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ARDIOVERSORES
D
ESFIBRILHADORES
I
MPLANTADOS
:
DESAFIOS DA ÉTICA
I
MPLANTABLEC
ARDIOVERTERSD
EFIBRILLATORS:
ETHICAL CHALLENGESAna Cláudia Pereira Mendes
Dissertação/Projecto/Relatório de Estágio do Mestrado Integrado
em Medicina
Instituto Ciências Biomédicas de Abel Salazar
Largo Professor Abel Salazar nº2
4099-003 Porto
C
ARDIOVERSORESD
ESFIBRILHADORESI
MPLANTADOS:
D
ESAFIOS DAÉ
TICAI
MPLANTEDC
ARDIOVERTERSD
EFIBRILLATORS:
ETHICAL CHALLENGES... Resumo
O número de portadores de cardioversores desfibrilhadores implantados (CDI) está a aumentar e grande parte destes portadores são ou serão idosos. Este facto levanta várias questões éticas e médico legais nomeadamente a nível dos cuidados no fim da vida. Os choques aplicados pelo CDI são um factor ansiogénico e têm um impacto negativo na qualidade de vida dos pacientes. Quando chegamos ao fim da vida o CDI pode então já não ter um propósito terapêutico e a sua desactivação deve ser considerada. Neste artigo é feita uma pequena
revisão das mais recentes
publicações sobre este tema e uma abordagem a questões do âmbito medico-legal, como a decisão de não reanimar (DNR) e o consentimento
informado, que podem ser
Abstract
The number of implanted
cardioverters defibrillators (ICD) carriers is increasing and the majority of these carriers is or will soon be old adults. This fact raises several ethical and legal issues mostly related to end of life care. ICD shocks cause substantial anxiety and have a negative impact in the patient’s quality of life. When we reach the end of life the ICD may no longer have a therapeutic purpose and one should consider its deactivation. In this article is presented a short revision of the most recent publications on the matter and an approach to legal issues, such as do not resuscitate (DNR) order and informed consent, that can be important when one discusses ICDs.
Key words: Implanted Cardioverters Defibrillators, deactivation, ethics, legal issues
importantes quando discutimos os CDIs.
Palavras-chave: Cardioversores
Desfibrilhadores Implantados,
desactivação, ética, questões medico-legais
I
NTRODUÇÃOOs cardioversores desfibrilhadores implantados (CDI) foram inicialmente
colocados em pacientes que
sobreviveram a taquiarritmias ventriculares life threatning – no campo da prevenção secundária.
Subsequentemente, foram
desenvolvidos estudos no campo da prevenção primária que identificaram outros pacientes que se encontravam em situações de risco aumentado de morte súbita cardiogénica mas que se encontravam ainda assintomáticos, expandindo assim as indicações para colocação de um CDI. As mais recentes guidelines (Tabela 1) para a implantação deste dispositivo identificam um grande número de situações adicionais em que o tratamento com CDI está associado quer com aumento da sobrevida quer com o aumento de qualidade de vida
dos pacientes.1 As indicações para
colocação de CDI tendem a
aumentar, o que atesta a importância de periodicamente se actualizar as
indicações de implantação e
guidelines com todos os novos dados disponíveis.2
Todos os pacientes com CDI requerem um follow-up periódico e meticuloso para garantir a segurança e a performance do dispositivo. Os objectivos do follow-up incluem a monitorização da actividade do CDI; optimização do seu desempenho para assegurar máxima eficácia clínica e a máxima longevidade do sistema;
minimização de complicações;
antecipar a necessidade de
substituição de componentes do dispositivo; garantir resolução atempada de problemas médicos; vigiar, educar e assistir o paciente; e manutenção dos registos do CDI.
O seguimento de um paciente com CDI deve ser individualizado, tendo em conta o estado clínico do paciente, uma vez que o desempenho
do dispositivo tem que ser
constantemente revisto, os seus registos têm que ser acompanhados e têm que ser estabelecidas com o doente as limitações à actividade física e também algumas alterações
às suas rotinas que sejam
necessárias.
Os pacientes que recebem um CDI apresentam, por vezes, perturbações
emocionais que podem ser
transitórias ou que se podem prolongar pelo tempo. O apoio psicológico, antes, durante e depois da colocação do CDI, e a educação do paciente, com vista a capacitá-lo para melhor e mais autonomamente lidar com o dispositivo, é bastante importante e poderá aumentar a qualidade de vida do doente.
Tabela 1: ACC/AHA/NASPE Guidelines 2008 for Device-Based Therapy of Cardiac Rhythm Abnormalities
Classe I
1. Paragem cardíaca devida a fibrilhação (FV) ou taquicardia ventricular (TV) sustentada e hemodinamicamente instável, após exclusão de causa reversível 2. TV sustentada espontânea associada a doença cardíaca estrutural
3. Síncope de origem indeterminada com TV sustentada hemodinamicamente significativa e clinicamente relevante ou FV indutível por estudo electrofisiológico 4. Fracção de ejecção ventricular esquerda inferior a 35% devido a enfarte agudo do
miocárdio (EAM) ocorrido há pelo menos 40 dias e com enquadramento na Classe II ou na Classe III da NYHA
5. Cardiomiopatia dilatada não isquémica com fracção de ejecção ventricular esquerda inferior ou igual a 35% com enquadramento na Classe II ou na Classe III da NYHA
6. Disfunção ventricular esquerda devido a EAM ocorrido há pelo menos 40 dias, com fracção de ejecção ventricular esquerda inferior a 30% e com enquadramento na Classe I da NYHA
7. TV não sustentada devida a EAM, fracção de ejecção ventricular esquerda inferior a 40% e FV ou TV sustentada indutível por estudo electrofisiológico
Classe II.a
1. Síncope inexplicável, disfunção ventricular esquerda significativa e cardiomiopatia dilatada não isquémica
2. TV sustentada e função ventricular normal ou aproximadamente normal 3. Cardiomiopatia Hipertrófica com um ou mais factores de risco de morte súbita
cardíaca
4. Prevenção da morte súbita cardíaca em pacientes com displasia ou cardiomiopatia ventricular direita arritmogénica e com um ou mais factores de risco para morte súbita cardíaca
5. Redução da morte súbita cardíaca no síndrome do QT longo em pacientes que sofreram síncope e/ou TV enquanto medicados com bloqueadores beta
6. Pacientes não hospitalizados que aguardam transplante cardíaco 7. Pacientes com síndrome de Brugada que sofreram síncope
8. Pacientes com síndrome de Brugada que apresentam TV documentada que não resultou em paragem cardíaca
9. Pacientes com TV polimórfica catecolaminérgica que sofreram síncope e/ou TV sustentada documentada enquanto medicados com bloqueadores beta
10. Sarcoidose cardíaca, miocardite de células gigantes ou doença de Chagas
Classe II.b
1. Cardiopatia não isquémica com fracção de ejecção ventricular esquerda inferior ou igual a 35% com enquadramento na Classe I da NYHA
2. Síndrome do QT longo com factores de risco para morte súbita cardíaca
3. Síncope em paciente com doença cardíaca estrutural grava cuja completa investigação (métodos não invasivos e invasivos) não determinou etiologia
4. Cardiomiopatia familiar associada a morte súbita cardíaca 5. Não compactação ventricular esquerda
Classe III
1. Expectativa de vida com bom estado funcional inferior a um ano, ainda que preencham critérios das Classes I, IIa ou IIb acima citadas
2. TV ou FV incessante
3. Doença psiquiátrica significativa que pode ser agravada pela colocação do dispositivo ou que pode impossibilitar follow-up adequado
4. Pacientes na classe IV da NYHA com ICC refractária a farmacoterapia e não candidatos a transplante cardíaco ou a terapia de desfibrilhação e ressincronização cardíaca
5. Síncope de origem indeterminada em pacientes sem taquiarritmias ventriculares indutíveis e sem doença cardíaca estrutural
6. FV ou TV passível de ablacção cirúrgica ou por catéter (ex.: arritmias auriculares associadas a síndrome de Wolff-Parkinson-White, TV do trato do saída (ventrículo direito ou esquerdo), TV idiopática ou TV fascicular na ausência de doença cardíaca estrutural
7. Pacientes com taquiarritmias ventriculares devidas a distúrbio completamente reversível e na ausência de doença cardíaca estrutural
I
MPLICAÇÕESÉ
TICAS-REVISÃO
Nos pacientes com doença terminal e que caminham para o fim da vida, os CDIs podem não cumprir os objectivos de tratamento
presentes na altura da
implantação.3
Devido à sua cardiopatia de base ou devido a qualquer outra patologia crónica, a condução cardíaca pode ser afectada por desequilíbrios fisiológicos, intrínsecos ou
extrínsecos ao coração, o que leva a um aumento dos fenómenos arrítmicos e, consequentemente, em doentes com CDI, a um aumento do número de choques administrados pelo dispositivo. Uma vez que estas descargas eléctricas podem causar dor e são um factor que gera ansiedade podem não prolongar a vida do doente com um nível de qualidade razoável. Coloca-se, então, neste ponto, uma questão: será apropriado considerar a desactivação do CDI à medida que o estado de saúde do paciente se deteriora e o fim está próximo?
Perspectiva dos clínicos
A abordagem de uma questão tão delicada como a desactivação de um CDI por parte do médico assistente não é fácil. Apenas uma pequena proporção dos clínicos se sentiria à vontade para discutir com o doente a desactivação do dispositivo. Aparentemente, a especialidade do médico assistente e o seu contacto anterior com uma situação de desactivação de um
CDI em fim de vida são
preponderantes nesta situação.
Médicos que previamente
participaram em discussões acerca da possível desactivação de um
destes dispositivos irão,
provavelmente, discutir com mais facilidade e clareza esta temática com os seus doentes. Olhando também para a especialidade do médico que assiste o doente, vemos que esta pode ser um factor influente na discussão deste tema. Os electrofisiologistas e os geriatras parecem ser aqueles que mais facilmente discutiriam com os seus doentes a desactivação do CDI, enquanto os internistas parecem ser aqueles que mais dificilmente abordariam este problema. Além deste facto, os internistas e também os geriatras, muito embora a sua disponibilidade para abordar o tema com o doente, apontam não possuir
uma base de conhecimentos
suficiente e sólida acerca do dispositivo em causa, o que não lhes permite fazer a distinção entre
um CDI e um pacemaker,
impossibilitando o reconhecimento do choque aplicado pelo CDI como um factor gerador de dor e de ansiedade. A maior parte dos clínicos refere, no entanto, que a desactivação do CDI deveria ser sempre discutida no contexto de uma ordem de não ressuscitar (DNR) e aquando do consentimento informado dado pelo doente para a
implantação do dispositivo, sendo também referido que esta discussão deve ser feita na presença de um perito neste tema.4-6 Muitos apontam como barreira à discussão desta situação com o doente o medo de induzir um estado depressivo, aumentando e trazendo à consciência as preocupações que o próprio indivíduo tem acerca da morte e do modo como esta acontecerá. 7
Além deste facto, surge ainda um outro, inerente à natureza do dispositivo.
O intervalo entre a desactivação do CDI e a morte do doente é muito variável e pode até ser bastante longo, contrariamente ao que
acontece, por exemplo na
desactivação dos dispositivos de ventilação assistida, em que a morte ocorre inevitavelmente e num intervalo de tempo relativamente
pequeno. Com base nesta
diferença, que distingue o CDI de outros dispositivos que também têm como função o prolongamento da vida, é questionável a legitimidade de se colocar como opção a desactivação do CDI, tal como se desactivam os outros dispositivos quando não há melhoria possível do
estado de saúde e a morte é inevitável.
Existe ainda um outro ponto a considerar nesta discussão e que tem uma base mais filosófica, mais radicalmente ética.
A decisão de desactivar um CDI pode tornar-se ainda mais difícil e complexa se se tiver em conta o facto do CDI poder ser considerado como parte integrante do paciente. Esta questão pode mesmo colocar o clínico perante uma realidade que é referida como muito preocupante: a diferença entre tirar a vida e permitir
a morte.7,8 O facto do cardioversor estar implantado no interior do paciente pode gerar a ideia de é intrínseco, de que se torna um órgão e então, à luz desta perspectiva, a sua desactivação constitui um acto criminoso, um acto que vai tirar a vida ao doente, contrário àquele que tem por base permitir a morte, e que se verifica quando se desactivam dispositivos de ventilação assistida.
Em questões estritamente éticas as definições destes dois conceitos (tirar a vida e permitir a morte) não têm em conta se o agente que é parte, activa ou passiva, na morte do indivíduo é interno ou externo a este, pelo que, moralmente, o facto
de se considerar o CDI como parte do doente não deve pesar na tomada de decisão nem deve o médico ver a desactivação do dispositivo como um acto que vai
tirar a vida.
Esta análise pode levar a pensar que não existe nenhuma questão ética especial a ter em conta na desactivação do CDI, no entanto é inegável que esta discussão obriga a pensar na definição e limites do
próprio. Neste contexto surgiu uma
nova abordagem a esta questão, com o intuito de clarificar toda a discussão gerada. 7
Uma intervenção terapêutica pode ser vista como reguladora ou como constitutiva. Será reguladora quando leva o organismo de volta ao seu equilíbrio homeostático (como exemplo, os fármacos anti-arrítmicos ou os antipiréticos) e será constitutiva quando desempenha uma função que o organismo, por si só, já não consegue desempenhar (como exemplo, os pacemakers ou a insulinoterapia). Tendo por base estes conceitos e à luz desta perspectiva, qualquer intervenção que seja reguladora nunca se torna do próprio. É uma intervenção distinta do organismo e extrínseca à
sua função, quer seja realizada dentro ou fora dos limites do corpo. O CDI, uma vez que não é responsável nem pela geração nem pela manutenção do ritmo cardíaco, apenas o corrige quando detecta um fenómeno arrítmico, é entendido como uma terapêutica reguladora. Uma terapêutica reguladora,
independentemente de quão
sofisticada é ou de onde está localizada, pode (e deve) ser desactivada quando se torna fútil ou quando o sofrimento causado pelo tratamento supera os benefícios que ele traz.
Perspectiva do doente
Os pacientes a quem são
colocados CDIs não têm
consciência de que podem,
futuramente, ter que considerar a sua desactivação. O consentimento para a colocação do CDI é dado com base na confiança que o paciente tem com o seu médico assistente e, acima de tudo, é dado com base num enorme desejo de continuar a viver. Na maior parte das situações não há uma avaliação completa dos benefícios e dos riscos da terapêutica em questão e
não há, principalmente, uma discussão acerca das decisões futuras que a manutenção deste dispositivo pode implicar.8,9
O CDI dá ao doente uma sensação de segurança e é visto
como única hipótese de
sobrevivência, pelo que a ideia de o desactivar por vontade própria é encarada como uma acto de suicídio.10 É difícil para o paciente, que vê o CDI como algo que só traz benefícios, acreditar que, num futuro mais ou menos próximo, o dispositivo possa não ser mais benéfico e que a sua desactivação possa ser uma questão a discutir.
Embora reconheçam que a
descarga eléctrica que recebem do CDI é um factor de ansiedade que os desestabiliza psicologicamente e que afecta o seu bem-estar emocional, o sentimento com que os doentes falam sobre o seu dispositivo sugere que há o desenvolvimento de uma relação simbiótica, que lhes confere até um
certo sentimento de
invulnerabilidade.
Isto pode ser justificado pelo facto de, por vezes, o CDI ser colocado numa altura em que o estado de saúde do paciente ainda não se deteriorou ao ponto de este
ter plena consciência de que a sua patologia é muito grave e pode levar à morte. Muitos pacientes que recebem um CDI estão em risco de sofrer uma arritmia fatal mas estão assintomáticos relativamente a outras patologias graves de outros sistemas, pelo que não sentem uma perda considerável da expectativa ou da qualidade de vida.
Quando questionados, a maioria dos pacientes transfere para o seu médico assistente o poder de decisão acerca da desactivação do CDI. Isto pode dever-se a complexidade, quer médica quer psicológica, da própria decisão. Eventualmente, numa fase muito próxima da morte os pacientes manifestem a sua opinião de forma mais vincada, uma vez que, regra geral, os doentes terminais têm um grande desejo de tomar as suas próprias decisões e de demonstrar até ao fim grande autonomia.
D
ISCUSSÃOOs CDI apresentam-se, de facto, como um desafio para a ética médica. Os avanços práticos da tecnologia seguem a um ritmo tal que não permitem que a rede de
discussão teórica que os deve acompanhar o faça realmente. Este facto cria um território de dúvida quando face à necessidade de decidir pela manutenção ou desactivação do dispositivo e a ausência de guidelines consensuais e universais permite que surjam situações que se tornam confusas, quer para o clínico quer para o paciente, a nível ético e também medico-legal. A maioria destas situações surgirá, certamente, na área dos cuidados paliativos, com os pacientes em fase terminal. A AAHPM, American Academy of
Hospice and Palliative Medicine,
sugeriu que o CDI seja desactivado em quatro situações: (1) quando a sua manutenção vai contra os objectivos do paciente; (2) quando se retiram os fármacos anti-arrítmicos; (3) quando a morte é iminente; (4) quando foi assinada uma ordem de DNR (do not
resuscitate).11 No entanto, estas indicações não cobrem todo o alcance ético e legal inerente a esta discussão, podendo ter várias interpretações e não dando resposta a todas as questões levantadas, quer pelos clínicos quer pelos pacientes.
Abordagem dos clínicos face aos CDI
Em termos éticos, temos então duas formas de ver os CDI.
Podemos considerá-los como um tratamento comum, externo ao paciente, como o são, por exemplo, os fármacos anti-arrítmicos. Neste caso, a decisão de manutenção ou desactivação caberá ao médico assistente. Embora legalmente o médico não detenha o poder de
decisão absoluta face aos
interesses do paciente, é ele quem decide se uma qualquer intervenção terapêutica é medicamente indicada ou não, não podendo o paciente exigir a sua realização no caso do clínico a considerar desadequada. Esta perspectiva permite, portanto, uma decisão unilateral do médico pela desactivação do CDI, caso seja isso, no seu entender, o melhor para o doente mas, reciprocamente, permite também que o doente decida pela descontinuação da terapêutica, mesmo contra conselho médico.12
Uma segunda perspectiva é ver o CDI como uma parte do organismo do paciente. Partindo daqui, legalmente, o médico não terá poder de decisão pela desactivação, mesmo que a considere uma melhor
opção tendo por base critérios de futilidade. A partir do momento em que o paciente decida pela manutenção do CDI, o médico não o poderá desactivar, ainda que considere que essa decisão tenha um efeito negativo na qualidade de vida do paciente.12
O estatuto do CDI é algo que carece de uma definição concisa, definição que não é de todo fácil uma vez que é difícil olhar para o dispositivo como uma simples terapêutica externa, à semelhança da farmacoterapia anti-arrítmica, mas também não o conseguimos considerar igual a um transplante orgânico. O CDI estará, então, algures no meio destes dois pontos e é da máxima importância caracterizar exaustivamente que lugar é esse.
O facto de não existir essa definição de estatuto coloca-nos
num ponto muito perigoso:
dependendo da forma como se vê o CDI, podemos, aos olhos da Lei estar a incorrer num processo criminal. Pela Lei, a descontinuação de uma terapêutica médica, externa ao doente, é uma omissão; mas a “desactivação” de uma parte integrante do doente será um acto,
acto que causará a morte, um crime. A distinção entre omissão e acto é um elemento essencial na avaliação medico-legal, e o facto de uma omissão poder ser considerada um acto dependendo apenas da perspectiva que se tem dos CDIs deve reforçar a ideia de elaborar guidelines que definem o estatuto do dispositivo e que regulamentem a sua utilização e que não esqueçam as questões éticas e medico-legais envolventes.
A discussão entre omissão e acto, entre o permitir a morte e o tirar a vida, leva-nos ainda para uma outra questão: será que a desactivação do CDI pode, em algum caso, constituir uma forma de eutanásia, ainda que de uma forma passiva? A manutenção do CDI em pacientes terminais pode, em alguns casos, estar a prolongar uma vida sem qualquer qualidade, uma vez que, para além de padecer da doença que o consome, o paciente sofre ainda com as descargas eléctricas fornecidas pelo dispositivo e o doente pode pedir ao médico assistente que o desactive. Nestes casos, a desactivação do CDI pode ser vista como uma forma de eutanásia passiva, uma vez que, a
pedido do paciente, o clínico retira uma barreira à morte natural do
paciente, descontinuando a
terapêutica que o mantém vivo.13
Olhando de novo para o
enquadramento medico-legal,
poderá o médico que desactiva o CDI ser acusado de um crime? De novo se evidencia a necessidade da definição do estatuto ético da CDI, de modo a que se evitem situações, que embora hipotéticas, são bastante complexas.
Considerando ainda o caso de pacientes em fase terminal cuja qualidade de vida é bastante pobre temos um outro ponto a ter em conta e que é referido pela AAHPM: muitos destes pacientes assinam ordens de não ressuscitação, em que não autorizam qualquer intervenção para reverter uma paragem cardíaca ou respiratória. Qual é o papel do CDI nestas situações? Sendo este dispositivo uma terapêutica não paliativa e que, pela sua acção, prolonga a vida do paciente parece lógico que a sua desactivação é indissociável da assinatura de uma ordem de não ressuscitação. No entanto, ao assinar esta ordem, o paciente pode apenas estar a recusar manobras
de desfibrilhação externa, devido à possibilidade de existência de défices cognitivos e/ou funcionais após a ressuscitação. O indivíduo pode ainda valorizar a sua actual qualidade de vida e desejar continuar as terapêuticas que a mantêm; neste caso, em que o CDI vai de encontro aos desejos do paciente, a sua manutenção pode ser a atitude mais apropriada.14
Abordagem dos pacientes face aos CDI
Tornou-se claro que a maioria dos pacientes não sente que foi parte activa na escolha pela colocação deste dispositivo e que o consentimento dado não foi, de todo, informado.
A discussão a ter com o paciente deve esclarecer as características e os objectivos específicos do CDI e principalmente enquadrá-los na condição clínica do paciente e na
expectativa que este tem
relativamente aos cuidados que lhe vão ser prestados no futuro. O médico deve elucidar claramente o paciente acerca de todas as questões que estão inerentes ao CDI antes da sua colocação, nomeadamente as questões que se
prendem com uma eventual necessidade de decidir pela sua desactivação, fazendo com que o paciente, de forma crítica e consciente, pese os prós e contras da terapêutica. Só desta forma o consentimento dado pelo doente poderá ser considerado válido. Após o consentimento, o médico deve ainda recomendar ao paciente que comunique aos seus familiares mais próximos, futuros cuidadores e possivelmente representantes legais na necessidade de tomada de decisão, as suas decisões e, no caso do estado de saúde do doente de alterar significativamente, o médico deve recomendar que ele reveja as suas opções para garantir que estas não se alteraram. 13,14
C
ONCLUSÃOOs CDI representam um avanço notável da tecnologia no que se refere ao prolongamento da vida. No entanto, a discussão das implicações éticas e medico-legais inerentes foi um pouco esquecida e,
à medida que a população
envelhece e o número de pacientes com CDI tenderá a aumentar, as decisões acerca da desactivação
deste dispositivo serão,
inevitavelmente, mais comuns. É importante garantir que o paciente compreende de facto toda a envolvência da colocação de um CDI e opta por ela de forma voluntária e informada, e que o clínico está também consciente de todos as implicações médicas que o CDI pode trazer à medida que o estado de saúde do doente se agrava.
Face à complexidade da questão e às dúvidas que ela suscita deveria haver um debate ético mais vivo e mais esclarecedor e deveriam ser
elaboradas guidelines que
regulamentassem definitivamente a desactivação dos cardioversores desfibrilhadores implantados.
...
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