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Pragmatismo e o caráter abstrato do objeto matemático nas Regulae ad Directionem Ingenii

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Academic year: 2021

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CDD: 149.7

Pragmatismo e o caráter abstrato do objeto matemático

nas

Regulae ad Directionem Ingenii

ÉRICO ANDRADE M. DE OLIVEIRA1

Programa de Pós-graduação em Filosofia Centro de Filosofia e Ciências Humanas Universidade Federal de Pernambuco Avenida Acad. Hélio Ramos, s/n, 15º andar 50670-901, RECIFE, PE

ericoandrade@hotmail.com

Resumo: Nosso artigo pretende mostrar que há nas Regulae ad Directionem Ingenii uma instituição

pragmática do objeto matemático, isto é, Descartes instancia os objetos matemáticos para responder à necessidade prática de representar a quantidade – inscritas em todos os objetos –, em virtude de certos símbolos abstratos. Assim, ainda que os objetos matemáticos sejam conhecidos por intuição, não são inscri-tos num quadro de uma ontologia. Descartes permanece em silêncio sobre a ontologia desses objeinscri-tos e consi-dera-os apenas como símbolos cuja função consiste em representar a quantidade.

Palavras chave: Álgebra. Ontologia. Abstração. Regras. Descartes.

Abstract: In this paper I want to present a pragmatic choice by which Descartes establishes the

mathe-matical object in Regulae ad Directionem Ingenii. Mathemathe-matical objects are instituted with the pur-pose of representing quantity – present in all objects – through abstract symbols. Although the mathemati-cal objects are known by intuition, they are not registered within an ontologimathemati-cal framework. Descartes remains silence regarding the ontological nature of mathematical objects: for him the mathematical objects are merely symbols to represent the quantity.

Keywords: Algebra. Ontology. Rules. Abstraction. Descartes.

1 Agradeço ao CNPq pelo financiamento da presente pesquisa, contemplada

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Introdução

Nas Regulae ad Directionem Ingenii (doravante: Règles)2, não

encon-tramos a palavra metaphysica nem a expressão prima philosophia. Descartes parece não se ocupar nesse texto com o estabelecimento de uma ontolo-gia para os objetos matemáticos. Com efeito, alguns intérpretes defen-dem que, ainda que não tenha discutido claramente sobre a natureza da-queles objetos, Descartes guardava uma compreensão da ontologia deles cuja raiz fundamental encontrava-se em Aristóteles. É no conceito de

abstração – ligado ao conceito de intuição – que se centram as observações

de Marion (2000) e Kobayashi (1993) cujas interpretações tencionam mostrar que esses termos são sinônimos no que concerne à ontologia do objeto matemático.

O exame genealógico do conceito cartesiano de abstração remete-se ao conceito aristotélico de abstração, a partir do qual o conceito carte-siano teria sua origem.Nessa perspectiva, a intuição cartesiana é compre-endida como uma ação que retira do objeto sensível uma forma abstrata por meio da qual se institui o objeto matemático. Particularmente, Mari-on defende que o cMari-onceito de intuição, tal como ele se apresenta nas

Règles, transcreve uma generalização do conceito de abstração aristotélico.

Descartes retém das matemáticas comuns (geometria, aritmética, astro-nomia, música etc.) a abstração da matéria que lhe permite instituir os objetos das diferentes matemáticas. Em seguida, Descartes generaliza o conceito de abstração empreendido nessas ciências matemáticas e deter-mina como princípio fundamental da matemática a matematicidade ou, de forma mais precisa, a abstração generalizada cuja consequência é a constituição de uma mathesis universalis. Por fim, Descartes generaliza o conceito de abstração aristotélico, tomando-o como o princípio

funda-2As citações da obra de Descartes são feitas da seguinte maneira: AT (iniciais

dos organizadores) volume e página. Recorreremos à tradução da edição de Al-quié: FA (iniciais do organizador), volume e página. Todas as traduções serão nossas. A referência completa dos autores citados no texto constará da bibliogra-fia, conforme norma da ABNT.

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mental da matemática e o ponto central para a instituição dos objetos dessa ciência.

Kobayashi, por seu turno, sustenta que a ausência de uma metafí-sica nas Règles obrigou Descartes – ele ressalta que a metafímetafí-sica cartesiana só seria estabelecida nas correspondências de 1630, com a noção de ver-dades eternas – a procurar no pensamento aristotélico a ontologia do objeto matemático. A intuição cartesiana reporta-se à intuição aristotélica na medida em que ela se subordinaria ao objeto sensível que, uma vez abstraído de suas particularidades sensíveis, fornece os subsídios para a instanciação do objeto matemático. A semelhança dos processos de abs-tração nas filosofias de Descartes e Aristóteles mostra o quanto Descar-tes permanece governado pela filosofia aristotélica por não ter uma meta-física definida. No caso da ontologia dos objetos matemáticos, teríamos um exemplo lapidar de tal déficit metafísico no pensamento cartesiano que o obrigou a recuperar a já estabelecida ontologia dos objetos mate-máticos de cunho aristotélico.

Nossa interpretação não acredita que o caráter empírico da ima-gem que delimita um objeto no espaço, apresentada nas Règles (Règle XI-I), autorize-nos falar de uma origem sensível, ainda que indireta, do obje-to matemático nas Règles, sobretudo no sentido arisobje-totélico. Descartes não parece retomar o conceito aristotélico de abstração. O objeto mate-mático é identificado a uma função: apresentar a extensão por meio de símbolos que sãos instituídos por meio de um critério pragmático, visto que não são pensados sob uma perspectiva ontológica.

Considerando esse caráter simbólico que comporta o objeto ma-temático, parece-nos que quando Descartes considera-os como objeto da intuição, ele pretende mostrar que esses objetos não são sensíveis, sendo instituídos pelo entendimento em função das exigências do cálculo da diferença e identidade dos objetos. Desse ponto, decorre a ideia de que objeto matemático torna-se um símbolo abstrato que pode ser aplicado na interpretação do mundo e cuja origem deve-se procurar senão numa tradição oposta à aristotélica, pelo menos numa tradição diferente. Não

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há nas Règles nem uma ontologia cizenta (grise; Marion) nem aristotélica (Kobayashi).

A posição cartesiana nas Règles é duplamente singular: inicialmente, sobre o plano conceitual, por ser refratária ao conceito de abstração aristo-télico, no que tange à instituição do objeto matemático. Em seguida, so-bre o plano ontológico, pela compreensão da intuição como uma realiza-ção do olhar que considera a coisa como uma quantidade passível de ser traduzida por símbolos matemáticos, sem inscrever, contudo, esses sím-bolos no terreno de uma ontologia. A consequência para as matemáticas dessa postura cartesiana é a instituição de uma álgebra que não reconhece mais limites ontológicos entre a aritmética e a geometria, pois conside-rando que o objeto matemático nas Règles é abstrato (no sentido cartesia-no), esses objetos podem se aplicar às diferentes variações das grandezas (contínuas e discretas).

Desse modo, temos um triplo objetivo com este artigo.

1. Tentaremos analisar a semântica do termo abstração (verbo

abs-trair) nas Règles, mostrando a diversidade de empregos do termo.

Diversi-dade que não autoriza, acreditamos, tomá-lo unicamente no sentido aris-totélico.

2. Iremos em seguida mostrar como a abstração no sentido aristo-télico é restrita ao reconhecimento da imagem sensível dos objetos e não tem nenhum papel na constituição do objeto matemático. Portanto, de-fenderemos que não há ontologia do objeto matemático nas Règles.

3. Tencionamos mostrar que a ausência de uma ontologia do obje-to matemático nas Règles obje-torna possível o desenvolvimenobje-to de uma álge-bra e coloca fim na distinção radical – porque ontológica – entre geome-tria e aritmética.

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Primeiras Observações sobre a Natureza dos Objetos Matemáticos nas Règles: a Abstração

Parece-nos que o caráter central da intuição cartesiana impõe-se como uma oposição ao nous aristotélico no que concerne à sua relação com a abstração. A questão inicial será, portanto, saber como a intuição cartesiana pode ser tomada enquanto operação diferente daquela da abs-tração. Diferentemente de certos intérpretes, queremos demarcar a dife-rença entre intuição e abstração em Descartes. Começaremos por uma análise da semântica dos termos abstração e intuição nas Règles, repertorian-do torepertorian-dos os empregos repertorian-do termo abstração nessa obra.

O contexto no qual o termo abstração (verbo abstrair) é empregado caracteriza a sua diversidade semântica e sua ambiguidade. Nessa pers-pectiva, é necessário voltar-se às regras em que Descartes empregou o termo abstractus (abstrato ou abstração) ou o verbo abstraho (abstrair). É notá-vel que é, sobretudo, no contexto das Regras XII, XIV e XVI3 que se

encontra o emprego do termo abstração e do verbo abstrair, ao passo que nas Regras XIII e XVII encontram-se algumas ocorrências4.

Considerando essa primeira constatação, pode-se tecer uma pri-meira e importante observação: o termo abstração (vebo abstrair) é citado, à exceção da Regra XII, nas Regras que se ocupam de problemas e da

3 O termo intuitus e suas declinações estão presentes nas seguintes Regras, a

partir da Regra XII: Regra XII, AT, X, 425, Regra XIII, AT, X, p.432, Regra XIV, AT, X, p.440. Regra XV, AT, X, p.454. O verbo intueor (itus sum, eri) é em-pregado: Regra XII, AT, X, p. 420, 423, 425, 427 e 428; Regra XIII, 435; Regra XIV, AT, X, p.440; Regra XVI, AT, X, p.455; Regra XVII, AT, X, p.459, 460.

4 O termo intuitus e suas declinações estão presentes nas seguintes regras, a

partir da Regra XII: Regra XII, AT, X, 425, Regra XIII, AT, X, p.432, Regra XIV, AT, X, p.440. Regra XV, AT, X, p.454. O verbo intueor (itus sum, eri) é em-pregado: Regra XII, AT, X, p. 420, 423, 425, 427 e 428; Regra XIII, 435; Regra XIV, AT, X, p.440; Regra XVI, AT, X, p.455; Regra XVII, AT, X, p.459, 460.

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natureza dos objetos matemáticos5. Deve-se observar que esse termo é

empregado diferentemente nas Regras em que ele aparece. Primeiramen-te, a palavra abstractus parece designar um ato pelo qual se coloca de lado alguns

elementos determinados de um objeto dado. Essa é a significação que Descartes

atribui no seu primeiro emprego nas Règles:

Quel inconvénient y aurait-il donc, si, prenant garde de ne forger impru-demment ni de recevoir inutilement aucun être nouveau sans nier pour-tant rien de ce que les autres ont pu décider de la couleur, nous y faisons abstraction de toute autre “chose”, que sa nature de figure, et concevons la diversité, qui se trouve entre le blanc, le bleu, le rouge comme celle qui se trouve entre ces figures-ci ou d’autres semblables [...] (Marion, p.42 // AT, X, p. 413)6.

Essa passagem sugere fortemente que a abstração não institui um ser novo ser. Ela suspende as diferenças entre os objetos no intuito de os considerar enquanto quantidade, que deve ser representada por figuras. Desse modo, estamos aqui num centro de uma determinação prévia que desconsidera certos elementos empíricos de um objeto a fim de poder considerar esse último enquanto quantidade ou figura. O termo abstração

5 Divisão das Regras em três partes, cf. AT, X, 428-429. Destacamos em

par-te a Regra XII, pois nela Descarpar-tes também trata da natureza dos objetos mapar-te- mate-máticos.

6 Ver Regra XII // FA, I, p. 159 // AT, X, p. 430. Nessa mesma passagem,

Descartes emprega o termo abstractus (ou o verbo abstraho) como a ação de não considerar numa representação o que não é necessário à sua constituição. Na Regra XIII (FA, I, p. 166 // AT, X, p. 437), o termo abstractus guarda essa fun-ção, de desconsiderar, sendo aplicado, contudo, às dificuldades de um problema. Nesse sentido, ele pode ser compreendido como a ação de isolar, de um proble-ma, certas dificuldades que tornam mais fácil a sua resolução. Ver Regra XIV // AT, X, p. 440 e AT, X, p. 441. A abstração é igualmente uma maneira de separar ou isolar alguma coisa. Ver: Regra XIV// AT, X. p. 445; AT, X. p.446; AT, X. p. 450; (a extensão) Regra XVI // AT, X. p. 450 ou de separar um termo, AT, X. p. 459.

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significa, inicialmente, a ação de não considerar alguma coisa senão sob um certo

ponto de vista.

Os usos do termo abstração são, pois, bastante diferentes nas Règles. Pode-se constatar isso na Regra XII ; mais precisamente na passagem em que Descartes atribui à abstração o sentido de um raciocínio dedutivo. Trata-se aqui de poder deduzir, por exemplo, uma certa propriedade de um objeto a partir de uma figura. Leiamos a seguinte passagem das Règles :

Ce qu’il faut prendre assez généralement, pour ne pas même excepter cel-les, que parfois nous tirons par abstraction des (choses ) simples elles-mêmes : comme il arrive, si nous disons qu’une figure est le terme d’une chose étendue, concevant par “terme” quelque (chose) plus générale que par “figure”, à savoir parce qu’on peut dire aussi terme de la duré, terme du mouvement, etc. (Marion, p.45-46 // AT, X, p.418 / Voir aussi : AT, X, p. 449 )7.

No presente emprego do termo abstração podemos perceber que ele designa uma capacidade do espírito. Nessa perspectiva, o espírito po-de, a partir de uma noção simples, instituir um novo conceito. Quando se faz abstração de aspectos particulares de certos objetos, pode-se instituir um novo conceito que considera o que esses objetos têm em comum. Em outras palavras, o entendimento pode desconsiderar (ou isolar provi-soriamente) os aspectos particulares de certos objetos, apresentando, sob a forma de um novo conceito, os seus aspectos em comum.

Descartes evoca ainda uma outra compreensão do termo abstração. As questões da matemática são definidas como abstratas: “Les questions de cette sorte, qui sont pour la plupart abstraites, et ne se présentent qua-si seulement que dans (les matière) d’Arithmétique et de Géométrie [...]”(Marion, p.54 // AT, X, p.430 / ver também: AT, X, p. 452.). Não é límpido nas Règles o que significa o predicado abstrato quando esse

últi-7 Com o mesmo sentido, Ver: Regra XIV // FA, I, p. 179 // AT, X, p. 449.

Enquanto operação do entendimento, segundo a qual se separa uma coisa de outra: Regra IV // FA, I, p. 179 // AT, X, p. 449.

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mo refere-se às questões da matemática. Com efeito, a Regra II parece-nos trazer alguns esclarecimentos na medida em que acentua a certeza matemática em relação às demais ciências. A matemática trabalha com objetos puros e simples (Marion, p.6 / AT, X, p.366). Descartes pretende dizer que não se deve levar em consideração a experiência quando se ten-ciona definir os objetos matemáticos. Os matemáticos voltam-se para as questões cuja resolução não requer, de modo algum, o apelo à experiên-cia (fonte de possíveis enganos / Marion, p.5 // AT, X, p.364-365). Des-se modo, as questões abstratas são aquelas que apenas levam em conside-ração a dedução na resolução dos seus problemas. A matemática é pura-mente formal e opera com a dedução de símbolos que não designam ob-jetos da experiência.

A extensão é também definida como um entia abstractas. Pode-se distinguir o corpo da extensão por meio de uma operação formal ou, melhor, uma distinctio rationis:

[...] l’étendue n’est pas le corps, alors le mot d’étendue est pris dans un sens tout autre qu’auparavant; [...] mais tout cette énonciation n’est faite que par le pur l’entendement, qui a seul faculté de séparer cette sorte d’être abstrait (Marion, p.65 // AT, X, p. 444).

A possibilidade de conceber a extensão separada do corpo não se inscre-ve numa distinção ontológica. Nesse sentido, a extensão é um ser abstrato simplesmente porque ela pode ser distinguida do corpo pelo entendimen-to puro. Assim, a distinção aqui é válida unicamente em relação ao pensa-mento. Em Descartes, o pensamento pode produzir ideias que têm uma realidade sensível determinada.

Ainda que as Règles tenham sido redigidas em diferentes momen-tos, o que poderia justificar a polissemia do termo abstração, há uma espé-cie de consenso entre os intérpretes de que a redação das Regras, em que há o emprego do termo abstração, remete-se ao um mesmo momento na elaboração dessa obra. A polissemia do termo não revela, portanto, dife-renças conjunturais implícitas aos diferentes momentos da redação do

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texto. A polissemia do termo exige que ele seja compreendido no contex-to de seu emprego (Ver Shuster, 1980, p. 42 e 81). O contexcontex-to determina a semântica do termo. Em outras palavras, a polissemia do termo

abstrac-tus não autoriza compreendê-lo de maneira uniforme. A sua significação

(tanto na forma verbal, quanto na forma substantiva) é variável. Só o contexto permite-nos compreender a sua significação.

Assim, deve-se reconhecer que o termo abstração tem sua significa-ção subordinada ao seu emprego nas Règles. Os objetos da matemática são considerados entidades abstratas na medida em que não se reportam à experiência. O processo pelo qual o entendimento isola do objeto sua natureza corpórea é igualmente designado como abstração. Por fim, o pro-cesso por meio do qual se constitui um conceito a partir de um certo as-pecto em comum de uma série de objetos semelhantes é igualmente chamado de abstração.

As interpretações concernentes ao termo abstração e ao verbo

abs-trair não levam em consideração a multiplicidade de significações que

esses termos denotam. Parece-nos muito difícil considerar a abstração apenas como um processo de isolamento dos constituintes sensíveis dos corpos graças ao qual se poderia instanciar os objetos matemáticos. Essa concepção de isolamento é que está em jogo quando os intérpretes de Descartes procuram estabelecer a ontogênese do conceito de objeto ma-temático nas Règles, pois segundo eles se trata de um processo análogo àquele aristotélico em que a existência do objeto matemático é condicio-nada à ação do nous que desmaterializa o objeto sensível para reter apenas sua imagem e, por conseguinte, a figura matemática (Marion, 2000, p. 52, 60-64; Kobayashi, 1993. p 20).

A figura e a unidade matemática compõem um ser cuja constitui-ção não é reduzida ao substratum, visto que esse ser está desprovido, se-gundo Aristóteles, de corpo sensível. O objeto matemático se configurar enquanto ser abstrato que encontra no ser sensível a sua fonte ontológi-ca. Segundo alguns comentadores, a intuição cartesiana cumpre esse pa-pel – atribuído por Aristótels ao nous – na medida em que ela permite que

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se suprima a matéria dos objetos, preservando, contudo, sua forma ou imagem, a figura matemática.

A Abstração e a Constituição do Objeto Matemático em Descartes É notável que a relação entre intuição e abstração em Descartes não é muito clara. No entanto, podem-se explicitar as distinções requeri-das para a compreensão da intuição no autor. Inicialmente, o termo

abs-tração (verbo abstrair) e o termo intuitus (intueor) são empregados num

mesmo texto em cinco Regras. Todavia, no momento em que Descartes define e desenvolve o termo intuitus ou intueor, ele não faz menção ao termo abstractus (verbo abstraho), salvo na Regra XII. Curiosamente, é jus-tamente na Regra XII que se encontram a maioria das observações que associa o termo cartesiano intuição ao termo aristotélico nous. Por essa razão, essa regra torna-se crucial para a interpretação da ontologia do objeto matemático nas Règles.

A Regra XII é marcada pela transição dos principes de la connaissance e a análise das questions parfaitement comprises. Ademais, encontramos nessa regra várias expressões e termos presentes na filosofia de Aristóteles e na filosofia escolástica. De fato, a reflexão cartesiana parece estar demasiada próxima à tradição escolástica. Nesse contexto, o termo abstração parece ser um elemento decisivo porque ele coloca em evidência a relação entre Aristóteles e Descartes no que concerne à intuição.

A Regra XII é um dos raros momentos em que Descartes esboça nas Règles uma psicologia (AT, X, p. 414). No curso dessa exposição, po-dem-se identificar diversos termos que foram empreendidos por Aristó-teles quando esse último tratava da maneira pela qual a alma constituía a figura na imaginação ou na fantasia. O epicentro da teoria aristotélica repousava no sens commun. Descartes recorre igualmente a esse sens

com-mun:

Troisièmement il faut concevoir, que le sens commun s’acquitte encore du rôle de cachet pour former dans la fantaisie ou imagination comme une cire ces mêmes figures ou idées, qui viennent pures et incorporelles

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des sens externes; et que cette fantaisie est une vraie partie du corps, et d’une dimension assez considérable, pour que ses diverses parties puis-sent revêtir plusieurs figures distinctes les unes des autres, et les retien-nent habituellement assez longtemps : et c’est alors la même qu’on appel-le mémoire (Marion, p.42-43 // AT, X, p. 414).

Não é nossa intenção discutir a psicologia cartesiana nas Règles8.

Com efeito, podemos pensar que o sens commun forma uma espécie de lugar no qual as figuras, vindas do sentido externo, são percebidas pela fan-tasia ou imaginação. Nessa passagem, Descartes faz uma alusão impor-tante referente à origem das figuras. Essa última vem do sentido externo

puro e incorpóreo. Essa passagem sugere que o conceito cartesiano de

abs-tração é parecido com o de Aristóteles. Pensamos que reside aqui a ori-gem da dificuldade em compreender a natureza do objeto matemático em Descartes, em particular nas Règles. Essas dificuldades se inscrevem na falsa compreensão da figura matemática cartesiana que encontra sua ori-gem ontológica no sensível. Assim, o sens commun imprime na fantasia as imagens formadas inicialmente no nível do sens externe. Em seguida, essas imagens seriam abstraídas pelo intelecto e formariam a ideia de figura. Nessa perspectiva, Kobayashi defende a ligação indelével entra a episte-mologia cartesiana e o pensamento aristotélico.

Submetendo a abstração à imaginação nas Règles, Kobayashi de-fendeu que a figura matemática é subordinada à coisa material porque ela retira dessa última sua existência (Kobayashi, 1993, p. 20). Nesse sentido, estamos no centro de uma retomada do pensamento aristotélico, visto que Descartes não se furta a recorrer a esse pensamento para fundamen-tar a natureza do objeto matemático nas Règles. Esses objetos seriam, em última análise, frutos de uma abstração no sentido aristotélico (Kobaya-shi, 1993, p. 26).

De fato, no que diz respeito à psicologia, pode-se, de certa forma, sustentar que a figura é constituída pela imagem do contorno que limita o objeto sensível, de sorte que a “Est si commune et si simple, que toute chose

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sensible l’enveloppe” (Marion, p. 41 // AT, X. p. 413). A espacialidade de

qualquer figura está circunscrita ao limite no qual se encontra sua ima-gem. Sendo que, em certa medida, essa imagem é forjada pela fantasia. Essa última retém do objeto sensível sua figura, designada pela expressão

figure corporelle. A definição de figura, como imagem do objeto sensível,

não se aplica, como mostraremos com maiores detalhes, à figura mate-mática porque essa última é constituída sem apelo à experiência sensível.

Inicialmente, deve-se observar que Descartes apresenta várias sig-nificações para o termo abstração (ou o verbo abstrair) nas Règles. Ora, de-ve-se conceber a distinção entre a figura implicada na representação sen-sível e aquela da geometrtia como a marca do pensamento cartesiano. No que concerne à figura da image corporelle, deve-se admitir que há, numa certa medida, uma retomada do nous aristotélico, dado que a image corporelle é constituída graças a um processo de separação do conteúdo sensível da forma do objeto.

No segundo momento, o termo abstração possui um significado muito próximo do utilizado pelos matemáticos modernos: ele designa o processo pelo qual se desconsidera certos aspectos de uma representação. Em outras palavras, isolam-se certos aspectos de um objeto no intuito de se enfatizar um dos seus aspectos. Por exemplo, se contamos um certo número de coisas, fazemos abstração do que elas têm de “particular” para lhes reter apenas como unidades.

Esses dois processos denominados pelo mesmo termo abstração revelam duas possibilidades de se compreender um dado da percepção sensível. Essa dupla via transcreve, por seu turno, a distinção entre os termos isolar e retirar, pois se se afirma que a epistemologia cartesiana en-contra sua origem no pensamento de Aristóteles, deve-se perceber que os objetos matemáticos chegam ao entendimento por meio de uma abstra-ção no sentido aristotélico. Por conseguinte, deve-se compreender o ter-mo cartesiano abstração coter-mo um processe semelhante ao desempenhado pelo nous aristotélico.

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Por outro lado, o sentido do verbo isolar parece não estar inscrito num âmbito ontológico porque essa ação suspende provisoriamente as características de um objeto sem ter, contudo, a pretensão de suprimir definitivamente essas características para fabricar um novo conceito. Po-de-se facilmente identificar nessa compreensão do verbo isolar o sentido que Descartes atribui à imaginação. A carta de janeiro de 1642 a Mersen-ne apresenta, sem ambiguidades, a compreensão cartesiana da abstração:

[...] et par abstractionem intellecuts, c’est à dire, en détournant ma pensée d’une partie de ce qui est compris en cette idée plus ample, pour l’appliquer d’autant mieux et me rendre plus attentif à l’autre partie (AT, III, p. 475).

O ato de isolar não o de separar definitivamente. Trata-se aqui de uma maneira de olhar a coisa, levando em consideração um dos seus aspectos, ao passo que o ato de retirar implica uma distinção real por meio da qual se institui um outro ser. Descartes parece estar convencido que se pode considerar um objeto apenas num dos seus aspectos. Desse modo, pare-ce difícil confundir o princípio cartesiano da abstração com o aventado por Aristóteles, sobretudo, na Metafísica.

Nas Règles, o termo abstração ganha uma conotação inédita que não pode, de modo nenhum, ser negligenciada. Na filosofia aristotélica, a on-tologia dos objetos matemáticos é claramente condicionada à percepção do ser sensível, visto que a intuição abstrai – separa definitivamente – o objeto matemático do objeto sensível, constituindo um outro ser radi-calmente distinto de ser sensível (Métaphysique, K 3, 1061a-1061B / De L'Âme, III, 7-8, 431b / Physique II, 2, 194a). Em função da distinção entre objeto sensível e objeto matemático em Aristóteles, pode-se perce-ber que não há nenhum comércio entre a matemática e a física porque essas ciências têm objetos ontologicamente distintos. (Métaphysique, K 3, 1064a).

Contrariamente a Aristóteles, Descartes considera que o objeto matemático pode se aplicar ao mundo. O número reporta-se sempre à

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coisa numerada sem, contudo, está subordinado a ela, visto que há várias maneiras de medir-se um objeto “[...] qu’il peut y avoir dans le même sujet infiniment de dimension diverses [...]” (Marion, p.68 / AT, X, p.448). O ponto de vista cartesiano quanto à natureza do objeto matemá-tico escapa, de fato, à ontologia porque ele reportar-se ao entendimento. Esse último pode, diz Descartes, forjar dimensões que não têm necessari-amente fundamento real no objeto (Marion, p. 68 / AT, X, p.448 e 449). As diversas formas de se considerar uma coisa do ponto de vista da quantidade (seja por meio da referência a um objeto físico, seja por refe-rência ao entendimento) revela que os objetos da matemática não se ins-crevem no âmbito de uma ontologia.

O objeto matemático torna-se um símbolo abstrato porque ele não é subordinado à imagem sensível. A abstração é aqui uma simboliza-ção puramente intelectual ou ainda uma maneira de medir as diferentes pro-porções da extensão. De onde se segue o fato de que a simbolização proposta por Descartes nas Règles refere-se, de fato, à prática do matemá-tico que produz diferentes símbolos para representar as diversas propor-ções da extensão, bem como as relapropor-ções entre os objetos sem, contudo, extrair esses símbolos de uma imagem sensível. Pode-se considerar que as Règles não identificam um símbolo matemático à imagem do objeto sensível, percebido pela visão ocular ordinária e abstraído pelo intelecto, no sentido aristotélico. Esse símbolo matemático é um instrumento que torna inteligível a coisa no que concerne à sua quantidade (extensão).

Descartes enfatiza o valor simbólico do objeto matemático que se constitui apenas como uma representação formal da medida das frações da quantidade ou da relação proporcional entre elas. Nesse sentido, o objeto matemático é compreendido como um símbolo formal aplicável ao objeto da experiência sensível (na física, ao cálculo de refração AT, X, p.393-395), bem ao próprio objeto matemático (o que constitui a álgebra, como vamos discutir). Esse objeto é um símbolo que não tem uma refe-rência pré-estabelecida, condicionada a certas características do objeto sensível. Assim, pode-se conceber a diferença entre as figuras

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matemáti-cas – outrora imagens de uma similaridade entre certas figuras, apreendi-das pela sensibilidade – sob a forma de uma equação que suprime a de-pendência da imagem (à qual era necessário recorrer, segundo os gregos, no momento da demonstração). Considera-se as propriedades matemáti-cas como condições suficientes e necessárias para determinar a diferença e identidade entre as figuras e os objetos matemáticos de maneira geral. Não é preciso mais recorrer à imagem da figura matemática para se fazer geometria.

Segundo Descartes, o olhar do espírito codifica o objeto pela esco-lha arbitrária de um símbolo, ao passo que em Aristóteles, o signo mate-mático é intimamente ligado à imagem fornecida pelos sentidos, pois é abstraído dessa imagem. Se o objeto matemático é em Aristóteles uma designação abstrata do objeto sensível, no sentido que o signo representa o contorno que dá forma ao objeto sensível, só é possível aplicar esse símbolo de uma maneira precisa ao objeto sensível do qual aquele signo retira sua imagem. Com efeito, a proposta cartesiana inscreve-se num processo simbólico que só leva em consideração o objeto enquanto quantidade, passível de ser medida e ordenada por qualquer figura ou unidade de medida. Assim, a escolha da representação do objeto mate-mático não está mais condicionada à imagem, percebida pelos sentidos, do contorno dos objetos sensíveis que é, posteriormente, abstraída pelo

nous que constitui o objeto matemático. Ela pertence agora ao entendimento puro.

Deve-se notar que o modo pelo qual se concebe as coisas é a

ex-tensão (AT, X, p.443-445). Poder-se-ia, assim, dizer que o objeto

matemá-tico é um instrumento que torna legível (inteligível) a comparação e a relação entre os objetos no que se refere à extensão. Sem esses objetos matemáticos, não é possível compreender a diferença entre os objetos. Desse modo, deve-se levar em consideração que a figura (o objeto ma-temático de forma geral) serve apenas para estabelecer a diferença entre as proporções da extensão (Marion, p. 69/AT, X, p. 450). A figura não designa necessariamente uma imagem sensível que individualiza o objeto

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no espaço. Ela é a representação abstrata – porque forjada pelo entendi-mento puro – da diferença entre as proporções da extensão.

Nesse sentido, não há em Descartes a abstração da figura imanen-te à imagem do objeto sensível, do phantasma. A figura não transcreve a imagem da individuação – enraizada na matéria signata tomista –, da dife-rença ontológica que marca a individualidade do objeto natural. Ele é menos imagem, cópia que criação, reinvenção, recodificação. A figura é abstrata porque ela pode se aplicar a qualquer objeto. Graças a esse cará-ter abstrato da figura (introduzido por Descartes), podem-se traduzir as diferenças entre as coisas por símbolos.

Por conseguinte, não se faz mais necessário a imagem do corpo sensível – da qual advém, por meio da abstração, no sentido aristotélico, a figura matemática – para representar um certo objeto por meio de sím-bolos matemáticos. É o espírito ou sujeito quem determina o símbolo por meio do qual se designa um certo objeto ou uma relação entre objetos. Repousa justamente na tradução das coisas e das relações entre elas o caráter formal – abstrato – do objeto matemático. Assim, o objeto ma-temático não é abstrato no sentido aristotélico porque sua origem não se encontra no sentido comum, pela abstração das coisas materiais. Pelo con-trário, seu caráter abstrato revela um certo regard do espírito que represen-ta as coisas e suas relações pela constituição de símbolos. Uma vez que o objeto matemático não é o decalque dos objetos naturais, pode aplicar-se a qualquer objeto. Então, o objeto matemático ganha uma conotação meramente instrumental.

Por consequência, a maneira de representar o objeto matemático estará subordinada às necessidades do cálculo, isto é, a forma de repre-sentar o objeto matemático é modificada conforme as demandas do cál-culo, no intuito de torná-lo mais fácil. Considerando o objeto matemático enquanto instrumento, não se deve mais levar em consideração uma dis-tinção radical – porque ontológica – entre geometria e aritmética. Graças ao caráter instrumental do objeto matemático, Descartes põe fim à

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dis-tinção entre geometria e aritmética, apresentando uma maneira, em certa medida, inédita de pensar (representar) o objeto matemático.

A Matemática sem Ontologia nas Règles: a Constituição da

Álgebras

Vimos que o objeto matemático é um símbolo que não tem uma ontologia que lhe corresponda, no sentido aristotélico. Resta saber como Descartes compreende a produção desses símbolos. Colocando o objeto matemático enquanto objeto da intuição, as Règles presidem a construção de uma ontologia desses objetos? Pode-se falar, pelo menos, de uma on-tologia grise do objeto matemático nas Règles ? O debate fundamental se inscreve no conceito de abstração que nos fornece indicações sobre o caráter instrumental da matemática.

Nessas condições, é necessário voltarmo-nos à significação origi-nal de um conceito próximo àquele de abstração: omissão. Nas Règles, a significação do termo omisso parece desempenhar um papel primordial na compreensão da natureza do objeto matemático. A seguinte passagem o coloca em evidência:

[...] si c’est d’une surface, concevons-le même, comme long et large, en omettant la profondeur, mais sans la lui dénier ; si c’est d’une ligne, comme long seulement ; enfin, si c’est d’une point, nous concevons le même en omettant tout hormis qu’il est un être (Marion, p.66 // AT, X, 446).

O termo omissio (ou ainda o verbo omitto, misi, missum, ere) contém um sentido próximo àquele do termo abstração (talvez por essa semelhan-ça Brunschvicg o traduziu por abstraction). Essa proximidade reside no fato de que a omissão de certas propriedades de uma coisa determinada pode fazer com que ela seja tomada como um objeto passível de um tra-tamento matemático. Não se trata aqui de uma compreensão do objeto matemático como imagem ou decalque do objeto sensível. Pelo contrá-rio, a abstração em Descartes revela uma capacidade do entendimento que torna objetos ou relações entre objetos mensuráveis por símbolos

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matemáticos. O termo omissio deve ser compreendido como um modus por meio do qual o entendimento considera uma coisa como uma quan-tidade, matematicamente determinável, sem inscrever, contudo, essa quantidade num quadro ontológico determinado. A forma de quantificar um objeto não é dada no objeto. Ela é um método.

Considerando que os objetos em geral são apenas grandezas (ex-tensão), a maneira de os colocar em relação não comporta mais uma se-paração radical – porque ontológica – entre o contínuo e o discreto. Nes-sa perspectiva, deve-se questionar a maneira mesma de representar o ob-jeto matemático. As figuras podem, com Descartes, representar unidades:

[...] premièrement nous tracerons l’unité en trois manières, à savoir par un, , si nous y prêtons attention comme étendue en longueur et largeur, soit par une ligne,________, si nous la considérons seulement en lon-gueur, soit enfin par un point, . , si nous l’envisageons que comme ce dont se compose une multiplicité [...] (Marion, p.71, /AT, X, p. 453). Do ponto de vista da matemática grega, o que era naturalmente contínuo, como a área de um círculo, não podia ser quantificável, senão por meio da comparação dessa figura com outra do mesmo gênero. Nos

Elementos de Euclides, isso pode ser constatado na seguinte formulação: as áreas de dois círculos estão para si como os quadrados dos seus respectivos raios. Ora,

a passagem citada das Règles permite especificar a identidade entre unida-de e figura no que concerne à compreensão instrumental do objeto ma-temático. A geometria grega é posta em questão na medida em que a dis-tinção radical – porque ontológica – entre aritmética e geometria não é mais sustentada por Descartes. A unidade e figura (contínuo e descontí-nuo) tornam-se praticamente a mesma coisa. Assim, a representação da unidade não é mais subordinada à imagem de um conjunto de objetos sensíveis. Pode-se conceber a unidade por figuras. Trata-se, pois, de um

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critério pragmático que determina a representação de unidade segundo as regras definidas pelo cálculo. A unidade é menos um número (tomado como uma coisa que tem propriedades intrínsecas, como era nos pitagó-ricos: Marion, p.66 / AT, X, p.445-446) que uma maneira de olhar a coisa.

Nessa perspectiva, a separação clássica que opunha o contínuo (geométrico) ao descontínuo (aritmética) é posta em questão por Descar-tes. Para Descartes, o contínuo pode ser traduzido pelo discreto, ou pela multiplicadade das undades: “On doit savoir, que les grandeurs continues au moyen d’une unité empruntée peuvent être parfois toutes ramenées à la multiplicité (...)” (Marion, p.70 // AT, X, 452).

A noção de unidade de empréstimo, como condição para o cálculo de diferentes grandezas, situa-se no nível de uma reforma na matemática. A unidade não deriva mais do objeto por abstração. Pelo contrário, ela é atribuída ao objeto na medida em que se toma esse último como unidade. A unidade é estabelecida segundo um critério pragmático. Assim, para cada relação entre as grandezas dos termos de uma proporção, pode-se representar a unidade pela figura no intuito de realizar o cálculo de duas grandezas propostas (AT, X, p.453-454). Por exemplo, a diagonal de uma quadrado não é mais incomensurável (como era nos gregos), posto que se pode representar as relações entre as linhas (lados) do quadrado por um retângulo. Do mesmo modo que se pode rerpesentar as figuras heterogê-neas – de um ponto de vista ontológico segundo a tradição grea – por unidades, de sorte que a raiz, o quadrado, o cubo etc. Podem ser repre-sentados por grandezas continuamente proporcionais em relação a uma

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unidade, para usarmos as palavras de Descartes, empréstimo, (Marion, 74/AT, X, p. 456-457/Ver também o mesmo raciocínio em La Géométrie AT, VI, p. 370). Abolindo o limite entre a figura (contínuo) e a unidade (discreto), Descartes destaca uma via essencialmente operacional (instru-mental) quanto à maneira de representar o objeto matemático que de-semboca na criação da álgebra.

A compreensão do contínuo e do discreto em função de uma mesma unidade conduziu Descartes a colocar em questão a diferença ontológica entre aritmétia e geometria, na medida em que é possível re-presentar números por figuras, bem como diferentes grandezas contínuas podem ser representadas por uma mesma figura. Em outras palavras, a unidade matemática, que pode representar as construções de figuras ge-ométricas (quadrado, retângulo, etc.), permanece abstrata no sentido em que ela não designa um objeto, fruto de uma abstração, no sentido aristo-télico, mas uma maneira de colocar em relação diferentes grandezas. A desconsideração da diferença ontológica entre o contínuo e o discreto permitiu uma reconsideração da diferença entre aritmética e geometria. Isso porque pode-se suspender as diferenças entre números e grandezas, traduzindo um pelo outro. Trata-se aqui de um momento radical da críti-ca aos conceitos ontológicos que compunham a matemáticríti-ca antiga pelo caráter instrumental, impresso pela matemática cartesiana. As figuras e unidades não são definidas por suas ontologias, mas são pensadas em referência ao cálculo matemático e ao modo de torná-lo mais fácil.

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Desse modo, o número revela-se um instrumento do exame de quantidades contínuas, bem como também descontínuas. Ele torna-se uma forma de exprimir as proporções. Ordem e medida podem ser re-presentadas uma pela outra, pois o número serve, segundo Descartes,

tantôt l’ordre, tantôt la mesure (Marion, p. 74/AT, X, p. 457). Essa noção

governa o pensamento de Descartes, que propõe reportar ao cálculo de figuras (grandezas contínuas) ao cálculo aritmético ou geométrico. Com isso, Descartes torna o cálculo da relação entre figuras menos difícil, pois põe fim à dependência radical da imaginação (Ver Discours, AT, VI, p. 17-18). A ideia de número coaduna-se com o projeto metodológico cartesia-no na medida em que ela não designa mais apenas grandezas discretas, mas grandezas de uma forma geral.

A pretensão de Descartes não é a de dotar a matemática do seu tempo de um corpus maior e mais desenvolvido, mas de modificar mesmo o modo de se pensar metodologicamente a matemática e seus objetos, produzindo uma matemática unificada. Esse projeto consiste notadamen-te em substituir os domínios distintos da manotadamen-temática (ontologicamennotadamen-te distintos) por uma teoria unificada das proporções. Os objetos matemáti-cos não são mais distinguidos por sua referência a um domínio específico da matemática. A compatibilidade entre os diferentes ramos da matemá-tica repousa no método, ou seja, o objeto matemático torna-se a imagem de uma teoria das grandezas.

Com o fim da diferença ontológica entre aritmética e geometria, Descartes promove a constituição de uma linguagem matemática nova

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cujos símbolos referem-se ao objeto matemático de forma geral. Assim, Descartes elimina a distinção entre as figuras, inscritas nas suas diferentes dimensões, linha, superfície e volume, permitindo reportar as figuras à análise de linha – tomada enquanto unidade –, segundo a ordem de suas relações. Nesse ponto reside o segredo do método no que diz respeito à reforma da matemática proposta nas Règles:

On doit savoir aussi, que les grandeurs continues au moyen d’une unité empruntée peuvent être parfois toutes ramenées à la multiplicité, et tou-jours du moins en partie ; qu’aussi la multiplicité des unités peut par après se disposer dans un tel ordre, que la difficulté, qui touche à la connaissan-ce de la mesure, dépende à la fin de l’inspection de l’ordre seul, et qu’en ce progrès réside la plus grande aide de l’art (Marion, p.70 // AT, X, 452).

O advento da álgebra ganha aqui seus contornos iniciais. Do pon-to à linha, não se proclama aqui uma diferença onpon-tológica entre os obje-tos da matemática. As figuras da geometria antiga representavam instân-cias diferentes uma das outras, superfície, volume, plano etc., ao passo que para Descartes elas não representam senão relações proporcionais de grandezas contínuas (Gaukroger, 1998, 98-99 e Vuillemin, 1996, p. 139). Aliás, nada é mais conforme as Règles que a preocupação em determinar os princípios pragmáticos, que permitem a recuperação das diferenças entre os objetos, inscrita no tipo de relações que eles estabelecem em relação ao olhar do espírito. Por isso, as diferenças de grandezas (volume, área, linha, plano etc.) que criavam uma cisão entre objetos tornam-se mensuráveis pelo meio de uma disposição em ordem da multiplicação das linhas cuja simbolização se reporta às equações (Ver La Géométrie, AT, VI, p. 372-372).

A falta de compromisso com uma ontologia torna o objeto mate-mático um símbolo que representa grandezas ou relação entre grandezas. Na álgebra, o objeto matemático, puramente simbólico, pode ser

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repre-sentado por letras e não necessariamente por representações típicas da matemática. Os objetos da geometria são substituídos pelos objetos da aritmética, fomentando o nascimento de uma nova forma de representar os objetos contínuos (Ver também: La Géométrie, AT, VI, p. 370). Desta-camos que a tese cartesiana principal central é a de que a aplicação da aritmética à geometria e da geometria à aritmética não é uma conquista tardia da La Géométrie. Ela se mostra solidária à ausência de uma ontologia e se encontra nas Règles sob a forma da álgebra.

Por não se comprometer com uma ontologia, Descartes pôs em questão a matemática grega. Pode-se interpretar melhor a matemática cartesiana nas Règles, caso se considere o objeto matemático enquanto objeto abstrato (porque vazio em relação à ontologia). É o método que determina como se deve conceber o objeto matemático e não o contrá-rio, como era o caso em Aristóteles. A reforma da matemática proposta por Descartes determina que a geometria pode se ocupar de grandezas descontínuas e torna a matemática menos dependente em relação à onto-logia.

Assim, entre as diversas significações da noção de abstração e do verbo abstrair deve-se reter, no que concerne à matemática nas Règles, a que designa a ação do espírito que torna mensurável qualquer objeto. Com efeito, isso não quer dizer que a matemática é fruto de uma abstra-ção, no sentido aristotélico, mas apenas que o objeto matemático é for-mal e não denota uma instância ontológica.

Conclusão

Por abstração, Descartes não entende outra coisa senão o modo pe-lo qual se leva em consideração o objeto no que diz respeito à quantida-de, seja ela formal (matemática) ou aplicada aos objetos sensíveis (objetos da física). A abstração cartesiana se funda sob a rejeição de Descartes face ao projeto aristotélico referente à ontologia da matemática. Os objetos da matemática não se subordinam à imagem sensível (figura da coisa) por meio da qual se pode individualizar um objeto no espaço. Eles não são

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imagens de uma forma abstrata ou figura imanente ao objeto sensível. A matemática se impõe como uma maneira de colocar em ordem a relação entre os objetos, bem como representar essas relações. Ela é um instru-mento de medida que não é subordinada ao objeto mensurado. Por isso, ela pode se aplicar a qualquer objeto.

A hipótese mobilizada por Descartes é, então, a de que o objeto matemático, que por intuição, pode representar todas as formas e rela-ções sob as quais a “matéria” é suscetível de um tratamento quantitativo. O ponto, a linha, o plano, os números etc., são objetos que não têm uma ontologia própria. Eles são maneiras de considerar as grandezas no que concerne à maneira de colocar em relação uns com os outros. Os objetos matemáticos nas Règles não denotam uma ontologia, nem aristotélica, nem cizenta. Assim, a clássica fronteira entre ontologia e aritmética torna-se irrisória.

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