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CONCLUSÃO. 1 Conforme Antonio Magalhaes: O que não se pode rejeitar, porém, é que tanto a preocupação de

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CONCLUSÃO

Pensar que Deus só existe por intermédio das pessoas, de boas e más, e pensar que só por intermédio das pessoas é que o diabo existe, é compreender que o que de fato existe é o “intermédio das pessoas”. E essa é a compreensão de Riobaldo.

É por intermédio das pessoas que a vida se dá: a história, as ações e reações, as escolhas, o que acontece e o que deixa de acontecer, as consequências, a memória, a interpretação dessa memória, etc. Além disso, é compreender que o sagrado só existe e só se faz “também” por intermédio das pessoas, das boas e das más. Obviamente que essas conclusões não caberiam num manual de teologia dogmática (contexto católico) e nem de teologia sistemática (contexto protestante e evangélico). No entanto, essa não deixa de ser uma conclusão de teologia, mesmo que seja apenas meia-conclusão ou meia-teologia.

De outra forma, pensar assim seria pensar também – e isso foi tratado no segundo capítulo desta tese – em como uma personagem de ficção poderia contribuir para tal compreensão (também para outras compreensões) em teologia. Miguilim, Augustro Matraga, Grivo, Lina, Riobaldo etc, são personagens de ficção, frutos da imaginação do autor mineiro Guimarães Rosa, que poderia ser, ele sim, considerado alguém que está refletindo na literatura uma forma de pensar teológico. Mas a personagem, além de imaginação do autor, é a tensão existente, tanto na teologia como na literatura latino-america, entre o que é o imaginário e o que é reflexão1. Assim, a personagem, por poder ser, a partir da verossimilhança, a forma de reflexão do autor, do leitor, de um contexto específico ou mesmo de uma conclusão comum que não concorda com o dizer afixado, é o ponto para a leitura. E foi por esse caminho que se pensou e que se construiu as reflexões na Vereda da Vida, como caminho de leitura para a obra Rosiana.

1 Conforme Antonio Magalhaes: “O que não se pode rejeitar, porém, é que tanto a preocupação de Schleiermacher quanto a de Hegel colocam uma questão fundamental para o debate teológico: a tensão de fato existente para a teologia, que caminha entre o imaginário e a reflexão, e é dentro desse itinerário que a literatura latino-americana se encontra”. Antonio Carlos de Melo MAGALHÃES.

Deus no Espelho das Palavras: teologia e literatura em diálogo. São Paulo: Paulinas, 2000. (Coleção:

Literatura e Religião). pp.129-130.

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A partir de tais leituras, que apontam para as primeiras conclusões, ainda seria possível pensar na relação entre personagens e, desse modo, também na relação entre textos, numa forma de intertextualidade, como se caminhou pelo terceiro capítulo, com a Vereda da Palavra. Primeiro de Riobaldo, como personagem de uma literatura que se entende como literatura de imaginação; depois de Dante, como literatura de imaginação, mas com força e relação clara dentro dos imaginários de religião; e, por fim, Jó, uma personagem Bíblica. Jó, como em parte já dito, é uma personagem bíblica pensada a partir de uma historicidade, que se lhe for tirada, lhe é tirada (em parte) também a força de espiritualidade. Dante é personagem e escritor, histórico, mas também ficção, e ficção embebedada de um imaginário religioso bem específico, numa mistura de filosofia, mitologia grega, imaginário cristão católico, teologia e também de literatura, pois não se pode esquecer que quem transita pelas veredas de um imaginário específico da religião: inferno, purgatório e céu, são os poetas. Agora, Riobaldo é só ficção. Mas é ficção, romance, que mantém também uma relação clara com a história e com a sociedade da qual faz parte, com questões sociais, de política, geografia etc; bem como com o imaginário religioso, o corrente, mais popular, e o erudito, mais teológico. Nisso, Jó, Riobaldo e Dante são iguais.

Numa linguagem que lhes é comum, a literária ou icônica, de forma também digital2, revelam um universo de sentidos, de verdades e de valores que seus textos defendem3. E isso não é só imaginação, literatura de imaginação, para o divertimento ou devaneio, é reflexão, é questionamento ou ponderação, é ampliação, ou mesmo uma forma de proposta diferente, uma proposta outra.

Do jovem que vê o pai entrar no rio em canoa, para nunca mais voltar, ao próprio pai, pai crocodilo que entra no rio – na profundidade humana –, passando por Miguilim, por Diadorim, por Lalino Salãthiel, pelo Pedrês, pela menina de fita-verde no cabelo, até Riobaldo, todos querem ler seu mundo e entendê-lo, mesmo que seja a partir da imaginação de seu autor, e, também, por meio de um fazer teológico meio

“distorcido e confuso”. Mas o que se quer é entendê-lo, para dele criar sentido: “só o que eu quis, todo o tempo, o que eu pelejei para achar, era uma só coisa – a inteira – cujo significado e vislumbrado dela eu vejo que sempre tive”4. Mas não é só isso, o

2 Icônico e digital são termos usados por Juan Luis Segundo, termos já usados no presente texto.

3 Cf. Id. Ibid. p.170.

4 João Guimarães ROSA. Grande Sertão: Veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001. p.500.

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texto se faz palavra – a narrativa de uma estória-história – para poder também ser e dar sentido para múltiplas e diversas situações da vida, para ser verossimilhante, algo imaginado, identificável na vida e citável no real5. Isso aproxima outra vez os textos religiosos dos textos literários de imaginação e religião dos textos de imaginação. O que, novamente, cria esse elemento de aproximação, uma forma de intertextualidade:

os textos da grande literatura, sejam eles agora pertencentes a um cânone religioso ou não, são textos descentralizados, procuram ser (e são) “mais” do que lhes é atribuído6, são palavras que criam sentido, são significadoras.

Se se insiste – e em parte é isso que a presente tese procura – que a obra rosiana, mais especialmente o “Grande Sertão: Veredas”, é “mais” do que literatura, também se deve pensar no que quer dizer esse “mais”7, e isso, independentemente do projeto originário do autor8 ou mesmo do projeto imaginado de possíveis leitores, capazes de canonizar o texto como texto de religião. Pois ela é, penso eu, uma literatura que continua formando – junto, mas também à parte da literatura de religião9 – uma forma de consciência espiritual que começa no autor da obra e chega

5 “[...] o que se passa é que a peça literária está adquirindo a qualidade existencial de entrar na vida de alguém e de se transformar em possessão pessoal A capacidade de adquirir essa qualidade de se tornar citável perante uma variedade de situações é imprevisível: [...] a literatura [neste sentido] pode adquirir o mesmo elemento descentralizado que discutimos em relação à Bíblia”. Northrop FRYE. O código dos códigos: a Bíblia e a literatura. (tradução de Flávio Aguiar). São Paulo: Boitempo, 2004.

p.256. “Temos agora dois princípios críticos com que prosseguir. Um é o de que a Bíblia, em suas convenções lingüísticas, está muito próxima das convenções da oralidade e da tradição oral. O outro é o de que, nela, toda e qualquer sentença é uma espécie de mônada lingüística. De um certo ponto de vista a Bíblia é tão unificada e contínua como um texto de Dante, e assim a vimos até aqui; de um outro ponto de vista ela é tão descontínua e epifânica como um texto de Rimbaud”. Id. Ibid. p.247.

6 Cf. Id. Ibid. p.259.

7 “Penso que para ver o que ela significa devemos nos voltar de novo para a teoria do significado

“polissêmico” que, embora tradicional, continua negligenciada. Uma experiência muito comum na leitura é a de descobertas futuras que poderão ser feitas na mesma estrutura de palavras. Mais ou menos sente-se assim: “pode-se obter mais disso daí”; ou podemos dizer, a respeito de uma peça que admiramos em especial, que, a cada vez que a lemos, encontramos algo novo. Esse “algo novo” não é necessariamente algo que não vimos antes; pode vir, ao invés, de um novo contexto existente em nossa própria experiência. O que daí se infere é que, quando começamos a ler, há um processo dialético que se desdobra, de tal modo que qualquer compreensão dada do que lemos é parte de uma série de fases, ou de estágios, da compreensão”. Id. Ibid. pp.259-260.

8 “[...] ao acontecer na vida [diz Antonio Magalhães], o texto é sempre algo a se cumprir, um projeto a ser realizado, um caminho a ser seguido, independente do interesse originário do autor ou da autora”.

Antonio Carlos de Melo MAGALHÃES. Deus no Espelho das Palavras: teologia e literatura em diálogo. São Paulo: Paulinas, 2000. p.206.

9 A isso acrescento a fala de Antonio Manzatto: “Esse fato permitiu a distinção entre uma literatura dita cristã, aquela que fala de Deus, da Igreja, do crente, da fé, e uma outra literatura, dita pagã ou secular. [...] Existem aqueles que dizem que a literatura cristã é a verdadeira, a boa literatura; outros, ao contrário, preferem afirmar que a literatura secular é a única literatura legítima, pois a cristã está por demais submetida aos dogmas da fé, o que atrapalha a liberdade e a criatividade da expressão

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e se expande em parte de seus leitores10. E, como se viu, dito pelo próprio autor, a obra rosiana nasce exatamente com essa preocupação: “a língua, para mim, é instrumento: fino, hábil, agudo, abarcável, penetrável, sempre perfectível, etc. Mas sempre a serviço do homem e de Deus, do homem de Deus, da Transcendência”11. Não é apenas uma literariedade comprometida com a beleza, apesar de ser bela, mas com a beleza literária que seja profunda em relação à vida, ao humano e à relação da vida e do humano com o divino, com o transcendente. Mesmo que seja a partir de uma realidade religiosa e de uma espiritualidade sertaneja real e também imaginada, onde tudo é muito misturado, plural e sincrético: “nesse mundo trágico e cheio de tensão [diz Rosa] reinam deuses que só aparentemente recuaram ante o cristianismo mas que, na realidade, são forças motrizes dele em que ainda se fiam e aos quais obedecem um povo e um continente inteiro”12.

II

Da mesma forma – e aqui se chega ao caminho escolhido no último capítulo da tese e também às suas efetivas conclusões –, se se reconhece que Deus está no

“espelho das palavras”, então, em Guimarães Rosa, certamente há um reflexo dEle, um reflexo teológico literário ou literário teológico. Também, se a correspondência é reconhecida no diálogo, então ela se faz o espelho e os temas surgem: vida, palavra e sagrado, temas que se repetem de forma corrente e diferente em todas as obras sobre teologia e literatura que tive contato. No entanto, assim como a vida (o humano e sua existência) não é um tema exclusivo da teologia, o que, em verdade, por muito tempo foi um tema negligenciado por ela; e como a palavra é linguagem de todos e para todos enquanto forma de comunicação para aqueles e aquelas que dominam seus meios; o sagrado, como vereda de correspondência, pertence apenas ao sagrado e, como sagrado, como experiência humana com o divino, “tramita”, como linguagem

artística”. Antonio MANZATTO. Teologia e Literatura: Reflexão Teológica a partir da Antropologia Contida nos Romances de Jorge Amado. São Paulo: Loyola, 1994. p.13.

10 Harold BLOOM and David ROSENBERG. The book of J. New York: Vintage Books, 1991.

pp.09ss.

11 Maria Apparecida Faria Marcondes BUSSOLOTTI (org). João Guimarães Rosa: correspondência com seu tradutor alemão Curt Meyer-Clason. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2003. p.412.

Correspondência de João Guimarães Rosa, 27 de Agosto de 1967.

12 Id. Ibid. pp.378-379. Correspondência de João Guimarães Rosa, 24 de Novembro de 1966 (em anexo à carta).

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de reflexão da existência e da experiência humana, na palavra, “no espelho das palavras”13.

E a obra de Guimarães Rosa é isso, o isso que a presente tese procurou mostrar. A sua palavra não é reatualização ou re-escritura ou desescritura, aos modos de um palimpsesto. Mas, a partir de outras obras, daquilo que se chamou de

“angústia da influência”14, inclusive de obras de cunho religioso ou sagrada por questão de excelência15, é texto-palavra que quer – como mais um entre os espelhos – falar “junto” sobre o mistério da vida, bem como de nomear o que é inominável:

Deus.

“Se quer seguir-me, narro-lhe; não uma aventura, mas experiência, a que me induziram, alternadamente, séries de raciocínios e intuições. Tomou-me tempo, desânimos, esforços. Dela me prezo, sem vangloriar-me. Surpreendo-me, porém, um tanto à-parte de todos, penetrando conhecimento que os outros ainda ignoram. O senhor, por exemplo, que sabe e estuda, suponho nem tenha idéia do que seja na verdade – um espelho? Demais, decerto, das noções de física, com que se familiarizou, as leis da óptica. Reporto-me ao transcendente. Tudo, aliás, é a ponta de um mistério. Inclusive, os fatos. Ou a ausência deles. Duvida? Quando nada acontece, há um milagre que não estamos vendo”16.

A palavra, sagrada ou profana, de religião ou secular, o que depende em muito do lugar de onde se olha, é espelho, e o que nela reflete (ou é refletido) é o tema: a existência humana, outra palavra e a transcendência. Nisso se concentra o diálogo: a vida, a palavra e o sagrado são refletidos, não pelas noções de física ou pela lei da óptica, mas a partir do pensamento humano, tanto na teologia como na literatura, que buscam se aprofundar, de forma diferente e com suas especificidades, em nossas verdades mais profundas17. Se a teologia “reflete” e fala (palavra) da vida

13 “O reconhecimento da correspondência é também um pressuposto para o reconhecimento de que o Deus que adoramos e nomeamos tramita no espelho das palavras. Nenhuma palavra é mera realização de outra. Palavras se correspondem na força da experiência, na precisão e alcance da nomeação e na coragem de escrever sobre o mistério de nossas vidas”. Antonio Carlos de Melo MAGALHÃES. Deus no Espelho das Palavras: teologia e literatura em diálogo. São Paulo: Paulinas, 2000. p.207.

14 Aput Harold Bloom.

15 Obras eleitas para serem suas obras fundantes, obras fundantes da religião, conforme dito por Bloom.

16 João Guimarães ROSA. O espelho. In: Primeiras estórias. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001.

p.119.

17 “[...] se por um lado nada pode assumir o lugar de Deus na vida humana, incluindo a Bíblia, a tradição ou qualquer texto da literatura, por outro lado esse Deus tampouco é visto, percebido e vivido

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– social ou existencialmente pensada – a literatura também o faz. Guimarães Rosa faz isso. Se a teologia tenta compreender o sagrado, a literatura também tenta compreender o sagrado. Nisso elas se correspondem. Elas refletem, como um espelho, mas como espelhos diferentes, a mesma imagem, o mesmo tema. Se uma usa a palavra para revelar essa reflexão, a outra também usa a palavra para revelar essa reflexão, mesmo que uma seja mais formal e a outra mais poética. E isso está presente e é extremamente forte em Guimarães Rosa, como se procurou demonstrar e para onde ainda se aponta.

O que se busca é dizer que Deus também é, certamente, um assunto rosiano, um assunto da literatura. Mas provar isso é um caminho longo e pedregoso, talvez como o de Dante, pois é certo que há um espaço enorme entre a teologia e a literatura, espaço que vai do primeiro círculo do inferno, onde estão os sábios da antiguidade, que tiveram vida virtuosa, mesmo sendo pagãos, como os filósofos e os poetas gregos, até o quarto céu, onde estão os teólogos, como Tomás de Aquino;

distância que a proposta de diálogo vem procurando diminuir ou mesmo suprimir.

Obviamente seria mais fácil se, como no mundo imaginário de Guimarães Rosa, tudo fosse muito misturado, como, em parte, no real realmente seja. No entanto, nessa leitura, ambas continuam sendo teologia e literatura, com seus lugares demarcados e com seus espaços bem definidos, mas se correspondendo no reflexo que criam para falar de Deus, assunto comum ao fazer teológico, bem como ao fazer literário, o lado que, na presente tese, foi privilegiado. Eis aí o diálogo.

III

Desse modo, termino a presente tese com palavras rosianas que tentam, de alguma forma, espelhar, corresponder e se apresentar para um diálogo onde saberes18 diferentes podem se encontrar e se enriquecer de forma inteligente e mútua:

sem a linguagem que se manifesta nas diversas áreas da cultura. A correspondência é o verdadeiro espelho, pois nela residem as diversas manifestações de nossas verdades mais profundas”. Antonio Carlos de Melo MAGALHÃES. Deus no Espelho das Palavras: teologia e literatura em diálogo. São Paulo: Paulinas, 2000. p.206.

18 Sei da dificuldade de entender e apontar literatura como uma forma de saber humano.

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“Mas tinha cometido um erro. O primeiro engano seu nesse dia. O equívoco que decide do destino e ajeita caminho à grandeza dos homens e dos burros. [...] outros procuram o centro, e muitos se deixam levar, empurrados, sobrenadando quase, com os mais fracos rolando para os lados e os mais pesados tardando para trás, no coice da procissão”19.

“Viver de graça é mais barato... [...] Deus está certo comigo, e eu com ele. Isto agora é que é assunto meu particular... Alegrias, seu Miranda!”20

“Não foi culpa minha, foi má-sorte minha...21 [...] Mas, depois.

Agora é sentar nas folhas secas, e agüentar. O começo do acesso é bom, é gostoso: é a única coisa boa que a vida ainda tem. Pára, para tremer. E para pensar. Também. [...] meu Deus, como isto é bonito!

Que lugar bonito p'r'a gente deitar no chão e se acabar!... É o mato, todo enfeitado, tremendo também com a sezão”22.

“Acho que amanhã de-tardinha eu estou chegando lá, no sitio da mãe dela. Se ela quiser ir comigo, nós voltamos para o São Paulo...

Quero descansar um pouco e gozar a vida... – disse Turíbio Todo, com um suspiro de satisfação. – Qual, seu Turíbio Todo... Com perdão da palavra, mas este mundo é um monte de estrume! Não vale a pena a gente ficar alegre... Não vale a pena, não. – Ora, deixe de curtir mal sem paga... Que é isso!?... – A gente vive sofrendo...

Todo o mundo é só padecer... Não vale a pena!... E depois a gente tem de morrer mesmo um dia...”23.

“– Ai, que mundo triste é este, que a gente está mesmo nele só p'ra mor de errar!... E, quando a gente quer concertar, ainda erra mais...

Maldito vício de gostar de pescaria!”24

“E, pronto, sem pensar, entrei a bramir a reza-brava de São Marcos.

Minha voz mudou de som, lembro-me, ao proferir as palavras, as blasfêmias, que eu sabia de cor. Subiu-me uma vontade louca de derrubar, de esmagar, destruir... E então foi só a doideira e a zoeira, unidas a um pavor crescente. Corri”25.

“P’ra cavalo ruim, Deus bambeia a rédea... Um dia ele encontra outro mais grosso... Eu já estou vendo o diabo, com defunto na

19 João Guimarães ROSA. O burrinho Pedrês. In: Sagarana. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001.

pp.35e50. Falando do comportamento da boiada, mas também do comportamento humano na vida, na segunda citação.

20 Id. A volta do marido pródigo. In: Ibid. pp.125e116.

21 Falando da maleita, a doença.

22 Id. Sarapalha. In: Ibid. pp.169e173. Delírios e lembranças em meio ao acesso de febre do primo Argemiro. Sezão era o antigo nome do livro Sagarana.

23 Id. Duelo. In: Ibid. p.206.

24 Id. Minha gente. In: Ibid. p.230.

25 Id. São Marcos. In: Ibid. p.290. Em meio ao sofrimento o incrédulo pega forte na reza.

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cacunda! Esse sujeitinho ainda vai ter de dançar de ceroula, seu doutor! Isto aqui é terra de gente brava...”26.

“Coisando por tristes lembranças, decerto, bem faz que Brilhante já carregue luto de-sempre. Mas, perpetuamente às voltas com bernes, bichos, carrapichos, e morcegos, rodoleiros, bicheiras, só no avesso da vida, boas maneiras ele não pode ter. Todavia, ninguém boi tem culpa de tanta má-sorte, [...]”27.

“Sorte nasce cada manhã, e já está velha ao meio-dia...”28.

“Mas agora Miguilim queria merecer paz dos passados, se rir seco sem razão. Ele bebia um golinho de velhice”29.

“Quem castiga nem é Deus, é os avessos”30.

“– “É a Voz e o Verbo... É a Voz e o Verbo... Arreúnam, todos, e me escutem, que o fim-do-mundo está pendurando! Siso, que minha prédica é curta, tenho que muito e converter...”. Da casa-de- venda do Flôr, do outro lado da esquina, um moço cometa se chegava à janela e perguntava: “Você é Cristo, mesmo, ou é só João Batista?...” E o vira-mundo malucal, que já ia se afastado, se revirou, rente, por sobre o descompasso de suas altas pernas, que nem umas andas, e levantou os braços, bem escancarados – leito precisasse de escorar a queda do céu”31.

“– A vida é boba. Depois é ruim. Depois, cansa. Depois, se vadia.

Depois a gente quer alguma coisa que viu. Tem medo. Tem raiva de outro. Depois cansa. Depois a vida não é de verdade.. Sendo que é formosa!”32

“A vida não perdoa descuidos... E não há tristeza que me ajude...

[...] Mas, então, pois... Mas, então! – não era melhor, não havia um jeito, um possível, de se desmanchar o atual, e recomeçar, de outro princípio, a história das pessõas?”33

“Vida era uma coisa desesperada. [...] A felicidade é o cheio de um copo de se beber meio-por-meio; [...]”34.

26 Id. Corpo fechado. In: Ibid. p.297.

27 Id. Conversa de bois. In: Ibid. p.330.

28 Id. A hora e a vez de Augusto Matraga. In: Ibid. p.370.

29 Id. Campo Geral. In: Manuelzão e Miguilim: Corpo de Baile. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001.

p.89.

30 Id. Uma estória de amor: festa de Manuelzão. In: Ibid. p.200.

31 Id. O recado do morro. In: No Urubuquaquá, no Pinhém. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001.

p.76.

32 Id. Cara-de-Bronze. In: Ibid. p.154.

33 Id. Lélio e Lina. In: Ibid. pp.279e303.

34 Id. Lão-Dalalão (Dão-Lalalão). In: Noites do sertão. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001.

pp.35e42.

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“A essas coisas. Sorte. Quem souber o que é a sorte, sabe o que é Deus, sabe o que é tudo. [...] Morrer talvez seja voltar para a poesia”35.

“– Representar é aprender a viver além dos levianos sentimentos, na verdadeira dignidade”36.

“A vida era o vento querendo apagar uma lamparina. O caminhar da sombra de uma pessoa imóvel. [...] – Você ainda não sabe sofrer... [...] Tenho de me lembrar. O passado é que veio a mim, como uma nuvem, vem para ser reconhecido: apenas, não estou sabendo decifrá-lo. [...] As lembranças são outras distâncias. Eram coisas que pararam já à beira de um grande sono. A gente cresce sempre, sem saber para onde”37.

“Seguia, certa; por amor, não por acaso. [...] Sabia que coisa era o tempo, a involuntária aventura”38.

“[...] a vida é bruta, os homens são cativos...”39.

“A luz é para todos; as escuridões é que são apartadas e diversas”40.

“A alegria de Deus anda vestida de amarguras”41.

“Aos pedacinhos, me alembro42. [...] Infelicidade é uma questão de prefixo. [...] viver é um rasgar e remendar-se”43.

“[...] guardei o de Deus, gastei o do diabo... Mas, o que no fim de cada mês me falta, a minha Nossa Senhora intéira. Com a ajuda superior, eu vivo é do que é o do bico dos pássaros...”44.

“– Ora, vista. A gente fabulando – o vivendo. Será que alguém, em estudo, já escarafunchou o roda-rodar de toda a gente, neste meu mundo? Assim – serra acima ou rio abaixo – os porquês”45.

“E, hoje em dia, tenho a certeza: toda liberdade é fictícia, nenhuma escôlha é permitida; já então, a mão secreta, a coisa interior que nos movimenta pelos caminhos árduos e certos, foi ela que me obrigou a aceitar. O mais-fundo de mim mesmo não tem pena de mim; e o

35 Id. Buriti. In: Ibid. pp.132-133e303.

36 Id. Pirlimpsiquice. In: Primeiras estórias. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001. p.89.

37 Id. Nenhum, nenhuma. In: Ibid. p.101.

38 Id. Seqüência. In: Ibid. pp.114-115.

39 Id. O cavalo que bebia cerveja. In: Ibid. p.146.

40 Id. A benfazeja. In: Ibid. p.184.

41 Id. Arroio-das-Antas. In: Tutaméia: terceiras estórias. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001. p.46.

42 Id. Esses Lopes. In: Ibid. p.83.

43 Id. João Porém, o criador de perus. In: Ibid. p.120.

44 Id. A estória do Homem do Pinguelo. In: Estas estórias. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001.

p.157.

45 Id. Ibid. p.189.

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mais-fundo de meus pensamentos nem entende as minhas pa- lavras”46.

“A vida fornece primeiro o avesso. [...] Vida – coisa que o tempo remenda, depois rasga”47.

“A quietude é de Deus, a pressa é do diabo”48.

“Saudade é ser, depois de ter”49.

Por fim, sobre o tudo disso, sublinho a última vereda a última palavra: “Deus existe mesmo quando não há. Mas o demônio não precisa de existir para haver – a gente sabendo que ele não existe, aí ele toma conta de tudo”50. “Deus está em tudo [...] toda a hora a gente está num cômpito. Eu penso é assim, na paridade. O demônio na rua... Viver é muito perigoso; e não é não51. Nonada, Travessia... “É o que eu digo, se for... Existe é homem humano”52.

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46 Id. Párano. In: Ibid. p.265.

47 Id. Retábulo de São Nunca. In: Ibid. p.301.

48 Id. Em-cidade. In: Ave, Palavra. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001. p.201.

49 Id. Do diário em Paris. In: Ibid. p.333.

50 Id. Grande Sertão: Veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001. p.76.

51 Id. Ibid. p.328.

52 Id. Ibid. p.624.

Referências

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