre legalidade de candidaturas e de partidos políticos, resultados de eleições, possíveis votantes, impedimento (impeachment) de líderes no cargo, questões envolvendo líderes oposicionistas, entre outras ligadas a dinâmicas eleitorais.

Mudança de regime e construção nacional

Decisões sobre a legalidade de novas constituições, restauração de regimes democráticos e modificações cruciais em regimes vigorantes (muitas vezes envolvendo golpes de Estado).

Justiça transicional e restaurativa Casos em que versam sobre a investigação, o processamento, punição e reparação em situações envolvendo regimes autoritários. Lida, em muitos casos, com estabelecimento de comissões da verdade e outros meios envolvendo memória.

Identidade nacional Considerados casos mais claros desse tipo de judicialização pelo autor. São situações que envolve, por exemplo, o caráter oficial de línguas, o status da religião no Estado.

Temáticas socialmente divisionistas Trata normalmente de direitos e políticas públicas que dividem/polarizam a sociedade em determinado Estado. São exemplos questões como aborto e porte de armas nos Estados Unidos. Essa é uma categoria mais ampla e, como consequência, mais difícil de se fazer a separação entre judicialização ordinária e extraordinária. É preciso um olhar mais detalhado sobre o contexto sociopolítico do país em análise.

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Medidas sensíveis ao regime Decisões que confrontam a autoridade do regime político em questão, revertendo, por vezes, ações anti democráticas de regimes não-democráticos. Normalmente são taxadas por governos como de interferência externa, ameaça a soberania, imperialismo estrangeiro, entre outras. Essa é uma categoria que foi criada a partir da combinação entre o conceito (theory-driven) e os achados (data-driven).

Fonte: elaboração a partir de Hirschl (2008, 2011).

Para encontrar os casos em que Estados saíram ou ameaçaram sair das respectivas cortes regionais, bem os casos associados com estes resultados, foi feito um levantamento direcionado da literatura, o qual pôde ser complementado com materiais extraídos a partir delas (destaque para Soley; Steinninger, 2018; Voeten, 2019; Contesse, 2019). Desse levantamento, combinado com a análise dos casos, chegou-se à lista preliminar apresentada na tabela abaixo

Tabela 2: Casos analisados

Estados Corte Resultado da Ameaça Presença de julgamenteo sobre Mega-política

Benin CADHP Retirada Parcial Sim Costa do Marfim CADHP Retirada Parcial Sim Ruanda CADHP Retirada

Parcial

Sim

Tanzânia CADHP Retirada Parcial

Sim Grécia CEDH Retirada

Formal*

Sim Reino Unido CEDH Reforma

doméstica Sim

Rússia CEDH Reforma

doméstica Sim

Peru CIDH Retirada

parcial* Sim República Dominicana CIDH Retirada parcial Sim

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Trinidade e Tobago

CIDH Retirada formal

Sim Venezuela CIDH Retirada

formal

Sim

Fonte: elaboração própria

*Estados que se retiraram e posteriormente retornaram.

Analise dos Casos

Nesta seção, faz-se uma breve descrição de casos relevantes julgados pelas respectivas cortes, para apresentar o porquê de serem considerados (quando foram) situações onde a judicialização da mega-política esteve presente. A segmentação é feita a partir de cada sistema regional de direitos humanos, observando os efeitos em cada corte regional.

Corte Interamericana de Direitos Humanos

Iniciando-se pela Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), foram encontradas quatro ocasiões de resistência direta de Estados onde a retirada do órgão passou a ser utilizada como estratégia – seja ela total (formal) ou parcial(indireta). Dentre elas, houve duas saídas formalizadas, Trinidade e Tobago e Venezuela, bem como encontrou-se uma situação na qual a retirada da jurisdição da corte se deu por meios indiretos (retirada parcial): Peru e República Dominicana – sendo uma das medidas posteriormente revertida (Peru). Dentro da ideia de backlash, a literatura ainda aponta outras situações relevantes, como Bolívia e Equador (Voeten, 2019), no entanto, como não houve nessas ocasiões a explícita estratégia de saída, optou-se, por isso, excluí-los das análises. Assume-se aqui retirada formal quando o país denuncia o tratado internacional que o faz vincular a determinada Corte – vale lembrar que denúncia é o instituto estabelecido pelo Direito Internacional para que o um Estado se retire de uma Corte. Quando houe situações em que, na prática, houve uma retirada, contudo sem formalização, considerou-se como retirada parcial, seguindo a literatura corrente (Contesse, 2019). Todas estão correlacionados com julgamentos que envolvem assuntos de mega-política3.

O caso que ativou o gatilho da retirada foi o de Trinidade e Tobago. O primeiro país a denunciar a Convenção Americana de Direitos Humanos. A ação de Trinidade e Tobago foi associada a uma temática particular: as disputas envolvendo este país caribenho e a respectiva Corte residem na questão da pena de morte. Apesar de a Convenção Americana

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de Direitos Humanos não proibir a pena de morte, a CIDH toca o assunto de forma interrelacionada com outros direitos, sobretudo ao abordar a espera prolongadas de presos no corredor da morte. Os diversos casos referentes a essa matéria levaram o país a denunciar a Convenção Americana, em 1999 (Soley, Steininger, 2018).

Trinidade e Tobago possuí um grande problema no que concerne à criminalidade, a política de pena de morte é vista como adequada pelas autoridades do país e a sociedade. Segundo Contesse (2019), tanto a opinião pública, como a elite nacional apoiam amplamente a política de pena de morte no país. Por isso, essa questão poderia ser inserida à categoria de mega-política de “temas socialmente divisionistas”. Ao justificar a denúncia da Convenção, o embaixador do país afirmou que “a Corte se tornou um instrumento para aqueles que querem abolir a pena de morte no país” (Soley; Steinninger, 2018), declaração pode ser vista como indicativo de que a matéria é algo muito sensível para a sua sociedade. Hirschl (2008, p. 100) salientar que “a judicialização da mega-política inclui diversos tipos de controvérsias, nem todas elas são igualmente problemáticas” – o que poderá ser visto nos demais exemplos. O segundo país a se retirar foi o Peru. Diferentemente do caso anterior, nesse houve uma saída classificada como parcial, já que não houve denúncia formal da Convenção Americana de Direitos Humanos. A primeira questão associada à saída do Peru envolveu uma decisão interna contra nacionais chilenos, que foram acusados de traição e terrorismo. A CIDH entendeu que houve violação no devido processo legal e ordenou novo julgamento. Além desse caso, havia outros dois também a espera de julgamento: um sobre a remoção de juízes da Corte Constitucional do país, e sobre a retirada de nacionalidade de dono de mídia crítico ao governo (Soley; Steininger, 2018).

Todas essas ocorrências remetem a decisões resultantes do regime autoritário de Fujimori. Foram decisões com alta “significância política”4 para o regime. O desafio foi entende-las a partir de alguma das categorias extraídas dos textos de Hirschl (2008, 2011). A dificuldade provém do fato de o autor ter procurado em seus textos refletir sobre a mega-política a partir de cortes constitucionais (portanto nacionais) em países democráticos. Na situação descrita, além do fato de as instituições analisadas aqui serem cortes internacionais, houve ainda um contexto permeando um regime autocrático. Como afirma a literatura, a resistência do Peru esteve diretamente relacionada ao fato de o país ser governado por um regime autocrático (Contesse, 2019).

Nesse sentido, procurou-se criar, a partir de inferência conceitual, uma nova categoria referente a casos de contestação de regime. Ela então está dirigida a julgamentos de cortes internacionais de direitos humanos acerca de “medidas sensíveis ao regime” – tabela 1,

4 Além da definição já apresentada sobre mega-política, o autor também a caracteriza como sendo:

“core political controversies that define the boundaries of the collective or cut through the heart of entire nations” (Hirschl, 2008, p. 99).

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categoria 7. Por falta de melhor terminologia, essa foi a rotulação adotada nesta categoria, criada a partir de casos (data-driven). Foi uma combinação de julgamentos sobre questões sensíveis ao regime com assuntos de prerrogativa do executivo (categoria 1), como terrorismo.

Como resultado de sua oposição, o Peru tentou denunciar apenas o compromisso que lhe vinculava à Corte Interamericana, sem, no entanto, sair da Convenção. Todavia, a Comissão e a Corte vetaram a esta possibilidade (Soley; Steininger, 2018). Na prática, o Peru deixou de seguir a Corte, mas sem denúncia formal Americana de Direitos Humanos por meio de denúncia (Contesse, 2019). Após a queda de Fujimori, com a advocacy de importantes setores da sociedade civil e de atores governamentais, o Peru voltou a integrar o sistema interamericano (Bernardi, 2015).

Caso similar ao peruano, o qual também foi classificado como sendo em um contexto de decisões sensíveis ao regime político, foi o da Venezuela. Antes de denunciar a Convenção Americana, o governo do então presidente Hugo Chávez vinha seguindo uma escalada na crítica de organismos internacionais, não apenas regionais (Contesse, 2019). Como aponta a literatura (Soley, Steininger, 2018; Voeten, 2019; Contesse, 2019), a justificativa utilizada para a denúncia foi a de que a Corte (assim como outros órgãos da região) servia apenas como instrumento do imperialismo dos Estados Unidos.

Vários julgados da CIDH foram criticados pelo governo venezuelano, o último que precedeu a denúncia (ocorrida em 2011) foi sobre a participação política do líder oposicionista Leopoldo Lopez, o que levaria um possível enquadramento na categoria “processos político-eleitorais”. Contudo, ao observar-se a descrição dos eventos, fica nítida que há uma resistência ao próprio órgão em si, que isso ocorre pela percepção de que a Corte não apenas condenar a Venezuela em casos específicos, mas o próprio regime venezuelano. Nesse sentido, a categoria ainda mais saliente é a de “medidas sensíveis ao regime”.

A última situação no qual identificou-se um julgamento sobre assunto de mega-política tratou-se da questão envolvendo a República Dominicana. A questão que pautou a resistência do governo dominicano foi mais específica: a concessão de nacionalidade a descendentes de haitianos.

Devido à falta de alternativas no país vizinho, a Republica Dominicana tornou-se um grande receptor de nacionais do Haiti, que frequentemente constituem famílias no país. Mais do que isso, depois das catástrofes naturais no Haiti (o grande terremoto e a tsunami, em 2010), o fluxo de imigrantes foi intensificado consideravelmente, o que passou a gerar um sentimento anti-imigração no Estado dominicano.

Diversas medidas passaram a dificultar o acesso à nacionalidade dominicana por parte de descendentes haitianos, o que se transfigurou em um problema público de crescimento de apátridas. Em 2011, a Corte Interamericana proferiu decisão sobre a temática, a qual foi

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seguida de diversas reações negativas de atores domésticos que culminaram com o fim da cooperação entre o governo do país e a Corte Interamericana. Nessa situação particular, a Corte Constitucional do país teve peso fundamental, em 2014 ela julgou contra a aceitação da jurisdição da Corte Interamericana. Declarou-se o instrumento de ratificação do Poder Executivo como inconstitucional, por não ter seguido os trâmites domésticos que necessitavam de votação no Legislativo (Contesse, 2019). Com isso, na prática, a Corte Constitucional dominicana “colocou o país no caminho da saída parcial da Convenção Americana” (Contesse, 2019, p. 33). A CIDH permanece recebendo casos, mas não há mais comparecimento da parte do governo dominicano. Não houve uma saída formal (denúncia), por isso ela foi classificada como uma retirada indireta. (Soley; Steininger, 2018)

O fato de a decisão da CIDH ter gerado várias disputas internas acerca da força vinculante ou não das decisões da CIDH, revelou ser a temática de grande importância política e, por vezes, com efeito de polarização. Nesse sentido, a decisão da Corte Interamericana pode ser enquadrada no grupo de “temáticas socialmente divisionistas”. Ademais, assuntos de cidadania também tocam tangencialmente outras categorias, sobretudo a de “identidade nacional”.

Corte Europeia de Direitos Humanos

O segundo regime de proteção de direitos humanos analisado aqui é o da Europa, o qual possui como tribunal a Corte Europeia de Direitos Humanos (CEDH). Trata-se da corte regional mais antiga com jurisdição específica sobre essa temática. Como a tabela 2 revela que em ao menos três, a estratégia de ameaça inquestionavelmente foi adotada, como se verá, todos foram situações em que casos de judicialização da mega-política podem ser associadas como uma condição presente.

A Grécia foi o único Estado-membro da Corte que chegou a deixar de fazer parte de dela após retirada formal. O fato ocorreu durante o regime autoritário grego, quando Dinamarca, Noruega, Suécia e Holanda entraram com uma queixa conjunta contra o golpe militar no referido país, que findou com uma decisão contrária ao governo do país. A ação dos coronéis, na tomada de poder, foi classificada como violação à Convenção. O pedido de retirada foi feito em 1969, a Grécia posteriormente retornou em 1976 (Madsen, 2019, p. 45). Trata-se de um caso incontestável de mega-política, mais precisamente, o questionamento da própria legitimidade do regime político grego.

Os outros dois casos foram apenas ameaças. No caso da Grã-Bretanha duas temáticas são comumente apontadas como sendo gatilhos para essa resistência específica: uma foi sobre o direito de voto de prisioneiros e a outra envolveu julgamentos sobre práticas relacionadas à participação britânica em ações decorrentes da guerra ao terror – com

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destaque para um problema envolvendo deportação de radicais islâmicos (Madsen, 2020; Voeten, 2019). São duas questões tipicamente relacionadas a mega-política, a primeira lida diretamente questões classificadas nas categorias da tabela 1 como sendo sobre processos eleitorais – e possivelmente caiba classifica-la entre os temas socialmente divisionistas. Já o segundo grupo de decisões lida com casos conexos a questões de segurança nacional e política externa, assuntos enquadrados por Hirschl (2008), como visto, como prerrogativas do Executivo.

Outro país que já ameaçou sair da Corte Europeia foi a Rússia. Considerado como sendo, provavelmente, o caso mais flagrante de resistência de um Estado a decisões da CEDH (Soley, Steininger, 2018). Ativistas de direitos humanos frequentemente comentam sobre um possível “Ruxit”5. No caso russo, alguns casos também abordaram aspectos de mega-política na Corte, e que são associados pela literatura como as críticas do Estado à Corte Europeia. Particularmente, o caso relacionado ao voto de prisioneiros é visto como central na adoção de uma norma interna que dá à Corte Constitucional do país a possibilidade de declarar determinada sentença da CEDH como sendo impossível de ser implementada (Madsen; Ceublak: Weibusch ,2018, p. 201).

A literatura ainda aponta para outros casos em que líderes políticos passaram a ameaçar a saída, como Dinamarca e França (Madsen, 2019). No entanto, como não foi possível identificar uma ameaça claramente feita pelo governo, optou-se por deixar esses casos de fora.

Corte Africana de Direitos Humanos e dos Povos

A Corte Africana de Direitos Humanos e dos Povos é o tribunal internacional mais recente. Dos mais de 30 Estados com possibilidade de aceitar sua jurisdição, apenas 10 o fizeram. Desses 10, 4 já voltaram atrás nesse posicionamento, retirando-se do protocolo da Carta Africana de Direitos Humanos, o qual dá a possibilidade indivíduos e ONGs acionarem a Corte contra os respectivos Estados.

Ruanda foi o primeiro país a traduzir sua insatisfação por meio de medida efetiva. O Estado retirou a possibilidade de cidadãos e ONGs do seu país de poderem acionar o órgão em busca de reparação, ao denunciar o protocolo que facultava essa possibilidade (Voeten, 2019). Esse tipo de comportamento foi classificado aqui como retirada parcial – na prática, dificilmente Estados entram contra pares em processos de direitos humanos em cortes internacionais.

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O assunto que motivou a saída foi um julgamento envolvendo a condenação de um líder oposicionista a 15 anos de prisão no país, na qual foi acusado de crimes diversos como terrorismo, incentivo ao genocídio e ataque a autoridade do Estado. A Corte Africana entendeu o julgamento ter sido um caso contra liberdade de expressão do demandante. Entendeu-se que, apesar de a lei de Ruanda que proíbe a minimização do genocídio no país ser inquestionavelmente legal, as medidas tomadas pelo Estado foram desproporcionais. A retirada da possibilidade de indivíduos e ONGs peticionarem contra o país na Corte foi justificada com base neste caso (Daly; Wiebusch, 2019, p.21).

Não resta dúvidas que o julgamento objeto da ação de retirada é um assunto da mais alta relevância política para o país. Nesse caso, tem-se visivelmente uma “temática socialmente divisionista”, até pelo próprio caráter do genocídio, que colocou grupos étnicos nacionais como inimigos. Considerando as demais situações vistas por Hirschl (2008) como marcas de mega-política, o julgado toca igualmente em uma problemática de “identidade nacional”, como também de “reconstrução nacional”. Isso fica claro quando tomado o posicionamento ministro da justiça do país sobre a decisão da Corte, o qual afirmou que a Corte se tornou um palco para dar voz a “genocidas condenados”6.

Seguido por Ruanda, Tanzânia foi o segundo Estado a se retirar do protocolo, em 2019. Ao declarar sua intenção de saída, o Ministério das Relações Exteriores do país não forneceu explicações detalhadas sobre as motivações para tanto. Em primeira análise, o caso da Tanzânia parece ter sido motivado menos por um atributo qualitativo de um julgamento específico e mais na quantidade de medidas tomadas contra o Estado. O país é o que mais contém casos na Corte Africana – 43% total de casos finalizados na CADHP7 e 63% do total de casos a espera de julgamento. Levando em consideração a data do pedido, o último caso finalizado pela Corte é um importante indicativo do papel da judicialização da mega-política, já que se trata de assunto envolvendo o resultado de eleições8. Vale apontar que o processamento envolvendo o referido caso iniciou-se em 2018 e foi finalizado em julho de 2020, pouco depois da denúncia do país. O caso de Tanzânia torna-se paradigmático no que concerne ao desafio da CADH se manter operante, pois se trata do Estado-sede da instituição. As retiradas parciais de Ruanda e Tanzânia foram seguidas das de Benin e Costa do Marfim – ambas em 2020. O primeiro, em sua declaração de saída, acusou a Corte de interferir em assuntos da soberania do Estado, mas não associou essa afirmação a um caso específico. Porém, dois casos em que o país foi parte despertaram maiores críticas à Corte,

6 http://opiniojuris.org/2020/05/19/a-court-in-crisis-african-states-increasing-resistance-to-africas-human-rights-court/ 7 https://www.ejiltalk.org/individual-and-ngo-access-to-the-african-court-on-human-and-peoples-rights-the-latest-blow-from-tanzania/ 8 Ver: https://www.african-court.org/en/index.php/56-pending-cases-details/1185-app-no-018-2018-jebra-kambole-v-the-united-republic-of-tanzania-details

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ambos sendo referentes a medidas cautelares e não de julgamentos per si. Um versando sobre o pagamento de uma grande quantia em dinheiro pelo Estado, e outro referente a um membro de oposição exilado, que conseguiu da Corte uma medida preventiva de suspensão de eleições municipais9.

Dentre esses dois casos, o segundo é um exemplo de questões de judicialização mega-política no que concerne a processos eleitorais. Mais uma vez, vê-se o envolvimento de uma Corte na dinâmica de eleições. O segundo é um pouco mais difícil de classificar como um caso de mega-política, já que é um assunto específico que envolve pagamento de dívida do Estado.

No caso de Costa do Marfim, também não houve uma expressa associação entre a retirada parcial e suas respectivas justificativas – menções vagas de que os julgamentos da CADHP ameaçavam a soberania estatal e a estabilidade interna. Porém, o timing da saída coincidiu com a submissão de um caso feito por partido político de oposição. Como resultado da ação, houve uma mediada cautelar imposta pela Corte Africana contra o referido Estado, pedindo a suspensão da prisão de membro oposicionista. Na esteira a demanda feita pela Corte, o governo da Costa do Marfim fez seu pedido de retirada parcial10. A decisão de retirada sugere também uma motivação decorrente de judicialização da mega-política, e, assim como os demais, envolvendo oposição política.

Na verdade, praticamente todos os casos africanos possuem, em maior ou menor grau algo envolvendo processos eleitorais ou outras questões associadas a forças opositoras. Algo que também vem acontecendo em alguns casos nos outros sistemas regionais estudados. Não é surpresa que esse tipo particular de mega-política desperte ações intransigentes de governos, como a retirada de jurisdição internacional, como Hirschl (2008, p. 100), “a área mais abertamente política é a judicialização do próprio processo democrático [eleitoral]”.

Necessidade e suficiência nos casos

Após o levantamento dos casos, é preciso então avaliar se a judicialização da mega-política é realmente uma condição necessária. Para tanto, utilizou-se uma análise simples, como base nas técnicas de set-methods – sobretudo em estudos do QCA. Na concepção de set-theory, para que uma condição seja necessária, ela precisa ser um superset do resultado. Ou seja, todos os casos que apresentam um outcome devem conter a condição necessária, não importando se outros casos apresentem tal condição e não apresentem o outcome

9

http://opiniojuris.org/2020/05/19/a-court-in-crisis-african-states-increasing-resistance-to-africas-human-rights-court/

10

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(George, Bennett, 2005), como é possível ver na figura 1. Por essa ideia então, o resultado Y implica na existência de uma condição X. De outra forma: YX.

Figura 1

X

Y

Schneider e Wagemann (2012) indicam que um elemento básico para que uma condição seja necessária é que elas possuam uma consistência de pelo menos 0.9 no total de casos analisados. Em outras palavras, há uma tolerância que indica que nem todos os casos precisam ter a condição para que esta seja considerada como necessária. A consistência de uma condição necessária pode ser alcançada dividindo os valores em que a condição está presente no total de casos. Na categorização feita neste paper, todos 11 casos até então levantados apontam para a judicialização de questões consideradas de mega-política, o que fornece uma consistência necessária. Ainda que um dos casos fosse posteriormente retirado da classificação, haveria uma consistência de 0.91, satisfazendo o critério.

Dentre as categorias de mega-política, três se destacaram nos casos: a) processos político-eleitorais, b) medidas sensíveis ao regime, c) temáticas socialmente divisionistas. Os exemplos em que essas categorias se aplicam são: “o destino da presidência norte-americana, a guerra na Tchetchênia, a agitação política quase constante no Paquistão, a cidadania multicultural na Europa Ocidental, o lugar da Alemanha na União Europeia, dilemas de justiça de transição no mundo comunismo tanto quanto na América Latina pós-autoritarismo e na África do Sul pós-apartheid, o status de populações indígenas na Austrália e na Nova Zelândia, o futuro político do Quebec e da federação canadense, a eminência da lei Shari’a no Egito, a natureza secular do sistema político da Turquia, ou a definição fundamental de Israel como Estado judeu e democrático e a correspondente questão: quem é judeu?” (Hirschl, 2012).

Como essa é uma análise preliminar, ainda é necessário um maior aprofundamento na compreensão dos casos para determinar a existência de judicialização da mega-política. Em algumas situações, há certa margem para entender que as questões judicializadas são

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efetivamente temas de mega-política, podem ser citados aqui os casos de Trinidade e Tobago e da República Dominicana.

É importante lembrar que a condição necessária é um fator que torna possível o resultado, mas, muitas vezes, não é o elemento determinante – para tanto, deveria ser não só necessária, mas suficiente (Schneider; Wagemann, 2012). Esse paper não pretende entrar afundo nas configurações consideradas suficientes para os resultados. Como claramente exposto na introdução, a preocupação dele está voltada tão somente para a necessidade. Todavia, uma breve reflexão pode apontar algumas hipóteses que tragam possíveis condições, as quais, conjuntamente com a judicialização mega-política, possam identificar caminhos que sejam suficientes para o resultado.

A priori, duas condições podem ser vistas em combinação com a judicialização da mega-política em estudos futuros. Uma delas é mais comum em análises de política comparada: o nível de democracia dos Estados. A outra vem ganhando mais projeção nas análises ideacionais mais recentes dentro da Ciência Política: o populismo.

Apenas como uma análise preliminar, esse paper levantou os índices de democracia dos Estados no momento da denúncia, ameaça ou saída indireta, bem como o nível de populismo do governante. Os dados sobre democracia foram retirados do V-Dem11, e de populismo do database Global Populism12. Eles são apresentados na tabela a seguir.

Tabela 3: outras variáveis

País Ano Nível

democrático* Grau de populismo Resultado da Ameaça Presença de julgamenteo sobre Mega-política Benin 2020 Autocracia eleitoral (0.46) _____ Retirada Parcial Sim Costa do Marfim 2020 Autocracia eleitoral (0.38) _____ Retirada Parcial Sim Ruanda 2016 Autocracia eleitoral (0.15) _____ Retirada Parcial Sim Tanzânia 2019 Autocracia eleitoral (0.34) _____ Retirada Parcial Sim Grécia 1969 Autocracia fechada (0.06) _____ Retirada Formal Sim Reino Unido 2011 democracia

liberal (0.81)

Não populista Reforma doméstica

Sim

11 https://www.v-dem.net/en/

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Rússia 2015 Autocracia eleitoral (0.13) Razoavelmente populista Reforma doméstica Sim Peru 1999 Autocracia eleitoral (0,16) _____ Retirada formal Sim República Dominicana 2011 Autocracia eleitoral (0.34)

Não populista Reforma doméstica Sim Trinidade e Tobago 1998 Democracia Eleitoral (0.66) _____ Retirada formal Sim Venezuela 2011 Autocracia fechada (0.16)

Muito populista Retirada formal

Sim

*Referência V-DEM “Liberal Democracy” codebook v.5.

Infelizmente, nem todos os dados estão disponíveis no banco sobre populismo. O Global Populism database restringe-se a avaliar os discursos de presidentes e primeiros-ministros de apenas 40 países (2000-2019), ele deixa de fora, portanto, a grande maioria dos casos aqui levantados. De todo modo, considerando a tabela 3, a Venezuela pode servir de caso típico para estudos futuros mais aprofundados sobre a combinação de judicialização da mega-política com um regime populista e a saída de um Estado-membro de uma CRDH.

Mais significativo parecem ser as configurações que combinam nível de democracia e judicialização da mega-política. Em um primeiro olhar, percebe-se que, a exceção de Trinidade e Tobago e Reino Unido, todos os demais casos envolveram regimes autocráticos. A partir desse ponto, algumas questões podem ser levantadas: a combinação entre um regime autocrático e um julgamento de mega-política pode ser um caminho suficiente para se chegar à saída de um Estado de uma corte regional de direitos humanos? Ou talvez, a inexistência de uma democracia liberal, combinada com a presença de julgamento sobre assunto de mega-política corresponde a uma configuração suficiente para o resultado? Nesse sentido, análise utilizando métodos como o QCA podem ser boas alternativas para entender o possível papel que essas outras condições podem ter.

Conclusão

O estudo realizado por meio deste paper é uma pesquisa específica de um projeto maior, o qual procura analisar os desafios que as instituições internacionais de direitos humanos vêm tendo no âmbito da política contemporânea. Trata-se de um esforço para entender como possíveis preferências e configurações das políticas domésticas podem implicar em backlash ou pushbacks contra essas instituições, decorrentes do comportamento dos Estados.Especificamente, este trabalho esteve interessado em avaliar se a judicialização

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da mega-política pode ser considerada uma condição necessária para a existência de um tipo particular de resistência (a retirada ou ameaça de retirada de Estados) a um grupo restrito de instituições internacionais de direitos humanos (as cortes regionais).

Como visto, em uma análise comparativa preliminar, há indicativos que apontam para a confirmação da hipótese levantada. Os casos levantados apresentaram situações de judicialização da mega-política e elas foram sugeridas – seja pela literatura ou pelos pronunciamentos de representantes dos governos – como sendo motivações para a ameaça de retirada ou saída efetiva dos Estados.

Os dados encontrados, contudo, precisam ser reforçados por meio de uma análise mais aprofundada, visando dirimir certas inconsistências, bem como precisar elementos teóricos operacionalizados. Além disso, trabalhos futuros poderão avaliar as hipóteses complementares levantadas por este paper, as quais podem corroborar para um maior entendimento quanto a esse fenômeno específico que pode ser chamado de desjudicialização de cortes internacionais de direitos humanos, incorporando nas análises questões como níveis de democracia e a existência ou não de um governo populista.

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