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As retóricas do diabo, na literatura, no meio do redemoinho: leitura comparada d'os cantos de maldoror e grande sertão : veredas

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Academic year: 2021

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AS RETÓRICAS DO DIABO, NA LITERATURA, NO MEIO DO REDEMOINHO: LEITURA COMPARADA D’OS CANTOS DE

MALDOROR E GRANDE SERTÃO: VEREDAS

Dissertação submetida ao Programa de Pós-Graduação em Literatura da Universidade Federal de Santa Catarina para a obtenção do Grau de Mestre em Literatura

Orientador: Prof. Dr. André Fiorussi

Florianópolis 2019

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AS RETÓRICAS DO DIABO, NA LITERATURA, NO MEIO DO

REDEMOINHO: LEITURA COMPARADA D’OS CANTOS DE

MALDOROR E GRANDE SERTÃO: VEREDAS

Esta Dissertação foi julgada adequada para obtenção do Título de “Mestre” e aprovada em sua forma final pelo Programa de Pós-Graduação em Literatura.

Florianópolis, 02 de abril de 2019. ________________________

Prof.ª Patricia Peterle Figueiredo Santurbano, Dr.ª Coordenadora do Curso

Banca Examinadora:

________________________ Prof.º André Fiorussi, Dr.

Orientador

Universidade Federal de Santa Catarina ________________________

Prof.º Andrea Peterle Figueiredo Santurbano , Dr. Universidade Federal de Santa Catarina

________________________ Prof. José Luis Martínez Amaro, Dr.

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Agradeço primeiramente à Natureza e ao mistério de suas elipses no universo infinito. À Santa Maria, mãe de Deus, que me acolhe e me nutre em seu amor. À minha mãe Quemele por ter me ensinado a ler, a escrever e a fazer poesia. Ao meu pai pelo caboclismo de sangue e modos. Às pessoas diretamente envolvidas na concretização deste trabalho: o meu orientador André Fiorussi, pela confiança, pela paciência, pelo talento notório e precisão dos comentários; aos professores Andrea Santurbano, de quem fui aluno de proveitosa disciplina, e Raul Antelo pela generosidade dos comentários e dicas da qualificação. A José Luis Martínez Amaro pela disponibilidade em participar da banca e pela sua instigante tese a respeito do tema “retórica”. Também agradeço aos professores Sérgio Medeiros e Tereza Virgínia pelas disciplinas oferecidas, pela inspiração e pelos conhecimentos compartilhados. Aos antigos professores da minha graduação na UFOP: o antropólogo Crisóston Terto Vilas-Boas cujas aulas eu jamais esquecerei e ao poeta Duda Machado. A Seu Manoel de Oliveira, Dona Vicentina, Miguel e Sinésio, do Urucuia, que me ensinaram e ensinam o sertão por dentro, a fora. À Ágata Kaiser, poesia da minha vida, meu descanso na loucura, responsável pela minha escolha pelo caminho das Letras. A ela agradeço imensamente as revisões, os conselhos, o carinho e a coragem de viver tudo o que vivemos até agora e o que virá. Aos amigos de longa data: Raoni Soares e Gabriela Guadalupe, que foram as razões de eu chegar à UFSC, pela acolhida e abrigo nos momentos difíceis, mas, sobretudo, pela música e poesia que cultivamos! Aos demais: Andaraí, May, Marquinho, Denise, Maya, Jaqueline, Caio, Elis, Rubens, Camila, Tinho, Fany, pelos momentos juntos que fizeram de Floripa um lugar ainda mais especial: de encontros e reencontros. Às mais de 40 espécies de pássaros que visitaram meu quintal nos tempos do Campeche, especialmente ao João-de-Barro, o barrigudinho. Ao CNPq pelo financiamento da pesquisa, sem o qual este trabalho não seria possível. Aos funcionários e funcionárias da UFSC pela dedicação, trabalho e presteza.

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“O homem é algo a ser superado.” (Friedrich Nietzsche, 1883

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Este trabalho propõe uma leitura comparada entre Os Cantos de Maldoror (1869) e o Grande Sertão: Veredas (1956) no sentido de assinalar um movimento comum: o redemoinho. O efeito desta imagem é produzido por um arranjo retórico dos textos cuja resultante é a indeterminação e a impossibilidade de fixação do sentido e da linguagem destas obras. Os autores cruciais para essa comparação são Maurice Blanchot (1949) e João Adolfo Hansen (2000) que, apesar da distinção do estilo e do espaço temporal que os separam, estabelecem um mesmo método de abordagem literária e assinalam, em seus respectivos trabalhos, operações e efeitos comuns ao texto de Isidore Lucien Ducasse e de João Guimarães Rosa. As alegorias e a ironia, condutoras da repetição e da diferença dos temários destes livros, se integram a este movimento que denominamos “redemoníaco”. Na radicalização de sua operação, além de burlar qualquer noção de centro, origem e verdade e afirmar sobre estas noções o seu jogo indeterminante e soberano, desfaz, na superfície das águas do texto, a face do homem moderno rumo a um devir-outro e porvir.

Palavras-chave

:

Grande Sertão: Veredas. Os Cantos de Maldoror. Retórica. Redemoinho

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ABSTRACT

This work proposes a comparative reading between Les Chants de Maldoror (1869) and Grande Sertão: Veredas (1956) with the aim of signing a common movement: the swirl. The effect of this image is produced by a rhetorical arrangement of the texts which result in the indeterminacy and imposibility of fixing the sense and the language of these masterpieces. The main authors used to make this comparison are Maurice Blanchot (1949) and João Adolfo Hansen (2000). Despite the style and epochal distinction that separate them, they stablish a similar literary approach method and they signalize, in their respective works, efects and operations similar to Isidore Lucien Ducasse and João Guimarães Rosa’s texts. The allegories and the irony, conductors of repetition and difference of these book’s themes, are integrated into this movement we called “redevilswirl”. Radicalizing its operation, beyond cheating any notion of center, origin and truth and asserting tha sovereign and indeterminate play of these notions, it unmakes, at the surface of the waters at text, the face of the modern man in direction to becoming other and to come.

Keywords: The devil to pay in backlands. The songs of Maldoror. Rhetoric. Swirl

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Maldoror (1869) y el Gran Sertón: Veredas (1956) en el sentido de señalar un movimiento común: el remolino. El efecto de esta imagen es producido por un orden retórico de los textos cuya resultante es la indeterminación y la imposibilidad de fijación del sentido y del lenguaje de estas obras. Los autores cruciales para esta comparación son Maurice Blanchot (1949) y João Adolfo Hansen (2000) que, apesar de la distinción del estilo y del espacio temporal que los separan, establecen un mismo método de abordaje literaria y señalan, en sus respectivos trabajos, operaciones y efectos comunes al texto de Isidore Lucien Ducasse y de João Guimarães Rosa. Las alegorías y la ironía, conductoras de la repetición y de la diferencia de los temarios de estos libros, se integran a este movimiento que denominamos “redemoniaco”. En la radicalización de su operación, más allá de burlar cualquier noción de centro, origen y verdad y afirmar sobre estas nociones su juego indeterminante, y soberano, deshace, en la superficie de las aguas del texto, la faz del hombre moderno rumbo a un devenir-otro y porvenir.

Palabras claves

: Gran Sertón: Veredas. Los Cantos de Maldoror.

Retórica. Remolino

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1 INTRODUÇÃO ... 17 2 REVISÃO BIBLIOGRÁFICA ... 21 2.1 RECEPÇÃO D’OS CANTOS DE MALDOROR NO BRASIL

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2.2 O GRUPO TEL QUEL E A FALÊNCIA DA CRÍTICA: LEYLA PERRONE-MOISÉS ... 23

2.3 OUTRAS LEITURAS DO SIGNIFICANTE EM

MALDOROR ... 29 2.4 LEITURAS DE GRANDE SERTÃO: VEREDAS: CLÁUDIA CAMPOS SOARES ... 32 2.5 FUNDAMENTOS PARA UMA LEITURA RETÓRICA .... 38 2.6 A FICÇÃO DA CRÍTICA: A EXPERIÊNCIA LITERÁRIA

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3 LAUTRÉAMONT, NA ESCRITURA, NO MEIO DO

REDEMOINHO... ... 53 3.1 A METAMORFOSE QUE LOGO SOU: LAUTRÉAMONT, DE GASTON BACHELARD, E OUTROS PLATÔS ... 54 3.2 UM LANCE DE “DÊS” DE DEVIRES: DELEUZE & GUATTARI E A RIZOSFERA ... 60 3.3 IRONIA, METAMORFOSE E SEMPRE-VIVAS: MAURICE BLANCHOT E GASTÓN BACHELARD ... 68 3.4 ONDAS DE UM MAR FURIOSO: AS DISPOSIÇÕES DAS METAMORFOSES, SEGUNDO BLANCHOT ... 71 3.5 A FORÇA GRAVITACIONAL DE UM SOL NEGRO: A RETÓRICA REDEMONÍACA E MAURICE BLANCHOT ... 76 3.6 RAÍZES DO RISO EM MALDOROR: DA RIZOSFERA DA ALEGORIA AO SOL ESCURO DA IRONIA ... 85 3.7 AS FLORES DO MAL DA AURORA: APOTEOSE E O DEVIR-SUDAMERICANO DA LÍNGUA FRANCESA ... 92

4 O VERDE TAO DE UM SER TÃO INDEFINIDO: RODA

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TEMAS EM GUIMARÃES ROSA: JOÃO ADOLFO HANSEN E O

GRANDE SERTÃO: VEREDAS ... 102 4.2 A REGRA-DE-TRÊS NO DUPLO JOGO DE “DÊS” DO

GRANDE SERTÃO ... 112 4.3 A VIOLA FALA SERTÃO: A CANTIGA SEREIA DE SIRUIZ 120

4.4 LITERATURA DE MURTA: DA INCONSTÂNCIA DA PALAVRA SELVAGEM ... 139 4.5 DEVIR-FLORESTA, DEVIR-RIO E DEVIR-ÍNDIO DO

SERTÃO: RETÓRICAS DE UMA LINGUAGEM SELVAGEM ... 154

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS ... 171 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ... 177

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1 INTRODUÇÃO

O Mal, o Demo, o Tal, é o mais notório denominador comum às obras de Isidore Lucien Ducasse e de João Guimarães Rosa. Corresponde, porém, não apenas a um tema, mas a um movimento retórico que indetermina e suspende o sentido que este próprio movimento provoca e induz ao realizar-se. Esta potência, em ambos, recusa e desloca a centralidade de um sentido ou qualquer sentido de centralidade, assim como impossibilita a definição ou fixação de qualquer sentido, linguagem ou coisa.

As relações de semelhança e diferença que podemos estabelecer, portanto, não devem ser postas de modo estático ou pretensiosamente definitivo, principalmente quando se trata, em alguns casos, de uma leitura que visa interpretá-las a luz de seus significados, pois todos sabem: o diabo tece tiques, toques, textos e tramas sempre muito enganosos. Estas relações devem, ao contrário, mantendo o foco da análise naquilo que constitui ou emerge da materialidade dos textos (o que não evita os enganos, pois o diabo está em tudo!), estabelecer um movimento, uma dinâmica em que a comparação e a leitura dela resultante não possam, de modo algum, encerrar ou findar o assunto das investigações. Deve sim abrir e, cada vez mais, abrir o caminho da análise para questionamentos e participação neste jogo infinito que elas produzem, mal incurável destas literaturas.

A imaterialidade do Outro, do Que-Não-Diga, do Solto-Eu, é constituída do elemento persuasivo proveniente da materialidade do texto e por isso nos instiga a outro caminho de análise que, mesmo assumindo e operando com leituras hermenêuticas, não são por elas determinadas. Encontrar, pois, caminho na atual circunstância da fortuna crítica destas obras é um objetivo desafiador, muito pela qualidade, dificuldade e importância de alguns trabalhos tutelares, mas também pelo volume de trabalhos, artigos, dissertações e teses a respeito destas obras. Ambas são muito comentadas e mesmo os trabalhos que possam nos desinteressar em seus métodos, abordagens ou conclusões sugerem temas ou questões interessantíssimas. Nosso trabalho, portanto, é parcial. Pega o trem pelo meio, pela metade, e não pretende totalizar coisíssima nenhuma, nonada de nada. É uma aposta neste jogo que nunca cessa na roda da fortuna sem eixo dos sentidos.

O trabalho que empreendemos, enfim, propõe uma leitura comparada dos livros Os Cantos de Maldoror (1869, 2015) e Grande

Sertão: Veredas (1956, 2001). Esta leitura se desenvolve em três capítulos: 1- O que se dedica a uma revisão da vasta crítica que

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empreendeu comentar as obras selecionadas e, segundo nosso critério, desenvolver a perspectiva e o método de abordagem; 2- O que trata de uma análise específica d’Os Cantos de Maldoror a partir das leituras e formulações de Gaston Bachelard (1939, 1989), Gilles Deleuze & Félix Guattari (1980, 2012) e, principalmente, Maurice Blanchot (1949, 2014), aquele que julgamos o autor mais importante nos estudos lautreamonianos e 3- O que propõe a abordagem do Grande Sertão:

Veredas a partir, especialmente, da análise de João Adolfo Hansen (2000), o autor que acreditamos ter maior relevância nos estudos rosianos. Integramos também à nossa leitura outros autores, tais como o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro (2002), seus instigantes conceitos e formulações e o agricultor Ernst Götsch, suas experiências e leitura da Terra e seus biomas. Neste momento do trabalho, na parte final, extrapolaremos as questões intrínsecas ao texto do Grande Sertão:

Veredas para propor brevemente a leitura de três contos de Guimarães Rosa: “Meu tio o Iauaretê”, “Terceira Margem do Rio” e “São Marcos”. Essas leituras, porém, se dão no sentindo de assinalar uma gravidade imanente, manifestada como força exterior à sua materialidade e criada pelo corpo densíssimo do Grande Sertão, que impõe a estes contos e ao conjunto da obra rosiana órbitas variadas. Esta noção permite preservar, por um lado, a singularidade de cada obra e, por outro, avaliar as relações que estabelecem (ou podem estabelecer) umas com as outras no espaço indefinível e contingencial que as separam. Devemos dizer ainda que esta exterioridade imanente, que impõe para além dos contos uma órbita e um desfecho para qualquer matéria ou leitura que se aproxime, movimento redemoníaco análogo ao Os Cantos de Maldoror, é o assunto de nosso maior interesse neste trabalho.

De modo sumário, é notável que Maurice Blanchot e João Adolfo Hansen assinalam uma semelhante questão n’Os Cantos de Maldoror e no Grande Sertão: Veredas, respectivamente. É a aplicação de uma

fórmula, deduzida da descrição de uma potência giratória semelhante ao redemoinho ou às gravitações planetárias, na apresentação, organização e trituração das matérias e temas. Esta é a questão a que daremos maior atenção, pois é a partir e dentro dela que desenvolveremos nossa leitura, isto porque a resultante desta operação é sempre uma nulidade infinita e indeterminante do sentido, dos conceitos e das coisas. Inclui no vórtice desta leitura a ideia ou o conceito de “humano”, este provincianismo universalizável pela violência, posto em perspectiva pelas alegorias que antropomorfizam os animais, os vegetais e os territórios, etc., ou ainda que zoo, fito e geomorfizam o homem, cada qual a seu modo, em ambos os romances. Porém, devemos assinalar desde já que os sentidos

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produzidos por essas alegorias, sem que sejam subsumidos pelos modelos epistemológicos em questão, tais como a árvore do conhecimento, o

rizoma ou o sertão, são frutos de uma prática literária, artística, eminente e inevitavelmente retórica e de soberana ironia.

A leitura complementar e eventual de alguns autores, apresentadas no corpo do texto ou em pé de página, se dá, igualmente, de modo parcial. Se algumas delas visam a uma contextualização de alguma matéria, outras visam, além de embasar nossa leitura, a suscitar, provocativamente, as questões sempre atualíssimas a respeito da definição da função e do papel do “homem”, não só e restritamente na sociedade, na história, na política, na língua, no mito ou na cultura propriamente “humana” – como os iluministas, naturalistas, realistas, neo-realistas e românticos de toda ordem e espécie o fizeram e fazem –, mas também na integração e na interação com as muitas formas, versões e perspectivas da vida e a infinitude intotalizável do jogo de sua linguagem, pois o “humano” nestas obras é uma ponte para outra coisa, em devir. Suscitar, porém, sem pressupor ou propor qualquer resposta definitiva, pois a linguagem destas obras, por sua vez, também é ponte para outra coisa, coisa outra esta, entretanto, que deságua sempre em si mesma e, por isso, sempre outra, indefinidamente.

O Mal da literatura (e aqui estamos certamente de algum modo pensando em George Bataille) é fazer de si, além de suas referências, o objeto de sua própria indeterminação que se expande também de modo indeterminante e exige, sem alternativa, comentários. Isso não é mau. É uma exigência do jogo. Apenas os comentários, neste jogo, são o que permite às obras, bem ou mal, uma existência real. “Antes falar bobagens, que calar besteiras”, escreve João Guimarães Rosa no conto “Partida do audaz navegante”. Sendo assim e tendo já feito esta artificiosa introdução, devemos propor que entre a matemática severa do oceano de Lautréamont e a álgebra mágica do sertão de Rosa, há mais literatura do que sonha toda a vã filosofia.

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2 REVISÃO BIBLIOGRÁFICA

Este capítulo visa a uma revisão da bibliografia selecionada com o intuito de avaliar, para a leitura que desenvolveremos das obras nos capítulos subsequentes, os elementos constitutivos, as técnicas escriturais, as relações com as poéticas da modernidade, assim como o lugar que ocupam nos cânones nacionais e na tradição moderna a partir de elementos selecionados da sua recepção histórica. Nossa leitura conta a seguir com o trabalho realizado por duas autoras: Leyla Perrone-Moisés e Cláudia Campos Soares. Elas apresentam importantes trabalhos de revisão crítica d’Os Cantos de Maldoror e do Grande Sertão: Veredas respectivamente. Entretanto, iniciaremos tratando das ressonâncias da obra maldoriana no Brasil.

2.1 RECEPÇÃO D’OS CANTOS DE MALDOROR NO BRASIL Vamos procurar expor tal recepção d’Os Cantos de Maldoror através de um prefácio de Raul Antelo para a nova edição da obra de Lautréamont lançada em 2015 pela editora Unicamp. Raul Antelo, neste prefácio para a recente tradução de Joaquim Brasil Fontes de Os Cantos

de Maldoror, intitulado “Ninguém por trás, muitos pela frente”, na primeira parte do seu texto, “sem autor”, fará uma leitura da obra de Lautréamont situando-o, do mesmo modo que o faz Giorgio Agamben, como o “artista mais emblemático desse desdobramento moderno da arte de que participam também Baudelaire, Rimbaud ou Mallarmé” (ANTELO, 2015, p.13). Na segunda parte, com o intertítulo “com leitores”, procura esboçar as influências e a recepção de Lautréamont no Brasil. O autor dirá que

A referência inicial, no Brasil, ao jovem sol negro [grifo nosso] que inaugura nosso tempo, para retomar a expressão de Murilo Mendes, data de 1901, quando se dá a primeira transcrição d’Os Cantos de Maldoror, assinada por Saturnino de Meirelles, diretor da revista Rosa-Cruz. Não muito depois, em uma de suas “Kodaks”, muito anteriores certamente às de Blaise Cendrars ou de Oswald de Andrade, Pedro Kilkerry captava o pulso (ANTELO, 2015, p.16)

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Em 1918, Adelino Magalhães ecoaria a máxima ‘a propriedade é um roubo’ em ‘A greve’ (de Visões, cenas e perfis) e, a seguir, em seu volume Inquietude (1922), o mesmo Magalhães inclui uma sinfonia à metrópole, anterior também à versão berlinesa de Walter Ruttmann e Carl Mayer ou à mais tímida variante paulista de Rodolfo Lustig e Adalberto Kemeni, com evidentes ecos de Lautréamont (ANTELO, 2015, p. 17)

Antelo nos dará ainda os exemplos, em nota de rodapé, de “Sérgio Milliet, que escreve sobre ‘Poetas Malditos’, dentre eles Lautréamont (Letras e Artes, nº 99. Rio de Janeiro, 15 de setembro de 1948)”, José Geraldo Vieira e seu “Explicando Lautréamont...”(1945) e também de Fausto Cunha, que “publica umas ‘Umas reflexões sobre o caso Lautréamont’ (Letras e Artes, nº 283. Rio de Janeiro, 15 de março de 1953)”, porém dizendo que é apenas com a “revista Phala (nº1, 1967; nº2, 2013) que Lautréamont impregna o discurso surrealista local” (ANTELO, 2015, p.19). Por fim, o autor fará menção a Julio Cortázar, que, em 1945, “traduzindo fragmentos de Maldoror para seu curso de literatura francesa, e certamente disseminando valiosas marcas de suas futuras ficções, (...) anota em seus manuscritos: ‘Bestiário: concilia metamorfose/agressão. MUNDO PRIMITIVO’” (ANTELO, 2015, p. 21). Podemos aqui sugerir o acréscimo da obra de João Guimarães Rosa às referências e ressonâncias do Conde de Lautréamont no Brasil1, principalmente em se

tratando da relação metamorfose/ agressão quando pensamos, por exemplo e à primeira vista, em “O meu tio o Iauaretê”.

Raul Antelo dirá também que:

(...) Mário de Andrade, leitor do ensaio de Paul Dermée sobre Lautréamont na velha revista Esprit Nouveau, recebe em 1938 um presente de Portinari, a edição Skira d’Os Cantos, ilustrada por Salvador Dali. Autor de O agressor, Rosário Fusco, fixa um programa estético na mesma linha esboçada por Foucault, a de um discurso sem ninguém por trás, ao dizer que, ‘assim como o

1Há um exemplar da obra de Isidore Ducasse na biblioteca do acervo pessoal de

Guimarães Rosa, sob administração e cuidados do Instituto de Estudos Brasileiros da USP. A edição é de 1938. Seu endereço eletrônico de catálogo é: http://200.144.255.59/catalogo_eletronico/fichaLivro.asp?Documento_Codigo= 173266, acesso em 10 dez. 2018.

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sobrenatural é o reverso do natural, o suprarreal é o outro lado do real. Mas nem todo real é existente’. A essas alturas, Aníbal Machado já copiava frases de Maldoror em suas cadernetas de anotações e, sem contar Murilo Mendes, cujas referências a Lautréamont atravessam alguns poemas e murilogramas, vários outros escritores sentem-se atraídos também pela figura do Conde até a Falência da crítica de Leyla Perrone-Moisés (ANTELO, 2015, p.19).

2.2 O GRUPO TEL QUEL E A FALÊNCIA DA CRÍTICA: LEYLA PERRONE-MOISÉS

A falência da crítica: Lautréamont: um caso limite (1973), citado por Antelo, é um livro que agrupa diversos tipos de comentários sobre Os

Cantos de Maldoror pelo critério da afinidade de seus métodos e princípios. “Crítica biográfica”, “crítica ocultista”, “crítica das fontes”, “crítica temática”, “crítica psicanalista”, “marxista”, entre outras, formam o quadro das categorias usadas por Leyla Perrone-Moisés. A partir destas categorias, ela perguntará:

Que pode a crítica biográfica com um autor quase desprovido de biografia? Como farão os historiadores da literatura para situar no tempo e no espaço essa obra inclassificável (...)? A crítica psicológica, acuada por falta de dados biográficos, perde-se nos recônditos dessa personalidade fugidia porque exclusivamente literária. A crítica das fontes, procurando situar os pontos de partida da obra, encontra um referencial cada vez mais vasto, afastando-se cada vez mais da obra para mergulhar no repositório da cultura ocidental (PERRONE-MOISÉS, 1973, p.14).

Desta conclusão, que surge já no início da obra de Leyla Perrone-Moisés, a análise irá se desenvolver no sentido de assinalar que apenas a chamada “crítica estruturalista ou semiológica”, formada pelos autores do grupo Tel Quel: Julia Kristeva, Phillipe Sollers e Marcelin Pleynet, assim como outros autores, tais como Gaston Bachelard (com ressalvas) e Maurice Blanchot (com completa adesão, aparentemente), são vistos como possuidores de méritos críticos. Eles teriam, segundo ela, escolhido como foco de suas análises a dinâmica dos significantes para a

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investigação da obra, ao contrário das demais que, visando um sentido geral, uma totalidade ou uma unidade, buscavam significados na movediça linguagem de Lautréamont.

Leyla Perrone-Moisés, julgando menos convincente a análise de Julia Kristeva a respeito dos gramas escriturais em Maldoror devido a uma abordagem que isola os fonemas do sistema ao qual eles são integrados, transparecendo uma arbitrariedade, vai dar ênfase à denominada leitura paragramática, que se caracteriza, no texto de Kristeva, por uma diferenciação tipológica de dois outros sistemas: 1- aquele fundado sobre o signo e o sentido, que seria lógico, ou melhor, monológico, explicativo, conservador, imutável e que não visaria “modificar o outro (destinatário)” (KRISTEVA, 2005, p. 120); 2- a prática semiótica transformativa que, segundo a autora, é aquela em que o signo se destaca de seus denotata no intuito de modificar o outro. Seria a prática semiótica “da magia, da ioga, do político em época de revolução, do psicanalista” (KRISTEVA, 2005, p.120), onde as relações do triângulo “objeto-destinatário-lei (=sujeito) não são reprimidas”, porém permanecem sob uma ideia de unicidade (KRISTEVA, 2005, p. 120). A leitura paragramática seria o que ela denomina “prática semiótica da escritura”, uma leitura dialógica em que o “signo é suspenso pela sequência paragramática correlativa, que é duplo e zero” (KRISTEVA, 2005, p. 120). A autora exemplificará da seguinte forma:

Poderíamos representar essa sequência como um tetralema: cada signo tem um denotatum; cada signo não tem um denotatum; cada signo tem e não tem um denotatum; não é verdade que cada signo tem e não tem um denotatum. Se a sequência paragramática é π e o denotatum é D, poderíamos escrever: π = D + (-D) + [D+ (-D)] + {-[D + (-D)]}= 0 (KRISTEVA, 2005, p. 121).

Devemos dizer que esta formulação de Julia Kristeva já se encontra em desenvolvimento quando a autora trata dos “Gramas escriturais sintagmáticos”. Ela inicia sua argumentação citando a obra:

"Quando escrevo meu pensamento", diz Lautréamont, "ele não me escapa. Essa ação me faz lembrar de minha força, de que esqueço a toda hora. Eu me instruo na medida de meu pensamento encadeado. Tendo apenas a conhecer a contradição de meu espírito com o nada". O encadeamento da

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escritura com o nada que ela transforma em tudo, parece ser uma das leis da articulação sintagmática dos paragramas. A Via é vazia (Tao To King, IV) (KRISTEVA, p.115, 2005).

Neste sentido, a autora esboçará reiteradas vezes e demonstrará através da teoria dos conjuntos e operações matemáticas o modo de Lautréamont sequenciar a exposição de seus temas. Ela nos dirá que “Cada sequência é, assim, aniquilada; os pares formam zero que tem significado, e o texto, estruturando-se como cadeias de zeros significantes, contesta não somente o sistema do código (romantismo, humanismo) com o qual dialoga, mas também sua própria textura” (KRISTEVA, p. 117, 2005). A complexa relação entre os termos da operação dessa escritura, em que os elementos que operam na fórmula adquirem valores relativos e instáveis diante de inúmeras variáveis, será esclarecida por Kristeva nos seguintes termos: “Percebe-se, então, que esse vazio não é nada e que o paragrama não conhece o nada (néant), o silêncio é evitado por 2 que se opõem. O zero como absurdo (non-sens) não existe na rede paragramática. O zero é dois, que é um (...)” (KRISTEVA, p. 117, 2005). De outro modo e mais sucintamente, Julia Kristeva revela nos Cantos um diálogo constante com o corpus literário precedente, “uma contestação perpétua da escritura precedente” (KRISTEVA, 1974, p.67,68), onde se poderia compreender este diálogo (herança bakhtiniana) como aquilo que permite ao escritor professar uma moral ambivalente: “a da negação como afirmação” (KRISTEVA, 2005, p.68).

Sobre o trabalho de Phillipe Sollers intitulado La science de

Lautréamont (1968), Leyla Perrone-Moisés enfatiza três tópicos principais: “1 – a necessidade de encarar os Cantos-Poesias como um ‘aparelho’; 2- a escritura de Lautréamont como uma tanatografia (desenunciação e morte do sujeito); 3 – a escritura de Lautréamont como ciência do arbitrário do signo” (PERRONE-MOISÉS, 1973, p.133). O primeiro diz que as obras Cantos de Maldoror e Poesias (segundo e último livro de Isidore Ducasse, que ele assina com seu nome próprio) formam juntos um sistema em que se estabelece uma crítica mútua de uma obra à outra. Dessa relação crítica que as obras estabelecem, cria-se um espaço escritural que desestabiliza as relações de autor fictício (Lautréamont) e autor real (Ducasse). Nesse sentido, do jogo, dá-se igualmente o segundo tópico. Leyla Perrone-Moisés cita Sollers:

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A prática literal da escritura coloca efetivamente em evidência não uma dualidade enunciado/enunciação, mas, por uma defasagem, um descentramento e uma dissimetria específicos, o enunciado da enunciação do enunciado, ou ainda, uma infinitização dos enunciados (...) dando incessante prova da ausência de todo sujeito (PERRONE MOISÉS, 1973, p. 133)

Isto também o levaria a elaborar o terceiro tópico proposto pela autora, em que diz que “Lautréamont não pretendia fazer poesia mas ciência” (PERRONE-MOISÉS, 1973, p. 134). A autora dirá que os membros do grupo Tel Quel foram os pioneiros no sentido de procurar saber de qual ciência se tratava. Dirá: “Ora, essa ciência seria sobretudo uma ciência da escritura, assim definida por Sollers, fazendo uso de uma formulação de Jacques Derrida:

... uma certa possibilidade de ciência, onde a palavra ‘ciência’, é verdade, toma uma posição e um valor não instituídos, não instituíveis, e que permanecem inacessíveis a uma certa tradição de ensino. Mas chegou sem dúvida o momento de nos afastarmos de um saber afinal de contas habitual, que recua diante o estremecimento do jogo da escritura e de suas consequências. Chegou o momento de encarar essa ciência definida por Derrida como ‘ciência da possibilidade da ciência... ciência do arbitrário do signo, ciência do rastro imotivado, ciência da escritura, antes e dentro da fala’(...) (SOLLERS apud. PERRONE-MOISÉS, 1973, p.134)

Leyla Perrone-Moisés concluirá a partir destas formulações de Phillipe Sollers que Lautréamont, em sua pretensão de “liquidar a representação, o signo e o conceito” (PERRONE-MOISÉS, 1973, p. 134), funda uma nova língua. Essas formulações de Phillipe Sollers, segundo a autora, se devem muito ao estudo anterior realizado por Marcelin Pleynet, na obra intitulada Lautréamont (1967, 1977), que evidencia primorosamente a estreita relação entre Os Cantos de Maldoror e a retórica dita “clássica”. Esta questão, entretanto, estaria vinculada a um eixo de sua abordagem: “mito-retórica-inconsciente” (PERRONE-MOISÉS, 1973, p. 132).

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O autor seleciona cinco topoi ou processos escriturais presentes na composição dos Cantos e que em sua efetuação seriam, muitas vezes, invertidos: 1- topos da conclusão: algumas conclusões aparecem em lugares introdutórios, por exemplo. 2- topos da modéstia afetada: podemos citar o exemplo do início do livro em que o narrador, cheio de si, recomenda ao leitor o abandono da leitura. 3- topos do mundo invertido: haveria nesse sentido um uso tão exagerado desse topos que faz da matéria absurda algo totalmente desproporcional em relação a outras referências. 4- articulação negativa: nesse sentido, ele estabelece um sistema de negação que inclui a própria negação como conteúdo negado, fazendo das dualidades “pseudo-dualidades”. 5- a expressão das diferenças: diz respeito ao uso indistinto de diversas fontes que provocaria a constante sensação de ruptura, de fratura e modulação do texto.

No capítulo “A língua e o proibido”2, Pleynet vai traçar uma série

de formulações a respeito da cultura, da história e da língua. Essas associações serão avaliadas do ponto de vista da infração que Pleynet trata em termos de incesto, “esta proibição maior que é o incesto” (PLEYNET, 1977, p.120), em que a língua, figurando como mãe (língua mater), estabelece um tabu que garante seu funcionamento em relação à manutenção de uma ordem. Pleynet diz que “é nesta medida que Lautréamont entra neste espaço dos limites” (PLEYNET, 1977, p.120) e fará, em seguida, uma análise da primeira estrofe do primeiro Canto. Há, neste Canto, uma menção sobre um desejo irrealizado de contemplação do rosto materno seguida por uma metáfora que se desenvolve, a saber, uma alegoria sobre o voo de uns pássaros. Suas formulações concluem a retórica como aquela que vigia o uso e o funcionamento da língua. Marcelin Pleynet diz:

Esta metáfora dos grous friorentos que se articula sobre a do rosto materno, que é como uma extensão, pode ser lida no princípio, como o nascimento do conflito do qual a ficção não deixará de alimentar-se. Conflito a partir do qual Lautréamont trabalha a estrutura dualista (natureza-cultura), atribuindo à animalidade razão e inteligência, é dizer, ‘julgando’ ao antropomorfismo e restituindo à cultura seu caráter limitado (PLEYNET, 1977, p.121).

No capítulo “A resistência retórica”, nos dirá da importância da

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compreensão do funcionamento da retórica clássica, antiga, para a compreensão dos Cantos, visto que ela é sua referência de infração e transgressão, sua língua mater:

Se damos como definição da retórica, e eu não vejo outra melhor, a suspeita dirigida sobre a língua materna, e, portanto, sobre o que recobre esse conceito de ‘língua materna’ (...), vemos como o empreendimento lautreamoniano se encontra na obrigação de desmontar o jogo, jogando-o, e como (...) se encontra inexoravelmente conduzido por uma consciência sempre mantida forçosamente em estado de vigília, em mal da aurora (PLEYNET, 1977, p.132).

Há também uma parte importante do trabalho de Pleynet em que o autor relaciona a produção inconsciente dos sonhos com os processos retóricos. No capítulo intitulado “Retórica do inconsciente”, dirá: “Poder-se-ia confeccionar uma lista muito completa da utilização que Lautréamont faz da retórica e da tópica clássica e das relações que estas mantêm com o inconsciente, mas um livro seria insuficiente” (PLEYNET, 1977, p.132). Entretanto, para desenvolver um pouco mais esta perspectiva, Pleynet recorrerá à Emile Benveniste quando este diz:

O inconsciente empenha-se em uma verdadeira ‘retórica’ que, como o estilo, tem suas ‘figuras’, e o vasto catálogo dos tropos brindaria um inventário apropriado para os dois registros da expressão. Por uma e por outra parte aparecem todos os procedimentos de substituição engendrados pelo tabu: o eufemismo, a alusão, a antífrase, a preterição, a lítote. A natureza do conteúdo fará aparecer todas as variedades da metáfora, pois é de uma conversão metafórica da qual os símbolos do inconsciente extraem seu sentido e sua dificuldade por vezes. Empenham também o que a via retórica chama metonímia (continente pelo conteúdo) e sinédoque (parte pelo todo), e se a ‘sintaxe’ dos encadeamentos simbólicos recorda algum procedimento de estilo entre todos, será a elipse (BENVENISTE apud. PLEYNET, 1977, p.132). No tópico intitulado “Do sonho e da retórica”, Marcelin Pleynet

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associará o estado de aturdimento adormecido da consciência de Maldoror a um processo de inversão de uma estabelecida prática retórica. Ele recorre à cena em que o sonho se dá sob a forma de uma aranha de grande espécie. Dá ênfase ao trecho da obra que diz de um “irrefutável silogismo” que este sonho possuiria: "Esta última estrofe do Canto V indica claramente que, para ele, o sonho é silogismo, no sentido etimológico da palavra: como linguagem."(PLEYNET, 1997, p.128). Acrescentará que "não é suficiente, para criar um clima onírico, o descrever de nossos sonhos, porque é precisamente o contrário que o produz." (PLEYNET, 1977, p.129).

Toda a produção onírica, assim como o uso das inúmeras fontes, as paródias e os momentos autocríticos da obra, diria respeito a uma efetuação retórica específica que visa a agredir o costume ou aquilo que comumente é chamado de instituição retórica. Entretanto, segundo nossa leitura, esse uso retórico específico que Lautréamont põe em funcionamento é baseado, ainda que com intencionalidade claramente irônica e debochada, na eficácia e na persuasão.

O critério adotado por Leyla Perrone-Moisés para atribuir maior mérito a esses críticos (Kristeva, Sollers, Pleynet) se dá em função de um pressuposto: elegeram como objeto de suas análises elementos que são constitutivos do texto lautréamoniano, ou seja, nas palavras da autora, consideraram a obra “não como um sistema de significados, mas como um sistema de significantes” (PERRONE-MOISÉS, 1973, p.163). Esses autores determinaram a própria obra, no seu universo de composição particular, e ao buscar os elementos que a constituem e a configuram como objeto de análise, distanciam-se das demais que buscavam nas fontes, na biografia, na psicanálise, etc., a chave para a compreensão do texto literário.

2.3 OUTRAS LEITURAS DO SIGNIFICANTE EM MALDOROR Poderíamos acrescentar, a partir dos mesmos critérios da autora, outros comentadores importantes, como Jean-Luc Steinmetz e Patricia M. Lawlor. O primeiro, em um prefácio para a edição da Gallimard, de 2009, observa um movimento que submete o leitor a oscilações bruscas de atmosferas, em que ora é seduzido por uma narrativa, ora se depara com uma interrupção autorreflexiva3. Esta mesma observação se encontra

3Ele nos diz: “Esta criação que conta a história de uma destruição funciona como

um bumerangue, na medida em que submete o leitor a terríveis alterações de frequência; porque algumas vezes ele é seduzido pela trama, pela narração, ele recebe uma emoção que eleva seus desejos; outras vezes, ele vê interrompido o curso de uma história e toda sua atenção, portanto, deve remeter à produção do

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sinteticamente em um verbete do Dictionnaire de Poésie de Baudelaire à

nos jours, que seria a interrupção da diegese (marcada por momentos distorcidos e interferências autorreflexivas), o que provocaria, segundo o autor, um jogo de “impertinente congruência” (STEINMETZ, 2001;417- 420). Sobre este processo duplo de escritura utilizado por Lautréamont, ele nos diz que revelaria uma escolha estética ironizante. Esta escolha, entretanto, e as bruscas mudanças de atmosfera que ela provoca no texto, possuiria, segundo Steinmetz, uma “percussão vocal subjacente” (STEINMETZ, 2009, p.25), com exceção apenas, segundo ele, das cenas que possuem diálogo. A primeira vez que o autor fala dessa questão rítmica d’ Os Cantos de Maldoror se dá quando fala do próprio título da obra. Para ele, “cantar” diz mais respeito ao universo da poesia que do romance. Os longos parágrafos que compõem grande parte das estrofes dos Cantos, assim como a pontuação e as diferentes velocidades que o texto imprime na leitura, levarão o autor a definir a obra como uma "rapsódia ritmada" (STEINMETZ, 2009, p.25).

A respeito da interrupção autorreflexiva que Jean-Luc Steinmetz assinala, Patrícia M. Lawlor4, em um artigo intitulado “Lautreamont,

modernism, and the function of mise en abyme” (1985), nos diz que a introversão, característica primária do modernismo, teria sido realizada em Os Cantos de Maldoror através da técnica de mise en abyme. A autora cita Niel Hertz para definir tal técnica: “uma ilusão de regressão infinita pode ser criada por um escritor ou pintor pela incorporação de um trabalho dentro do próprio trabalho que duplica em miniatura a macroestrutura, criando uma aparente interminável série metonímica” (HERTZ apud. LAWLOR, 1985, p.829). A autora dirá:

Em literatura, mise en abyme chegou a incluir uma duplicação por analogia tal como o retorno de imagens ou eventos similares. (...) O texto de Lautréamont é literalmente – e abissalmente – seu próprio sujeito e objeto. (...) O escritor não é apenas consciente de si mesmo, mas consciente de que está consciente, consciente de que está consciente de que está consciente e assim indefinidamente, infinitamente (LAWLOR, 1985, p.829).

Para a autora, o autocomentário ou autocrítica presente no texto não

texto colocado sob seus olhos” (STEINMETZ, 2009, p. 28). Tradução de nossa responsabilidade.

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diria respeito a um metatexto, mas sim ao próprio texto. É justamente esta dimensão que se encontra nesse sistema de duplicação infinita: a consciência de estar consciente da consciência de estar consciente da consciência de estar consciente, etc. Não apenas uma história dentro da história dentro da história, como nas Mil e uma noites, por exemplo. Estes comentários interromperiam o tempo narrativo para impor, obstinadamente, o tempo presente da leitura. Eles comentam o que foi, é e será realizado na obra, sendo, por sua vez, a própria realização da obra.

Entretanto, devemos assinalar que essas formulações de Patricia Lawlor são complementares à noção de um duplo processo de escritura em Lautréamont segundo Steinmetz. Em todos os momentos em que esta técnica da introversão, os autocomentários, aparece no texto, ela vem acompanhada por uma narrativa que desempenha o papel de ocultar, através do choque e do assombro das imagens distorcidas subsequentes, o que foi comentado ou anunciado. Segundo nossa leitura, esta seria uma eficácia retórica irrefutável d’Os Cantos de Maldoror, pois toda perturbação que o texto provoca, o que rendeu ao autor Ducasse a fama de maldito, perturbado, desequilibrado, está, no próprio texto, comentado e anunciado em termos técnicos e demonstrativos pelo próprio autor. Podemos situar com precisão os momentos em que se dá essa dimensão autorreflexiva no texto. Como possui tanto a característica de remeter a um passado e anunciar um futuro, esta geralmente se dá no começo e no fim dos Cantos, abismando um espaço de turbilhões narrativos e metamorfoses. No nível das estrofes, essa dimensão passa pela mesma dinâmica de alternância. Há apenas um único momento em que essa parte autorreflexiva ocupa toda a estrofe, sem nenhuma narrativa que divida seu espaço textual: a primeira estrofe do Canto VI, a primeira depois da cena da aranha. Essa estrofe, ainda de modo análogo à cena da aranha, apresentaria também um sentido globalizante, porém invertendo a densidade do onirismo para uma densidade autorreflexiva. Na abertura do Canto VI, há uma explicação clara e completa tanto do que foi a experiência dos cinco primeiros Cantos, como a antecipação do que virá, suas conquistas estéticas, seu trajeto através do uso e da modificação das diversas formas literárias, até chegar à forma definitiva que utilizará para seu desfecho: o romance. Os Cantos de Maldoror voltarão a apresentar esta dimensão autorreflexiva apenas no final da penúltima estrofe e, com maior ênfase, na última.

Devemos dizer que tudo que viemos esboçando sobre Os Cantos

de Maldoror e apresentando brevemente dos autores até então mencionados (Kristeva sobre as operações que da duplicidade dos termos gera uma resultante vazia, uma suspensão; Sollers sobre o processo de apagamento do sujeito e a relação sistêmica entre Os Cantos de Maldoror

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e Poesias; Pleynet sobre questão retórica que produz e integra as narrativas paródicas e oníricas do texto; Lawlor sobre a função do mise

en abyme da dimensão autorreflexiva; Steinmetz sobre o sistema duplo de escritura que alterna as narrativas paródicas e oníricas com interrupções autorreflexivas), assim como a atmosfera irônica que esse processo cria, encontra-se, de outro modo desenvolvido e integrado, na obra Lautréamont e Sade (1949, 2014), de Maurice Blanchot. Em termos distintos desses autores, Blanchot comenta de modo complexo todos os tópicos mencionados e assinala outros tantos importantíssimos sempre muito pouco assinalados, conforme procuraremos demonstrar posteriormente.

2.4 LEITURAS DE GRANDE SERTÃO: VEREDAS: CLÁUDIA CAMPOS SOARES

De forma análoga a Leyla Perrone-Moisés, porém de modo mais conciso por se tratar de um artigo, Cláudia Campos Soares separa em quatro as tendências da crítica sobre o Grande Sertão: Veredas. A primeira é aquela que vê no sertão de Rosa uma interpretação e uma representação do Brasil, sendo o destaque e o motivo dessa tendência predominante as análises de Antônio Cândido (1983). A segunda interpreta o Grande Sertão: Veredas como uma mistura de realidade e ficção, sendo Luiz Roncari (2004) aquele que o denomina como lugar de conjunção destas duas dimensões de representação do Brasil junto a elementos da mitologia grega. Soares assinala, porém, que a tendência predominante desta crítica foi separar história e mito. Como exemplo do enfoque específico dos aspectos históricos está o trabalho de Walnice Nogueira Galvão (1986) e, em relação aos mitológicos, o de Benedito Nunes (1976). A terceira tendência privilegia os procedimentos linguísticos utilizados por Rosa na construção do Grande Sertão:

Veredas. Segundo a autora, haveria dois subgrupos nessa tendência: o primeiro, de caráter mais filológico, que busca estabelecer correspondências entre inovações linguísticas com as questões da metafísica e do misticismo; o segundo, o daqueles que privilegiaram a leitura do significante em detrimento do significado. Deste último subgrupo se destacam os Concretistas, que sempre aproximaram Rosa a James Joyce em função do singular tratamento que dava à linguagem.

Soares cita o trabalho de Augusto de Campos, “Um lance de ‘dês’ do Grande Sertão” (1959), que vê na atitude experimental com a linguagem tanto no nível lexical como no sintático uma relação com o

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autor de Ulisses. As aliterações e rimas internas caracterizariam esse trabalho lexical ao lado da “sintaxe telegráfica” (SOARES, 2012, p. 138), ritmada e “pontuada de pausas”. Apesar de muito relevante a leitura de Augusto de Campos, a autora questiona o propósito de analisar a recorrência da letra “d” e sua configuração do sentido no Grande Sertão:

Veredas. O problema de tal análise, segundo ela, seria isolar uma constante num sistema linguístico complexo que desemboca sempre num sentido arbitrário.

Neste ponto cabe uma distinção entre a avaliação de Cláudia Campos Soares e Leyla Perrone-Moisés. Até então, ambas pareciam estabelecer categorias até muito parecidas para classificar as tendências críticas que se dedicaram a comentar o Grande Sertão e Maldoror, apesar de Soares sintetizar e subdividir em quantidades menores e mais pontuais o número destas categorias. Entretanto, a diferença mais importante em relação a estas duas abordagens é que, para Cláudia Campos Soares, a análise literária que preza a avaliação do significante em detrimento do significado, diferentemente de Leyla Perrone-Moisés, não garante por si só o mérito crítico. Isto se deve, em grande medida, por uma postura militante e telquelista mais restrita à abordagem linguística de Perrone-Moisés, enquanto Cláudia Soares, apesar de rigorosa e restringir mais que Perrone-Moisés sua lista de méritos, parece lidar de forma mais aberta com abordagens interdisciplinares. São, sobretudo, tempos e perspectivas diferentes, leituras sugestivas de serem contempladas no devir histórico da crítica.

Para Soares, apenas a quarta tendência seria dotada deste mérito e esta, por sua vez, seria aquela menos explorada pelos críticos contemporâneos. Tal crítica se dedica a interpretar o texto rosiano “sob o prisma dos discursos da modernidade” (SOARES, 2012, p.139). Destaca o estudo de Jean-Paul Bruyas, em trabalho chamado “Técnicas, Estruturas em Grande Sertão: Veredas” (1983), em que assinala uma “dialética da

afirmação e da negação” (SOARES, 1983, p.142), uma “dialética sem síntese” (SOARES, 1983, p. 142), que faz uso de aspectos do gênero romanesco e épico, mas que, ao mesmo tempo, são postos em cheque por conteúdos antirromanescos e antiépicos. Soares dá grande enfoque a um importante aspecto assinalado por Bruyas: a descontinuidade narrativa do

Grande Sertão: Veredas. Segundo ele, os fatos se revelariam “ao leitor [...] a posteriori, ao preço de uma reconstrução, ao mesmo tempo lógica e cronológica, de uma reorganização (às vezes laboriosa) daquilo que no livro se apresenta numa desordem por muito tempo total” (BRUYAS, apud: SOARES, 1983, p.142), ao contrário do relato realista. A respeito dessa necessidade de o leitor reorganizar e reconstruir o fio da narrativa

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em um momento posterior, o autor situará tal momento de desordem ou descontinuidade nos dois primeiros terços do livro. Este espaço da obra seria fortemente marcado por uma interrupção intermitente. Jean-Paul Bruyas dirá também que o próprio começo da obra seria uma interrupção abrupta: “A voz nos chega bem no meio de uma conversa conversada, não se sabe quando, não se sabe com quem e nem por quem” (BRUYAS, 1983, p.77).

O autor começa por avaliar a “micro-estrutura”, ou seja, as frases ou tipos de enunciados. O tipo de enunciado mais comum seria aquele extremamente curto, que na série falada onde estão encadeados não estabelecem entre si uma ligação, mas sim são “justapostos” ao invés de ligados, ou mesmo “ligados de uma forma diferente da que se espera, o que aumenta a situação, a autonomia de cada enunciado, sua força quanto enunciado distinto” (BRUYAS, 1983, p.78). Jean-Paul Bruyas recorre às vinte primeiras linhas do romance para exemplificar essa observação. Ele encontrará seis enunciados formados por uma só palavra, quatro de duas palavras, um número grande de três palavras, etc. A partir dessa observação o autor irá assinalar que esses enunciados, que produziriam o efeito de staccato no texto rosiano, além de “gramaticalmente incorretos”, são essencialmente elípticos, pois dispensam palavras de ligação. Isto faria “ressaltar ainda mais as palavras importantes” (BRUYAS, 1983, p.78) e provocaria “o descontínuo, o chocante, o imprevisto das construções” (BRUYAS, 1983, p.78) que dariam à língua uma “acentuação muito diferente daquela corrente falada normalmente” (BRUYAS, 1983, p.78). Dirá ainda: “Nenhum romance rompe e nega – mais do que este – o deslizamento fácil, como de sonho, a aspiração, como

hipnótica [grifo nosso], que tende a criar normalmente o curso romanesco” (BRUYAS, 1983, p.78). Em relação a este efeito de staccato, Bruyas acrescenta no texto rosiano outros termos musicais, tais como: a dissonância, o sincopado, o brusco e a percussão. Irá assinalar, por outro lado, a utilização de um “tempo” ou um ritmo outro na construção dos enunciados, o movimento oposto: “o contínuo, o legato, em enunciados bastante amplos” (BRUYAS, 1983, p.79), apesar de estatisticamente mais raro. Tal contraposição de estruturas reforçaria uma a outra. Esta alternância, “breves ou longos, separados ou ligados”, não reagrupa seus termos em conjunto, mas se mostra “errante, irônica [grifo nosso], saboreando às vezes, sua vagabundagem, o mais das vezes mordaz, impaciente, crispada” (BRUYAS, 1983, p.79).

Até aqui as formulações de Jean-Paul Bruyas parecem coincidir com algumas daquelas que assinalamos a respeito d’Os Cantos de

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subjacente, ou melhor, a prosa ritmada de Riobaldo, a ruptura intermitente provocada por alternância de dimensões textuais distintas, assim como o deslizamento similar ao sonho de efeito hipnótico e a ironia que esse sistema também duplo provoca ao operar são termos comuns às obras. Outro aspecto comum que devemos destacar é a sensação de desordem nos três primeiros terços da obra. Este aspecto em Lautréamont é abordado com bastante ênfase por Maurice Blanchot, pois, nessa virada que a obra daria, a ironia ganharia nova inflexão no texto. O próprio Lautréamont, no princípio do sexto Canto, avalia os cinco primeiros Cantos como uma experiência que daria sustentação ao relato claro e linear, na forma de romance, da parte final da obra. Sobre essa organização geral, Jean-Paul Bruyas dirá sobre o Grande Sertão:

Veredas:

Uma organização geral se esboça pouco a pouco, não de maneira linear, como já dissemos, (...), porque as cenas, as mais diversas, começam a revelar suas relações com certos temas do livro ligados a certas obsessões do narrador. Fatos insignificantes ou capitais, reflexões, digressões, recuos, desvios e retornos, dispondo-se em espirais [grifo nosso] ou em forma de estrela [grifo nosso] em torno dos episódios essenciais, são ordenados em um mosaico mental em que todos os elementos se respondem: na longa interrogação sobre o passado, que é o próprio romance (BRUYAS, 1983, p.79).

O autor prosseguirá, mais adiante, sobre a parte final da obra: (...) a partir da p.300, isto é, no último terço do livro, Grande Sertão: Veredas apresenta (com exceção da língua [grifo nosso], mas que exceção!) o aspecto de um romance tradicional: cronologia seguida, encadeamento lógico e claro dos acontecimentos, paralelismo entre o destino dos heróis e a progressão da ação, ascendente para um ponto culminante (aqui, de violência, com a batalha final), depois queda, desfecho. Ao mesmo tempo, naturalmente, nesse “final” todos os elementos anteriores da composição se reencontram e se esclarecem e na enorme sinfonia revela a sua profunda unidade (BRUYAS, 1983, p.79, 80).

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Soares contempla tal leitura dentro da noção de “crise da representação” nas narrativas da modernidade. A conclusão de Bruyas é a presença de uma intrínseca duplicidade no Grande Sertão: Veredas. Segundo ele, não há nada que “não seja duplo, antagônico, que não tenha a marca da divisão, de ambiguidade, talvez da dilaceração” (BRUYAS, apud: SOARES, 1983, p.143). Soares nos diz sobre a conclusão de Bruyas: “Esta instabilidade radical do texto, contudo, não impede o crítico de localizar, no final das contas, a unidade na contradição e ele acaba por explicar as ambiguidades do texto pela ausência de significado existencial” (SOARES, 2012, p.143).

Cláudia Campos Soares então observa que, mesmo de modos distintos, “as vertentes críticas discutidas até aqui partem da crença na possibilidade de extrair do Grande Sertão: Veredas um sentido fechado” (SOARES, 2012, p.143). Cláudia Soares cita João Adolfo Hansen, que para ela seria um autor na contramão de toda crítica rosiana. Ela nos dirá que:

Como observou o crítico, abordagens de determinação e mimese não alcançam a complexidade das questões presentes em Grande

Sertão: Veredas porque, no livro, a forma significante insiste em ficar indeterminada, o sentido não se revela de forma unívoca, permanecendo sempre em suspensão (SOARES, 2012, p. 143).

Cláudia Soares continuará dizendo que “Em tempos de decadência da linguagem, Rosa tenta recuperar o seu vigor perdido por meio da “negação da ‘lógica’ e afirmação dessa outra coisa, efetuada artificialmente como coisa alheia à representação” (HANSEN apud. SOARES, 2007, p. 144). Vai então fazer uma observação, esclarecendo que o “raciocínio de Hansen não pode, entretanto, ser confundido com o dos críticos que acreditam numa metafísica da linguagem rosiana, uma vez que o vigor a ser devolvido à linguagem passa pela indeterminação do sentido” (SOARES, 2012, p.144). A indeterminação do sentido é efetuada “por meio de procedimentos retóricos como a criação de imagens onde ‘o conceito das coisas’ é apresentado de forma ‘nítida e luminosa’, mas ao mesmo tempo deformante, porque a definição da forma contrasta com a indefinição do fundo” (SOARES, 2012, p.144). A autora concluirá em seu trabalho que

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resta observar que, em seu questionamento da força mimética na ficção de Guimarães Rosa, Hansen optou por privilegiar uma dialética de formas e deformações. O caminho aberto pelo crítico merece ser explorado em outras dimensões. A questão é também recorrentemente tematizada no

Grande Sertão, como se percebe, por exemplo, na dúvida sistemática que subverte as certezas do narrador, nas aporias a que chegam recorrentemente as reflexões de Riobaldo e no motivo do fluxo, que no romance de Rosa, está representado, por exemplo, nas imagens do rio e a da travessia. Se isso constituiria uma contribuição enriquecedora para a obra de Guimarães Rosa é uma questão em aberto, a ser respondida em futuras práticas críticas (SOARES, 2012, p. 144). Apesar de a autora citar no corpo do texto apenas o artigo “Forma, indeterminação e funcionalidade das imagens de Guimarães Rosa” de João Adolfo Hansen, muitos são os trabalhos que ele dedicou à obra rosiana: “Terceira margem” (1996), “O sertão de Rosa: uma ficção da linguagem” (2006), “Grande Sertão: Veredas e o ponto avaliativo do autor” (2007) e “Forma literária e crítica da lógica racionalista em Guimarães Rosa” (2012). Nestes artigos se encontra uma série de análises que abordam, quase de forma integral, todos os tópicos e princípios da crítica que selecionamos e comentamos a respeito de Maldoror. Essas análises são realizadas nos mesmos termos: ora por uma abordagem estruturalista, semiótica, ora formalista, outrora com base nos autores chamados pós-estruturalistas, mas, sobretudo, com grande enfoque em uma leitura retórica dos textos de Rosa. Hansen parece tomar todas as frentes. Todos esses trabalhos se encontram de algum modo reunidos de forma absolutamente complexa e relevante para os estudos literários em seu livro o O: a ficção da literatura em Grande Sertão: Veredas (2000). Portanto, é a esta obra que daremos maior atenção, juntamente com

Lautréamont e Sade, de Maurice Blanchot. Por essa razão, propomos mais a frente uma leitura de Maurice Blanchot e João Adolfo Hansen no intuito de investigar neles uma relação particular que constroem com as obras que analisam, seus métodos, pressupostos e suas abordagens. Em

Lautréamont e Sade e o O: a ficção da literatura em Grande Sertão:

Veredas, além da leitura das obras literárias, estes autores se dedicam também, inevitavelmente, a uma leitura da própria crítica, e nestas searas

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há a possibilidade de muitas convergências e esclarecimento mútuo entre as duas práticas. Entretanto, antes disso é necessário esclarecer, ainda que brevemente, o que aqui estamos compreendendo como retórica e justificar nosso interesse por ela.

2.5 FUNDAMENTOS PARA UMA LEITURA RETÓRICA

A tese elaborada por David Wellbery, em seu livro Neo-retórica e

Desconstrução (1998), no primeiro capítulo intitulado “Retoricidade: sobre o retorno modernista da retórica”, associa a centralidade cultural da chamada retórica clássica com a centralidade de uma tradição visual proveniente da convergência de aspectos próprios das construções arquitetônicas gregas e romanas. Tal como a tradição greco-romana de construção arquitetônica definiu e determinou a arquitetura europeia durante longo tempo, a retórica definiu a produção, a transmissão, o ensino da escrita europeia desde a antiguidade até o período do Iluminismo e o Romantismo:

A disciplina da retórica - adaptada através de uma ampla gama de reformulações aos requisitos específicos das sociedades grega, romana, medieval e renascentista - dominou a educação e o discurso europeus, públicos e privados, por mais de dois mil anos. (...). Mas vamos nos concentrar, ao invés disso, no período de duas fases - as fases aqui chamadas, abreviando drasticamente, Iluminismo e Romantismo - que acarretaram o fim da retórica clássica como sistema dominante de educação e comunicação. Localizamos os fatores do declínio da retórica num feixe de transformações sociais e culturais que ocorreram, grosso modo, entre os séculos XVII e XIX. Os vários fatores que causaram, ou acompanharam, a deposição da retórica se fundiram em duas tendências históricas principais: a primeira eliminou a retórica do domínio do discurso teórico e prático; a segunda do discurso imaginativo ou estético. (WELLBERY, 1998, p.12)

Depois de expor essa ruptura em relação ao domínio da retórica clássica na produção do discurso, o autor nos fala de um retorno modernista da retórica que denomina, no intuito de distinguir da antiga, como

retoricidade. Este retorno contemporâneo às questões da retórica não seria uma retomada ou reprodução da retórica clássica, pois haveria um hiato

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temporal e uma distância cultural que as separa enormemente. Esta retomada modernista, que Wellbery trata em termos deleuzianos de uma repetição “que não reproduz o mesmo”, implicaria, de outro modo, o próprio fim da retórica, pois esse retorno se daria de forma descontínua em relação ao passado. O autor apontará cinco fatores que colaboraram para a desarticulação do sistema retórico tradicional:

1- "Transparência" e "neutralidade" surgiram como valores predominantes do discurso teórico e prático - o discurso científico passou a se ancorar na "objetividade".

2- Os valores de "autoria" e "expressão individual" vieram a definir o domínio literário - o discurso imaginativo passou a se ancorar na "subjetividade". 3- O discurso político liberal surgiu como linguagem da troca comunitária.

4- O modelo oratório de comunicação foi substituído pela imprensa e a publicação - a Europa foi alfabetizada.

5- O Estado-nação tornou-se a unidade política central e surgiram línguas nacionais padronizadas como esfera linguística de referência para a produção e compreensão culturais (WELLBERY, 1998, p.28).

Dirá que as questões performativas do discurso, hoje tratadas nas disciplinas correspondentes a linguística, teoria da informação, estilística, crítica literária, sociologia, comunicação, marketing, relações públicas, etc., estariam vinculadas a uma nova maneira de compreender o funcionamento da linguagem, seus níveis, seus processos, tudo vinculado com a nova realidade sócio-cultural-histórica em que se encontram. O autor dirá, por exemplo, da penetração da retoricidade no universo das ciências sociais e humanas. Cita primeiro Hayden White e sua análise retórica da historiografia clássica, que eliminaria “qualquer afirmação de imparcialidade e objetividade que a disciplina pudesse propor” (WELLBERY, 1998, p. 34). Depois Clifford Geertz, que “examinou a produção do conhecimento antropológico como uma operação intrinsecamente retórica e suas explorações logo serão seguidas de outras que exploram a retórica das ciências humanas vizinhas” (WELLBERY, 1998, p. 34). E por fim citará Michel Foucault que, segundo ele, “com a insistência tanto no enraizamento institucional quanto na produtividade cultural dos discursos, estabelece o padrão para qualquer investigação que

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procure despir a retoricidade daquilo que anacronicamente chamamos de nosso conhecimento positivo” (WELLBERY, 1998, p.34). Citamos esses trechos pois o exame realizado por Geertz, de uma análise retórica do discurso antropológico, é dizer, da dimensão discursiva daquilo que compreendemos ou pressupomos como “humano”, é um dos centrais interesses deste trabalho, ainda que não tratemos de Geertz diretamente.

David Wellbery apresenta então outros cinco tópicos para a caracterização e contextualização da nova prática retórica: 1- O que trata do desmoronamento do ideal de objetividade científica e a descrença na neutralidade do discurso científico e prático; 2- O que compreende a descrença no valor da “subjetividade fundadora” no modernismo em decorrência de uma série de autores e movimentos como Baudelaire, Mallarmé, a escrita automática dos surrealistas, Kafka, Beckett, Blanchot e as composições coletivas dos poetas Renga. Acrescente ainda a psicanálise freudiana, Heidegger e Rimbaud que questionam os valores de autoria e criatividade individuais; 3- A modificação do modelo liberal de comunicação do Iluminismo, e artístico no sentido do Romantismo, onde a literatura torna-se "impura, tendenciosa, uma reflexão sobre a própria inadequação"; 4- O que trata do destronamento da imprensa que cedeu lugar à reprodução fonográfica e às diversas formas de telecomunicação; 5- A inadequação em se pensar em modelo de língua nacional típicos do Iluminismo e do Romantismo.

O segundo tópico é especialmente sugestivo. Nenhum dos autores citados pôs em questão de forma tão radical, por um apagamento quase completo, os valores de autoria e criatividade individuais: “O plágio é necessário. O progresso o implica”, nos diz Lautréamont. Além do mais, como apresentamos anteriormente, esse código retórico tradicional era alvo de sua infração (Pleynet), assim como o Iluminismo e o Romantismo. É notório que no período correspondente à publicação d’Os Cantos de

Maldoror, entre os anos de 1868 e 1869, ainda que Isidore Ducasse não seja mencionado por Wellbery, apenas Baudelaire o precede em data de publicação dentre os autores mencionados como fundadores e participantes do modernismo literário: Baudelaire, Mallarmé, Rimbaud, os surrealistas, Kafka, Becket, etc. Apesar da omissão de Ducasse por Wellbery, fazendo menção a Baudelaire, aquele que para Lautréamont seria um "mar de reminiscências" (BLANCHOT, 2014), à escrita automática dos surrealistas, seus fiéis devotos, ao próprio Blanchot, nos faz parecer muito sugestiva a contemplação d’Os Cantos de Maldoror a partir da compreensão de sua tese. Se pensarmos também, segundo a perspectiva de Cláudia Campos Soares, que avalia as críticas sobre o Grande Sertão: Veredas pelo “prisma dos discursos da modernidade” (SOARES, 2012, p. 139), e João Adolfo Hansen

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e seu mérito propriamente retórico como princípio de análise do texto rosiano, soa igualmente sugestivo. E o é. Porém, o próprio Hansen, em um artigo que trata justamente da questão da instituição retórica e da técnica retórica, nos apresenta uma visão um pouco diferente da historicidade e do próprio sentido do termo retórica. Uma de suas prerrogativas é:

(...) o termo ‘retórica’ com o sentido que tem na fórmula grega tékhne rhetoriké, ‘técnica retórica’, e na latina, ars rhetorica, ‘arte retórica’, em que é adjetivo, como em português, técnica retórica, não substantivo, a Retórica. Com o adjetivo, evita-se a ilusão da existência de um corpo unitário, fechado e acabado, como saber ou objeto positivo que apenas espera reconhecimento. Com a subtração do substantivo, também se elimina esse idealismo e ressalta-se a materialidade contingente das práticas que recorrem às técnicas retóricas (HANSEN, 2013, p.12).

O autor prossegue mais a frente:

Com essas especificações, quero eliminar a noção cientista e positivista corrente de que a ‘velha retórica’, ‘retórica antiga’ ou ‘retórica clássica’ é um conjunto unitário de descrições da fala feitas como receitas mais ou menos empiristas que foi superado pelo progresso da ciência linguística. As técnicas retóricas são aplicadas em enunciações contingentes; a linguística estrutural opera com frases abstraídas das situações de uso; logo, retórica e linguística são irredutíveis e a pretensão da linguística moderna de incorporar a técnica retórica como uma linguística da langue como ‘retórica restrita’ de tropos e figuras de linguagem está minada a priori pelo reducionismo. (HANSEN, 2013, p.13)

Com isso, aceitando a tese de um retorno na modernidade do interesse sobre os assuntos da retórica, conforme David Wellberry defende, devemos, entretanto, esclarecer que o termo “retórico” que utilizaremos se refere às técnicas aplicadas na dimensão material do texto que visam à eficácia e à persuasão, ou seja, como adjetivo: feitos e efeitos retóricos. De fato, nada mais adequado do que o adjetivo retórico

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