• Nenhum resultado encontrado

Ane chega para atendimento com 1 ano e 4 meses. Filha de uma mãe diabética, nasce de cesárea em um período de gestação considerado delicado, pois estava apenas com 6 meses de gestação e com várias tentativas de aborto. A mãe relata que faz uso de medicamento para a pressão, que teve acompanhamento médico durante toda a gestação e fez exames regulares.

Ao nascer, segundo a mãe, demorou para chorar e precisou de oxigênio e incubadora por um grande período. Teve icterícia necessitando de fototerapia por três dias, período esse em que passou por episódios de convulsões. Nasceu frágil e muita pequenina. Precisou de cirurgia de correção de cranioestenose múltipla e foi submetida a uma derivação ventricular periformal com válvula, pois apresentou hidrocefalia neonatal. Sua alimentação foi artificial desde o nascimento.

Sua mãe conta que Ane balbuciou com 10 meses e sentou com 8, mas com apoio. A mãe salienta que seu marido é alcoolista e que ela dedica uma grande parte do dia à filha, pois deseja que esta “consiga evoluir, aprender e saber que é bem-tratada” (Sic).

Ane, no decorrer dos atendimentos, demonstra ser uma pequena criança calma e sorridente, dificilmente chora ou expressa algo que possa chamar a atenção. Quando chega para atendimento está sentando sem apoio, mas isso vem acontecendo a menos de dois meses segundo a mãe.

Trata-se de uma pequena criança que brinca muito, que gosta de imitações, que nos faz pensar em toda uma organização psíquica que está amarrando o simbólico e o imaginário. Uma criança, quando se encontra bem,

nos mostra, pelo seu brincar, como está se estruturando e como faz as elaborações das relações com o Outro. Já nos evidenciava Freud que “a criança brinca ativamente daquilo que sofreu passivamente”.

A mãe participa dos atendimentos e procura nos manter informadas das questões da filha. Tem a necessidade de contribuir para com o nosso conhecimento a respeito da sua filha. É possível perceber nesse momento o quanto a mãe significa o lugar da filha. Significa suas ações e suas “manias”, recobre a pequena Ane de significantes simbólicos e os remete a vivências e experiências da família. Relata singularidades da filha e nos possibilita reconhecer esse sujeito que se apresenta, seu mundo, suas particularidades e, em consequência, suas aquisições.

Em relação ao desenvolvimento cognitivo, percebemos Ane em um período sensório-motor, em uma reação circular secundária. Suas ações estão coordenadas pela percepção dos objetos a sua volta, e com o mesmo objeto atinge novos objetivos. Ane exibe toda a sua capacidade de antecipar os fatos, pois, quando chega para o atendimento, aponta para o lugar onde encontra os brinquedos desejados. Percebe-se que quando brinca não possui ainda noção de permanência do objeto, pois, quando tenta acompanhar o deslocamento dos objetos, na trajetória, não apreende todo o deslocamento.

Quando escutamos a mãe percebemos o grande “medo” que ela tem em relação a muitas questões do corpo da pequena Ane. Sua alimentação é triturada para que não se passe pelo “medo” de ela se engasgar. Suas manobras psicomotoras são acompanhadas atentamente para que nada aconteça e o “medo” da mãe não venha a se tornar real. Esse medo da mãe está sempre presente nas ações de Ane, e logo que começou a falar algumas palavras uma das primeiras a serem pronunciadas foi “medo”. Muitas vezes, em suas brincadeiras, o medo chegava, e ela mencionava estar com medo de algo ou alguma coisa.

É possível compreender de onde vem o medo dessa mãe. Antes do nascimento de Ane houve outra gestação na qual ocorreu a morte do filho, e a gestação da própria Ane foi repleta de acontecimentos que a todo instante colocavam a mãe diante do “medo” da perda. O pai alcoolista, no discurso da mãe, não auxilia nas questões da filha e não tem uma posição que lhe traga conforto perante o “medo”.

Pensando na relação quase alienante que Ane estabelece com a mãe é possível situá-la, nessa história de vida, permeada por uma grande perda e com o “medo” de uma nova, que está presente diariamente nos relatos da mãe. Por outro lado, é possível perceber que Ane vem se desenvolvendo bem. A mãe possibilitou a sua entrada no mundo por intermédio de antecipações e significações que a amarraram a uma rede simbólica e imaginária. Ane vem se constituindo e demonstrando estar conseguindo se desenvolver dentro da sua história de vida. Quando refletimos sobre o seu desenvolvimento, procurando analisar em que estágio ela se encontra, levamos em conta a sua história de vida; portanto preferimos pensá-la a partir do seu próprio tempo; o tempo em que está se desenvolvendo, não mais aquele cronológico e atrelado a fases, mas o tempo lógico do sujeito. Como afirma Levin (1997, p. 25), “O tempo lógico implica a descontinuidade subjetiva pelo ritmo pulsional, dimensão de causação da “realidade” fantasmática de um sujeito”.

Com o passar dos atendimentos a linguagem foi uma das aquisições que mais surpreendia. Ane falava e era entendida e trazia relatos significativos a respeito do seu entorno. Compreendia, pela via da linguagem, tudo o que lhe era questionado. Fazia relatos em relação a objetos e ocasiões que são recortados simbolicamente. Com o passar dos atendimentos começa a se deslocar pela sala de consulta em decúbito ventral, e quando faz o deslocamento fala dos seus medos, medos esses que são questionados e falados pela terapeuta para que a pequena Ane possa significá-los. A mãe percebe essa atuação e também se questiona sobre os seus medos, e percebe que também fala muito em “medos”

Ane é uma pequena criança que fica em atendimento até a idade de 4 anos, período em que vai passando por processos de aquisições muito significativos. Sua linguagem sempre à frente das aquisições psicomotoras é expressiva e de fácil compreensão. Quando encerra o seu atendimento em Estimulação Precoce, forma frases e expressa muito bem o que quer e como quer. Quanto ao aspecto motor, se possibilitou uma ressignificação, pois o medo de se “mexer” e ser “mexida” sempre foi uma questão que lhe causou muito sofrimento psíquico.

A mãe se mantém na cena de atendimento até o momento em que Ane começa a lhe dar tchau! Cena essa que foi muito relevante, pois a pequena criança estava exigindo da mãe a separação dela com o corpo da mãe. Nesse momento a mãe foi chamada e expusemos a ela sobre esse desejo de Ane. No início foi muito difícil para a mãe não poder estar “olhando tudo o que sua filha estava fazendo”. Conversando muito com a terapeuta, porém, a mãe pode ir significando esse momento de separação. Foi necessário em atendimento mostrar para a mãe que Ane tinha aquisições significativas e que poderia agora estar só.

Hoje Ane está com 7 anos e as notícias que chegam é de uma criança que está em processo de alfabetização, inclusa em uma escola regular e em atendimento especializado em turno inverso em uma escola especial. Seu caminhar é mais lento, mas o seu desenvolvimento cognitivo encontra-se respondendo a toda a demanda que uma escola regular lhe exige. Possui amiguinhos e brinca muito. Sua mãe mantém-se atenta às questões da filha, mas, pelos relatos, de uma forma mais tranquila, sem os “medos” que eram tão intensos e presentes.

Documentos relacionados