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A literatura em movimento (negro): Conceição Evaristo e a intelectualidade negra carioca ( )

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A literatura em movimento (negro):

Conceição Evaristo e a intelectualidade negra carioca (1982-2006)

BÁRBARA ARAÚJO MACHADO1 O presente trabalho decorre de uma pesquisa ainda em curso, cujas questões são a compreensão do papel da literatura na luta do movimento negro brasileiro e, em particular, a relação entre a trajetória de Conceição Evaristo, a organização da intelectualidade negra carioca e as estratégias por ela utilizadas visando à formação de uma identidade negra combativa e reivindicatória de direitos em uma sociedade dominada pela idéia hegemônica da democracia racial.2 Evaristo deixa clara em sua obra a preocupação de fazer emergir um discurso subalterno, através de personagens negras, pobres e mulheres. Sua trajetória militante acompanha as mudanças que caracterizaram o movimento negro brasileiro ao longo das últimas décadas. A análise dessa trajetória, dentro do contexto mais amplo do movimento e do cenário histórico brasileiro, feita em diálogo com a análise de sua obra e dos elementos constitutivos de seu discurso contra-hegemônico, pode contribuir para a compreensão das perspectivas e dos problemas enfrentados pelo movimento negro brasileiro.

Conceição Evaristo nasceu em 1946, em uma favela na cidade de Belo Horizonte, Minas Gerais. No início da década de 1970, após ter se formado em Letras, mudou-se para o Rio de Janeiro, onde testemunhou a intensificação de um movimento negro de caráter nacional. Nesse momento, assistia-se à luta dos negros norte-americanos por direitos civis e aos movimentos de descolonização dos países africanos, tendo ambos exercido grande influência no contexto brasileiro. Em 1982, a autora participou da fundação do grupo Negrícia – poesia e arte de crioulo, composto por Éle Semog, Deley de Acari, Hélio de Assis, dentre outros artistas atuantes nos movimentos sociais do Rio de Janeiro. O grupo realizava recitais de textos literários em favelas, presídios, bibliotecas públicas, etc., além de manter relações com outras organizações artísticas e políticas do movimento negro pelo país, tendo organizado três encontros nacionais de escritores negros.A atuação do Negrícia foi perdendo intensidade até ser interrompida no final dos anos

1 Mestranda em História Social da Universidade Federal Fluminense e bolsista CAPES.

2 Consideramos a fase contemporânea do movimento negro o período entre a criação do Movimento Negro Unificado em 1978 até os dias atuais (cf. DOMINGUES, 2007). Acreditamos que, apesar das importantes mudanças ao longo desse tempo, os pressupostos fundamentais estabelecidos na criação MNU ainda orientam a militância negra atualmente, possibilitando que utilizemos tal periodização.

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1980.3 Com as relações estabelecidas através do grupo, Conceição Evaristo publicou seu primeiro texto, em 1990 – um poema que compôs o décimo terceiro volume dos Cadernos Negros, editados pelo grupo Quilombhoje, de São Paulo, onde seguiu publicando poemas e contos durante os próximos anos. A escritora publicou ainda dois romances, Ponciá Vicêncio (2003) e

Becos da Memória (2006), e a coletânea Poemas de recordação e outros movimentos (2008). A

partir da década de 1990, a militância de Evaristo passou a se dar muito mais no âmbito acadêmico. A autora fez-se mestre em Literatura Brasileira pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro em 1996 e doutora em Literatura Comparada pela Universidade Federal Fluminense em 2011, produzindo uma reflexão teórica própria sobre literatura negra brasileira e literatura africana (EVARISTO, 1996, 2005). Sobre sua relação com a academia e o propósito de sua obra, ela afirma que sua presença na universidade só faz sentido na medida em que associa academia e militância. Segundo ela, enquanto local de produção de saber – “e aí a gente vincula saber a poder” – a teoria deve servir ao propósito “de estar modificando um pouco a ordem das coisas” (EVARISTO, 2010, p. 7). Essa transformação da “ordem das coisas” só dá a partir do momento em que vozes dissonantes se tornam produtoras do saber escrito, do saber acadêmico:

Porque quem dita o cânone com certeza não é o pobre, não é o negro, não é o índio, não é a mulher, entende? Então eu acho que essas vozes, elas são necessárias dentro do espaço acadêmico pra gente até tornar essa academia realmente mais democrática, onde todos saberes serão considerados importantes, serão assumidos com a mesma receptividade. (EVARISTO, 2010, p. 7)

Lembrando que o acesso à literatura e a escrita é um direito e uma demanda popular, a autora avalia sua obra como uma demonstração de que não só é possível, mas necessário conquistar esse direito: “Eu acho que quando uma mulher do povo, uma mulher que nasce num espaço que é marcado justamente por relações de subalternidade, quando essa mulher rompe com esse espaço pra se colocar num outro lugar, que não é o lugar que é reservado pra ela (...), eu acho que isso já é um ato de insubordinação” (EVARISTO, 2010, p. 8).

É importante, nesse ponto, delinear em linhas gerais o quadro teórico que orienta a pesquisa. E. P. Thompson chama atenção para o caráter de disputa inerente à cultura, entendida

3 As informações sobre a história do grupo constam nas entrevistas realizadas com alguns de seus fundadores: Deley de Acari, Ele Semog e Conceição Evaristo (cf. bibliografia).

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muitas vezes sob uma perspectiva que o autor considera “ultraconsensual”, que “pode distrair nossas atenções das contradições sociais e culturais, das fraturas e oposições existentes dentro do conjunto”. Para ele, a cultura se trata de “uma arena de elementos conflitivos que somente sob uma pressão imperiosa – por exemplo, o nacionalismo, a consciência de classe ou a ortodoxia religiosa predominante – assume a forma de um ‘sistema’” (THOMPSON, 1998, p. 17). Essa visão da cultura como um campo de disputas remete à concepção gramsciana de hegemonia. Para Gramsci, a hegemonia está no âmbito da sociedade civil (conjunto de organismos privados, em oposição à sociedade política, expressa no Estado) e pode ser definida como o “consenso ‘espontâneo’ dado pelas grandes massas da população à orientação impressa pelo grupo fundamental dominante à vida social, consenso que nasce ‘historicamente’ do prestígio (e, portanto, da confiança) obtido pelo grupo dominante por causa de sua posição e de sua função no mundo da produção” (GRAMSCI, 2006, p. 21.). Na construção da hegemonia, os intelectuais orgânicos têm papel fundamental. Segundo o autor, “todo grupo social (...) cria para si, ao mesmo tempo, organicamente, uma ou mais camadas de intelectuais que lhe dão homogeneidade e consciência da própria função, não apenas no campo econômico, mas no campo intelectual e político” (GRAMSCI, 2006, p. 15) Assim, os intelectuais orgânicos estão associados a um grupo subalterno ou ao dominante, e atuam na construção de um consenso hegemônico de dominação ou na disputa pela construção de uma outra hegemonia, pautada pelos dominados. Consideramos Conceição Evaristo como uma intelectual orgânica na medida em que se associa a um grupo social específico, subalternizado, e se insere ativamente “na vida prática, como construtor, organizador, ‘persuasor permanente’, já que não apenas orador puro” (GRAMSCI, 2006, p. 53).

Para o escritor e pesquisador da literatura negra Cuti, “a literatura é poder, poder de convencimento, de alimentar o imaginário, fonte inspiradora do pensamento e da ação”(CUTI, 2010, p. 12). Partimos, portanto, do pressuposto de que a literatura não é mero reflexo da sociedade, mas tem com ela uma relação de caráter dialético, sendo também um elemento transformador da realidade. Tendo isso em vista, acentuamos o caráter político e militante da literatura negra, que vem sendo historicamente produzida no sentido de subverter o lugar de subalternidade que o racismo reserva à população negra em nossa sociedade.4 Nesse processo de

4 Especialistas em literatura negra remontam suas origens no Brasil ao século XIX. Autores como Zilá Bernd e Domício Proença Filho consideram Luís Gama (1830-1882) como o “discurso fundador” e o “pioneiro da atitude compromissada” com os valores da negritude na literatura (BERND, 1988 e PROENÇA FILHO, 2004). Por sua vez,

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subversão, os negros passam de meros objetos históricos e literários a sujeitos, agentes de sua própria história, donos de seu próprio discurso. Podemos relacionar esse movimento de retomada da subjetividade da população negra que a literatura negra pretende operar com a percepção marxiana do papel da arte na vida dos homens.

Embora Marx não tenha desenvolvido explicitamente uma teoria da cultura, é possível observar em sua obra a importância da atividade humana sensível na modificação da realidade e da existência material da subjetividade dos homens. É através da arte que Marx busca muitas vezes “o potencial de (auto)realização humana que a divisão social do trabalho, engendrando a alienação, obstaculiza”. A superação desse obstáculo possibilitaria ao homem “reconciliar sua subjetividade com a objetividade do mundo dos objetos socialmente produzidos, afirmando-se no mundo objetivo com todos os seus sentidos humanos” (MATTOS, s.d., p. 115). Consideramos, portanto, que a arte não depende passivamente da realidade social, mas é um dos elementos que atua em sua múltipla determinação. Assim como E. P. Thompson, afirmamos “seu papel ideológico, sua agência ativa na transformação dos seres humanos e da sociedade como um todo” (THOMPSON apud WILLIAMS, 1979, pp. 282-283).

Por fim, a noção de “campo” de Pierre Bourdieu é capital para localizar Conceição Evaristo dentro das diversas dinâmicas específicas na qual esteve inserida, além do contexto histórico mais amplo. Segundo Bourdieu, entre o conteúdo textual de uma produção cultural e contexto histórico macrocósmico “existe um universo intermediário que chamo o campo

literário, artístico, jurídico ou científico, isto é, o universo no qual estão inseridos os agentes e as instituições que produzem, reproduzem ou difundem a arte, a literatura ou a ciência” (BOURDIEU, 2004, p. 20). O conceito de “trajetória” formulado pelo autor também perpassa o trabalho na medida em que se opõe ao que ele chama de “ilusão biográfica”. Bourdieu define a trajetória como uma “série de posições sucessivamente ocupadas por um mesmo agente (ou mesmo grupo) num espaço que é ele próprio um devir, estando sujeito a incessantes transformações” (BOURDIEU, 2006, p. 189), sugerindo que se entendam os acontecimentos biográficos como “colocações” e “deslocamentos” nos campos sociais. Para ele, é necessário para construir os estados sucessivos do campo na qual determinada trajetória se desenrolou e o conjunto de relações objetivas do agente dessa trajetória com os demais agentes envolvidos no Eduardo de Assis Duarte propõe que, além de um “pai” da literatura afro-brasileira, encontramos na escritora negra Maria Firmina dos Reis (1825-1917), autora de Úrsula, uma “mãe” (DUARTE, 2005.).

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campo (BOUDIEU, 2006, p. 190). Embora não pretenda seguir estritamente o complexo aparato teórico de Bourdieu, esses conceitos ajudam a orientar metodologicamente a pesquisa.

Considerando que este trabalho está em estágio inicial, apresentarei aqui algumas hipóteses que vem se desenvolvendo e complexificando no decorrer da pesquisa. Embora tenha começado a escrever desde jovem e tenha travado contato com o movimento negro desde a década de 1970, é a partir de seu ingresso no grupo Negrícia em 1982 que Conceição Evaristo passa a militar ativamente no movimento negro. O Negrícia pode ser considerado como um aparelho privado de hegemonia que reunia diversos intelectuais orgânicos do movimento negro. Embora a questão racial fosse o ponto central da militância, a questão de classe encontrava-se evidente entre as preocupações desses intelectuais: os membros fundadores do grupo são membros da classe trabalhadora, tendo nascido e vivido em favelas e periferias de suas cidades. Éle Semog, por exemplo, afirma ter tido uma formação política socialista antes mesmo de uma formação específica relativa ao movimento negro (SEMOG, 2012). De todo modo, creio que é possível identificar na década de 1980 uma primeira fase da militância de Conceição Evaristo, cuja atuação política se dava de forma mais “concreta”, no sentido de que a autora estava presente fisicamente em saraus, leituras de poesia e debates em espaços populares, em diálogo direto com seu público alvo: a população negra, entre militantes e aqueles que se pretendiam conscientizar para a militância.

Num segundo momento, que coincide com o fim do grupo Negrícia, com a publicação de seu primeiro texto nos Cadernos Negros e com seu ingresso no mestrado, Evaristo passa a ter uma atuação mais significativa dentro da academia. Do campo intelectual mais amplo, a luta simbólica da autora passa para o campo acadêmico. É possível pensar essa disputa tanto em termos gramscianos, como já era possível fazer claramente na fase anterior, mas também considerando as especificidades do campo acadêmico no sentido empregado por Bourdieu, no qual o capital intelectual e as disputas simbólicas aparecem talvez com mais voracidade do que na militância nas ruas, onde havia um aparelho privado de hegemonia de caráter coletivo. Nesse segundo momento, Conceição Evaristo se individualiza na militância, ao mesmo tempo em que ascende no campo intelectual: a autora, principalmente na última década, tem ganhado cada vez mais destaque como escritora negra brasileira, tendo se tornado não apenas o nome mais

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conhecido dentre os membros do extinto grupo Negrícia, mas uma das grandes referências na história da literatura negra brasileira.5

O caráter acentuadamente acadêmico da atuação de Conceição a partir da década de 1990 pode ser relacionado ao contexto mais amplo do movimento negro. Se nos anos 1980 o movimento era mais forte nas ruas, na década seguinte, principalmente a partir da nova Constituição Civil de 1988, as lutas parecem ter passado a ser travadas principalmente em marcos institucionais, tendo as movimentações nas ruas ficado menos evidentes. Com a incorporação de determinadas demandas na constituição, o movimento passou a cobrar a aplicação dessas medidas e sua ampliação. É o caso da mobilização das comunidades remanescentes de quilombos, que vêm reivindicando a titulação das terras em que vivem através do artigo 68 do Ato das Disposições Transitórias da Constituição Federal de 1988. Outro ponto de fundamental importância para o movimento tem sido as ações afirmativas. Em 2002, a realização da III Conferência Mundial contra o Racismo, Xenofobia e Intolerâncias Correlatas, ocorrida em Durban, na África do Sul, introduziu a questão das cotas raciais para o ingresso em universidades públicas. Alberti e Pereira afirmam que essa questão “se transformou, nos últimos quatro anos, em uma bandeira do movimento negro capaz de aglutinar as demais reivindicações e mobilizar diferentes ações do Estado e da sociedade civil” (ALBERTI; PEREIRA, 2006, p. 143). Outra grande conquista do movimento foi a lei 10.639/03 altera a lei 9.394/96, que estabelece as Diretrizes e Bases da Educação Nacional, e determina a obrigatoriedade do ensino de história e cultura afro-brasileira e africana nas escolas do Brasil. Nesse contexto, o romance Ponciá

Vicêncio figura na bibliografia indicada para o vestibular da Universidade Federal de Minas Gerais, fato revelador da importância que a obra de Conceição Evaristo assumiu na disputa hegemônica que o movimento negro tem travado.

Quanto à obra da autora, podemos destacar a importância das noções de oralidade e, centralmente, da noção de memória. Ela chega a afirmar que todo seu trabalho de escritora consiste em perseguir vestígios de memória para recompor uma história perdida:

“O que a minha memória escreveu em mim e sobre mim, mesmo que toda a paisagem externa tenha sofrido uma profunda transformação, as lembranças, mesmo que esfiapadas, sobrevivem. E na tentativa de recompor esse tecido esgarçado ao longo do tempo, escrevo. Escrevo sabendo que estou perseguindo uma sombra, um vestígio talvez. E como a memória é também vítima do esquecimento, invento, invento.

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Inventei, confundi Ponciá Vicêncio nos becos de minha memória. E dos becos de minha memória imaginei, criei.” (EVARISTO, 2009, p. 5, grifo nosso)

Os “becos de minha memória” aos quais Conceição faz referência tratam-se de seu último livro publicado, Becos da Memória. O livro conta a história dos moradores de uma favela em processo de remoção. A narração é feita a partir da perspectiva da menina Maria-Nova, que ouvia atentamente as histórias dos mais velhos, pensando que “quem sabe escreveria esta história um dia? Quem sabe passaria para o papel o que estava escrito, cravado e gravado no seu corpo, na sua alma, na sua mente” (EVARISTO, 2006, p. 138). A semelhança do desejo de Maria-Nova de escrever uma nova história dos negros, que ela ouvia e via em casa e nas ruas, mas que diferia da história contada na escola, com o trabalho de Conceição Evaristo como escritora, explica-se por esse confundir-se da autora com seus personagens. O colhimento da memória ancestral, tão essencial para Conceição e para Maria-Nova, também aparece em Ponciá Vicêncio, que mesmo escutando diversas vezes as mesmas histórias, “ouvia tudo como se fosse pela primeira vez. Bebia os detalhes remendando cuidadosamente o tecido roto de um passado, como alguém que precisasse recuperar a primeira veste para nunca mais se sentir desamparadamente nua” (EVARISTO, 2003, p. 63, grifo nosso). Conceição parece muitas vezes falar através de suas protagonistas, utilizando inclusive a mesma metáfora dos vestígios de memória como um tecido puído a ser recuperado, tanto no texto de Ponciá como em seu depoimento pessoal.

É interessante notar que tanto Maria-Nova, através da escrita, quanto Ponciá Vicêncio, em seu trabalho com o barro, expressam a memória ancestral através da arte. Conceição Evaristo metaforiza assim seu fazer literário, revelando a importância que atribui à criatividade e à expressão artística na luta dos negros por seu lugar na sociedade e na história. Em Ponciá

Vicêncio, o irmão de Ponciá, Luandi Vicêncio, acredita que os trabalhos de barro feitos por Ponciá e sua mãe “contavam parte de uma história. A história dos negros talvez” (EVARISTO, 2003, p. 126). No caso de Ponciá, a memória tem lugar central não apenas na construção de uma história perdida, mas na construção de uma identidade fragmentada. Talvez por isso sua expressão criativa seja tão urgente: quando Ponciá Vicêncio deixa de trabalhar o barro, seus dedos coçam até sangrar, tornando física – e lacerante – sua necessidade de expressão.

Conceição Evaristo desenvolve a narrativa de Ponciá Vicêncio de forma não linear, entrelaçando o passado e o presente através das memórias e devaneios da protagonista, embora os outros personagens também tenham lugar de fala. Tomada por momentos de “ausência de si

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mesma”, Ponciá Vicêncio vai mergulhando cada vez mais profundamente em sua memória ao passar das páginas:

“Nas primeiras vezes que Ponciá Vicêncio sentiu o vazio na cabeça, quando voltou a si, ficou atordoada. O que havia acontecido? Quanto tempo tinha ficado naquele estado? Tentou relembrar os fatos e não sabia como tudo se dera. Sabia apenas que, de uma hora para outra, era como se um buraco abrisse em si própria, formando uma grande fenda, dentro e fora dela, um vácuo com o qual ela se confundia.” (EVARISTO, 2003, p. 45)

Nesses momentos de vazio, de “profundo apartar-se de si”, Ponciá Vicêncio se perdia nos domínios da memória: “Às vezes, era um recordar feito de tão dolorosas, de tão amargas lembranças, que lágrimas corriam sobre o seu rosto; outras vezes, eram tão doces, tão amenas as recordações que de seus lábios surgiam sorrisos e risos” (EVARISTO, 2003, p. 92). Através desses momentos, o leitor se vê envolvido em um processo de construção da história através da busca por vestígios similar àquele descrito por Conceição ao falar de sua escrita.

É interessante notar o quanto autores que se utilizam de referenciais teóricos pós-modernos parecem adequados para analisá-la. Minha hipótese é de que autores como Stuart Hall (2009) e Paul Gilroy (2001) e suas formulações sobre identidades, identificação, memória e diáspora negra funcionam bem para entender os textos de Evaristo porque a autora, como acadêmica, está em contato direto com essa teoria e nutre por ela grande simpatia. Na entrevista concedida por ela, há grandes indícios de uma opção pelos estudos pós-coloniais, com sua proposta de retirada do foco eurocêntrico do conhecimento e emergência de saberes considerados periféricos.

No caso de Ponciá Vicêncio, analisado por mim anteriormente, verifica-se o aspecto fragmentado da identidade, que é trabalhada enquanto processo e não como dado estanque. Esse caráter de fragmentação torna-se ainda mais evidente ao considerarmos a forma fragmentária que o romance assume, sendo a história de Ponciá contada através de vestígios de memória, bem como a questão da diáspora africana, presente em Ponciá. A noção de identidade diaspórica, associando as idéias de Hall ao conceito de diáspora desenvolvido por Gilroy aparece nesse contexto como solução precisa para uma análise da obra.

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Defensor de um novo conceito de diáspora, Paul Gilroy considera que é fundamental “atribuir similar importância a raízes e rotas”, isto é, à rememoração do passado e da ancestralidade e à criação cultural feita a partir da reconstrução dessa memória (GILROY, 2001, p. 352). Assim, pare ele, devemos atentar para as expressões culturais negras que “optaram por aderir à fragmentação do eu (...) que a modernidade parece promover”, afastando-se de noções essencialistas de identidade e raça (GILROY, 2001, p. 352). A partir das experiências da escravidão e da diáspora, “as culturas do Atlântico negro criaram veículos de consolação através da mediação do sofrimento” (GILROY, 2001, p. 13). Nesse sentido, as expressões artísticas dos povos da diáspora negra, ao combinar dor e prazer, teriam se tornado “o meio tanto para a automodelagem individual como para a libertação comunal” (GILROY, 2001:100). É justamente essa operação que verificamos em Ponciá Vicêncio.

Vale, por fim, uma análise breve do poema “Recordar é preciso”, que abre a coletânea de poemas de Conceição Evaristo:

“O mar vagueia onduloso sob os meus pensamentos A memória bravia lança o leme:

Recordar é preciso.

O movimento vaivém nas águas-lembranças dos meus marejados olhos transborda-me a vida, salgando-me o rosto e o gosto.

Sou eternamente náufraga,

mas os fundos oceanos não me amedrontam e nem me imobilizam.

Uma paixão profunda é a bóia que me emerge.

Sei que o mistério subsiste além das águas.” (EVARISTO, 2010, p. 9)

Esse poema apresenta concisamente a questão da identidade diaspórica e da memória do sofrimento, que são centrais em toda a obra de Evaristo. Os pensamentos do eu-lírico estão sobre o mar – o provável oceano Atlântico, líquido espaço entre uma África mãe e o continente americano – e é justamente a memória a possibilidade de alguma estabilidade nesse contexto de liquidez: é ela quem lança o leme e, por isso, recordar é preciso. Outro elemento interessante é a coincidência entre mar e lágrima, entre o ser diaspórico e o sofrimento. Contudo, o desfecho do poema deixa claro que essa fragmentação identitária que foi impingida aos negros da diáspora

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(serem eternamente náufragos), apesar de causar sofrimento, não os imobiliza. Pelo contrário, uma paixão profunda, que ouso ler como a necessidade de expressão subjetiva dos seres humanos à qual Marx se refere, surge para emergir o eu-lírico desse mar de instabilidade. O poema, portanto, é um convite poético à luta política pela retomada de sua subjetividade e pela negação da objetificação dos negros que o racismo opera.

Assim, adotar uma perspectiva teórica materialista histórica não significa abandonar essa chave de análise, mas entendê-la através do escopo da determinação histórica. Partir do pressuposto marxiano de que a consciência é determinada pela existência inviabiliza o acordo com uma noção de identidade etérea, mas por outro lado nos revela que a produção intelectual de Conceição Evaristo está necessariamente ligada ao mundo material no qual se insere, que inclui condições concretas de existência, como a vivência na favela e a experiência do preconceito racial, mas também as idéias e formulações teóricas com a qual estabelece contato em sua vivência acadêmica. Ademais. afirmar que a consciência humana é determinada não significa dizer que não há espaço para a criatividade, para a subjetividade, para a poesia. Talvez seja isso o mais interessante na obra literária de Conceição Evaristo: uma produção historicamente determinada e profundamente política pode ser extremamente poética e bela.

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