• Nenhum resultado encontrado

1. Negrinha - Monteiro Lobato (o conto está na íntegra - não é resumo) Negrinha era uma pobre órfã de sete anos. Preta? Não; fusca, mulatinha escura,

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2021

Share "1. Negrinha - Monteiro Lobato (o conto está na íntegra - não é resumo) Negrinha era uma pobre órfã de sete anos. Preta? Não; fusca, mulatinha escura,"

Copied!
14
0
0

Texto

(1)

1. Negrinha - Monteiro Lobato (o conto está na íntegra - não é resumo)

Negrinha era uma pobre órfã de sete anos. Preta? Não; fusca, mulatinha escura, de cabelos ruços e olhos assustados. Nascera na senzala, de mãe escrava, e seus primeiros anos vivera-os pelos cantos escuros da cozinha, sobre velha esteira e trapos imundos. Sempre escondida, que a patroa não gostava de crianças.

Excelente senhora, a patroa. Gorda, rica, dona do mundo, amimada dos padres, com lugar certo na igreja e camarote de luxo reservado no céu. Entaladas as banhas no trono (uma cadeira de balanço na sala de jantar), ali bordava, recebia as amigas e o vigário, dando audiências, discutindo o tempo. Uma virtuosa senhora em suma — “dama de grandes virtudes apostólicas, esteio da religião e da moral”, dizia o reverendo. Ótima, a dona Inácia.

Mas não admitia choro de criança. Ai! Punha-lhe os nervos em carne viva. Viúva sem filhos, não a calejara o choro da carne de sua carne, e por isso não suportava o choro da carne alheia. Assim, mal vagia, longe, na cozinha, a triste criança, gritava logo nervosa:

— Quem é a peste que está chorando aí?

Quem havia de ser? A pia de lavar pratos? O pilão? O forno? A mãe da criminosa abafava a boquinha da filha e afastava-se com ela para os fundos do quintal, torcendo lhe em caminho beliscões de desespero.

— Cale a boca, diabo!

No entanto, aquele choro nunca vinha sem razão. Fome quase sempre, ou frio, desses que entanguem pés e mãos e fazem-nos doer...

Assim cresceu Negrinha — magra, atrofiada, com os olhos eternamente assustados.

Órfã aos quatro anos, por ali ficou feito gato sem dono, levada a pontapés. Não compreendia a ideia dos grandes. Batiam-lhe sempre, por ação ou omissão. A mesma coisa, o mesmo ato, a mesma palavra provocava ora risadas, ora castigos. Aprendeu a andar, mas quase não andava. Com pretextos de que às soltas reinaria no quintal, estragando as plantas, a boa senhora punha-a na sala, ao pé de si, num desvão da porta.

— Sentadinha aí, e bico, hein?

Negrinha imobilizava-se no canto, horas e horas. — Braços cruzados, já, diabo!

Cruzava os bracinhos a tremer, sempre com o susto nos olhos. E o tempo corria. E o relógio batia uma, duas, três, quatro, cinco horas — um cuco tão engraçadinho! Era seu divertimento vê-lo abrir a janela e cantar as horas com a bocarra vermelha, arrufando as asas. Sorria-se então por dentro, feliz um instante.

Puseram-na depois a fazer crochê, e as horas se lhe iam a espichar trancinhas sem fim. Que ideia faria de si essa criança que nunca ouvira uma palavra de carinho? Pestinha, diabo, coruja, barata descascada, bruxa, pata-choca, pinto gorado, mosca-morta, sujeira, bisca, trapo, cachorrinha, coisa-ruim, lixo — não tinha conta o número de apelidos com que a mimoseavam. Tempo houve em que foi a bubônica. A epidemia andava na berra, como a grande novidade, e Negrinha viu-se logo apelidada assim — por sinal que achou linda a palavra. Perceberam-no e suprimiram-na da lista. Estava escrito que não teria um gostinho só na vida — nem esse de personalizar a peste...

O corpo de Negrinha era tatuado de sinais, cicatrizes, vergões. Batiam nele os da casa todos os dias, houvesse ou não houvesse motivo. Sua pobre carne exercia para os cascudos, cocres e beliscões a mesma atração que o ímã exerce para o aço. Mãos em cujos nós de dedos comichasse um cocre, era mão que se descarregaria dos fluidos em sua cabeça. De passagem. Coisa de rir e ver a careta...

A excelente dona Inácia era mestra na arte de judiar de crianças. Vinha da escravidão, fora senhora de escravos — e daquelas ferozes, amigas de ouvir cantar o bolo e estalar o bacalhau. Nunca se afizera ao regime novo — essa indecência de negro igual a branco e qualquer coisinha: a polícia! “Qualquer coisinha”: uma mucama assada ao forno porque se engraçou dela o senhor; uma novena de relho porque disse: “Como é ruim, a sinhá!”...

O 13 de Maio tirou-lhe das mãos o azorrague, mas não lhe tirou da alma a gana. Conservava Negrinha em casa como remédio para os frenesis. Inocente derivativo:

— Ai! Como alivia a gente uma boa roda de cocres bem fincados!...

Tinha de contentar-se com isso, judiaria miúda, os níqueis da crueldade. Cocres: mão fechada com raiva e nós de dedos que cantam no coco do paciente. Puxões de orelha: o torcido, de despegar a concha (bom! bom! bom! gostoso de dar) e o a duas mãos, o sacudido. A gama inteira dos beliscões: do miudinho, com a ponta da unha, à torcida do umbigo, equivalente ao puxão de orelha. A esfregadela: roda de tapas, cascudos, pontapés e safanões a uma — divertidíssimo! A vara de marmelo, flexível, cortante: para “doer fino” nada melhor!

Era pouco, mas antes isso do que nada. Lá de quando em quando vinha um castigo maior para desobstruir o fígado e matar as saudades do bom tempo. Foi assim com aquela história do ovo quente.

(2)

Não sabem! Ora! Uma criada nova furtara do prato de Negrinha — coisa de rir — um pedacinho de carne que ela vinha guardando para o fim. A criança não sofreou a revolta — atirou-lhe um dos nomes com que a mimoseavam todos os dias.

— “Peste?” Espere aí! Você vai ver quem é peste — e foi contar o caso à patroa. Dona Inácia estava azeda, necessitadíssima de derivativos. Sua cara iluminou-se.

— Eu curo ela! — disse, e desentalando do trono as banhas foi para a cozinha, qual perua choca, a rufar as saias.

— Traga um ovo.

Veio o ovo. Dona Inácia mesmo pô-lo na água a ferver; e de mãos à cinta, gozando-se na prelibação da tortura, ficou de pé uns minutos, à espera. Seus olhos contentes envolviam a mísera criança que, encolhidinha a um canto, aguardava trêmula alguma coisa de nunca visto. Quando o ovo chegou a ponto, a boa senhora chamou:

— Venha cá!

Negrinha aproximou-se. — Abra a boca!

Negrinha abriu aboca, como o cuco, e fechou os olhos. A patroa, então, com uma colher, tirou da água “pulando” o ovo e zás! na boca da pequena. E antes que o urro de dor saísse, suas mãos amordaçaram-na até que o ovo arrefecesse. Negrinha urrou surdamente, pelo nariz. Esperneou. Mas só. Nem os vizinhos chegaram a perceber aquilo. Depois:

— Diga nomes feios aos mais velhos outra vez, ouviu, peste?

E a virtuosa dama voltou contente da vida para o trono, a fim de receber o vigário que chegava.

— Ah, monsenhor! Não se pode ser boa nesta vida... Estou criando aquela pobre órfã, filha da Cesária — mas que trabalheira me dá!

— A caridade é a mais bela das virtudes cristas, minha senhora —murmurou o padre. — Sim, mas cansa...

— Quem dá aos pobres empresta a Deus. A boa senhora suspirou resignadamente. — Inda é o que vale...

Certo dezembro vieram passar as férias com Santa Inácia duas sobrinhas suas, pequenotas, lindas meninas louras, ricas, nascidas e criadas em ninho de plumas. Do seu canto na sala do trono, Negrinha viu-as irromperem pela casa como dois anjos do céu — alegres, pulando e rindo com a vivacidade de cachorrinhos novos. Negrinha olhou imediatamente para a senhora, certa de vê-la armada para desferir contra os anjos invasores o raio dum castigo tremendo.

Mas abriu a boca: a sinhá ria-se também... Quê? Pois não era crime brincar? Estaria tudo mudado — e findo o seu inferno — e aberto o céu? No enlevo da doce ilusão, Negrinha levantou-se e veio para a festa infantil, fascinada pela alegria dos anjos. Mas a dura lição da desigualdade humana lhe chicoteou a alma. Beliscão no umbigo, e nos ouvidos, o som cruel de todos os dias: “Já para o seu lugar, pestinha! Não se enxerga”? Com lágrimas dolorosas, menos de dor física que de angústia moral —sofrimento novo que se vinha acrescer aos já conhecidos — a triste criança encorujou-se no cantinho de sempre.

— Quem é, titia? — perguntou uma das meninas, curiosa.

— Quem há de ser? — disse a tia, num suspiro de vítima. — Uma caridade minha. Não me corrijo, vivo criando essas pobres de Deus... Uma órfã. Mas brinquem, filhinhas, a casa é grande, brinquem por aí afora.

— Brinquem! Brincar! Como seria bom brincar! — refletiu com suas lágrimas, no canto, a dolorosa martirzinha, que até ali só brincara em imaginação com o cuco.

Chegaram as malas e logo:

— Meus brinquedos! — reclamaram as duas meninas.

Uma criada abriu-as e tirou os brinquedos. Que maravilha! Um cavalo de pau!... Negrinha arregalava os olhos. Nunca imaginara coisa assim tão galante. Um cavalinho! E mais... Que é aquilo? Uma criancinha de cabelos amarelos... que falava “mamã”... que dormia...

Era de êxtase o olhar de Negrinha. Nunca vira uma boneca e nem sequer sabia o nome desse brinquedo. Mas compreendeu que era uma criança artificial.

(3)

E dominada pelo enlevo, num momento em que a senhora saiu da sala a providenciar sobre a arrumação das meninas, Negrinha esqueceu o beliscão,o ovo quente, tudo, e aproximou-se da criatura de louça. Olhou-a com assombrado encanto, sem jeito, sem ânimo de pegá-la.

As meninas admiraram-se daquilo. — Nunca viu boneca?

— Boneca? — repetiu Negrinha. — Chama-se Boneca? Riram-se as fidalgas de tanta ingenuidade.

— Como é boba! — disseram. — E você como se chama? — Negrinha.

As meninas novamente torceram-se de riso; mas vendo que o êxtase da bobinha perdurava, disseram, apresentando-lhe a boneca:

— Pegue!

Negrinha olhou para os lados, ressabiada, como coração aos pinotes. Que ventura, santo Deus! Seria possível? Depois pegou a boneca. E muito sem jeito, como quem pega o Senhor menino, sorria para ela e para as meninas, com assustados relanços de olhos para a porta. Fora de si, literalmente... era como se penetrara no céu e os anjos a rodeassem, e um filhinho de anjo lhe tivesse vindo adormecer ao colo. Tamanho foi o seu enlevo que não viu chegar a patroa, já de volta. Dona Inácia entreparou, feroz, e esteve uns instantes assim, apreciando a cena. Mas era tal a alegria das hóspedes ante a surpresa extática de Negrinha, e tão grande a força irradiante da felicidade desta, que o seu duro coração afinal bambeou. E pela primeira vez na vida foi mulher. Apiedou-se. Ao percebê-la na sala Negrinha havia tremido, passando-lhe num relance pela cabeça a imagem do ovo quente e hipóteses de castigos ainda piores. E incoercíveis lágrimas de pavor assomaram-lhe aos olhos.

Falhou tudo isso, porém. O que sobreveio foi a coisa mais inesperada do mundo — estas palavras, as primeiras que ela ouviu, doces, na vida:

— Vão todas brincar no jardim, e vá você também, mas veja lá, hein?

Negrinha ergueu os olhos para a patroa, olhos ainda de susto e terror. Mas não viu mais a fera antiga. Compreendeu vagamente e sorriu.

Se alguma vez a gratidão sorriu na vida, foi naquela surrada carinha... Varia a pele, a condição, mas a alma da criança é a mesma — na princesinha e na mendiga. E para ambos é a boneca o supremo enlevo. Dá a natureza dois momentos divinos à vida da mulher: o momento da boneca — preparatório —, e o momento dos filhos — definitivo. Depois disso, está extinta a mulher.

Negrinha, coisa humana, percebeu nesse dia da boneca que tinha uma alma. Divina eclosão! Surpresa maravilhosa do mundo que trazia em si e que desabrochava, afinal, como fulgurante flor de luz. Sentiu-se elevada à altura de ente humano. Cessara de ser coisa — e doravante ser-lhe-ia impossível viver a vida de coisa. Se não era coisa! Se sentia! Se vibrava! Assim foi — e essa consciência a matou.

Terminadas as férias, partiram as meninas levando consigo a boneca, e a casa voltou ao ramerrão habitual. Só não voltou a si Negrinha. Sentia-se outra, inteiramente transformada. Dona Inácia, pensativa, já a não atazanava tanto, e na cozinha uma criada nova, boa de coração, amenizava-lhe a vida. Negrinha, não obstante, caíra numa tristeza infinita. Mal comia e perdera a expressão de susto que tinha nos olhos. Trazia-os agora nostálgicos, cismarentos. Aquele dezembro de férias, luminosa rajada de céu trevas adentro do seu doloroso inferno, envenenara-a. Brincara ao sol, no jardim. Brincara!... Acalentara, dias seguidos, a linda boneca loura, tão boa, tão quieta, a dizer mamã, a cerrar os olhos para dormir. Vivera realizando sonhos da imaginação. Desabrochara-se de alma.

Morreu na esteirinha rota, abandonada de todos, como um gato sem dono. Jamais, entretanto, ninguém morreu com maior beleza. O delírio rodeou-a de bonecas, todas louras, de olhos azuis. E de anjos... E bonecas e anjos remoinhavam-lhe em torno, numa farândola do céu. Sentia-se agarrada por aquelas mãozinhas de louça — abraçada, rodopiada.

Veio a tontura; uma névoa envolveu tudo. E tudo regirou em seguida, confusamente, num disco. Ressoaram vozes apagadas, longe, e pela última vez o cuco lhe apareceu de boca aberta. Mas, imóvel, sem rufar as asas. Foi-se apagando. O vermelho da goela desmaiou...

E tudo se esvaiu em trevas.

Depois, vala comum. A terra papou com indiferença aquela carnezinha de terceira — uma miséria, trinta quilos mal pesados...

E de Negrinha ficaram no mundo apenas duas impressões. Uma cômica, na memória das meninas ricas. — “Lembras-te daquela bobinha da titia, que nunca vira boneca?”

(4)

Outra de saudade, no nó dos dedos de dona Inácia. — “Como era boa para um cocre!...”

_________

Monteiro Lobato, natural de Taubaté (SP), nasceu em 18/04/1882. É uma das figuras excepcionais das letras brasileiras. Jornalista, contista, criador de deliciosas histórias para crianças, suscitador de problemas, ensaísta e homem de ação, encheu com seu nome um largo período da vida nacional. Com a publicação do livro de contos "Urupês", em julho de 1918, quando já contava com 36 anos de idade, chama para o seu talento de escritor a atenção de todo o país. Cita-o Ruy Barbosa, em discurso, encontrando no seu Jeca Tatu um símbolo da realidade rural brasileira. Lança-se à indústria editorial, publica livros e mais livros — "Onda Verde", "Ideias de Jeca Tatu", "Cidades Mortas", "Negrinha", "Fábulas", "O Choque", etc. Fracassa como editor, ao lançar a firma Monteiro Lobato & Cia., mas volta com a Companhia Editora Nacional, ao lado de Octales Marcondes, e triunfa. Tenta a exploração de petróleo, e acaba na cadeia, perseguido pela ditadura de Getúlio Vargas. Não só escreve, como traduz sem pausa, dezenas e dezenas de livros, especialmente de Kipling. Uma vida cheia. E uma grande obra, que lhe preservará o nome glorioso. Foi um grande homem, um grande brasileiro e um dos maiores escritores — em todo o mundo — de histórias para crianças. Basta dizer que, no período de 1925 a 1950 foram vendidos aproximadamente um milhão e quinhentos mil exemplares de seus livros.

Era, de fato, um ser plural: escritor precursor do realismo fantástico, escritor de cartas, escritor de obras infantis, ensaísta, crítico de arte e literatura, pintor, jornalista, empresário, fazendeiro, advogado, sociólogo, tradutor, diplomata, etc. Faleceu na cidade de São Paulo (SP), no dia 04 de julho de 1948.

O texto acima foi publicado originalmente em livro do mesmo nome, tendo sido selecionado por Ítalo Moriconi e consta de "Os cem melhores contos brasileiros do século", editora Objetiva — Rio de Janeiro, 2000, pág. 78.

_____________________________________________________________________________________________ 2. A canção do africano – Castro Alves (o poema está na íntegra)

Lá na úmida senzala, Sentado na estreita sala, Junto ao braseiro, no chão, Entoa o escravo o seu canto, E ao cantar correm-lhe em pranto Saudades do seu torrão ...

De um lado, uma negra escrava Os olhos no filho crava,

Que tem no colo a embalar... E à meia voz lá responde Ao canto, e o filhinho esconde, Talvez pra não o escutar! "Minha terra é lá bem longe, Das bandas de onde o sol vem; Esta terra é mais bonita, Mas à outra eu quero bem! "O sol faz lá tudo em fogo, Faz em brasa toda a areia; Ninguém sabe como é belo Ver de tarde a papa-ceia! "Aquelas terras tão grandes, Tão compridas como o mar, Com suas poucas palmeiras Dão vontade de pensar ...

"Lá todos vivem felizes, Todos dançam no terreiro; A gente lá não se vende Como aqui, só por dinheiro". O escravo calou a fala, Porque na úmida sala O fogo estava a apagar; E a escrava acabou seu canto, Pra não acordar com o pranto O seu filhinho a sonhar! O escravo então foi deitar-se, Pois tinha de levantar-se Bem antes do sol nascer, E se tardasse, coitado, Teria de ser surrado, Pois bastava escravo ser. E a cativa desgraçada Deita seu filho, calada, E põe-se triste a beijá-lo, Talvez temendo que o dono Não viesse, em meio do sono, De seus braços arrancá-lo!

(5)

_____________________________________________________________________________________________ 3. Navio Negreiro (TRAGÉDIA NO MAR) (o poema está na íntegra – leia em voz alta)

Caso vc queira um estudo completo e bem feito, o endereço é:

http://www.mackenzie.br/fileadmin/Pos_Graduacao/Mestrado/Letras/Artigo_Julia_Oliveira.pdf I

'Stamos em pleno mar... Doudo no espaço Brinca o luar - dourada borboleta;

E as vagas após ele correm... cansam Como turba de infantes inquieta. 'Stamos em pleno mar... Do firmamento Os astros saltam como espumas de ouro... O mar em troca acende as ardentias, - Constelações do líquido tesouro... 'Stamos em pleno mar... Dois infinitos Ali se estreitam num abraço insano, Azuis, dourados, plácidos, sublimes... Qual dos dous é o céu? qual o oceano?... 'Stamos em pleno mar. . . Abrindo as velas Ao quente arfar das virações marinhas, Veleiro brigue corre à flor dos mares, Como roçam na vaga as andorinhas... Donde vem? onde vai? Das naus errantes Quem sabe o rumo se é tão grande o espaço? Neste saara os corcéis o pó levantam,

Galopam, voam, mas não deixam traço. Bem feliz quem ali pode nest'hora Sentir deste painel a majestade!

Embaixo - o mar em cima - o firmamento... E no mar e no céu - a imensidade!

Oh! que doce harmonia traz-me a brisa! Que música suave ao longe soa!

Meu Deus! como é sublime um canto ardente Pelas vagas sem fim boiando à toa!

Homens do mar! ó rudes marinheiros, Tostados pelo sol dos quatro mundos! Crianças que a procela acalentara No berço destes pélagos profundos! Esperai! esperai! deixai que eu beba Esta selvagem, livre poesia

Orquestra - é o mar, que ruge pela proa, E o vento, que nas cordas assobia... ... Por que foges assim, barco ligeiro?

Por que foges do pávido poeta?

Oh! quem me dera acompanhar-te a esteira Que semelha no mar - doudo cometa! Albatroz! Albatroz! águia do oceano, Tu que dormes das nuvens entre as gazas, Sacode as penas, Leviathan do espaço, Albatroz! Albatroz! dá-me estas asas. II

Que importa do nauta o berço, Donde é filho, qual seu lar? Ama a cadência do verso Que lhe ensina o velho mar! Cantai! que a morte é divina! Resvala o brigue à bolina Como golfinho veloz. Presa ao mastro da mezena Saudosa bandeira acena As vagas que deixa após. Do Espanhol as cantilenas Requebradas de langor, Lembram as moças morenas, As andaluzas em flor!

Da Itália o filho indolente Canta Veneza dormente, - Terra de amor e traição, Ou do golfo no regaço Relembra os versos de Tasso, Junto às lavas do vulcão! O Inglês - marinheiro frio, Que ao nascer no mar se achou, (Porque a Inglaterra é um navio, Que Deus na Mancha ancorou), Rijo entoa pátrias glórias, Lembrando, orgulhoso, histórias De Nelson e de Aboukir... O Francês - predestinado - Canta os louros do passado E os loureiros do porvir! Os marinheiros Helenos, Que a vaga jônia criou, Belos piratas morenos Do mar que Ulisses cortou,

(6)

Homens que Fídias talhara, Vão cantando em noite clara Versos que Homero gemeu ... Nautas de todas as plagas, Vós sabeis achar nas vagas As melodias do céu! ... III

Desce do espaço imenso, ó águia do oceano! Desce mais ... inda mais... não pode olhar humano Como o teu mergulhar no brigue voador!

Mas que vejo eu aí... Que quadro d'amarguras! É canto funeral! ... Que tétricas figuras! ...

Que cena infame e vil... Meu Deus! Meu Deus! Que horror!

IV

Era um sonho dantesco... o tombadilho Que das luzernas avermelha o brilho. Em sangue a se banhar.

Tinir de ferros... estalar de açoite... Legiões de homens negros como a noite, Horrendos a dançar...

Negras mulheres, suspendendo às tetas Magras crianças, cujas bocas pretas Rega o sangue das mães:

Outras moças, mas nuas e espantadas, No turbilhão de espectros arrastadas, Em ânsia e mágoa vãs!

E ri-se a orquestra irônica, estridente... E da ronda fantástica a serpente Faz doudas espirais ...

Se o velho arqueja, se no chão resvala, Ouvem-se gritos... o chicote estala. E voam mais e mais...

Presa nos elos de uma só cadeia, A multidão faminta cambaleia, E chora e dança ali!

Um de raiva delira, outro enlouquece, Outro, que martírios embrutece, Cantando, geme e ri!

No entanto o capitão manda a manobra, E após fitando o céu que se desdobra, Tão puro sobre o mar,

Diz do fumo entre os densos nevoeiros: "Vibrai rijo o chicote, marinheiros! Fazei-os mais dançar!..."

E ri-se a orquestra irônica, estridente. . . E da ronda fantástica a serpente

Faz doudas espirais...

Qual um sonho dantesco as sombras voam!... Gritos, ais, maldições, preces ressoam! E ri-se Satanás!...

V

Senhor Deus dos desgraçados! Dizei-me vós, Senhor Deus! Se é loucura... se é verdade Tanto horror perante os céus?! Ó mar, por que não apagas Co'a esponja de tuas vagas De teu manto este borrão?... Astros! noites! tempestades! Rolai das imensidades! Varrei os mares, tufão! Quem são estes desgraçados Que não encontram em vós Mais que o rir calmo da turba Que excita a fúria do algoz? Quem são? Se a estrela se cala, Se a vaga à pressa resvala Como um cúmplice fugaz, Perante a noite confusa... Dize-o tu, severa Musa, Musa libérrima, audaz!... São os filhos do deserto, Onde a terra esposa a luz. Onde vive em campo aberto A tribo dos homens nus... São os guerreiros ousados Que com os tigres mosqueados Combatem na solidão.

Ontem simples, fortes, bravos. Hoje míseros escravos,

Sem luz, sem ar, sem razão... São mulheres desgraçadas, Como Agar o foi também. Que sedentas, alquebradas, De longe... bem longe vêm... Trazendo com tíbios passos, Filhos e algemas nos braços, N'alma - lágrimas e fel... Como Agar sofrendo tanto, Que nem o leite de pranto Têm que dar para Ismael. Lá nas areias infindas, Das palmeiras no país, Nasceram crianças lindas, Viveram moças gentis...

(7)

Passa um dia a caravana, Quando a virgem na cabana Cisma da noite nos véus ... ... Adeus, ó choça do monte, ... Adeus, palmeiras da fonte!... ... Adeus, amores... adeus!... Depois, o areal extenso... Depois, o oceano de pó. Depois no horizonte imenso Desertos... desertos só... E a fome, o cansaço, a sede... Ai! quanto infeliz que cede, E cai p'ra não mais s'erguer!... Vaga um lugar na cadeia, Mas o chacal sobre a areia Acha um corpo que roer. Ontem a Serra Leoa, A guerra, a caça ao leão, O sono dormido à toa Sob as tendas d'amplidão! Hoje... o porão negro, fundo, Infecto, apertado, imundo, Tendo a peste por jaguar... E o sono sempre cortado Pelo arranco de um finado, E o baque de um corpo ao mar... Ontem plena liberdade,

A vontade por poder... Hoje... cúm'lo de maldade, Nem são livres p'ra morrer... Prende-os a mesma corrente - Férrea, lúgubre serpente - Nas roscas da escravidão. E assim zombando da morte, Dança a lúgubre coorte Ao som do açoute... Irrisão!...

Senhor Deus dos desgraçados! Dizei-me vós, Senhor Deus, Se eu deliro... ou se é verdade Tanto horror perante os céus?!... Ó mar, por que não apagas Co'a esponja de tuas vagas Do teu manto este borrão? Astros! noites! tempestades! Rolai das imensidades! Varrei os mares, tufão! ... VI

Existe um povo que a bandeira empresta P'ra cobrir tanta infâmia e cobardia!... E deixa-a transformar-se nessa festa Em manto impuro de bacante fria!...

Meu Deus! meu Deus! mas que bandeira é esta, Que impudente na gávea tripudia?

Silêncio. Musa... chora, e chora tanto Que o pavilhão se lave no teu pranto! ... Auriverde pendão de minha terra, Que a brisa do Brasil beija e balança, Estandarte que a luz do sol encerra E as promessas divinas da esperança... Tu que, da liberdade após a guerra, Foste hasteado dos heróis na lança Antes te houvessem roto na batalha, Que servires a um povo de mortalha!... Fatalidade atroz que a mente esmaga! Extingue nesta hora o brigue imundo O trilho que Colombo abriu nas vagas, Como um íris no pélago profundo! Mas é infâmia demais! ... Da etérea plaga Levantai-vos, heróis do Novo Mundo! Andrada! arranca esse pendão dos ares! Colombo! fecha a porta dos teus mares! São Paulo, 18 de abril de 1869.

_____________________________________________________________________________________________ 4. Clara dos Anjos – Lima Barreto (resumo e crítica – na íntegra, a novela tem 85 páginas e pode ser baixada no endereço:

http://www.colegioecursoopcao.com.br/livro_c/Lima%20Barreto%20-%20Clara%20dos%20Anjos.pdf

“Em Clara dos Anjos relata-se a estória de uma pobre mulata, filha de um carteiro de subúrbio,

que apesar das cautelas excessivas da família, é iludida, seduzida e, como tantas outras, desprezada,

enfim, por um rapaz de condição social menos humilde do que a sua. É uma estória onde se tenta

pintar em cores ásperas o drama de tantas outras raparigas da mesma cor e do mesmo ambiente. O

(8)

romancista procurou fazer de sua personagem uma figura apagada, de natureza "amorfa e pastosa",

como se nela quisesse resumir a fatalidade que persegue tantas criaturas de sua casta: "A priori", diz

Lima, "estão condenadas, e tudo e todos parecem condenar os seus esforços e os dos seus para elevar a

sua condição moral e social." É claro que os traços singulares, capazes de formar um verdadeiro

"caráter" romanesco, dando-lhe relevo próprio e nitidez hão de esbater-se aqui para melhor se

ajustarem à regra genérica. “E Clara dos Anjos torna-se, assim, menos uma personagem do que um

argumento vivo e um elemento para a denúncia.” (1995, p.42 historiador e crítico literário Buarque de

Holanda - 1978, p. 131)

Concluído em 1922, ano da morte de Afonso Henriques Lima Barreto, o romance Clara dos Anjos é uma denúncia áspera da discriminação sociorracial, vivenciado por uma jovem mulher do subúrbio carioca. De acordo com o crítico literário Prado (1980), o romance, que tem como título a personagem principal, narra à história de uma pobre mulata, filha de um carteiro de subúrbio, Joaquim dos Anjos, que nas horas vagas, se dedicava a serenata e aos solos de flauta. Levando modesta vida de subúrbio, ao lado da esposa dona Engrácia e da filha Clara, o mais que fazia, além das tarefas postais e da música, era passar as tardes de domingo jogando solo com dois amigos da casa, o compadre Marramaque e o português Eduardo Lafões.

Por insistência de Lafões, o carteiro Joaquim dos Anjos passou a receber em casa um estranho pretendente a sua filha Clara: Cassi Jones de Azevedo, um perigoso tipo suburbano que usava pastinha no cabelo e gastava seu tempo tocando violão, seduzindo mulheres e apostando em briga de galos. Acobertado pela família, sobretudo a mãe, que não queria ver seu filho desonrado numa cadeia, Cassi Jones conseguia subornar a polícia e continuar impune, apesar de perseguido pelos jornais.

Mesmo com todo o cuidado da família, Clara passa a trocar cartas de amor com Cassi por intermédio de Meneses, amigo da família, que fora pressionado pelo conquistador. O padrinho convence o pai de Clara a não receber Cassi em sua casa e o resultado é uma vingança brutal: Marramaque é assassinado por Cassi e um capanga. Clara, que já suspeitava das ameaças do namorado ao padrinho, passa a temê-lo e não consegue mais evitá-lo, tanto mais quando Cassi lhe confessa que matou por amor.

Aproveitando-se dessa circunstância, Cassi Jones seduz, afinal, a filha do carteiro e desaparece, deixando-a gráviddeixando-a. Jodeixando-aquim dos Anjos, sem desconfideixando-ar do que se pdeixando-assdeixando-avdeixando-a, permdeixando-anece deixando-aferrdeixando-ado à rotindeixando-a ddeixando-a fldeixando-autdeixando-a e ddeixando-as serenatas. Uma vizinha, porém, percebe o estado de Clara e a convence a abrir-se com sua mãe. Somente agora é que ela passa a ter “noção exata da sua situação na sociedade”, pois, é levada perante a família de Cassi, para uma eventual “reparação do dano”, é humilhada pela mãe de seu agressor, que se considera insultada pelo simples fato de ter uma negra manifestado desejos de casar-se com seu filho.

A cena final é pungente: mostra Clara abraçando fortemente sua mãe e dizendo-lhe, desesperada: “Mamãe! Mamãe! – Que é minha filha? – Nós não somos nada nesta vida”. Lima Barreto revela-se um crítico mordaz em todos os níveis de sua narrativa.

Vários rascunhos mostram que a obra deveria ser mais vasta e abranger aspectos da história da escravidão negra no Brasil e suas consequências após a abolição, incluindo o drama de muitas gerações de mulheres do mesmo meio e cor que constitui o eixo central dessa narrativa. Contudo, tornando-se restrita quase que à história da jovem mulata Clara dos Anjos, conserva-se nela a intenção inicial de denúncia do preconceito sociorracial da sociedade brasileira, tema que acompanha grande parte da criação literária de Lima Barreto.

A percepção de Clara

Em um dado momento, Clara ergueu-se da cadeira em que se sentara e abraçou muito fortemente sua mãe, dizendo, com grande acento de desespero:

-Mamãe!Mamãe! -Que é minha filha?

-Nós não somos nada nesta vida.

Através deste desesperado lamento direcionado à sua mãe dentro de um bonde que se dirige ao subúrbio da cidade do Rio de Janeiro, a personagem Clara dos Anjos, ao final do romance homônimo, constata a sua dura realidade. Sendo iludida por um jovem branco de família mais abastada e ficando grávida dele, Clara dos Anjos, ao sentir a dor da rejeição e a resposta de que nenhum "mal" feito a ela haveria de ser reparado, num momento de rápida reflexão, frente aos supostos olhares censores dos passageiros, compreende sua condição: não era uma moça como as outras, "apenas uma mulatinha", filha de um carteiro que havia sido "desonrada". No ano de

(9)

1922, Lima Barreto concluía desse modo o romance “Clara dos Anjos”. Ao longo de suas páginas, dando vida a jovem suburbana, o autor soube expor e denunciar o preconceito social e racial vigente na sociedade brasileira da República das grandes oligarquias.

Um país de mestiços e de negros

A primeira versão do romance que retrata o drama da jovem mulata suburbana – Clara dos Anjos – foi concebida por Lima Barreto em 1904. Naquela época, o escritor tinha o ambicioso projeto de escrever a história da escravidão negra no Brasil e suas consequências após a abolição. Neste projeto, a personagem principal serviria como fio condutor para descrever a escravidão e o contexto social posterior. Contudo, o autor não foi à frente e, com o passar dos anos, a ideia termina sendo deixada de lado. Com o iniciar da década de 20, Lima Barreto conclui que o momento oportuno para dar vida a sua jovem mulata finalmente chegara.

A segunda versão, iniciada em 1921 e concluída um ano depois, suprimiria bastante o ambicioso projeto de escrever a longa trajetória de Clara tendo como pano de fundo a própria herança escravista a acompanhar o destino da moça. A história da segunda versão seria mais curta, todavia, ainda era possível transparece em suas páginas o legado do passado escravista a influenciar o destino da heroína.

A República Brasileira inicia-se sobre a égide do positivismo e do cientificismo a influenciar grande parte dos intelectuais brasileiros. As teorias racistas através do darwinismo social ganhavam o Brasil desde a década de 1880 e se desenvolviam com facilidade no ambiente republicano. Impulsionado pelas pesquisas realizadas em centros de estudos europeus e norte-americanos desde os anos de 1860, o darwinismo social pregava que os povos brancos haviam se desenvolvido mais que os povos de outras raças dentro de uma escala evolucionista que levava ao progresso e a civilização. Servindo a interesses imperialistas, as teorias racistas se espalharam pelo mundo e os seus dogmas apontavam que todas as evidências mostravam os brancos como superiores as demais raças, tais concepções eram quase incontestáveis. Em tal discurso, povos não-brancos não haviam prosperado como os europeus e a sombra do fracasso e da degenerescência permearia sua história.

Grande parte das elites brasileiras acabou por concordar com essas teorias deterministas. Todavia essas elites não incorporaram as ideias a seco, ou seja, elas buscaram antes criar uma via de adaptação para a realidade nacional. De acordo com a pesquisadora Lilia Moritz Schwarcz , a intelectualidade letrada brasileira passaria a fazer uma releitura desses conceitos na tentativa de adaptá-los a realidade mestiça do país.

Misto de cientistas e políticos, pesquisadores e literatos, acadêmicos e missionários, esses intelectuais irão se mover nos incômodos limites que os modelos lhe deixavam:entre a aceitação das teorias

estrangeiras condenavam o cruzamento racial – e a sua adaptação a um povo a essa altura já muito miscigenado. De fato, a realidade nacional para essas elites era bastante incômoda, afinal não podiam negar que o número de descendentes de africanos no país era imenso e que sua composição mestiça espelhava uma nação bem distante dos moldes europeus e norte-americanos. Um meio termo passou a ser elaborado por grande parte dos intelectuais que se preocupavam com a imagem do Brasil neste período. Assim, se por aquele momento a mestiçagem do brasileiro não podia ser negada, o jeito era vislumbrar um futuro diverso para o país – a teoria do branqueamento sugeria que o futuro da população brasileira, através dos cruzamentos e do estímulo a imigração europeia, iria adquirindo cada vez mais um tom de pele mais claro. Tal concepção, passou a atrair alguns intelectuais que acreditavam ser essa a melhor saída para "redimir a nação" e provar que seu futuro seria glorioso.

O Brasil vivido por Lima Barreto

O carioca Afonso Henriques de Lima Barreto nasceu em 13 de maio de 1881, sete anos depois o já insustentável sistema escravista seria definitivamente abolido. O cambaleante império de D. Pedro II marchava de encontro a um golpe que poria fim aos sonhos da única monarquia na América do Sul. Em suma, Lima Barreto viveu sua infância e juventude numa época de transição, na qual a sociedade brasileira, através do sistema republicano, passaria a organizar um novo tempo. As instituições monárquicas seriam deixadas para trás e os antigos escravos e os seus descendentes passariam a ter liberdade e deveriam ser inseridos em uma nova ordem social que visava o progresso nacional em bases positivistas.

Alguns biógrafos de Lima Barreto ressaltaram como notórios os rancores do romancista expressos em suas célebres críticas ao em contos e textos jornalísticos. Não apenas Lima Barreto, mas também vários outros intelectuais de sua geração, bem como outros de uma geração posterior ao seu nascimento, tinham projetado esperanças e ideais na crença de um Brasil mais justo e mais desenvolvido quando o sistema republicano passasse a funcionar com todo o vigor. Todavia, muitos desses intelectuais acabariam por se decepcionar, pois a República que desfilaria nos anos iniciais do século XX seria marcada pela forte presença das elites agrárias do sudeste do país – sempre em busca de mais lucros e mais vantagem para a valorização do principal produto de

(10)

exportação nacional – o café. A República deixava de lado os projetos sonhados e excluindo os intelectuais que lutavam por mais justiça social .

As ações e projetos populares que idealizavam uma melhoria de vida eram resolvidos pelos governantes através do uso da violência, sem espaço para o debate com a parte reivindicante. O caso de Canudos, no sertão da Bahia se tornou conhecido pela falta de tolerância e interesse do governo por uma parcela da população nordestina que vivia na miséria e no abandono. O “bota abaixo”, visando à construção de uma grande avenida na capital federal que daria ares parisienses ao Rio de Janeiro, não levaram em conta as centenas de desabrigados que não podendo viver longe do centro (área de trabalho), tiveram que ocupar o morro do Livramento ou se conformar em reconstruir a vida nas zonas suburbanas, longe da zona central. Durante a Revolta da Vacina, na qual o mesmo prefeito Pereira Passos em sua ânsia pelo progresso e civilização, tornou a vacinação um ato obrigatório, gerando reações das classes populares, que viram os agentes de saúde entrarem em suas casas e casebres em nome de uma ordem higienista.

Por fim, as reações operárias por melhoria das condições de trabalho, num país que iniciava a expansão de suas indústrias, acabavam tratadas com violência,mobilizando a força policial para deter os "baderneiros". Frente à situação de descaso vivido pelas populações menos favorecidas, seria lógico concluir que o antigo ideal, ainda almejado durante os anos de crise do Império, de inserção dos ex-escravos e de seus descendentes dentro de uma sociedade democrática, no qual seus direitos seriam respeitados, acabaria ficando no esquecimento. Entretanto, o que se viu no limiar da primeira república brasileira foi o crescimento das teorias racistas que pregavam o progresso da “raça” branca em detrimento dos povos não-brancos ou mestiços.

Os personagens

Dentro deste contexto ideológico, o romance Clara dos Anjos foi elaborado pelo então mulato Lima Barreto que através da descrição dos seus personagens, deixava transparecer em tom de denúncia, uma ideologia silenciosa que unida a posição social relegava os agentes “marcados” à uma situação de desconforto frente a um destino que não podia ser mudado.

Como percebemos no trecho citado acima, no qual Clara se rende ao fato de que nada mais pode ser feito, a não ser aceitar sua inferioridade social, o autor Lima Barreto sugere ao longo da trama que esforços por reconhecimento social foram feitos pelos personagens populares. Todavia, o sistema ideológico hegemônico engessavam o avanço deles, ou seja, o que ocorre para Lima é que a estrutura social do Brasil de seu tempo não contribuía para que os indivíduos superassem suas limitações – as desigualdades de condição econômica e de cor não permitiam uma maior mobilidade social.

Vejamos o caso da heroína. Clara dos Anjos : nascida num subúrbio carioca, sendo filha de um carteiro, Joaquim dos Anjos, e de uma dona de casa, de nome Engrácia, ambos descritos como pardo-claro pelo autor, ele de cabelo “ruim” e ela de cabelo liso – apesar de ser mais escura. A hibridez de Clara evidencia-se na descrição física dada pelo autor: “ nasceu com a tez do pai (mais clara) e o cabelo da mãe (liso)”. As descrições físicas – gradações de cor e o tipo de cabelo – desempenham um papel significativo na narrativa. Podemos pensar que dentro do contexto do branqueamento tais aspectos são igualmente importantes. É nesta perspectiva que se propaga a ideologia do branqueamento, Clara teria nascido de certa forma numa condição física “mais afortunada”.

Mesmo tendo poucos recursos, o casal dos Anjos esmerou-se na educação da única filha, incorporando os ideais burgueses que pregavam os “bons” costumes morais. Tais valores restringiam a vida de Clara a esfera doméstica, a esfera da casa, preparando-a para o casamento, resguardando a virgindade (“honestidade de donzela” ) ao cercá-la da companhias de senhoras quase que exclusivamente.

Lima Barreto assinala que dona Engrácia “tinha um enorme temor que sua filha errasse, se perdesse”. O autor nos apresenta Clara entre os seus 17 e 18 anos de idade, nesta fase de sua vida, ela já concluíra seus estudos de "primeiras letras" e estava aprendendo a costurar e a bordar. Era de natureza “amorfa” e “pastosa”, não possuía o ideal de construir um caráter para si, ao contrário, bastava-lhe seguir a vontade do pai enquanto solteiro e a do marido quando se casasse, segundo o autor. Seus pais não poderiam moldar-lhe uma personalidade “forte”, pois eram da mesma natureza que ela. Assim, ela cresceu entre “devaneios românticos” e sonhos lânguidos de modinhas.

“Não havia em Clara, a representação, já não exata, mas aproximada, de sua individualidade social; e, concomitantemente, nenhum desejo de elevar-se de reagir contra essa representação. A filha do carteiro, sem ser leviana, era, entretanto, de um poder reduzido de pensar, que não lhe permitia meditar um instante sobre o destino, observar os fatos e tirar ilações e conclusões.A idade, o sexo e a falta de individualidade não corrigia a sua obliquada visão da vida.”

(11)

Clara dos Anjos, mesmo cercada de todos os cuidados e criada dentro dos preceitos de uma moral burguesa, consolidada na Belle Époque, envolve-se com Cassi Jones – “ consumado modinhoso”. Protegido pela mãe e preterido pelo pai por suas seduções de meninas de todas as “cores” e pobres, Cassi Jones utilizava-se de seu violão como um “elixir do amor” para atrair suas vítimas. “Fosse ele ou fosse o violão, fosse ambos conjuntamente, o certo é que, no seu ativo o Senhor Cassi Jones, de tão pouca idade, relativamente, contava perto de dez defloramentos e a sedução de muito maior número de senhoras casadas.”. Nascido numa família de classe média suburbana, Cassi era branco sardento, com menos de trinta anos, costumava-se vestir segundo a moda da Rua do Ouvidor, em parte, por que queria se distinguir do seu meio suburbano. Não usava topete, nem bigode e sempre trazia o cabelo ensopado de óleo – a “famosa pastinha” . O “modinhoso” tinha passado por diversas delegacias, porém se livrava das acusações com a ajuda de seus advogados que usando de mentiras conseguiam que escapasse de um casamento forçado ou de anos na correção. Dona Salustiana, sua mãe, era sua principal aliada. Recorria ao apoio materno alegando que as moças já estavam “perdidas”, e que fora tudo uma cilada que lhe armaram para encobrir um mal feito por outrem e por sabe-lo de boa família.

Podemos notar que com o início da república entra cena o Estado regulando a vida privada. Delegados e juízes, inclusive médicos, serão árbitros neste processo civilizador, disciplinando corpos e almas a partir de padrões morais burgueses dominantes. As práticas sexuais, casamento, família tornam-se alvos de políticas públicas, como por exemplo o controle da prostituição e dos “crimes de sedução”, principalmente no que se refere às camadas populares. Ser “perdida”, como citado no trecho a cima, significava que uma moça teve relações sexuais fora do casamento. Tal categoria servia para classificar aquelas que eram “seduzidas” e abandonas, ou até mesmo aquelas que regulavam sua vida sexual fora do controle masculino. Em seu livro, Lima Barreto elucida a busca por justiça por parte da família das moças que eram seduzidas. A condição social das “vítimas” – considerada desclassificadas – diante do poder e influência da família de Cassi contribuía para sua impunidade. Entretanto, é importante notar que não se trata, no romance, de uma questão apenas de justiça, mas de revelar como que o sistema colocava tais moças à margem, em outras palavras, sua condição social e racial já era percebida como suspeita. Com Cassi Jones, o autor constrói um personagem que em princípio é consciente dos valores e preconceitos de sua época, com este domínio consegue transitar de maneira que o favoreça: podiam tornar-se de vítimas a culpadas, através da alegação de que já eram “perdidas” antes dele as conhecer.

Sobre este assunto a observação do padrinho de Clara, Marraque, nos oferece uma percepção sobre o infortúnio dessas meninas:

Na sua vida, tão agitada e tão variada, ele sempre observou a atmosfera de corrupção que cerca as raparigas de nascimento e da cor de sua afilhada; e também o mau conceito que se tem as suas virtudes de mulher. A priori, estão condenadas; e tudo e todas pareciam condenar os seus esforço e dos seus para elevar sua condição moral e social.

Sobre a vigilância das camadas populares, Martha Abreu assinala que “meninas perdidas” eram aquelas que se libertaram da noção tradicional do “sexo só depois do casamento”. No contexto republicano, de instauração de uma nova ordem, “perdida” era o avesso da mulher de “conduta honesta”, tal classificação não representava apenas uma ameaça a moral burguesa da Belle époque, mas antes disso significava uma transgressão a ordem higiênica e ao projeto de organizar a sociedade em famílias ordeiras com membros preparados para o mundo do trabalho. As leis punitivas funcionavam como uma forma de educação das camadas populares, seja pelo aspecto de condenação – ao classificar os crimes por “defloramento”, seja pela introjeção de novos valores pela coerção e pelo estigma, que serão disciplinadores do habitus individual. Podemos dizer que Clara dos Anjos é uma personagem que incorpora estes valores ao dizer “Nós não somos nada nessa vida”. Preparada para o casamento, mas transgredindo as regras, em parte, segundo Lima, por sua educação deficitária e pela sociedade que projetava nela o mesmo destino das outras – “as perdidas”, para Clara o defloramento, a gravidez indesejada fora do matrimônio significava a destruição dos papéis sociais reservados a sua condição, ou seja, de esposa, mãe e dona de casa. De acordo com a historiadora Marta Abreu:

Para as moças educadas na perspectiva de arranjarem um “bom” casamento, como Clara, a perda da virgindade seria realmente irreparável, principalmente se fosse de “cor”. Buscar um casamento “melhor” poderia significar para as “pretas” e “pardas” sua realização com maridos mais brancos e “

higiênicos.

Pode-se observar que apesar da presença do sistema de justiça, personificado por um delegado no livro, este sistema não funciona para punir Cassi. As vítimas de sua sedução não possuiam uma família “com nome” que pudesse exercer influência a sua acusação, ao contrário da família o modinheiro, que contava com o

(12)

prestígio de um tio “doutor”. Segundo Gislene Nader, tais situaçôes “são permeadas pelo sistema de clientelismo e de favor acionados pela mãe do personagem.” A mãe de Cassi, Dona Salustiana, tentava acobertar os erros do filho em relações os seus crimes de sedução e defloramento. O autor descreve Salustiana como uma mulher vaidosa. Assinala que ela se gabava de sua ascendência da nobreza britânica, de ter estudado em colégio das irmãs de caridade e ter um irmão médico – por tudo isso se achava superior aos seu vizinhos. Para ela, tais moças eram “perdidas” e não estavam a altura de casar com seu filho; caberia portanto as mães prezar pelo cuidado de suas filhas para não dar um “passo errado”.

Um modelo feminino

Assim como Clara, a protagonista que estava fadada ao fracasso, outros personagens trilhavam o mesmo caminho. Lima os descreve como negros, pardos, mulatos, que em sua trajetória não conseguem obter o que almejavam, sucumbiam ao meio social ou ao vício da “parati” – como no caso do poeta Leonardo Flores – poeta que teve seu brilho, mas estava decadente – e do “ dentista” Menezes. Porém, dona Margarida, personagem branca descendente de russos e alemães, é descrita pelo autor como uma pessoa possuidora de inúmeras virtudes: “era respeitada pela sua coragem, pela sua bondade e pelo rigor de sua viuvez”. Dona Margarida contrasta com as demais personagens femininas pela sua personalidade, pelo seu “caráter investido de vontade”, materializado na sua conduta “moral” de mulher viúva que educa seu único filho, não só com a pensão que recebe, mas com seu próprio trabalho, tais como: costura, bordado e criação de galinhas no seu quintal. A alemã, entende e se solidariza diante do infortúnio de Clara, todavia lamenta a passividade ‘dessa gente´, que se deixa abater contra todos que se opõem a sua elevação social e moral. De acordo com Lima Barreto, embora vivendo há muito nesse meio, são suas origens europeias que definem seus valores e que a

guiam na vida, imbuindo-lhe um espírito forte e decisivo.

Embora nascida em outros climas e cercada de outra gente, o seu inconsciente misticismo humanitário, herança dos avós maternos, que andavam sempre às voltas com a polícia dos czares, fê-la logo se identificar com a estranha gente que aqui veio encontrar. Aprendeu-lhe a linguagem com seus vícios e idiotismos, tomou-lhe os hábitos, apreciou-lhe as comidas, mas sem perder nada da tenacidade, do esprit de suíte, da decidida coragem de sua origem. Gostava muito da família do carteiro; mas, no seu íntimo julgava-os dóceis demais, como que passivos, mal armados para a luta entres os maus e contra as insídias da vida.

No momento decisivo em que dona Engrácia e Clara vão conversar com a mãe de Cassi para pedir providências, Dona Margarida as acompanha, enfrenta e argumenta com dona Salustiana, tomando partido da família. A presença da alemã no texto nos remete ao contexto de imigração e da ideologia do branqueamento presente na passagem do final do XIX e início do século XX. Em tal época se discutia a formação de uma nação, sobretudo sobre a composição sócio-racial. Os intelectuais imersos nas discussões raciais se questionavam quanto às incertezas da composição do povo brasileiro, pode-se notar que existia uma representação que qualificava a imigração européia positivamente. Seria, portanto, uma forma de modernizar e trazer o progresso para nação, pois o povo latino era considerado "atrasado" e o negro só poderia ser redimido pela tutela dos brancos. Neste sentido, a obra de Lima Barreto se inter-relaciona com as ideologias presentes naquele contexto. Apesar de construir para seus personagens de “cor” uma vida de infortúnio, Barreto acaba elaborando uma crítica social ao responsabilizar o “meio”. Em outras palavras, é o sistema em que vivem, de exclusão e estigma, que não permite a seus personagens ter uma vida digna. Por outro lado, a superação de tantos problemas só poderiam ser vencidas por uma firmeza individual – lição que a filha do carteiro só percebe após se ver sem saída, o que a faz refletir:

O que era preciso tanto a ela quanto as suas iguais era educar o caráter, revestir-se de vontade, como possuía essa varonil dona margarida, para se defender de Cassis e semelhantes, e bater-se contra todos que se opusessem por este e aquele modo contra a elevação dela social e moralmente. Dona Margarida nos informa de um modelo a ser perseguido, não apenas de gênero, mas pelo o que ele qualifica de firmeza do caráter – e não por acaso esta personagem é europeia. Lima sugere que tais virtudes são inatas na personagem e nos outros, no do povo brasileiro, deveria ser educada. Sobre o contexto racial e de gênero, o autor nos informa também que as meninas vítimas de Cassi vivem o estigma, não apenas pela cor, mas também pela falta de informação, ou até mesmo formação. Lima Barreto, através de sua Clara, nos revela que a República que se instalou não projetara preparar o povo para o desenvolvimento desta “vontade firme”, e nem se preocupou em estender à cidadania aos populares. Todavia, o objetivo republicano através de suas políticas públicas (vacinação, reformas urbanas, etc.)e da repressão ao operariado era a de construção da ordem, de civilizar e controlar a massa de trabalhadores. Sobre os aspectos deste período republicano, Lima Barreto se preocupou em demonstrar sua reflexão sobre esta realidade da nação. De acordo com Nicolau Sevcenko, Lima pertencia ao rol dos intelectuais

(13)

que enfatizavam “alternativamente tanto as virtudes sociais da plena liberdade de iniciativas, como a conveniência de uma ação centralista coercitiva, desde que rigorosamente inspirada numa concepção analítica positiva das regularidades e necessidades do meio social.”

Literatura, História, Raça e Gênero

Segundo P. Ricoeur, de acordo com a leitura que fazemos da ficção, pode-se produzir frutos de revelação e transformação da vida. Destarte, a literatura pode estabelecer uma mediação entre o mundo fictício e o mundo efetivo do leitor. Longe de percebermos a literatura como uma narrativa histórica, seu jogo de construções e representações pode fornecer um arquétipo cultural de determinado período. A análise das representações deve vir acompanhada de outras fontes, que permitem uma percepção maior sobre o discurso do literato e suas obras. É significativo acompanhar a trajetória do autor e seu interesse pelas questões sociopolíticas.

Alguns intelectuais, como Sérgio Buarque de Holanda, sublinham o caráter de projeção individual na obra de Lima Barreto. Neste sentido, sua literatura estaria impregnada da sua trajetória de vida: a de um rapaz de “cor”, que teve oportunidade de viver com setores médios da republica e sentiu na pele o estigma racial. No entanto, Holanda argumenta que Clara dos Anjos tornou-se menos uma personagem do que do que um argumento vivo e um elemento para denúncia. Outros como Alfredo Bosi, levam em conta a questão da discriminação, porém sublinha que Lima foi um crítico mordaz da república que se instalara, sabendo-se em uma posição de “observado que se sabe vencido, mas não submisso à máquina social.” . Bosi assinala que o caráter crítico de Lima visava denunciar o mito da nação que a aristocracia no poder buscava construir: as camadas populares estavam excluídas da ágora liberal.

Além da denúncia social do autor, percebe-se uma crítica aos costumes, que estão relacionados às famílias dos personagens. Neste sentido, pode-se observar os papéis de gênero reservados as mulheres de “cor” moradores do subúrbio neste contexto de transição para os valores burgueses da vida republicana.

Os postulados da “família higiênica” de Clara são afrontados pelo desregramento e malandragem de Cassi. Para os higienistas, a mulher “nasceu para a maternidade” e o homem para o trabalho, para ser o “chefe da família”. O amor é o grande elo em tal discurso, mas sobretudo como um estandarte moral. Jurandir Freire da Costa assinala que, inserido nesta lógica, o casamento inter-racial estava incluído, abrindo novas possibilidades conjugais para outras camadas sociais, pelo fato das teorias médicas brasileiras não explicitarem uma proibição. Dentro das divisões sexuais de papéis, fixou-se no homem a figura do pai e na mulher a da mãe. Por isso, a perseguição médica aos celibatários, libertinos, sifilíticos, prostitutas e “meninas perdidas”, ou seja a todos que contrariassem e se negassem ao cumprimento dos papéis modelos.

Podemos pensar que a não interdição do casamento vincula-se a ideologia do branqueamento, visto que a ideia de sociedade multirracial pertencia a um processo histórico que se remetia as nossas origens coloniais. Para Skidimore, o campo intelectual brasileiro do final do XIX e início do XX, embora se inspirasse nas teorias racista europeias e norte-americana, não podia negar o alto grau de miscigenação do povo brasileiro e nem pregar uma segregação institucionalizada como fizeram os EUA. Além do mais, “ao contrário dos EUA, em vez de duas castas (branca e não branca) havia uma terceira castas social bem reconhecida: o mulato.

De acordo com Skidmore o mulato seria um agente essencial dentro da hierarquia social e política, pois quanto mais clara sua tonalidade, maior aceitação no processo de ascensão social – norma que compõem a sociedade burguesa capitalista. Oracy Nogueira em seu clássico Preconceito de marca, relaciona a cor, e suas gradações, como marca social. Para o autor, dependendo da gradação de cor da pele, sua ascensão é possível ou não, as dificuldades são maiores para aqueles de pele mais escura. A estratégia do branqueamento, portanto, é uma forma de lidar com esta barreira racial, pois o branco é percebido como um elemento de melhoramento da raça.

Na visão de Lima Barreto, através de sua “Clara dos Anjos”, percebemos que embora legítima a ascensão, esta viria acompanhada por desconfianças e barreiras que impediriam o seu pleno desenvolvimento. Estes conflitos são retratados com a personagem Dona Salustiana que não admitia ver o filho casado com meninas de “cor”, compreende-se que, em sua visão, que as meninas que se envolveram sexualmente com Cassi e, em seguida, batiam na sua porta pedido reparação, estavam em busca de uma ascensão social que se concretizaria através dos laços matrimoniais – mácula inadmissível na sua linhagem familiar que descendia da nobreza inglesa como gostava de propagar: “ – Casado [ Cassi ] com gente dessa laia... qual! ... que diria meu avô, Lord Jones, que foi cônsul da Inglaterra em Santa Catarina – o que diria ele se visse tal vergonha? Qual!”

(14)

O olhar crítico de Lima Barreto frente à sociedade de seu tempo transparece na construção de várias de suas obras. No caso de Clara dos Anjos, esse olhar direciona-se, especialmente, para a questão do preconceito racial-social vivido por sua personagem principal e para o questionamento sobre a situação das mulheres do início do século XX.

Lima Barreto traça um perfil lamentável de sua protagonista: Clara era de formação débil, sem força e nem ideias, sua principal preocupação é preparar-se para um casamento, no qual o marido tomaria as decisões por ela. O autor critica, desta forma, a inércia na formação de Clara que, mesmo pertencendo a uma família de baixa renda, tinha sido educada dentro dos parâmetros burgueses vigentes no momento – valores que primavam pela sujeição da mulher ás ordens do marido, o provedor da casa. Os pais de Clara haviam cercado a menina de cuidados e atenções para que se preparasse para o esperado dia do casamento, assim não se preocuparam em instruí-la sobre a vida e muito menos ensinar um ofício a jovem, pois acreditavam não ser necessário, seu papel seria somente cuidar da casa e dos filhos quando estes viessem.

Lima Barreto não era necessariamente um defensor da causa feminista, ao contrário, como aponta Eliane Vasconcellos , ele tinha várias críticas ao movimento feminista e em alguns momentos chegou a colocar em dúvida a capacidade do sexo feminino. Embora, ele tivesse deslanchado críticas ao movimento feminista brasileiro, essas não miravam as mulheres, mas, como dissemos, seu alvo era a maneira como a sociedade as preparava, ricas ou pobres, para o futuro matrimônio. A imagem da imigrante Margarida – uma mulher forte, decidida, inimiga da inércia, delatora das injustiças sociais, e mesmo vivendo sem um marido (era viúva) mostrava-se capaz de trabalhar em inúmeras atividades e ainda conseguir educar seu filho, representava o protótipo da mulher ideal no imaginário do autor. O autor sugere que a educação dada as jovens brasileiras deveria se pautar no modelo de Margarida, ou seja, em mulheres mais independentes que não precisariam necessariamente de um casamento, de um marido, para enfrentarem as dificuldades cotidianas.

Somente a instrução poderia gerar mais mulheres ao estilo de Margarida que estariam aptas a resistirem a influência de homens ao estilo de Cassi; homens que buscavam as mulheres mais frágeis socialmente, justamente por saberem que sairiam impunes de seus atos, podendo desta forma, continuar a buscar novas “presas” para satisfazerem seus egos moldados por uma educação que lhes garantia como legítima o busca do prazer, sem assumirem compromissos matrimoniais.

Clara não foi instruída por seus pais que a deixaram alheia aos fatos da vida, sua cabeça era formada por sonhos e desta forma foi fácil ser seduzida pelas melodias das cantigas de Cassi. Somente no final do livro é que Clara consegue desnudar sua situação, mas isso foi feito a base da dor moral e da vergonha (valores sociais) que a cobriram ao perceber sua “ desonra” – o futuro planejado se manchava para sempre. Podemos entender que, para Lima Barreto, todo o drama vivido pelas inúmeras Claras teria outro final se o abandono social causado pela pobreza, o estigma “racial” ou a vigilância excessiva tivesse sido substituídos pelo esclarecimento e orientação franca que preparasse essas jovens para o enfrentamento da vida adulta.

5. O HD é HD! Precisa ser visto e lido. 6. O filme é filme! Precisa ser assistido. Boa Leitura.

Referências

Documentos relacionados

Estes resultados mostraram que, para aplicação como eletrólito sólido, a adição de até 5 % de alumina, em massa, na matriz de zircônia estabilizada na fase cúbica

A densidade da rede tambem parece in#uenciar o tempo de execuc~ao, o que pode justicar os tempos apresentados para redes completas, implicando um aumento do tempo dispendido para

Nos termos do artigo 17 do Regulamento do Novo Mercado, a caracterização do indicado ao Conselho de Administração como membro independente deve ser objeto de

SALIENTA a necessidade de medidas urgentes para pôr termo às importações na UE de madeira ilegalmente abatida, enquanto contributo para promover o desenvolvimento

Para os esqueletos ou restos ósseos semi-articulados, é sugerido que o tempo de exposição entre morte, necrólise, desarticulação e soterramento não tenha sido tão grande,

Por outro lado, considerando-se que o tamanho do governo exceda o nível ótimo (demonstrado na seção anterior), ou que os gastos governamentais sejam alocados de forma

“Porque quando um homem fala pelo poder do Espírito “Porque quando um homem fala pelo poder do Espírito Santo, o poder do Espírito Santo leva as suas palavras ao Santo, o poder

O empregador poderá, a seu critério, no período de 28/04/2021 a 26/08/2021, conceder férias coletivas a todos os empregados ou a setores da empresa e deverá notificar o conjunto