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A TERRITORIALIZAÇÃO CAMPONESA NA REGIÃO METROPOLITANA DE CURITIBA: FAXINAIS E CRIADORES 1

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Academic year: 2021

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A TERRITORIALIZAÇÃO CAMPONESA NA REGIÃO METROPOLITANA

DE CURITIBA: FAXINAIS E CRIADORES

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Marcelo Barreto

1. INTRODUÇÃO

O presente trabalho procura tecer comparações sobre duas comunidades que se encontram no município de Quitandinha na Região Metropolitana de Curitiba (RMC): o faxinal do Salso e o criador do Cerrinho, no que toca à reprodução social do campesinato. Mais especificamente busca-se compreender as diversas estratégias de reprodução social de grupos camponeses diante das transformações econômicas e sociais que acontecem em esfera global na atualidade e em que medida respostas dadas a esse movimento global garantem a manutenção do modo de vida camponês. Entende-se que ações tomadas pelos camponeses e que são ligadas aos costumes, deságuam em um processo de territorialização que é próprio desses sujeitos.

Verifica-se na atualidade que o termo jurídico povos e comunidades tradicionais vem sendo utilizado para designar grupos camponeses que procuram resistir à supressão de suas terras e ao desmembramento de suas comunidades causados pelo avanço da reprodução capitalista. Por meio da autoafirmação coletiva, relações que são regidas pelos costumes locais passam a adquirir a forma de práticas e saberes tradicionais. A luta pelo reconhecimento dessas práticas passa a ser a luta desses camponeses enquanto sujeitos sociais para a manutenção do seu modo de vida no atual período histórico.

No entanto, ao se abordar as relações que se travam cotidianamente nas comunidades estudadas, sejam elas mediadas pelo capital ou não, entende-se que não é a especificidade de

1 Este trabalho apresenta parte dos resultados da pesquisa de doutorado realizada no Programa de Pós-graduação

em Geografia Humana da Universidade de São Paulo, cuja tese encontra-se com o título “Territorialização e

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cada uma delas que define a forma como o sujeito conduz a sua vida, mas o conjunto delas que é marcado pelo movimento internalização/projeção que dá sentido ao que se faz e do que se precisa.

As duas comunidades que foram abordadas na pesquisa praticam o uso comum de suas terras. Pratica esta que, conforme verificado nas entrevistas de campo, compõe um elemento importante na reprodução social do modo de vida camponês dessas comunidades. Embora ambas possuam a mesma origem e várias similaridades entre si; a forma que elas encontraram para dar respostas aos processos globais que as cercam é diferente. Uma delas (a do Salso) optou por fazer parte do movimento de reconhecimento enquanto Povos e Comunidades Tradicionais, e incorporaram a identidade de faxinalenses. Outra (o Cerrinho) optou por não fazer parte desse movimento e mantém a sua organização por meio da associação local e manteve o nome de criador. Esta diferença vem acontecendo desde o ano de 2005, quando os integrantes do Movimento Social Articulação Puxirão dos Povos Faxinalenses (APF) visitaram as duas comunidades e propuseram a integração à sua luta pela permanência na terra pela via da autoafirmação coletiva.

Cabe lembrar que a mercantilização das terras ocasionadas pelo avanço da monocultura da soja, florestamento com o eucalipto e a formação de chácaras de veraneio se constitui como elemento que provoca diretamente a supressão das áreas destinadas ao uso comum.

Dessa forma, procurou-se traçar um panorama de como as estratégias de reprodução social vem sendo pensadas e repensadas em ambas as comunidades para manterem o seu modo de vida na terra. Como recuso metodológico, lançou-se mão da perspectiva

relacional-escalar, na qual se procura identificar três unidades escalares: família, grupo social e mundo.

Estas unidades não são fechadas entre si – entende-se que as relações são diversas e ao produzir o espaço, o sujeito da pesquisa acaba participando de um conjunto maior que engloba não só a esfera local na qual ele está inserido, mas também o meio global que o cerca. Tal perspectiva possibilita a compreensão, conforme afirma Carlos Vainer (2010), de que o

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poder está muito mais na capacidade articular e intervir de modo transescalar do que nas unidades escalares em si.

2. DESENVOLVIMENTO

2.1. Costume, Tradição e as Unidades Escalares

Na introdução do livro Costumes em Comum, Edward Palmer Thompson (2005) menciona sua tese central:

Defendo a tese de que a consciência e os usos costumeiros eram particularmente fortes no século XVIII. Na verdade, alguns desses “costumes” eram de criação recente e representava as reivindicações de novos direitos. O povo estava sujeito a pressões para “reformar” sua cultura segundo normas vindas de cima, a alfabetização suplantava a transmissão oral, e o esclarecimento ocorria dos estratos superiores aos inferiores – pelo menos era o que se supunha (p.13).

A partir da referência citada acima, entende-se que o costume é o elemento que aponta para a objetivação das relações sociais no processo de reprodução de um determinado grupo. No caso estudado, o costume se encontra na interface da lei com a prática agrária e somente ganha sentido dentro do contexto em que aparece. Em outras palavras, ao lado do direito positivo, elaborado no âmbito do Estado, outras formas de ordenamento social surgem com base em regras elaboradas internamente, a partir de práticas ligadas ao cotidiano das pessoas, próximos aos sujeitos que delas partilham.

Neste ambiente residem os camponeses que compartilham as terras de uso comum na Região Metropolitana de Curitiba. Suas comunidades não possuem cercas que delimitam as propriedades privadas dando a possibilidade de os animais, de propriedade individual, apascentarem livremente em toda a extensão das terras destinadas a esse uso. Esta prática que vem sendo desenvolvida entre camponeses faz mais de 200 anos não é uma exclusividade da

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região estudada, tampouco do Estado do Paraná, mas aparece em todo o Brasil com as suas especificidades2.

No momento em que se constitui como representação, o costume define o “tom” da conversa no processo de articulação política para serem propostas as reivindicações. Atualmente, com a incorporação da noção de direitos atinentes aos povos e comunidades tradicionais, de acordo com o Decreto presidencial n° 6.040/073, vem se estabelecendo uma via para se reivindicar demandas, a qual encontra no termo “tradição” o amparo para se legitimarem na sociedade moderna. A noção de tradicional é internalizada para dar vazão, em certa medida, aos anseios de grupos camponeses que lutam pela defesa das terras que eles habitam.

Para esses camponeses, principalmente no caso dos membros do faxinal do Salso (os faxinalenses), ao buscarem amparo na tradição como o elemento principal nas suas demandas, não é a essencialização do passado que entra em jogo, mas a busca do equilíbrio entre a flexibilidade enquanto possível e o comprometimento formal com o que vem sendo construído tanto internamente, quanto como parte do conjunto da sociedade.

Para Eric Hobsbawm (1977), a tradição é a invariabilidade, um passado (real ou forjado) que impõe práticas fixas (formalizadas) por meio da repetição. Já o costume funciona como motor e volante. O costume não impede as inovações e pode mudar até certo ponto, pois está presente em diversas escalas. No entanto, não se liberta da exigência de que deve ser compatível ou idêntico ao precedente. Neste caso, o precedente é consultado para que qualquer mudança seja efetivada ou que haja resistência à inovação.

Existem, entretanto, as tradições genuínas capazes de se constituir enquanto força e adaptabilidade e que não devem ser confundidas com a invenção das tradições, conforme afirma Hobsbawm (1997). Não é necessário recuperar nem inventar tradições quando os

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Ver Nazareno José de Campos (2011).

3 De acordo com este Decreto, são povos e comunidades tradicionais: grupos culturalmente diferenciados e que

se reconhecem como tais, que possuem formas próprias de organização social, que ocupam e usam territórios e recursos naturais como condição para sua reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e econômica, utilizando conhecimentos, inovações e práticas gerados e transmitidos pela tradição (BRASIL, 2007).

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velhos usos ainda se conservam. Quando os velhos costumes já não estão mais disponíveis, as tradições podem se inventar. As tradições inventadas aparecem enquanto vácuos disponíveis para serem preenchidos. Vácuos estes gerados por processos de transformações radicais oriundos da ideologia liberal da transformação social.

Salienta-se que os interesses de cada família nem sempre caminham na mesma direção do grupo social do qual elas fazem parte. O fato de as famílias possuírem suas especificidades leva a certo desencontro entre as práticas específicas tradicionais do grupo e as diversas espacialidades travadas no cotidiano, principalmente na relação com o capital. Isso faz com que o sujeito seja observado na sua ambiguidade sem, no entanto declarar a sua nulidade enquanto portador da busca do possível.

Neste caso, a perspectiva relacional-escalar possibilitou apreender as relações em movimento. As escalas se constituem como unidades em que o sujeito influencia e ao mesmo tempo é influenciado pelas diversos processos e ações que o rodeia.

A abordagem relacional-escalar das três unidades (família, grupo social e mundo) compõe a forma pela qual se procurou compreender a territorialização e a espacialização desses camponeses. O mundo pode ser entendido por meio da esfera do Estado e do capital. O grupo social corresponde aos camponeses na resistência frente ao movimento supressor de suas terras e do seu modo de vida promovido essencialmente pelo capital. No caso estudado, nestes se encontram os faxinalenses no seu conjunto em que moradores do Salso representam uma parte e os não-faxinalenses do Cerrinho. No caso dos faxinalenses a esfera do grupo social tem uma projeção que chega ao nível do estado por meio da ação política; o que não acontece com os não faxinalenses do Cerrinho, cuja luta pela permanência na terra se dá localmente no âmbito da associação dos moradores. A família é a unidade da reprodução social do sujeito, com suas representações e seus costumes4.

Procurou-se abordar a questão escalar tendo como base a obra A Revolução Urbana de Henri Lefebvre (2002). Segundo o autor, “o poder político dispõe de instrumentos ideológicos e científicos. Ele tem capacidade de ação, podendo modificar a distribuição dos recursos, dos

4 A conduta da família e do grupo social é regida pelos costumes. Como foi abordado, ele aparece como

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rendimentos, do „valor‟ criado pelo trabalho produtivo (ou seja, da mais-valia)” (LEFEBVRE, 2002, p. 78).

Entende-se, portanto que o movimento transescalar, dependendo do método escolhido para a sua abordagem, pode assumir múltiplas direções. Na perspectiva escolhida, é a ação política que assume o papel de fazer com o que o movimento se dê também a partir das esferas locais (família e grupo social).

Procura-se adicionar a esta perspectiva afirmação de que

sem dúvida que a ação política é um importante instrumento na luta contra um inimigo (o agronegócio) interessado na supressão do território e opera no sentido de dar coesão ao grupo. No entanto, há que se tomar cuidado para não fazer dela o único elemento definidor das possibilidades, o que impede de enxergar as contradições presentes no próprio meio e a diversidade de anseios existente entre os sujeitos sociais que buscam as mudanças. Compreender os diversos interesses existentes no interior das comunidades permite enxergar melhor quem são aqueles que estão ao redor dos faxinalenses e demais camponeses e quais suas intenções (BARRETO, 2013, p. 26). Grifo nosso

Neste sentido, a escolha de ambas as comunidades para o presente trabalho (uma cuja luta atinge a esfera política e outra em que ela se dá localmente) se deu pela tentativa de uma compreensão da reprodução social do campesinato como um todo frente as suas diversas espacialidades.

2.2. Campesinato e os Faxinais

Para Teodor Shanin (1980), a construção de um conceito de camponês começa pela unidade de produção familiar que atende a uma lógica específica. O autor aponta que o campesinato representa ao mesmo tempo uma classe social e um modo de vida. Isso acontece porque, enquanto classe, os camponeses vivem subordinados às outras classes do capitalismo. Enquanto modo de vida, os camponeses conseguem estabelecer uma sociedade fechada em si mesma com a autossuficiência, sem a necessidade de estabelecer grandes relações com o meio

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circundante. Essas relações que Shanin (op. cit.) aponta, existem e determinam as condições da existência camponesa.

Nos três estados da região Sul do Brasil existem comunidades camponesas que praticam ou que já praticaram o uso comum da terra que possuem o nome “faxinal”. Com a organização dos camponeses faxinalenses no estado do Paraná e o alcance que a sua luta política vem atingindo por meio do movimento social APF, o nome “faxinal” vem adquirindo novo sentido. Agora ele aparece como a representação de um processo associado a grupos camponeses que recebem a denominação do Estado como povos e comunidades tradicionais e que buscam o reconhecimento de suas práticas por meio da autoafirmação coletiva como forma de resistência ao apoderamento total do seu modo de vida pelo capital.

Dessa forma, foi incorporando o termo “faxinal” ao nome de sua comunidade que os camponeses do Salso fizeram de seus conflitos uma questão que não se restringe à esfera local, mas que atinge o global por meio da associação com faxinalenses de outras regiões do estado.

Os conflitos são marcados pela redução das terras de uso comum ocasionadas tanto pelo carcamento destinado ao plantio de eucalipto, quanto para a formação de chácaras de veraneio; ambas as atividades impulsionadas pelo processo de mercantilização das terras na região. Se este processo não encontra freio com ações tomadas com base local, pressiona-se o estado por meio da constituição de uma figura jurídica para que se possa resistir ao avanço das forças capitalistas nas terras faxinalenses.

2.3. O Salso e o Cerrinho

Localizado no município de Quitandinha o Salso era primeiramente um núcleo ligado à localidade conhecida como Lagoa Verde. A Lagoa Verde era um só criador, que continha vários núcleos familiares muito distantes entre si. Não havia cercas delimitando esses núcleos, os animais ficavam soltos, podendo apascentar em uma área de abrangência que passava os limites do próprio município. Com a construção da BR-116 em meados da década de 1940, o criador da Lagoa Verde foi dividido ao meio e passou e, a partir de então

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começou a se fragmentar. Segundo os relatos dos moradores, essa foi a primeira intervenção que ocasionou na diminuição do criador, chegando até mesmo a dividir núcleos familiares que se encontravam em uma mesma localidade.

Esses núcleos, com o tempo, foram aumentando, pois as famílias cresciam e havia a necessidade de mais terras para a reprodução social. No caso do Salso, o núcleo correspondente às famílias Taborda e Colaço foi se destacando e o número de moradas foi aumentando. Por volta da década de 1990, depois de a comunidade já ter sido constituída com nome próprio, que o nome Salso ficou em uso corrente entre seus moradores. Para os próprios membros, a formação do Salso é como a de um bairro, só que marcado por uma relação de parentesco.

Posteriormente, a ideia de o Salso reconhecer-se pelo nome “faxinal” surgiu no ano de 2005 com a participação do Primeiro Encontro dos Povos Faxinalenses e se concretizou no ano de 2007 pela assembleia e votação, realizadas entre seus moradores. Com a intensificação das transações financeiras de compra e venda de terras dentro do criador para a formação de chácaras de veraneio e plantação de Pinus e Eucalipto, as famílias que vivem no Salso foram percebendo que as terras para a criação à solta estavam se tornando insuficientes para a reprodução do modo de vida camponês. Perceberam também que, por si só, eles não tinham forças suficientes para barrar esse processo, visto que em várias localidades contíguas ao Salso, as terras de uso comum já haviam sido suprimidas.

A criação da associação e integração ao movimento social permitiu que o grupo se organizasse e juntasse as forças necessárias para frear a supressão de suas terras de uso comum. O acordo comunitário, elaborado em conjunto com membros do movimento social estipulou uma sequência de regras para que o criador do Salso se mantivesse. Em 2009, a comunidade deu entrada no pedido para a criação de uma Área Especial de Uso Regulamentado (ARESUR), o que permitiria receber os recursos provenientes do ICMS Ecológico e transformar a área do criador em uma Unidade de Conservação. Porém, até o presente momento este processo continua tramitando no Instituto Ambiental do Paraná (IAP).

Como parte do trâmite para a criação da ARESUR, é necessário que o faxinal elabore o seu acordo comunitário para ser aprovado em assembleia entre os moradores, no qual são

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estipuladas regras para um manejo sustentável do criador. Neste deve constar principalmente: área do criador, número de animais permitido para cada família e área máxima destinada ao cercamento ao redor das casas para a constituição dos quintais.

De acordo com o acordo comunitário do Salso, é permitido cercar apenas 20% das terras no criador. Atualmente, no Salso, cada novo morador que ingressa na comunidade recebe uma comissão, montada pelos membros da associação, que procura levar informações a respeito das práticas cotidianas no faxinal e do aparato jurídico que sustenta essas práticas.

Atualmente no Salso existem 42 famílias. Destas, 20 se dizem faxinalenses. As demais são compostas por moradores novos, conhecidos como chacareiros. Estes são professores, funcionários públicos e aposentados provenientes de Curitiba, São José dos Pinhais e do núcleo urbano de Quitandinha que compraram terras na comunidade.

Já no Cerrinho, encontram-se 30 famílias entre moradores antigos e chacareiros. Este surgiu a partir de um processo de migração proveniente do Salso. Percebendo que o núcleo familiar do Salso estava expandindo, alguns moradores resolveram se estabelecer em terras que eram destinadas ao plantio5 e que se encontravam a aproximadamente 5 km do local da residência.

A própria situação de posse, a que muitos camponeses se encontram no Brasil, permite uma multiplicidade de arranjos, conforme demonstra Renata Medeiros Paoliello (2006). A posse, presente nas práticas e nas representações está além do discurso estratégico para fazer frente à iminência de uma perda da terra. Tal situação permite a construção histórica que se leva a uma interpretação a partir do direito à terra associada a uma dinâmica de mobilidade. Ou seja, se não há mais terra suficiente para a partilha, se aposseia de outras terras sem dono para fundar uma nova comunidade.

No caso estudado, quando os primeiros moradores chegaram no Cerrinho, lá ainda era mato fechado. Isso foi por volta de 1911. O primeiro morador, proveniente do Salso tomou posse de 11 alq. (26,62 ha) e 8 alq. (19,36 ha) e depois procurou legalizar. Conforme

5 As terras destinadas ao plantio, conhecidas como terras de plantar são cultivadas pela próprias famílias que

habitam o criador e são de uso individual. Elas se encontram além dos limites das terras de uso comum (o criador). Geralmente nessas terras se planta o milho e o feijão. Por se encontrarem distantes do espaço destinado à morada, nos períodos de safra, as famílias acabam residindo nessas terras.

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as entrevistas nos trabalhos de campo, naquela época, cada um demarcava o que podia e depois regularizava. Plantava-se milho e feijão, o que sobrava era vendido em localidades próximas ao Cerrinho. Alegam os moradores que dava para comprar terra vendendo só milho e feijão.

No caso do Cerrinho, que foi formado pelos antigos moradores do Salso, não foi acatada a decisão de ingressar no movimento social. Os moradores dessa comunidade não entraram em um acordo diante da proposta feita pela APF. Percebe-se que no Cerrinho existem fatores que contribuem para o fim das terras de uso comum e existem fatores que ainda demonstram a sua permanência.

Embora não possua acordo comunitário, a associação do Cerrinho mantém suas regras muito bem definidas. Uma delas diz respeito à quantidade permitida de animas. Por um lado os moradores afirmam que “se todo mundo pensar em ter cavalo ou gado dentro do criador ele incha, não dá para viver” (B.T.), por outro lado está ficando cada vez mais difícil manter os animais devido à diminuição do criador provocada pelo aumento do número de chacareiros e do cercamento de terras para o plantio do eucalipto. Mas a insistência em manter os animais soltos é recorrente, pois se percebe que a manutenção da prática do uso comum vigora entre os moradores. Também se verifica a existência de regras internas que regulam as atividades que se desenvolvem dentro do criador, embora esteja ficando cada vez mais difícil conter a vinda de novos sujeitos, que trazem da cidade suas próprias regras baseadas no individualismo e na especulação.

A cerca que delimita o criador está sendo mantida – ela ainda é feita na forma de puxirão6. A manutenção da cerca é feita por grupos. Comumente, em faxinais, a manutenção da cerca é feita individualmente na parte que corresponde a cada família.

O morador entrevistado, que é o presidente da associação dos moradores do Cerrinho, afirma que mesmo que um dia as terras de uso comum venham a acabar naquela comunidade, enquanto houver o criador ele vai defender e manter. No entanto, ele não

6 Puxirão é uma prática ligada ao modo de vida camponês em que todos os membros da comunidade se juntam

para a realização de uma tarefa de interesse comum. Há casos em que eles se juntam para ajudar alguma família que por si só não consegue realizar determinado trabalho.

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demonstrava tanto otimismo quanto a permanência das mesmas. “Não adianta a gente pensar e o outro vizinho não pensar. Não tem coisa melhor do mundo do que a nossa criação ali – porco, cavalo, cabrito tudo solto. Mas é assim, a vida é essa!” (B.T.).

3. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Buscou-se perceber as diferenças e semelhanças entre o Salso e o Cerrinho com base no conceito de costumes. Algumas diferenças se processam basicamente na elaboração das regras. Enquanto que se acatou no acordo comunitário que no faxinal do Salso não seria permitido atividades ligadas à integração com a indústria, principalmente fumageiras e de processamento de aves, no Cerrinho não existe restrição, principalmente quanto ao uso dos secadores de fumo e demais atividades ligadas ao benefício próprio da família.

A luta que os faxinalenses travam cotidianamente pela permanência na terra não se restringe ao processo político da construção da identidade, embora este seja um elemento que vem ganhando força entre camponeses que se reconhecem como povos e comunidades tradicionais. Existem associações em comunidades que não fazem parte do Movimento Social e que estão organizadas para restringirem ações específicas de um chacareiro ou até mesmo com a finalidade trabalharem na manutenção de seu território. O Cerrinho é um caso. A convivência com sujeitos que vem de fora faz com que os antigos moradores do Cerrinho repensem suas práticas sem, no entanto, se divorciarem completamente do seu modo de vida. No momento em que regras são elaboradas e reelaboradas a partir deste novo contato, os costumes desses camponeses prevalecem e se modificam. Modificam para se adaptarem às novas mudanças e prevalecem para darem sentido à construção histórica do seu modo de vida.

4. REFERÊNCIAS

BARRETO, M. Territorialização e Tradicionalização: refletindo sobre a construção da identidade faxinalense no Paraná. 2013, 225p. (Tese de Doutorado), USP, São Paulo, 2013.

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BRASIL. Decreto 6.040 de 07 de fevereiro de 2007. Institui a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais. Diário Oficial da União, Brasília, 08 de fevereiro de 2007.

CAMPOS, N. J. Terras de Uso Comum no Brasil: abordagem histórico-espacial. Florianópolis: Editora da UFSC, 2011.

HOBSBAUWM, E. Introdução: a invenção das tradições. In: HOBSBAUWM. E.; RANGER. T. (orgs.) A Invenção das Tradições. 2ª. Ed. (Tradução de Celina Cardim Cavalcante). Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997, pp: 09-23.

LEFEBVRE, H. A Revolução Urbana. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2002.

PAOLIELLO, R. M. As Comunidades Tradicionais no Vale do Ribeira: da “reprodução camponesa” às re-significações dos patrimônios territoriais. In: Revista Agrária. São Paulo: no. 03, pp. 58-82, 2006.

SHANIN, T. A Definição de Camponês, Conceituações e Desconceituações: o velho e o novo em uma discussão marxista. In: Estudos CEBRAP, Petrópolis, n° 26, 1980, pp. 43-79.

THOMPSON, E. P. Costumes em Comum: estudos sobre a cultura popular tradicional. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.

VAINER, C. Lugar, Região, Nação, Mundo. Revista Brasileira de Estudos Regionais e Urbanos, v. 8, n. 2, pp. 09-29, 2006.

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