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A constituição psíquica do bebê frente a impossibilidade de sustentar a articulação simbólica parental

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Academic year: 2021

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DEPARTAMENTO DE HUMANIDADES E EDUCAÇÃO – DHE

RAQUEL DICKEL

A CONSTITUIÇÃO PSÍQUICA DO BEBÊ FRENTE A IMPOSSIBILIDADE DE SUSTENTAR A ARTICULÇÃO SIMBÓLICA PARENTAL

Ijuí 2014

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AGRADECIMENTOS

Aos meus filhos, pelo tempo em que estive ausente para trabalhar na escrita dessa pesquisa.

Ao meu marido, que esteve sempre ao meu lado, que me escutou e me acompanhou durante todo o percurso.

A professora Angela Maria Schneider Drügg que aceitou o desafio da escrita desse trabalho.

E a professora Elisiane Felzke Schornardie que aceitou ser a minha banca.

E a todos os colegas da clínica que acreditaram no meu trabalho e que me deram muita força nesse momento.

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RAQUEL DICKEL

A CONSTITUIÇÃO PSÍQUICA DO BEBÊ FRENTE A IMPOSSIBILIDADE DE SUSTENTAR A ARTUCULAÇÃO SIMBÓLICA PARENTAL

Monografia apresentada ao curso de Psicologia da Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul – Unijuí – para obtenção do título de graduada em Psicologia.

Orientador: Angela Maria Schneider Drügg

Ijuí 2014

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Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul – Unijuí Departamento de Humanidades e Educação – DHE

Curso de Psicologia

CONSTITUIÇÃO PSÍQUICA DO BEBÊ ANTE A IMPOSSIBILIDADE DE SUSTENTAR A ARTICULAÇÃO SIMBÓLICA PARENTAL

RAQUEL DICKEL

Banca Examinadora:

________________________________________________ Elisiane Felzke Schornardie

_________________________________________________ Angela Maria Schneider Drügg

Ijuí dezembro 2014

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“Um bebê é uma coisa morna e pequenina, carente de um passado próprio e repleto de promessas de futuro” (Elsa Coriat).

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RESUMO

Reconhecendo a importância de estudar a constituição psíquica do bebê como um tempo primordial na vida de qualquer sujeito, este trabalho tem como objetivo questionar, juntamente com a psicanálise, a constituição psíquica de um bebê quando, por algum motivo, o saber familiar claudica e quando a articulação simbólica que a família sustenta não tem a possibilidade de ser transmitida. Partimos, portanto, do pressuposto de que a clínica de bebê, sendo interdisciplinar, tem como objetivo o restabelecimento da transmissão desse saber familiar à restauração dos laços rompidos, ou, ainda, que incidiram com baixa sustentação. A clínica de Estimulação Precoce, como clínica que trabalha com bebês e pequenas crianças com alguma especificidade ou sindrômica, vem para auxiliar na ressignificação desse processo constitutivo por meio da transferência com os pais, busca articular o circuito do desejo, restabelecer a demanda e recolocá-lo ante ao Outro. A Estimulação Precoce busca o caminho de acesso ao simbólico mediante a reconstrução do saber familiar, em que o bebê tenha a possibilidade de ser inscrito em uma filiação.

Palavras-chave: Constituição psíquica do bebê. Função materna. Estádio do espelho. Narcisismo. Ideal parental.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ... 7

1 – A CONSTITUIÇÃO PSIQUICA DO BEBÊ ... 9

2 – A CLÍNICA DO BEBÊ ... 23

3 – RELATO DE UMA EXPERIÊNCIA ... 33

CONSIDERAÇÕES FINAIS ... 37

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INTRODUÇÃO

Com esse escrito reflete-se o nascimento de um bebê de forma peculiar. Nascimento na forma mais rigorosa do seu significado, pois é disso que precisamos falar, do nascimento, do aparecimento, do advento de um bebê humano; bebê como primeiro tempo na vida de um ser humano; tempo primordial que admite os limites do possível e do impossível na constituição de um sujeito do desejo; primordial no sentido das primeiras experiências de satisfação e insatisfação, da inscrição da linguagem e do contato com o discurso social.

Para o aprofundamento dessa questão será realizada uma pesquisa com o desenvolvimento de três Capítulos. O primeiro fará uma retomada teórica da psicanálise sobre a constituição psíquica do bebê, pensando as articulações que tornam possível esta montagem. Com o apoio de leituras diversas faz-se uma reflexão sobre o primeiro tempo de alienação do bebê em relação a sua mãe. Tal alienação é vista como um tempo imprescindível para a constituição de um sujeito, tempo em que o bebê se faz corpo pelo corpo do outro, se faz desejante pelo desejo do outro. A separação é caracterizada como outra operação constitutiva que retira a criança da posição de objeto fálico de sua mãe. A criança tem a possibilidade de se constituir sujeito de desejo quando a mãe suporta a posição de não “ser toda” para o seu bebê.

No segundo Capítulo a intenção da pesquisa é refletir sobre a súbita notícia do nascimento de um filho com alguma particularidade e todos os efeitos produzidos no ideal do casal parental. A especificidade do recém-nascido propõe elucidar a clínica infantil de Estimulação Precoce que trabalha diante dessa problemática. Como essa clínica infantil pensa e trabalha esse momento tão melindroso? De que forma as operações constitutivas se

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organizam a partir desse momento? A pesquisa procura investigar a clínica de Estimulação Precoce amparada teoricamente na psicanálise e promover diálogos teóricos que elucidam o trabalho dessa clínica diante dessa problemática.

Certamente buscaremos entender como o bebê se constitui quando a articulação do saber simbólico familiar claudica ante a chegada desse recém-nascido com alguma especificidade.

O terceiro Capítulo apresentaremos o relato de uma experiência- O Caso Ane-, uma pequena criança que chega para atendimento com 1 ano e quatro meses, com problemas de desenvolvimento ocasionados por uma gestação com várias intercorrências hospitalares. Ane chega com sua mãe em busca de algumas respostas frente ao seu desenvolvimento que vem acontecendo em um tempo que a mãe não reconhece.

O trabalho finaliza com as considerações finais, certamente para poder refletir sobre a pesquisa feita e considerar os pontos significativos. As referências bibliográficas para situar por onde e com quais autores transitamos para elaborar tal pesquisa.

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1 – A CONSTITUIÇÃO PSÍQUICA DO BEBÊ

A história de vida de um bebê vem sendo escrita mesmo antes do seu nascimento. Ele é imaginado e desejado pelos seus pais nas referências encontradas no discurso parental, o que origina um lugar psíquico no desejo desse casal. A sua estruturação depende do Outro1 primordial, encarnado na mãe ou naquele que possibilita a função materna que, por meio do seu discurso simbólico,2 opera sobre o corpo e o psiquismo. É a partir do simbólico que se inscreverá as marcas investidas e impulsionadas pela via do desejo,3 que tornará possível a constituição psíquica do bebê.

Toda a sua história vem sendo tecida desde quando a sua mãe brincava de ser mãe. São os primeiros sinais do desejo de uma futura maternagem. A criança brinca, imagina e organiza cenas de atuação de uma mãe. Brinca para que futuramente possa ser. Isso nos remete a quando começa a idealizar a sua maternagem, ao tempo em que o filho ideal começa a ser desejado.

Quando nasce uma criança essa é igualada a um pedaço de carne, algo simplesmente corpo. Para que esse corpo possa advir como um sujeito, é necessário que um outro primeiro esteja disposto a inseri-lo no mundo. Inseri-lo no meio, em um lugar, na família. A família é que proporciona situá-lo em um lugar no mundo. Mesmo antes do seu nascimento, ele já possui um nome e um lugar na família. Lugar esse organizado no espaço psíquico dos pais, por intermédio do seu desejo, quando ele não será um simples corpo, mas aquele filho imaginado, desejado e simbolizado por eles.

1 Outro com letra maiúscula designa o lugar do significante, segundo Lacan diferente do outro

semelhante, com quem se estabelece relações imaginárias. Outro é o lugar em que situa a cadeia do significante que comanda tudo que vai poder presentificar-se do sujeito, é o campo desse vivo onde o sujeito tem de aparecer (LACAN, 1998, p. 193).

2 Termo empregado por Lacan em 1998 para apontar um sistema de representação organizado pela

linguagem, pelo signo e pelo significante que indica o sujeito (ROUDINESCO; PLON, 1998 p. 714).

3 Freud emprega no contexto da teoria do inconsciente, com a realização de um anseio. Lacan emprega a

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Assim, o bebê, ao nascer, já possui um lugar que o nomeia e o identifica. Ele tem uma história que está determinada pelo desejo dos seus pais. Ao nascer, chega envolto pela linguagem, palavras recheadas de significação, que vão demarcando e escrevendo no seu corpo o simbólico para que possa deixar de ser simplesmente corpo.

A mãe, encarnada no Outro primordial e atravessada pelo seu discurso recheado de significantes, inscreve nesse corpo marcas para que seja possível o surgimento de um sujeito.4 Todo bebê, ao nascer, precisa desse Outro para se constituir. Para que isso aconteça, o Outro primordial precisar estar “disponível”, ou seja, possibilitar a rede de significantes necessários para o seu advir como sujeito; significantes que a mãe traz por meio da sua própria história. Todo sujeito é sempre um receptáculo de toda a sua história, que perpassa a dos seus pais.

Para Freud (2010), o ideal que os pais criam em relação aos seus filhos constitui a representação do seu próprio narcisismo há muito tempo abandonado. O amor dos pais pelos filhos é referido por Freud como narcísico.5 “O amor dos pais, comovente e no fundo tão infantil, não é outra coisa senão o narcisismo dos pais renascido, que na sua transformação em amor objetal revela inconfundivelmente a sua natureza de outrora” (Freud, 2010, p. 37).

Verifica-se a preparação dos pais em relação ao filho ideal; a busca imaginariamente da criança maravilhosa, aquela que acreditamos não termos sido para os nossos pais. O narcisismo dos pais se estabelece em relação à espera do filho ideal. Espera-se que ideais não alcançados pelos pais sejam atingidos pelo filho. Entrega-se ao filho toda a perfeição possível. Nesse ideal parental a criança está sempre no lugar de sua majestade – o bebê – “His magesty the baby”.6 Para ele, as faltas serão supridas e todas as dificuldades e renúncias que os pais passaram terão que ser eliminadas. O filho terá uma vida melhor que a dos seus pais, e passará por ela revogando os preceitos que se colocam como obstáculos.

4 Freud emprega o termo, mas é Lacan quem, entre 1950 e 1965, conceitua a noção lógica e filosófica do

sujeito na teoria do significante, transformando o sujeito da consciência em sujeito do inconsciente da ciência e do desejo (ROUDINESCO; PLON, 1998, p. 742).

5 Termo mencionado por Freud pela primeira vez em 1909 numa reunião da Sociedade Psicanalítica de

Viena.

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Segundo Levin (1997, p. 31), “No ideal parental não há lugar para sequer imaginar que o filho venha a enfrentar renúncia à vontade própria, doenças ou o encontro com qualquer das necessidades pelas quais os pais foram obrigados a passar”.

Ela deve concretizar os sonhos não realizados dos seus pais, tornar-se um grande homem ou herói no lugar do pai, desposar um príncipe como tardia compensação para a mãe. No ponto mais delicado do sistema narcísico, a imortalidade do Eu, tão duramente acossada pela realidade, a segurança é obtida refugiando-se na criança (FREUD, 2010, p. 37).

A articulação dos significantes do casal parental é que possibilitará o acesso da criança à complexa estrutura simbólica. Autorizam, portanto, os movimentos para que a criança se aproprie do corpo e permitem à criança constituir seus traços subjetivos a partir das experiências com as pessoas que são significativas para ela. Tais aquisições comportam tanto os aspectos estruturais7 quanto os instrumentais.8 Os aspectos estruturais instituem uma relação de trocas entre si, o que acarretará, nesse processo, o aparecimento das características instrumentais que serão singulares para cada criança. A criança somente se reconhecerá e se apropriará de si por meio dessas articulações.

Os sujeitos envolvidos nesse processo marcarão a trajetória de vida desse bebê. São as ações significantes registradas pelo bebê que tomarão um caráter prazeroso ou não. O universo da criança ficará marcado pelo discurso já existente do casal parental; discurso esse que representa o discurso do Outro, repleto de significantes.

É a mãe quem demarcará o corpo do seu bebê por meio da sua voz, do seu toque e do seu olhar. É ela quem possibilitará sentidos e significações e proporcionará um mapeamento desse corpo, um recorte. Esse corpo será marcado e suas zonas erógenas reconhecidas. É a mãe, ou aquele encarnado na função materna, quem ativa o circuito pulsional. Ela procura, por intermédio do toque, fazer a distinção entre tocar a mão e tocar os órgãos genitais do seu bebê. O toque com distinção é que possibilita o reconhecimento do corpo e a

7 Os aspectos estruturais envolvem a estrutura orgânica, subjetiva e cognitiva.

8 Aspectos instrumentais seriam as ferramentas que o sujeito utiliza para fazer os seus intercâmbios com o

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diferenciação. Isso ocorre em um tempo primeiro na vida do bebê, tempo de uma simbiose inicial, necessária para a saída de um corpo puro carne para o advir de um sujeito de desejo.

As primeiras marcas inscritas no corpo do infans9 por meio do recorte dos objetos pulsionais e da libidinização das zonas erógenas, são manipulações que não se restringem apenas às mãos das pessoas envolvidas e que estão diretamente em contato com esse bebê. Abrangem uma rede, o olhar, a voz e o toque que irão armando uma “sintonia” que, mediante as repetições das mesmas, teça uma rede de significantes.

É a mãe, ou quem se propõe a realizar a função materna, quem inscreve as marcas fundantes e inaugura a lógica simbólico-imaginária no corpo do seu bebê. Essa lógica, segundo Molina (2001b),10 “tem a capacidade para delinear uma imagem antecipada e unificada do corpo inserido no espaço e no tempo”. O pai, ou aquele que se dispõe a exercer a função paterna, desde o início está presente na relação mãe e filho, mas inscrito no discurso da mãe como um mediador, um normatizador dessa relação.

O saber inconsciente da mãe tem obviamente, as fixações estabelecidas no percurso da sua história. O lugar para o filho vem sendo preparado desde quando ela brincava de boneca e desde o momento no qual se articula seu fantasma. Isso, no entanto, como todo inconsciente, sofre os efeitos da presença e da palavra do outro. E entre aqueles que a rodeiam, o pai como significante ou como objeto, ocupa um lugar central no ordenamento da estrutura libidinal (CORIAT, 1997, p. 108).

Na concepção de Jerusalinsky (2011), a relação mãe-bebê não acontece em consequência de um instinto que toda a mulher possui que lhe diz de como ser mãe ou de um saber acerca desse papel, que poderia ser ensinado como uma receita de bolo. Esta relação somente acontece em decorrência dos cuidados que a mãe se propõe a desempenhar ante as demandas do seu filho. Esses cuidados necessitam estar permeados por uma série de operações psíquicas que falam de um saber inconsciente.

A maternidade para uma mulher não acontece simplesmente pelo fato de ter gerado um bebê. Ela implica que o seu bebê esteja situado em uma posição simbólica que, para Freud (1924, p. 223), no artigo A dissolução do

9 Infans – posição lógica que etimologicamente denomina-se aquele que ainda não fala e o que, inclusive,

não atravessou os processos identificatórios da constituição psíquica.

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complexo de Édipo, refere-se à articulação do gozo fálico pela equação pênis-falo-bebê. Esse filho vem por acreditar-se que é mediante a maternagem que se alcançará uma completude.

Consoante Jerusalinsky (2011, p. 15), “O exercício da função materna implica instaurar um funcionamento corporal subjetivado nos cuidados que realiza na relação do bebê”. Mediante esses cuidados a mãe estabelece um circuito pulsional, algo que realmente oferece a vida ao corpo do seu bebê, que não poderá mais viver sem essa satisfação primeira que recebe via Outro primordial. Seguindo o circuito do desejo e da demanda do laço mãe-bebê é que o bebê poderá se apropriar, futuramente, do seu corpo e, assim, da sua história.

O bebê humano é, entre os seres vivos, o que mais vem despreparado. Seu aparato biológico não supre as suas necessidades. Chega em falta, não tem condições de se satisfazer e fica exposto ao seu mal-estar. Necessita do Outro para que possa sobreviver. Assim, passará por um processo de desenvolvimento e de maturação para que possa futuramente “ser”. O desenvolvimento será um processo marcado pelo desejo do Outro, não como algo espontâneo e já aparelhado pelo biológico. Levin (1997, p. 24) assevera que “não há desenvolvimento possível sem uma estrutura que o origina e sustenta”. O desenvolvimento ocorrerá se com a criança, estiver mencionada uma “estrutura subjetiva que humaniza um sujeito

A maturação compreende todas as transformações ocorridas no corpo, todo o processo maturativo orgânico. Somente na harmonia entre desenvolvimento e maturação é que o ser humano encontrará condições adequadas de sobreviver.

É o aparato biológico que permite ao bebê existir, mas é todo o investimento que vem do Outro primordial que lhe possibilitará o seu desenvolvimento. O sistema nervoso central será necessário para que as relações de troca possam acontecer entre o bebê e o meio. Para que a sua constituição subjetiva seja possível, toda essa estrutura biológica precisará estar repousada por processos simbólicos significativos oportunizando a constituição do sujeito psíquico. “O desenvolvimento do bebê não opera por um

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simples automatismo biológico. O que marca o ritmo do desenvolvimento é o desejo do Outro que se opera sobre a criança através do seu discurso” (JERUSALINSKY, 1999, p. 28).

Seus reflexos são interpretados, seu corpo é falado, libidinizado e erotizado. Quando a mãe se põe a falar com seu bebê, ela vai lhe contando sobre o seu corpo e sobre o seu entorno. Fala do seu sorriso, da sua mãozinha, do seu pezinho, retirando o bebê do lugar de simples corpo e lhe falando do seu lugar de sujeito. Todas as marcas produzidas para a sua constituição como futuro sujeito serão inscritas pelo discurso do Outro e direcionadas a um lugar simbólico construído para ele. Os significantes encontrados no discurso do Outro subjetivarão o corpo do bebê humano.

A “preocupação primária materna”, articulada por Winnicott (1971), aponta sobre uma boa condição ambiental na qual, durante o período de gestação, a mãe vai se identificando com o seu bebê para que possa criar um forte vínculo com ele e futuramente compreender o que necessita. Toda essa preocupação primária de Winnicott refere-se à posição de uma mãe organizando a sua maternagem. Essa é a mãe “suficientemente boa” de Winnicott (1971). Este autor apresenta uma mãe que é capaz de se adaptar às necessidades físicas e psíquicas do seu filho. Com tal capacidade, a mãe supre, de maneira satisfatória, os primeiros tempos de dependência absoluta, garantindo um desenvolvimento saudável.

Winnicott (1971) considera que a “mãe suficientemente boa” organiza de forma sensível as necessidades do seu filho. Ela é aquela mãe capaz de adaptar-se de forma suficiente às necessidades do seu bebê e ter uma boa sustentação as suas exigências físicas e psíquicas. Assim, o bebê, nessa fase de “dependência absoluta”, sente-se seguro e protegido de todo o tipo de mal-estar que ainda não é capaz de evitar.

Para Coriat (1997, p. 52), “é o Outro quem escreve as primeiras marcas no corpo do infans”. De acordo com Coriat (1997), “Estas marcas, incluindo as primeiras experiências de satisfação e as necessárias repetições da mesma passarão a formar os primeiros traços mnêmicos do esquema do pente”. Tais marcas permitirão ao sujeito estruturar o seu aparelho psíquico por meio das primeiras experiências de satisfação e insatisfação. O que é do aparelho

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psíquico será constituído a partir dessas inscrições que serão marcadas pelo Outro; marcadas da forma mais simples, o que inaugura o que é do sujeito, os traços mnêmicos, a série simbólica que se repete.

No início da vida, o bebê, mais do que se contar é levado em conta por outro, e por isso a instauração do traço unário, da referência simbólica, depende do laço com o agente da função materna. É a mãe que sustenta as séries para o bebê, é ela que faz os objetos – papinha, leite, cocô, xixi, sono, meleca, ainda que se lembre de cada um deles – traços que contam uma série (JERUSALINSKY, 2011, p. 133).

O corpo do bebê é antecipado simbolicamente pela mãe por meio do estilo de maternagem que é operado. Seus hábitos de vida diária vão sendo organizados pelos cuidados que sua mãe lhe dedica. A função materna penetra no corpo do bebê, modificando os simples reflexos em ações significantes. O sorriso social, que logo nos primeiros dias é reconhecido pela mãe como algo endereçado a ela, modifica esse reflexo e lhe coloca na categoria de significante.

A mãe, ou quem exerce esta função, ao olhar, ao amamentar, ao falar, ao cuidar, ao tocar seu bebê, o seduz e o erotiza, configurando um ritmo de presença ausências que dá origem ao recém-nascido, uma permanência (uma primeira unificação corporal) necessária à sua estruturação. É por isso que um corpo é pulsionado a partir da demanda de amor do Outro (LEVIN, 1997, p. 31).

O corpo, para que possa ser corpo singular, não depende simplesmente de condições orgânicas saudáveis, mas do Outro que, pela linguagem, faz as inscrições do “dialogo tônico,11” que é fundamental, pois retira o corpo do lugar de pura carne ou tônus muscular e produz uma articulação discursiva. Ajuriaguerra (1986) lembra que, quando tomamos o diálogo tônico entre a mãe e o filho, não podemos pensar apenas no tônico, mas no que realmente está em jogo, que é o desejo desse diálogo.

A linguagem do corpo12 infantil se dá por intermédio das inscrições simbólicas organizadas pela função materna ou pela pessoa que se propõe a

11

Conceito proposto por J. Ajurriagerra(1986) para salientar a necessidade da significação, por meio da palavra, daquilo que o bebê manifesta em suas variações tônico-musculares.

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Esteban Levin, na conferência proferida no Rio de Janeiro em julho de 1995, nos apresenta que a linguagem corporal, dentro da psicomotricidade, ocupa-se de um sujeito que fala por meio do seu corpo, suas posturas, seus movimentos, seus gestos, seu tônus, seu eixo corporal.

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exercer tal função. Essa linguagem corporal que se constitui com a imagem corporal ocorre, de forma inconsciente, na fase do espelho. O esquema corporal que podemos situar no pré-consciente será reconhecido futuramente. Esse corpo infantil necessita, portanto, ser enlaçado pelo simbólico para que se torne um corpo real.

O corpo do sujeito, para se constituir, primeiramente faz uma apropriação do corpo imaginário por meio do estágio do espelho. O corpo imaginário é aquele que sofreu os efeitos da ilusão de uma completude, ou seja, aquele do inconsciente, do ideal da perfeição. O corpo simbólico é o marcado pelos significantes, que possibilita a sua representação mediante a linguagem depois da sua apropriação.

Jerusalinsky (2002) afirma que a mãe remete ao seu bebê o sustento de uma posição de sujeito ainda quando ele não é de fato. Trata-se da “antecipação funcional” às conquistas que a mãe sustenta para o bebê – falar, ficar em pé –, isso antes mesmo de estar em condições de se apropriar de tais funções. Esses aspectos influenciam diretamente no desenvolvimento e na maturação da criança, para que possa surgir e se constituir um sujeito de realizações. Segundo a autora,

A antecipação imaginária de um corpo, de um Eu do bebê, dá lugar à antecipação funcional pela qual os pais, ao antecipar realizações instrumentais do bebê, introduzem ofertas e demandas propiciadoras de tais realizações. Assim, por exemplo, ao tomar o balbucio do bebê como palavra, produz-se uma antecipação lingüística, ou ao ofertar uma nova postura ao bebê produz-se uma antecipação psicomotora (JERUSALINSKY, 2002, p. 160)

O casal parental, ou aquelas pessoas que se propõem a exercer as funções paterna e materna, são os atores principais perante a chegada do bebê. Eles irão fundar a rede de significantes que determinará o advir do pequeno sujeito. O bebê conferirá todo o saber e todo o poder a eles, que, para ele, encarnam o Outro absoluto. Coriat (1997) destaca que o bebê direcionará toda a sua demanda a eles. O saber do adulto em relação ao bebê, porém, deverá se colocar na carência, possibilitando um lugar vazio no saber do Outro para que possa advir um sujeito.

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Os pais, a partir do momento em que sonham com a chegada do filho, organizam toda uma rede de significantes que está associada ao ideal narcísico. O casal parental também está envolvido e constituído estruturalmente pela rede de significantes de seus pais. Essas marcas são unidas a novas marcas, e, assim, podemos pensar em uma nova rede de significantes que tatuam esse sujeito em processo de constituição.

A função materna monta uma rede de significantes na qual o bebê tem a possibilidade de se emaranhar nessa trama e se constituir como sujeito de desejo. É a mãe quem, por meio dos seus cuidados e do seu discurso, inaugura o percurso da subjetivação, e o pai, como o terceiro elemento nessa relação, intervém como a lei, que está desde o início presente na estrutura. O pai e a lei que estão inscritos primeiramente no discurso da mãe, tornar-se-ão reais mais tarde, o que dependerá diretamente de como a mãe se dirige ao filho. A mãe deve estar na posição de se questionar a respeito da demanda do seu bebê. Deve poder supor não saber tudo sobre o que o seu filho quer.

A função paterna procura operar como um mediador diretamente no desejo da mãe, para retirar o bebê dessa apreensão imaginária que ele constrói como sendo o único objeto de desejo da sua mãe. O pai é aquele que remete à criança a lei da proibição do incesto. A mediação paterna possui três atributos importantes no sentido de provocar a interdição, a privação e a frustração ante a falta, possibilitando, assim, para a criança, o acesso ao simbólico.

A mãe que está preparada psiquicamente para a chegada do seu bebê o acolhe, dando sentido ao tempo de espera e a sua chegada. A mãe supõe no bebê um sujeito, significa os seus registros, dá sentido ao seu choro. Estará disposta a significar todos os seus desconfortos. Este primeiro momento vai possibilitar ao lactente ir tomando-se para si por meio da imagem que a própria mãe lhe oferece; imagem corporal emprestada, mas necessária nesse momento para que o bebê tenha a ilusão de uma totalidade; fusão esta que possui a eficácia de um real ainda inexistente, de um corpo ainda muito imaturo.

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O bebê, assumindo essa imagem emprestada pela mãe, terá forças psíquicas para, futuramente, constatar as diferenças e a separação do corpo materno. Somente a partir do empréstimo temporário da imagem da mãe, ou do Outro especular, que esta fusão sedutora e cativante possibilitará um aparato inicial psíquico, capaz de suportar o processo de separação futuro.

A criança se vê a partir do que supõe que o Outro vê nela. Para que ela possa ser uma unidade corporal é necessário que haja um ideal. É nesse sentido que o discurso proferido pela mãe sustenta um eu ideal para a criança. Quando a criança adquire o estatuto de sujeito de desejo, ela se reposiciona, desliza da condição de eu ideal para as possibilidades de ter seus próprios ideais.

A operação de constituição psíquica do bebê, ou seja, a retirada da criança de uma relação de alienação perante o significante “falo materno”, como aquele tempo em que a mãe “empresta” a sua imagem e desejo ao filho, é o tempo em que o bebê é falado e que ele responde a esses chamamentos. O tempo seguinte será o da separação do corpo e das marcas maternas, permitindo o aparecimento das marcas paternas e com elas o significante Nome-do-Pai, que possibilitará a entrada do sujeito na neurose. Desde os primeiros contatos entre mãe e filho, o corpo do filho começa a ser diferenciado do corpo da mãe.

Nos primeiros tempos da vida de um bebê ele se encontra alienado ao discurso do Outro. É necessário, do ponto de vista da estruturação subjetiva, que nesse tempo o bebê seja observado mediante Outro. Estando no desejo do Outro, o lugar, que Lacan (1979, p. 193) afirma “que situa a cadeia de significante que comanda tudo que vai poder presentificar-se do sujeito, é o campo do vivo onde o sujeito tem que aparecer”, em que se encontra a cadeia de significantes na qual será possível o seu advir. É nesse lugar alienante em que se encontra que será possível a sua subjetivação. Segundo Lacan (1979, p. 194), “pelo fato de que o sujeito depende do significante e de que o significante está primeiro no campo do Outro”, é possível se apropriar do seu corpo. Essa operação subjetiva é a que inaugura o advir do sujeito. Na alienação primeira – uma simbiose inicial – o sujeito aparece primeiro no Outro, e o seu significante unário se organiza com o Outro.

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Já pela separação, afirma Lacan (1979), o sujeito encontra o que o casal parental lhe mostra da sua própria falta. Seria o momento em que o sujeito tem a possibilidade de se fazer outro; momento de se apropriar de uma versão do desejo do outro e identificá-la como sua. É preciso, portanto, ser alienado para ser possível estar separado.

Serão necessários sucessivos movimentos de alienação e separação na relação com o Outro para que a criança possa constituir uma unidade imaginária de seu corpo (pela dimensão especular) e para que possa chegar a situar-se enquanto sujeito da enunciação que afirma “este corpo é o meu” (JERUSALINSKY, 2011 p. 142).

Na sua trajetória o sujeito se depara com a epopeia edipiana e com ela os três momentos que se organizam para que esta se estruture; no primeiro momento do complexo de Édipo a criança vive uma colagem com a mãe. Aqui, ela acredita ser o falo da mãe, o desejo do desejo do Outro; é quando acompanhamos a fase do espelho, em que a criança é possibilitada a organizar a sua imagem corporal pela imagem imaginária do Outro.

No “estádio do espelho”13 a criança reconhece a imagem do espelho como sua. É importante compreender, entretanto, que o espelho aqui é posto como uma metáfora, e o que produz a unificação da imagem não é o instrumento em si, mas o olhar do Outro juntamente com o seu desejo. Esta unificação imaginária é produto das marcas provocadas pelo olhar desejante da mãe. Assim, se inaugura o que conhecemos por imagem corporal; a imagem do corpo unida para que, posteriormente, haja um reconhecimento e com ele o esquema corporal.

A passagem pelo estádio do espelho se organiza em três tempos fundadores. A mãe, no primeiro tempo, se coloca em completude com o filho, como um espelho para o seu bebê; ela lhe devolve uma imagem do seu corpo, lhe dá um nome e lhe empresta um desejo. Nesse instante se percebe uma confusão entre o eu e o outro. No segundo tempo a criança questiona a mãe a respeito da imagem do espelho, e percebe que o outro do espelho não é real. No terceiro e último tempo a criança tem a possibilidade de perceber que a imagem refletida no espelho é sua.

13

Expressão cunhada por Jacques Lacan, em 1936, para designar um momento psíquico e ontológico da evolução humana, situada entre 6 e 18 meses, quando a criança antecipa o domínio sobre a sua unidade corporal por meio de uma identificação.

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O estádio do espelho é a fase de transformação que ocorre com o sujeito quando ele assume a sua imagem. Como afirma Backes (2004, p. 32), “estabelecer a relação do mundo interno com o meio circundante”. É, portanto, uma operação psíquica na qual a criança inaugura a sua constituição e a sua imagem corporal. É um tempo em que a criança vai buscar impor-se perante o outro por meio da agressividade; ela precisa “matar” o Outro simbolicamente e para descolar da mãe. É nessa fase ainda que o bebê passa da condição de infans, ou seja, ser não falante, para o eu, sujeito.

Basta compreender o estágio do espelho como uma identificação, no sentido pleno que a análise atribui a esse termo, ou seja, a transformação produzida no sujeito quando ele assume uma imagem cuja predestinação para esse efeito de fase é suficientemente indicada pelo uso, na teoria, do antigo termo imago. A assunção jubilatória de sua imagem especular por esse ser ainda mergulhado na impotência motora e na dependência da amamentação que é o filhote do homem neste estágio de Infans parecer-nos-á pois manifestar, numa situação exemplar, a matriz simbólica em que o [eu] se precipita numa forma primordial, antes que a linguagem lhe restitua, no universal, sua função de sujeito (LACAN, 1979, p. 47). Neste momento do estádio do espelho o bebê passa pela separação do seu corpo real. Para Jerusalinsky (1999, p. 27), “sua mãe tomou o seu cocô – como um presente mas não o reteve; a canção e a modulação de sua voz fizeram ausência em seus ouvidos; a sustentação faz falta em seu equilíbrio; o peito trouxe saudade na sua boca, e assim em cada dobra de seu corpo”. São essas separações vivenciadas no estádio do espelho que lançarão o bebê à busca de uma “plenitude perdida”. Segundo Freud (2010), a posição dos pais na constituição do narcisismo primário é uma reprodução do narcisismo dos próprios pais, pois projetam e atribuem ao filho todas as perfeições e sonhos que tiveram de renunciar. O narcisismo primário representa, de certa forma, uma espécie de onipotência que se cria no encontro entre o narcisismo nascente do bebê e o narcisismo renascente dos pais.

O narcisismo secundário corresponde ao narcisismo do eu. É necessário que se produza um retorno do investimento dos objetos, transformando em investimento do eu. A passagem para o narcisismo secundário se faz em dois movimentos: a criança concentra num objeto suas pulsões sexuais parciais e a libido investe no objeto, uma vez que as zonas genitais ainda não foram

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instauradas; num segundo momento estes investimentos retornam para o eu e a libido toma o eu como objeto.

Para que a criança, após um período de inscrições, possa se apropriar dos significantes nela marcados e estruturar-se como um sujeito de desejo, é necessário que possa sair da posição de passividade e se colocar em uma posição de atividade. Nesse momento, portanto, a criança utiliza-se dos jogos estruturantes e do brincar, que possibilitam as articulações possíveis para a constituição desse pequeno sujeito.

Freud (1920, p. 171) afirma em “Além do Princípio do Prazer”, que o “fort-da” seria um jogo constituinte do sujeito. Ele observou um menino por 18 meses que tinha um bom relacionamento com seus pais, obedecia as proibições, nunca chorava na ausência da mãe, mas que tinha o hábito de jogar os brinquedos no chão. Quando fazia tal brincadeira expressava um forte e prolongado o---o---o, que era interpretado pela mãe como “foi embora”. Freud entende o jogo como uma encenação da presença e da ausência da mãe do menino. A criança, portanto, procura transformar o vivido de forma passiva em uma situação na qual possa participar ativamente.

Os jogos de borda, ou aquelas brincadeiras comumente observadas nas crianças de “cai não cai”, também possibilitam a estruturação do pequeno sujeito. São brincadeiras que simbolicamente organizam as questões de espaço e limites bem como as separações. Freud assevera:

Vê-se que as crianças repetem, brincando, o que lhes produziu uma forte impressão na vida, que nisso reagem e diminuem* a intensidade da impressão e tornam-se, por assim dizer; donos da situação. Mas é claro, por outro lado, que toda a sua brincadeira é influenciada pelo desejo que domina esse seu tempo: o desejo de ser grande e poder agir como as pessoas grandes. Observa-se também que o caráter desprazeroso da vivência não o torna sempre inadequado para o brinquedo (FREUD, 2010, p. 175).

Até aqui pensamos como surge um sujeito de desejo em um corpo real, o quanto é necessário que haja um corpo orgânico para que possa advir um sujeito no real e a importância do outro que se coloca a partir do discurso do Outro, a contar e montar uma história e outorgar um saber para esse que chega. Um encontro entre esses, que, de forma recíproca, organizam marcas e inscrições recheadas de significantes, que irão, juntos, agora, contar a história.

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O surgimento de um sujeito de desejo não é algo assim, tão simples; requer um jogo simbólico, que estará inserido em uma rede de significantes e que se movimenta imaginariamente em uma relação real.

No próximo Capítulo refletiremos sobre a notícia do nascimento de um filho com alguma particularidade e todos os seus efeitos.

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2 – A CLÍNICA DO BEBÊ

Em algumas situações os pais são surpreendidos com o diagnóstico de alguma patologia ou especificidade do seu bebê, o qual não era esperado. Esse diagnóstico inesperado pode influenciar diretamente no vínculo mãe-bebê, despertando sentimentos na mãe de culpa, medo e desapontamento. Esse momento da chegada do filho, que estava sendo organizado simbolicamente, se rompe, deixando a mãe confusa em relação aos seus sentimentos e sonhos, tornando seus investimentos nulos ou de baixa sustentação.

Quando ocorre tal situação se pensa na constituição do bebê. Como se dará? Quem é este bebê que, ao chegar, irrompe com toda a rede simbólica que seus pais vinham armando? Toda a preparação que vinha sendo organizada em relação ao filho ideal se desfaz. O filho idealizado não se encontra mais com eles; o que se tem é um estranho, que os deixa frágeis em relação aos seus investimentos e sentimentos.

Como afirmamos anteriormente no Capítulo 1, quem apresenta o mundo e o corpo à criança é a mãe ou quem se dispõe a cumprir tal função, reconhecida no discurso do Outro primordial. Sua constituição, que é o trabalho que a criança faz para percorrer e se inserir na lógica das funções parentais, ocorre a partir desse Outro primordial, que permitirá que ela se reconheça como sujeito pertencente a uma filiação. A criança, nesse tempo, desempenha um papel importante na relação com a mãe. Ela acenderá no outro a capacidade de exercer a sua função. A falha ou a ruptura dessa lógica poderá influenciar no curso do desenvolvimento dessa criança.

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As linhas do destino da criança, tanto de sua pessoa quanto do seu desejo, estão escritas nos pais, ditadas pelo desejo destes para com seu rebento. Tanto o desejo quanto o amor dos pais são condições para o surgimento do desejo na criança; porém, de acordo com o modo como este amor se expressa – quer dizer, de acordo como se realiza na vida cotidiana – pode tanto propiciar como obturar o surgimento (CORIAT, 1997, p. 134).

O recém-nascido chega para percorrer a lógica construída pelos pais; seu objetivo seria o de reparar para os pais o seu fracasso.Tal lógica encontra-se ilustrada no psiquismo do casal parental. O bebê de corpo perfeito ampara essa ilusão de reparação para os seus pais.

Às vezes, porém, somos surpreendidos com a chegada de um bebê com algum diagnóstico patológico. Os pais, nessa ocasião, se deparam com aquilo que não idealizaram. O que falha nesse momento é a impossibilidade de realização dos ideais narcísicos dos pais. Todo o bebê vem ao mundo com um único objetivo o de “reparar o fracasso dos pais, conseguir realizar os sonhos perdidos (...). O corpo biológico perfeito sustentará esta ilusão reparadora de tudo que não foi viável na vida dos progenitores” (MOLINA, 1998, p. 11).

Refletindo a questão da chegada de um filho sindrômico ou com alguma especificidade, pensamos nas operações psíquicas necessárias para o surgimento de um sujeito. Como elas se dão? Quais as dificuldades desse bebê para percorrer toda a trama da sua subjetivação se os pais estão, nesse momento, tomados por uma ferida narcísica que lhes impossibilita assessorar esse filho perante essas operações primordiais? Essas operações, em cumplicidade, ocorrem sem saber quem são os atores principais e quais os coadjuvantes pelo casal parental e pelo filho que lhes chega.

Toda a idealização do filho se perde. Ele não é mais reconhecido como aquele filho sonhado. Ele é visto e reconhecido como um estranho. O seu nome, que foi escolhido e recoberto por tantas significações, hoje não encontra mais referencias nas características familiares. A história se perde, os significados se dissolvem, e só resta o corpo que é real e, muitas vezes, está impossibilitado.

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O bebê se torna um estranho para a sua mãe. A perda do filho ideal é organizada por meio do luto;14 a morte do filho ideal é sofrida e internalizada por intermédio de uma dor intensa, comparada à perda real, sendo o luto a única maneira de organizar psiquicamente esse momento de perda e a forma de se reposicionar ante a dor.

A criança, perante o ideal parental, quando algo não está bem, se depara com uma angústia, que pode ser associada, muitas vezes, à ausência de antecipações e suposições que acarretam efeitos de ordem variada na subjetividade dessa criança.

A história desse filho terá de ser reelaborada na rede de significantes para que o sujeito se constitua. A mudança de expectativas e o trabalho de luto são indispensáveis para que essa criança possa vir a se desenvolver, pois as questões do filho surgem diante das inscrições de filiação e, consequentemente, a impossibilidade de reconhecimento delas. Como afirma Jerusalinsky (2002), a criança acaba por ser vista e reconhecida por meio da sua patologia.

Nesse momento tão singular, os pais, em uma posição de extrema fragilidade, necessitam de auxílio. É frequente encontrarmos dificuldades nos pais em atribuir significados às produções de seu bebê. A terapêutica em Estimulação Precoce com a orientação psicanalítica é a clínica que se preocupa com o reposicionamento desses pais perante esse filho. O objetivo é auxiliá-los para que ressignifiquem o lugar do filho, e que possam reposicioná-lo na rede de significantes. Objetiva ainda a organização do bebê no seu meio, para que se construa a consciência de si como sujeito.

Na clínica com bebês que apresentam problemas em seu desenvolvimento constatamos como os efeitos parentais despertados pelo diagnóstico da patologia que o bebê apresenta podem vir a suprimir, do marco de sua constituição, a dialética temporal do futuro anterior. A partir de tal dialética, é só na medida em que efetua uma hipoteca familiar depositada antecipadamente no bebê, é só na medida que se efetua uma aposta simbólica que o supunha antecipadamente sujeito e também como capaz de uma determinada realização, que este poderá “vir a sê-lo”, recapitulando a posteriori pela sua própria enunciação, uma versão singular a partir das marcas que sofreu (JERUSALINSKY, 2002, p. 290).

14

Em 1917 Freud publica um texto magistral sobre “Luto e Melancolia”, apresentando que a melancolia seria a forma patológica do luto. No trabalho de luto, consegue-se desligar progressivamente do objeto perdido; na melancolia se culpa pela morte ocorrida.

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Diante dessa terapêutica a criança é pensada e olhada por meio do seu corpo e do discurso do casal parental. A criança ainda não se vê; por isso a importância do olhar do Outro para que possa ser vista, necessitando, nesse tempo, de uma intervenção do outro para interpretar simbolicamente suas ações. A intervenção em Estimulação Precoce possibilitará colocá-la ou até mesmo recolocá-la em uma rede de significantes. Somente o corpo que se encontra marcado e inscrito pelo outro poderá falar de si.

A Estimulação Precoce, como uma clínica de bebês e pequenas crianças entre zero e 3 anos e 11 meses com problemas no desenvolvimento, tem sua origem na década de 60 no Hospital de Niños de Buenos Aires. Tudo tem início na Argentina com a neuropediatra doutora Lydia Coriat, que busca auxílio de vários profissionais para pensarem juntos o desenvolvimento infantil. Juntamente com esses profissionais está a psicanálise como base teórica que opera imprimindo sua orientação e sua ética. Sendo assim, a Estimulação Precoce inaugura-se como uma disciplina terapêutica na qual se busca o desafio de trabalhar com bebês que apresentam dificuldades em seu desenvolvimento neuropsicomotor.

A clínica infantil de Estimulação Precoce tem uma posição interdisciplinar, e com ela o espaço de questionamentos ante a outras áreas do conhecimento. Ter como premissa o contato com a pediatria, a neurologia, a educação, a reabilitação e a psicanálise, caracteriza uma clínica que está comprometida com o sujeito e todas as suas primeiras manifestações na busca da sua subjetividade.

Concorda-se com Coriat (1997) que discorrer sobre essa clínica com bebês requer um olhar especial sobre o seu desenvolvimento, sendo essa a especificidade da clínica infantil em Estimulação Precoce; espaço singular, de olhar e escuta, que necessita de uma articulação simbólica, pensada pelo terapeuta em relação à constituição psíquica do bebê. Sua passagem significante pelos aspectos estruturais e instrumentais é que permitirão ao bebê assumir-se como um sujeito de desejo e, portanto, como sujeito capaz de estar inserido no social.

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A que estimulação, no entanto, se remete essa clínica? Essa é a pergunta. Estímulos no sentido de intervir? Ou estímulos que exercitam uma função de forma sistemática? Em que sentido essa clínica pensa o estimular? Segundo Coriat (1997, p. 40), “...associamos a palavra ‘estimulação’ com o capitulo VII de A interpretação dos sonhos em Freud. Ali ele apresenta o chamado ‘esquema do pente’, no qual a flechinha do estímulo entra pelo pólo da percepção e ao final do seu percurso desencadeia uma resposta no pólo da motricidade”. Seria a possibilidade de o sujeito se inventar e não ser inventado.

Os pais, na clínica de Estimulação Precoce, não fazem parte dela como observadores. Eles estão em atendimento juntamente com o seu filho. Suas angústias são escutadas e pensadas para além das suas fantasias. São questões levantadas pelo terapeuta, pelos pais e pelo próprio bebê, que se interpõem diretamente na dinâmica desse trabalho.

É o Outro que vai criando nesse puro corpo “coisa”: buracos, bordas, protuberâncias, tatuando deste modo um mapa corporal produto do desejo do Outro, que o erogeiniza e pulsionaliza, ou seja, cria-lhe uma falta no corpo, uma maneira, uma forma de que lhe falte algo. Estas faltas primordiais geram uma queda desse corpo “coisa”, “carne”, puro real, que ao cair reencontra-se sujeito ao Outro. Estas marcas, estes modos de que falte algo no corpo, transformam-no num corpo erógeno e simbólico (LEVIN, 2003, p. 52).

A criança com alguma especificidade se constitui como todos os outros sujeitos; o que se observa são marcas psíquicas nessa constituição que, muitas vezes, fazem a diferença; marcas deixadas por aqueles que exercem as funções parentais e que passaram pela problemática do ideal parental. A problemática que obstaculiza é a filiação do bebê, é o deslizamento do seu lugar de filho na família, algo que dificulta e fratura o seu lugar.

Ao nascer um filho com alguma especificidade, os encontros entre o filho que chegou e aquele com o qual foi sonhado são devastadores e afetam diretamente a função materna. A mãe se depara diretamente com o luto da perda do filho que não veio e percebe o filho que chegou como um intruso, ou seja, como aquele que não é reconhecido. O luto se torna um processo necessário para a ressignificação desse bebê, que chegou e que não é visto como aquele que foi desejado.

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Como mencionado no Capítulo anterior, é o casal parental que prepara o espaço que permitirá à criança se posicionar no lugar de um sujeito de desejo, por meio de uma rede simbólica, armada de significantes que sustentam o lugar do filho. Quando, porém, o filho que chega, vem em uma situação de intensa gravidade; o sentimento provocado é intenso e doloroso. Os pais se desorganizam em relação as suas referências perante aquele que chegou. Acabam dedicando-se simplesmente aos cuidados deste filho ou à reparação do corpo lesado. Nesse caso, Julieta Jerusalinsky aponta o tipo de intervenção: A intervenção consiste em tomar o bebê e os sintomas em sua constituição psíquica e desenvolvimento sujeitados/sustentados por esta estrutura simbólica. Por isso escutamos o discurso parental, pois os sintomas apresentados no bebê não são situados apenas pelo estabelecimento do real de seu quadro orgânico, mas também lidos no contexto imaginário e simbólico parental. Concebemos assim o sintoma do bebê como um enigma estabelecido a partir do modo em que as marcas simbólicas do Outro primordial nele se efetuam, organizando seu corpo (2002, p. 274).

Um vínculo materno com base no desejo que organiza a maternagem é normalmente suficiente para orientar as mães perante o seu bebê. O olho que capta, a voz que sustenta, o toque que erotiza, vão funcionando como um demarcador do corpo do bebê. Quando, no entanto, algo perturbador vem tornar esse contato com baixa sustentação ou completamente nulo, acarretará uma desorganização, um desfacelamento subjetivo capaz de fazer com que o sujeito não surja, não se torne proprietário de seu desejo.

Sabemos que são os pais, em função do seu desejo e suas possibilidades, os artesões que constroem este lugar. Sabemos também que – tanto para uma criança deficiente quanto para uma criança normal – se o chamado não chega desde o berço, depois de transcorrer certo tempo na terra, dificulta-se extremamente (ou encerra-se definitivamente) a possibilidade de que ali surja um desejo ou uma palavra própria (CORIAT, 1997, p. 83).

É na Estimulação Precoce que os pais e o bebê têm a oportunidade de um deslocamento dos significantes para que o vínculo torne-se algo próprio para eles. A Estimulação Precoce tem o objetivo fundamental de intervir na reconstrução das fraturas do casal parental, pensando o filho real e o filho desejado, procurando atenuar os obstáculos para que o filho percorra o caminho da filiação.

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Quando a comoção dos dados orgânicos patológicos faz estragos no imaginário familiar, oficiemos de ponte para que nosso pequeno paciente possa apropriar-se do passado que lhe corresponde para, desde modo, deixar abertos os caminhos concretos do futuro (CORIAT, 1997, p. 75).

O terapeuta, por intermédio da transferência,15 auxilia os pais na ressignificação do filho. Oferece-se a acompanhar e a proporcionar situações que favoreçam o desenvolvimento das suas potencialidades. A transferência nessa clínica não se encontra no bebê, mas sim nos seus pais. Os pais devem ser escutados, e no bebê é necessário ver e escutar aquilo que foi inscrito pelos pais. Brincar com ele, procurar saber o que quer, supor um sujeito e com ele as suas respostas e, juntamente com os pais, possibilitar um novo caminho, em correspondência com o desejo do casal parental ou daqueles que fizeram a adoção das funções.

Essa fissura, essa diferença que se registra na relação mãe e filho, é que se torna a grande dificuldade a se superar no jogo constitutivo de um bebê ou pequena criança com alguma especificidade. Precisamente, é isso que inaugura a clínica infantil da Estimulação Precoce como o espaço possível para que os pais possam se questionar acerca do filho e do seu lugar na família. É necessário estabelecer essa terapêutica como um lugar de busca de referências que se sustentam no sujeito, ante a transferência estabelecida com os pais.

A intervenção clínica aponta para uma ressignificação simbólica da patologia de bebê através do discurso parental, que, em lugar de condená-lo ao achatamento temporal de “não será”, permite abrir a brecha do desejo e a aposta simbólica, a antecipação que dê lugar, além das limitações que compareçam no real orgânico, a que um bebê possa ser, no presente, suposto como sujeito do desejo e como capaz de certas realizações (JERUSALISNKY, 2002, p. 292).

Na clínica infantil uma das questões a se pensar é a possibilidade de leitura de um corpo que vá além do seu gesto e das suas posturas para pensar o sujeito que fala nesse corpo e a partir dele. É pensar o sujeito inscrito em

15 Termo progressivamente introduzido por Sigmund Freud e Sandor Ferenczi entre 1900 e 1909 para

designar um processo constitutivo do tratamento psicanalítico mediante o qual os desejos inconscientes do analisando concernentes a objeto externo passam a se repetir, no âmbito da relação analítica, colocados na posição desses diversos objetos (ROUDINESCO; PLON, 1944,p. 766).

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uma cadeia de significantes, e com ela o corpo que fala por intermédio do simbólico, do real e do imaginário. Todo o ato do cotidiano que os pais endereçam ao filho deveria partir da suposição de que há um sujeito ali. Essa antecipação é extremamente necessária para a constituição subjetiva. Deste modo, o bebê precisa ser olhado para poder olhar, necessita ser tocado para tocar e falado para poder se apropriar da fala.

Saber olhar um bebê é poder reconhecer no que vemos de seu corpo e de sua conduta o modo como estão sendo escritas as marcas do Outro sobre esse real orgânico em particular. É também poder intervir nisso sabendo que, em definitivo, quem põe as marcas são os pais, mas que o profissional que intervém não é alheio à direção e firmeza com que a mão do Outro inscreve traços (CORIAT, 1997, p. 97). Sabemos a importância de muitos profissionais acompanharem o desenvolvimento de um bebê que nos chega com alguma especificidade. O próprio pediatra, que acolhe primeiramente esse bebê, inicia a montagem de uma rede de interconsultas necessárias para obter respostas de todas as áreas que se acredita terem sido afetadas. Coriat nos coloca a refletir:

Se cada um dos profissionais mencionados for ocupando um lugar ao lado do berço do bebê, hão de convir comigo, a cena começa a tornar-se sinistra. O quarto de bebê é privado de toda intimidade; com tantos adultos preocupados por cumprir satisfatoriamente sua função, não resta lugar para os brinquedos. A mãe tenta timidamente aproximar-se de seu bebê, mas não consegue atravessar a muralha de corpos humanos que separam dela, especialmente porque não quer lhes causar nenhum incômodo: os que sabem o que deve fazer com este filho especial que recebeu são eles. Eles farão com o bebê o que for melhor ou irão lhe dizer o que ela tem que fazer; assim sendo ela prefere se retirar e preparar café para os convidados na cozinha (1997, p. 168).

A possibilidade de, nesse momento, colocarmos a maternagem em choque é muito grande. A mãe se encontra com vários questionamentos a respeito desse filho que chegou e que ela acredita não saber cuidar. Se enfatizarmos isso por meio de várias “receitas” de como lidar com o seu filho, afirmamos o seu não conhecimento sobre esse filho. Seria destituir a mãe do seu lugar de mãe e, portanto, contribuir com a angústia que já faz parte da sua maternagem. Todo o cuidado é pouco para não retirar essa mãe do seu lugar de mãe e nos colocarmos como uma mãe substituta.

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A Clínica de Estimulação Precoce se preocupa com essa dinâmica. Muitas mãos, mexendo em tantas partes quantas se acreditam terem sidas lesionadas, poderia acarretar a fragmentação de um corpo, que, dependendo do tempo, não tem a possibilidade de compor algo semelhante a um corpo unificado. Segundo Coriat (1997, p. 182), “Que apareçam outros profissionais para ocupar-se do resto das partes, apenas sublinha, para a mãe, que o trato que deve dar ao seu bebê é o de uma estimulação parte por parte. O bebê perde a oportunidade de ‘unarizar-se’”.

Os pais, que simplesmente se dedicam ao puro corpo real, terminam por não reconhecer o filho. Consequentemente deparam-se com problematizações que interferem diretamente no desenvolvimento dessa pequena criança. A possibilidade de intervenção pelo trabalho terapêutico em Estimulação Precoce por meio da clínica psicanalítica, contribui significativamente nesse processo e evita perdas para o bebê. Coriat acrescenta:

O especialista em Estimulação Precoce trabalha no tempo do estabelecimento das marcas fundantes. De acordo com o modo com que o profissional descobre a sua atividade, poderá propiciar que o bebê vá desenvolvendo sua própria atividade e que possa ir registrando, na diacronia de suas experiências, as repetições e diferenças que irão deixar como resto a presença da falta e do desejo (1997, p. 97).

Segundo Coriat (1997, p. 53), o fim do tratamento em Estimulação Precoce é o de “propiciar a produção/parição de um sujeito do desejo, o que equivale a dizer que não nos interessa a produção de autômatos por melhor que funcionem”. O que interessa caminhar se não se tem interesse de ir a lugar algum? “Funcionar” por funcionar sem vontade e desejo de estar “funcionando”? Esse não seria de modo algum o fim de um atendimento em Estimulação Precoce.

Os eixos da clínica de Estimulação Precoce se colocam a cada atendimento e de forma singular perante o paciente. No eixo da constituição do sujeito cabe interpretar como está se colocando a constituição subjetiva e pensar como está se estruturando esse sujeito a partir da sua história. No eixo do brincar é preciso perceber como a brincadeira se expressa por meio do simbólico que ali se presentificar, e que é revelador do sujeito e de sua

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subjetividade. No eixo da transferência, observá-la seria possibilitar a leitura da relação com o terapeuta; no eixo da direção da cura, seria ela construída passo a passo, como um quebra-cabeça, em cada novo atendimento; e no eixo da interdisciplinaridade seria trabalhar com a falta, que possibilitaria a circulação por outras áreas do conhecimento.

A seguir, no Capítulo 3, trazemos para análise um relato de experiência – O Caso Ane.

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3 – RELATO DE UMA EXPERIÊNCIA

Ane chega para atendimento com 1 ano e 4 meses. Filha de uma mãe diabética, nasce de cesárea em um período de gestação considerado delicado, pois estava apenas com 6 meses de gestação e com várias tentativas de aborto. A mãe relata que faz uso de medicamento para a pressão, que teve acompanhamento médico durante toda a gestação e fez exames regulares.

Ao nascer, segundo a mãe, demorou para chorar e precisou de oxigênio e incubadora por um grande período. Teve icterícia necessitando de fototerapia por três dias, período esse em que passou por episódios de convulsões. Nasceu frágil e muita pequenina. Precisou de cirurgia de correção de cranioestenose múltipla e foi submetida a uma derivação ventricular periformal com válvula, pois apresentou hidrocefalia neonatal. Sua alimentação foi artificial desde o nascimento.

Sua mãe conta que Ane balbuciou com 10 meses e sentou com 8, mas com apoio. A mãe salienta que seu marido é alcoolista e que ela dedica uma grande parte do dia à filha, pois deseja que esta “consiga evoluir, aprender e saber que é bem-tratada” (Sic).

Ane, no decorrer dos atendimentos, demonstra ser uma pequena criança calma e sorridente, dificilmente chora ou expressa algo que possa chamar a atenção. Quando chega para atendimento está sentando sem apoio, mas isso vem acontecendo a menos de dois meses segundo a mãe.

Trata-se de uma pequena criança que brinca muito, que gosta de imitações, que nos faz pensar em toda uma organização psíquica que está amarrando o simbólico e o imaginário. Uma criança, quando se encontra bem,

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nos mostra, pelo seu brincar, como está se estruturando e como faz as elaborações das relações com o Outro. Já nos evidenciava Freud que “a criança brinca ativamente daquilo que sofreu passivamente”.

A mãe participa dos atendimentos e procura nos manter informadas das questões da filha. Tem a necessidade de contribuir para com o nosso conhecimento a respeito da sua filha. É possível perceber nesse momento o quanto a mãe significa o lugar da filha. Significa suas ações e suas “manias”, recobre a pequena Ane de significantes simbólicos e os remete a vivências e experiências da família. Relata singularidades da filha e nos possibilita reconhecer esse sujeito que se apresenta, seu mundo, suas particularidades e, em consequência, suas aquisições.

Em relação ao desenvolvimento cognitivo, percebemos Ane em um período sensório-motor, em uma reação circular secundária. Suas ações estão coordenadas pela percepção dos objetos a sua volta, e com o mesmo objeto atinge novos objetivos. Ane exibe toda a sua capacidade de antecipar os fatos, pois, quando chega para o atendimento, aponta para o lugar onde encontra os brinquedos desejados. Percebe-se que quando brinca não possui ainda noção de permanência do objeto, pois, quando tenta acompanhar o deslocamento dos objetos, na trajetória, não apreende todo o deslocamento.

Quando escutamos a mãe percebemos o grande “medo” que ela tem em relação a muitas questões do corpo da pequena Ane. Sua alimentação é triturada para que não se passe pelo “medo” de ela se engasgar. Suas manobras psicomotoras são acompanhadas atentamente para que nada aconteça e o “medo” da mãe não venha a se tornar real. Esse medo da mãe está sempre presente nas ações de Ane, e logo que começou a falar algumas palavras uma das primeiras a serem pronunciadas foi “medo”. Muitas vezes, em suas brincadeiras, o medo chegava, e ela mencionava estar com medo de algo ou alguma coisa.

É possível compreender de onde vem o medo dessa mãe. Antes do nascimento de Ane houve outra gestação na qual ocorreu a morte do filho, e a gestação da própria Ane foi repleta de acontecimentos que a todo instante colocavam a mãe diante do “medo” da perda. O pai alcoolista, no discurso da mãe, não auxilia nas questões da filha e não tem uma posição que lhe traga conforto perante o “medo”.

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Pensando na relação quase alienante que Ane estabelece com a mãe é possível situá-la, nessa história de vida, permeada por uma grande perda e com o “medo” de uma nova, que está presente diariamente nos relatos da mãe. Por outro lado, é possível perceber que Ane vem se desenvolvendo bem. A mãe possibilitou a sua entrada no mundo por intermédio de antecipações e significações que a amarraram a uma rede simbólica e imaginária. Ane vem se constituindo e demonstrando estar conseguindo se desenvolver dentro da sua história de vida. Quando refletimos sobre o seu desenvolvimento, procurando analisar em que estágio ela se encontra, levamos em conta a sua história de vida; portanto preferimos pensá-la a partir do seu próprio tempo; o tempo em que está se desenvolvendo, não mais aquele cronológico e atrelado a fases, mas o tempo lógico do sujeito. Como afirma Levin (1997, p. 25), “O tempo lógico implica a descontinuidade subjetiva pelo ritmo pulsional, dimensão de causação da “realidade” fantasmática de um sujeito”.

Com o passar dos atendimentos a linguagem foi uma das aquisições que mais surpreendia. Ane falava e era entendida e trazia relatos significativos a respeito do seu entorno. Compreendia, pela via da linguagem, tudo o que lhe era questionado. Fazia relatos em relação a objetos e ocasiões que são recortados simbolicamente. Com o passar dos atendimentos começa a se deslocar pela sala de consulta em decúbito ventral, e quando faz o deslocamento fala dos seus medos, medos esses que são questionados e falados pela terapeuta para que a pequena Ane possa significá-los. A mãe percebe essa atuação e também se questiona sobre os seus medos, e percebe que também fala muito em “medos”

Ane é uma pequena criança que fica em atendimento até a idade de 4 anos, período em que vai passando por processos de aquisições muito significativos. Sua linguagem sempre à frente das aquisições psicomotoras é expressiva e de fácil compreensão. Quando encerra o seu atendimento em Estimulação Precoce, forma frases e expressa muito bem o que quer e como quer. Quanto ao aspecto motor, se possibilitou uma ressignificação, pois o medo de se “mexer” e ser “mexida” sempre foi uma questão que lhe causou muito sofrimento psíquico.

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A mãe se mantém na cena de atendimento até o momento em que Ane começa a lhe dar tchau! Cena essa que foi muito relevante, pois a pequena criança estava exigindo da mãe a separação dela com o corpo da mãe. Nesse momento a mãe foi chamada e expusemos a ela sobre esse desejo de Ane. No início foi muito difícil para a mãe não poder estar “olhando tudo o que sua filha estava fazendo”. Conversando muito com a terapeuta, porém, a mãe pode ir significando esse momento de separação. Foi necessário em atendimento mostrar para a mãe que Ane tinha aquisições significativas e que poderia agora estar só.

Hoje Ane está com 7 anos e as notícias que chegam é de uma criança que está em processo de alfabetização, inclusa em uma escola regular e em atendimento especializado em turno inverso em uma escola especial. Seu caminhar é mais lento, mas o seu desenvolvimento cognitivo encontra-se respondendo a toda a demanda que uma escola regular lhe exige. Possui amiguinhos e brinca muito. Sua mãe mantém-se atenta às questões da filha, mas, pelos relatos, de uma forma mais tranquila, sem os “medos” que eram tão intensos e presentes.

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