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CISC CENTRO INTERDISCIPLINAR DE SEMIÓTICA DA CULTURA E DA MÍDIA

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Academic year: 2021

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CISC

CENTRO INTERDISCIPLINAR DE SEMIÓTICA DA CULTURA E DA MÍDIA

imagemeviolência

O CORPO VIVO, O CORPO MORTO

Dietmar Kamper

Tradução: Nely Bahia Cardoso Revisão: Paulo Oliveira

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Toda teoria do corpo é inútil, diziam Horkheimer e Adorno em suas notas sobre a “Dialética do Iluminismo”: o corpo continua sendo o cadáver no qual ele foi historicamente transformado. Isto implica uma dupla herança: o conceito e a visão do corpo têm sua origem na teologia do corpo do Senhor morto e desaparecido, e naquela medicina que obtém seus conhecimentos fundamentais por meio da dissecação de cadáveres do teatro anatômico. Ambas, numa mistura como em Rembrandt, dominaram de tal forma os conceitos de corpo na Europa, que até hoje não se conseguiu desenvolver uma teoria do corpo vivo que seja, ela mesma, viva. É preciso falar também de teorias mortas que conseguem destruir tudo o que tocam. A morte de Deus já se tornou há muito um fato da história da ciência, ela própria atolada em conceitos vazios e idéias cegas.

E existe ainda um outro fenômeno que só recentemente começou a revelar seus imensos efeitos: a silenciosa transformação do corpo em uma imagem do corpo, a qual nega a diferença entre imagem e corpo. O imaginário assim surgido dá início, por um lado, à herança de poderes que foram dominantes na teoria e na prática medieval (teologia) e moderna (medicina). Por outro lado, tal imaginário substitui os corpos em sua realidade, tornando-os virtuais. No entanto, permanece por ora em aberto a quem compete dirimir a questão acerca da ausência e dos mortos.

A imagem do corpo atualmente em voga nega seu caráter de imagem. Num último lance totalitário, ela afirma ser tudo, razão pela qual o corpo, e na verdade cada corpo isoladamente, dela dependeria e por ela deveria guiar-se. É esse o terror atual da visibilidade que tematizamos há anos, e que hoje é assunto do presente congresso.

Ainda nos perguntamos como é possível que, decorridos alguns milênios após a pacificação do homem, ainda se registre um número aparentemente crescente de explosões de violência inesperadas em todo o globo terrestre. Kant, juntamente com outros iluministas, desenvolveu a filosofia histórica da crescente

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moderação da natureza humana, segundo a qual o homem tem sua humanidade paulatinamente produzida através da civilização, da disciplina e da humanização. Dentro desse contexto, a violência foi colocada somente no começo, de forma que se deve pressupor um movimento histórico necessário, o qual leva da barbárie à humanidade. O sentido mais profundo do desenvolvimento enquanto categoria era a idéia de que a evolução e o desenvolvimento culminam na perfeição de uma humanidade apaziguada. Norbert Elias ainda repetiu e reforçou a tese da linearidade da história que evolui do corpo violento para o espírito pacífico, ou dos sentidos próximos (não passíveis de serem civilizados e disciplinados) para os sentidos distantes, principalmente para o olho emancipado. Os homens chegam a si mesmos como uma imagem clara e radiante, num olhar que tudo abrange. Per aspera ad astra.

O padrão de raciocínio e discussão segundo o qual a violência seria sempre arcaica e faria parte da natureza humana era até bem pouco tempo considerado por uma grande maioria como algo natural: no início, o homem é um animal e, no final, um ser humano; seu corpo é escuro e imperscrutável, seu espírito é como a luz e transparente. No entanto, tal argumentação não conseguiu se estabelecer como conclusiva. Foi preciso admitir que, de modo geral, os resultados da civilização e da disciplina não passavam de uma máscara por detrás da qual a “velha fera” pode ser facilmente reconhecida. Mas não se podia, a despeito de todos os revezes, perder a esperança de se alcançar, ainda que num futuro longínquo, a radical pacificação da natureza humana.

Atualmente, pouco restou dessa esperança. Nenhum século produziu tanta violência como o século XX – com suas guerras, seus massacres, e com o extermínio de povos, mas também nas relações com o Outro ou consigo mesmo. A barbárie e a monstruosidade parecem ter aumentado na mesma medida em que reforçamos nossos pleitos em prol da humanidade e dos direitos humanos. A violência parece ter mudado seus campos de batalha. É certo que a violência corporal ainda persiste, mas, nesse ínterim, o espírito e suas instituições praticam

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um grau tão elevado de violência que não mais se pode ficar calado diante de tal situação. A instância que, até pouco tempo atrás, apresentava-se como responsável pela pacificação dos homens na terra, trabalha agora de mãos dadas com as guerras que eclodem por toda a parte. Com isso, as realizações destrutivas do espírito humano vêm sem retardo à luz, de forma manifesta.

Edgar Morin formulou esse “enigma do humano” da seguinte forma: o homem nunca foi um animal. Ele foi desde o início um ser humano, porém como um homo sapiens e um homo demens ao mesmo tempo. O rosto do homem jamais aparece na história sem a sua carranca. Não se pode ter humanidade sem monstruosidade. Daí se conclui que o último capítulo da história mundial, ou seja, o do século XX, terá que ser reescrito. A autoridade que, por muito tempo, teve por objetivo evitar a violência ou reduzir a violência, acabou por se tornar mais violenta do que a natureza humana jamais conseguiu ser. Por esse motivo, seria talvez necessária uma redefinição de toda a história das etapas, incluindo a pré-história, sem ocorrer numa simples inversão. Isso poderia ser feito do seguinte modo: domesticação, civilização, disciplinamento, sedação (incluindo a normalização). A domesticação no início refere-se ao esforço pré-civilizatório de interpretar o mundo inteiro como uma casa e de instalar-se nessa casa (Sloterdijk); a sedação citada no final mantém-se rigorosamente ambivalente e significa que o corpo humano é levado a sair de sua posição de pé para a sentada e, com o tempo, acaba se acalmando nessa posição, afora algumas rebeliões transitórias já previstas. Sedação significa também que é necessário lançar mão de remédios fortes para que o homem consiga tolerar a insuportável obrigação de ficar sentado. (Eickhoff).

Na civilização avançada, a violência se manifesta no olhar. Na divisa do iluminismo – “tornar visível tudo o que é invisível!” – ainda não se podia evidenciar que o aumento da visibilidade teria efeitos inesperados. Michel Foucault discutiu esses efeitos, num texto intitulado “Panoptismo do poder”. Na troca do poder concentrado de um soberano pelo poder disperso da disciplina, instalou-se sob a aparente humanização um olhar controlador, que passou a produzir efeitos cada

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vez mais devastadores e aniquiladores. Essa estrutura ótica de controle e castigo, de disciplina, educação e emancipação, já existia muito antes da realização tecnológica da mídia de imagens (aparelhos fotográficos, filmadoras, monitores de TV, aparelhos de vídeo, etc.), e era colocada em prática socialmente, através das respectivas instituições. Mosteiros, casernas, clínicas, escolas, prisões, penitenciárias e colônias de trabalho forçado difundiram o controle ótico em todas as áreas sociais e cuidaram para que a ele correspondesse uma imagem coercitiva. Para que possam fazer parte do grupo, as pessoas têm de se sujeitar.

Ao mesmo tempo, proibiu-se o reconhecimento do contexto. O poder que promove o aumento da visibilidade torna-se cada vez mais invisível. Isso obedece à divisa da teoria dos sistemas: a única observação perfeita é aquela que não pode ser, ela mesma, observada. Após séculos de decisiva prática, as máquinas imagéticas puderam então finalmente começar seu trabalho num contexto que se impôs historicamente. Desde o princípio, elas não surgiram como instrumentos e ferramentas, mas sim como projetos de mundo com pretensões totalitárias.

Considerando sua função social, criou-se uma expectativa ainda maior – a de que seria possível promover a humanização do homem como pacificação de sua natureza violenta. Mas logo surgiu uma ambivalência fundamental, que permanece até os nossos dias. Na esfera tecnológica, isso corresponde à supracitada sedação: sem a menor consideração, obrigava-se e ainda se obriga o homem a sentar-se, e se lhe aplicam fortes medicamentos de efeitos imprevisíveis com o objetivo de acalmá-lo. O poder econômico e político, por um lado, e a impotência do homem isolado, por outro, foram tão intimamente co-atrelados que a esperada redução da violência acabou por levar a um aumento da mesma, sendo que suas verdadeiras causas continuam tão obscuras como dantes. A paz mediática tão esperada por todos também não ocorreu. Em seu lugar, desencadeia-se uma guerra de imagens cujo apogeu ainda está por vir. O olhar controlado, que já se tornou onipresente, força os homens implacavelmente a se transformarem numa imagem que se encaixe no todo, e que possa satisfazer as

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exigências de uma visibilidade ampliada. Antes de se entrar no jogo, tudo o que não for visível deve ser abandonado como algo sem valor. Por sua vez, a imagem que corresponde ao olhar pode ser plasmada e perpetuamente reencenada com a participação ativa dos observados.

A obrigatoriedade de transformar tudo o que existe em uma imagem – em função do olhar – está associada a uma estranha espontaneidade, a qual dissolve sem deixar rastros as antigas fronteiras. Tal “obrigatoriedade espontânea” tem hoje seus sérios e profundos desdobramentos, não dando àqueles que apostam na sensação de “fazer parte da sociedade”, qualquer chance de fuga. Constituiu-se um círculo vicioso: para participar do processo da visibilidade ampliada, os indivíduos aceitam perder as corporalidades multidimensionais de suas vidas. Eles mesmos se condenam a apenas existir na tela. Obviamente, isso acontece por meio de uma crueldade internalizada. Além disso, a nova e ampla sombra da visibilidade joga no escuro precisamente aquele fato que seria decisivo para todos, tornando impenetrável o inconsciente da própria ação e do próprio sofrimento. O máximo de resistência possível seria desenvolver um faro elaborado, capaz de perceber que se está no campo da visão. Mas, pelo contrário, é hoje absolutamente normal não se perceber o olhar ou, mesmo que se venha a percebê-lo, esquecê-lo o quanto antes. O fundamental, no entanto, seria não se coadunar com tal esquecimento face ao olhar e à sua violência. Para tanto, faz-se mister ter clareza e nitidez sob três aspectos:

1) é preciso descrever as mudanças concretas no regime histórico do visível;

2) cumpre perceber a perda do próprio corpo e da presença do Outro nas relações;

3) tem-se que reforçar a mudança de horizonte em relação às bases da violência. Dessa forma, partindo de premissas adequadas, será então indubitavelmente possível chegarmos a uma melhor compreensão do que ocorre nos dias de hoje.

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Uma teoria viva do corpo vivo tem, portanto, de se ocupar do corpo morto e de sua história. Ela segue a sombra e as contradições dessa história e se orienta por 5 princípios:

1. A visibilidade se transformou num hábito;

2. o regime do visível serve-se dos meios de comunicação enquanto aparelhagem de um novo inconsciente;

3. surgiu uma eternidade fatal que não quer mais cessar;

4. o corpo morto é uma imagem inconsciente que exerce coação; 5. o corpo vivo é atualmente invisível.

Resumindo os esforços empreendidos nas últimas décadas em relação a cada um desses princípios de uma antropologia histórica do corpo e da imagem, pode-se dizer que:

Primeiro: o imaginário é a relação do homem com seu próprio corpo

Ele é o resultado retroativo de um trabalho com o medo do sexo e da morte. Funciona como um abrigo que protege contra perigos e separa um exterior perigoso de um interior familiar. Ele foi ampliado, não no espaço corporal, mas na tela. É intocável como as imagens que, tal qual cápsulas, envolvem ferimentos. É uma superfície ilimitada que encobre um núcleo finito, mortal, até torná-lo irreconhecível.

Segundo: o imaginário é o maior evento fechado jamais realizado sobre a terra, apesar dos mitos, apesar das ideologias

É um universo instalado pelo espírito humano, o qual é indiferente ou hostil ao corpo de que surgiu. É um dublê do mundo até agora existente, mas não é real, e sim virtual. Sua modalidade não é nem a real nem a possível. Ele é composto de restos de sonhos, anseios, esperanças, mas também dos detritos de programas, conceitos e projetos fracassados. É lixo histórico em permanente reciclagem.

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Terceiro: seu tempo é o segundo futuro: tudo o que virá a ser, já foi antes

Sendo assim, ele sempre tem seu futuro atrás de si. Visto de dentro, o imaginário nunca se tornou realidade. Não tem genealogia. Visto de fora, ele nega, reprime, repudia sua origem a partir de fatos históricos comprováveis. Mas estes podem ser rastreados. Jamais poderá cessar. Ele tem uma eternidade fatal que impõem uma imagem inconsciente a seus prisioneiros. É um selo sobre a época dos fantasmas originários do sonho da razão burguesa.

Quarto: o imaginário é um templo para vítimas inconscientes. No limite, criar imagens é matar os corpos

Ele se efetiva no inconsciente através de ídolos, lemas e idiossincrasias. E não acontece sem uma certa predisposição da pessoa envolvida. Pois o poder do imaginário nasce do imaginário do poder, do qual se deseja participar. Ele culmina no fantasma do vencedor, de ter vencido a morte e a história. Com isso, encerra-se a cena da vida e o front dos mortos e do corpo obsceno parece tornar-encerra-se intransponível. Mas os perdedores são mais inteligentes que os vencedores.

Quinto: só a fantasia ajuda contra o imaginário

Saindo da derrota, tem-se que usar a força da imaginação para perceber o horizonte do imaginário e tentar romper sua coesão, a qual tem sua origem no melhor talento humano. É agora, em toda a história, a primeira vez em que isso é tão limitado. Antes, sempre houve outros recursos opostos que conseguiam manter a distância: o bom senso, a capacidade narrativa, a larga memória, a revolta, o intercâmbio cultural, o auto-estranhamento.

Finalizando, gostaria de reformular algumas frases utilizadas na divulgação deste evento:

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Imagem e violência. As raízes da violência.

A violência que se manifesta atualmente em nível global tem se associado, nas últimas décadas, cada vez mais estreitamente aos códigos da visibilidade – quanto mais exposição, mais violência. Por outro lado, a sociedade informatizada exige de cada um de seus membros uma visibilidade crescente. Em princípio, todos os indivíduos são obrigados a utilizar estratégias de encenação.

A contradição inerente culmina com o sacrifício da vida em suas manifestações mais perceptíveis. O corpo e suas relações próximas são pouco a pouco destruídos. Transformado em uma imagem, o corpo perde sua “essência” natural e histórica, abrindo espaço para uma das formas mais sutis de violência simbólica: a perda do momento presente e da capacidade do presente.

Aqui tem início uma “estética da ausência”: o rastrear da pista do corpo destruído só pode ocorrer corporalmente. O corpo, que não tem o domínio total da situação, precisa necessariamente ser requerido.

Dietmar Kamper ( † 2001)

Professor de sociologia e história antropológica da Universidade Livre de Berlim, Alemanha, professor associado de teoria da mídia com ênfase em Gestalt. Iniciador de dez simpósios internacionais sobre temas de antropologia histórica como corpo, senso, alma, tempo e silêncio. Publicações recentes "Unmögliche Gegenwart: zur Theorie der Phantasie" (1995); "Abgang vom Kreuz" (1996); "Im Souterrain der Bilder. Die schwarze Madonna" (1997); "VON WEGEN" (1998); "Ästhetik der Abwesenheit. Die Entfernung der Körper" (1999 - em breve).

Texto apresentado no Seminário Internacional “Imagem e Violência”, promovido pelo Cisc – Centro Interdisciplinar de Semiótica da Cultura e da Mídia, no Sesc Vila Mariana, em São Paulo, durante os dias 29, 30, 31 de março e 1º de abril de 2000.

Digitally signed by Cisc

DN: cn=Cisc, o=Centro Interdisciplinar de Semiotica da Cultura/Midia, c=BR Date: 2002.07.03 18:53:39 -03'00' Location: SP - Brasil

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