DA PESCA E OUTRAS ARTES: MEMÓRIAS DE ANTÔNIO DE GASTÃO
Ricardo Gomes Lima
Dissertação apresentada como re quisito parcial para a obtenção do.grau de mestre no curso de mes trado em História da Arte, pós= graduação em Artes Visuais, Área de Antropologia da Arte, da Esco la de Belas Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Rio de Janeiro Agosto/1993
Da pesca e outras artes: mem
ó
rias de Antonio de Gastã
oRicardo Gomes Lima
Tese submetida ao corpo docente da Escola
de Belas Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro como parte dos
necess
á
riosà
obtençã
o do grau de mestre.
requisitos
Aprovada por
Profã Maria Helo
í
sa Fé
nelon Costa(
Presidente)Profâ Berta GÍeizer Ribeiro
A
ã
A
Profâ Sonia Gomes Pereira
Rio de Janeiro
Para Vera, Bárbara e Rodrigo
Partes de minha vida, pedaços de mim.
Em vocês está meu alento.
AGRADECIMENTOS
Construir esta disserta
çã
o implicou angú
stias e esperanç as, inseguranças e certezas, obst
á
culos, descobertas e dividas.
Dividas que tenho com relaçã
oà
queles que durante esse tempo me acompanharam, incentivando, esclarecendo , instigando , cri ^ solidá
rias, ticando,
ajudando-
me a tecer, com palavras amigas euma rede que, hoje, estendo para agradecer, com muito carinho, a
todos esses amigos com a certeza de que jamais quitarei totalmen
-te minha d
í
vida.
Às professoras Maria Helo
í
sa Fé
nelon Costa e Berta Glei_zer Ribeiro , orientadora e co
-
orientadora deste trabalho, respec-tivamente , pelos ensinamentos que me foram generosamente ofereci
-dos n
ã
o só
durante o curso de mestrado, mas ao longo do tempoque fui aprendendo a ser um pesquisador da realidade social
.
À professora Sonia Gomes Pereira, atual coordenadora do curso , pelo incentivo e disposi
çã
o ao diá
logo intelectual, ades-peito das diferenç as das disciplinas acad
ê
micas a que nos dedica-em
mos
.
Aos demais professores do mestrado e a Myriam Lins
Barros, professora do Centro Interdisciplinar de Estudos
por
â
neos (CIEC/UFRJ ) pela acolhida em seus cursos e pela constan-te instigaçã
o intelectual.
A
Suely, secretá
ria do mestrado, e colegas com quem ti-ve o privil
é
gio de conviver, especialmente Fá
tima Regina do Nasc_i mento, ClaraEmilia
Monteiro de Barros e Hamilton Botelhode
Contem
-Malha
-no
.
Ao Instituto Brasileiro de Arte e Cultura (IBAC /FUNAR
-TE
), instituiçã
o onde atuo profissionalmente e que tornous
í
veis o trabalho de campo e a freqüê
ncia aos cursos do mestrado.
Em
especial a Solange Zuniga, diretora do Departamento de Pesqui-sa e Documenta
çã
o do IBAC, cujo empenho me garantiu uma
de dois meses para reda
çã
o desta dissertaçã
o.
A todos
os
colegas do Instituto Nacional do Folclore/FU
NARTE
, atual Coordenaçã
o
de Folclore e Cultura Popular/
IBAC peloconv
í
vio diá
rioe
apoioem
todas as fases deste trabalho.
Em
espe_
ciai, Claudia Mareia Ferreira, Elizabeth
Travassos
, Maria Viveiros deCastro
e Regina Maria doRego
Monteiro de Abreu leram partes dos manuscritos e foram interlocutoresdesse empreendimento
.
A
Marisa Cólnago pela datilografia e organizaçã
o das refer
ê
ncias bibliográ
ficas, assim como a Maria Helena Torres, pelo trabalho de revisã
o do texto e da datilografia.
De modo especial quero registrar minha d
í
vida para comLuis Ricardo Prado de Oliveira, mais do que meu analista, um ami
-go a quem
recorro
nacerteza
do devido apoio.
Laura que permanentes
Este trabalho discute a quest
ã
o da arte popular,meio da an
á
lise de um caso especí
fico: Antô
nio de Gastã
o , artista porde Cabo Frio
.
Busca perceber o sentido que a arte tem paraartista, qual seu significado e conte
ú
do expressivo.
Por desdobra mento, coloca uma outra questã
o: a arte popular enquanto umcesso consciente de elabora
çã
o, estabelecendo um diá
logo com auto raanifes -essepro
-res, que situam as expressões populares em oposição as
ta
çõ
es de cunho erudito, apenas estasú
ltimas sendo vistas resultantes de atos intencionais de criaçã
o.
Ao contr
á
rio, o que constataé
que a arte em Antô
nio deGast
ã
oé
parte de um todo, um projeto que o artista conscientemen te construiu, a partir das tensõ
es decorrentes das transformaçõ
es sociais que desarticulam e rearticulam seu contexto social.
ABSTRACT
This work intends to discuss popular art , by analysing an specific case: Antonio de Gast
ã
o,
an artist from Cabo Frio.
It tries to catch what sense does art mean to him, whatcontains and expresses
.
By devellopment, it broaches another question: popular art as a conscient working-out process, by
blishing a dialogue with authors who, placing popular expressions
in opposition to erudite manifestations, consider only the
ones as a result of an intentional creative act
.
On the contrary, we find out that art, for Antonio
Gast
ã
o, is part of a whole, indivisible;
a projectbuilt by the artist, whose starting
-
point seems to be thesions caused by social changes that disconnect and connect again his social
context
.
art his esta-last de consciently ten
-Á APRESENTAÇÃO CAPÍ
TULO
I 4METODOLOGIA
CAPÍTULO IIANT
ÔNIO DE GASTÃO:hist
ó
ria de vida, histó
ria da arte 1 5CAPÍTULO III
ARTE POPULAR:
2 8
a intencionalidade da criaç ao
3 1
Arte popular: uma categoria reversa
Uma arte espont
â
nea? 3 4Ant
ô
nio de Gastã
o e as artes 4 0CAPÍ
TULO IV
IDENTIDADE
E PESSOA 5 3Pessoa
-
uma categoria em processo 5 3A concep
çã
o de humanidade e a noçã
o de pessoa em Antô
nio.
5 6A prop
ó
sito de nomes 6 4A prop
ó
sito do pertencimento a um grupo definido 6 6CAPÍTULO V
MEM
ÓRIAS DO ESPAÇ O 8 0Espaço: uma categoria coletiva de pensamento 8 0
Espaç o: no
çã
o fundamental no processo da memoria 86 Cabo Frio: areconstru
çã
o de um espaç o 88103 0 espaço da memoria CONCLUS
Ã
O 1 1 2 115 BIBLIOGRAFIA ANEXOSAPRESENTA
ÇÃ
OVarias s
ã
o as maneiras pelas quais a arteé
abordada emdiferentes trabalhos que se dedicam a investig
á
-
la.
Uma delasse
-para
as
expressõ
esart
í
sticas,
localizando-
as em universosrenciados,
como
se fossem constituí
das por"
naturezas
"
distintas.
S
ã
oas artes
eruditas e as populares.
Este
trabalho se propõ
e a discorrer sobre essa maneirade classificar as artes, detendo
-
se especialmente na reflexã
oso
-bre o que se convencionou denominar
"
arte
popular"
.
Para isso, t£
mo como
campo dean
á
lise e reflexã
o a produçã
o de um unico indiví
_
duo
-
Antô
nio de Gastã
o-
com o objetivo de verificar como,nesse
caso espec
í
fico , a questã
o pode ser observada.
Partindo do pressuposto de que o entendimento do social
é
resultado das relaçõ
es
queo
pesquisador estabelece no decorrerdo trabalho de campo, bem
como
doaparato
metodoló
gico de quese
serve
para
construirseu
objeto de pesquisa, abordo, no
primeiro capí
tulo , questõ
es denatureza
metodoló
gicaque
envolvema
cons
-tru
çã
o demeu
objeto e procuro relatarcomo
o trabalho defoi realizado em
suas
diferentes fases.
A
seguir, no capí
tulo dois, relato a histó
ria de vida de Antô
nio de Gastã
o, fortemente marcada pelas vivê
ncias no mar ena restinga, bem como pelas rela
çõ
es familiares, de vizinhança e amizade.
Destaco
aí
os primeiroscontatos
deAnt
ô
nio com o uni-verso
porn
ó
s
convencionadocomo
da arte:
a mú
sica, ocanto
,poesia, as
artes
plá
sticas eo teatro
, revelandocomo esses
dife-rentes
"
gê
neros
"
art
í
sticosv
ã
o se incorporando a sua vidaà
medi_
da que sua pr
ó
pria histó
ria se constró
i.
No
capí
tulotr
ê
s,desenvolvo
,em
maior profundidade , oenunciado inicialmente colocado
.
Nele, a partir do diá
logo comaJL
guns autores da hist
ó
ria daarte
, procuro problematizar a noçã
o dearte
popular, talcomo
apresentada poresses
autorescomo
contraponto
desuas
afirmaçõ
es
a crí
tica antropoló
gicadif
e
-campo
a
tomando de
2
Luis Felipe Baeta Neves,
Gast
ã
o
.
a que se soma o discurso de Antonio de
Baseando
-
me emautores como
Marcel Mauss, Louis Dumont e Roberto DaMatta, no capí
tulo quatro, trato da construçã
o das noçõ
es de indiví
duo e pessoa e da maneira como essas categorias se revelam centrais para o entendimento da noçã
o de arte em Antô
niode Gast
ã
o.
Definidoras de sua identidade, elas també
m nos infor-mam sobre as raz
õ
es pelas quais esse pescador se dedica intencio-nalmente a express
õ
es artí
sticas diversas.
Na medida em que o artista define sua obra como resul -tado do passado, fruto dos tempos de inf
â
ncia e adolescê
ncia vividos em Cabo Frio, o cap
í
tulo cincoé
um estudo sobre desse espaç o.
Para isso, está
estruturado em partes: namemórias
primei
-ra, procuro discutir a categoria espaço, tal como postulada pela
escola sociol
ó
gica francesa, tendo como seus principais articula-dores Emile Durkheim e Marcel Mauss. A seguir, valho
-
me da psico-logia social para, por meio das formula
çõ
es de Henri BergsonMaurice Halbwachs, explorar o conte
ú
do social da categoria memo-ria
.
Ambas as categorias e as discussõ
es que suscitam inserem-
se no campo da teoria do conhecimento.
É ela que dá
unidade aprimeira parte do cap
í
tulo.
Em seguida, embasado nesse instrumental te
ó
rico , buscoanalisar o discurso de Ant
ô
nio de Gastã
o.
Meu objetivo, nessa se-gunda parte ,
é
o diá
logo com os dados empí
ricos coletados em cam-po e sua interpreta
çã
o a partir dos postulados discutidos.
Para
finalizar e de acordo com a tradiçã
oaqui adotada, discuto a fun
çã
o social da memó
ria ou, empalavras, o espaç o da mem
ó
ria em nossa sociedade.
Em suma, ao longo do trabalho, procuro lidar com a no
-çã
o de arte popular, dando-
lhe concretude, istoé
, situando-
a num contexto social especí
fico.
Ao longo dos capí
tulos perpassae
essa
sociol
ó
gica outrasum
fio que informa sobre quem faz, o que faz, como faz, por que faz, tr
ê
seixos b
á
sicos: a questã
o da arte popular em si, os preconceitos e as dificuldades da operacionalizaçã
o
do conceito;
asno
çõ
es
de in diví
duo e pessoa e sua importâ
ncia para o estabelecimento dadentidade do sujeito e de sua constitui
çã
o como artista; e a memo ria e o espaç o enquanto condicionantes da obra que o artista rea-liza.
-CAPÍ
TULO I METODOLOGIAQuando
,
em 1984, foi realizada a exposição"
Artistas da Regiã
o dos Lagos"
,
na Sala do Artista Popular,
do Instituto Nacio nal do Folclore/FUNARTE, o cat
á
logo damostra
traziaum
depoimen-to de Ant
ô
nio de Gastã
o que revelava seu desejo de escrever um l_ivro sobre a hist
ó
ria de Cabo Frio,
cidade onde morava.
A
leitura daquele pequeno texto me fez perceber tratar-
se de um artista que1
havia optado pela carreira de guardiao da
tarde utilizado por Myriam Lins de Barros para referir-se a deter minados membros de grupos familiares que se destinam a colecionar hist
ó
rias, fotografias e outros objetos emblemá
ticosconstituindo
,
assim,
a memó
ria familiar(
LINSDE BARROS ,
1987 1989)
.
memoria,
termo
maisdo grupo
,
eNo caso
deAnt
ô
nio o discursoe
os objetos dearte
pro embora nã
o referidos a sua famí
lia, apontavam una propos duzidosta de registro do passado aliada a uma forte preocupa
çã
o comquest
ã
o social e ecoló
gica de Cabo Frio.
Tratava
-se, mesmo
, de um guardiã
o.
Imediatamente, ocorreu-me que o projeto"
0 Artista Popu lar e seu Meio"
, pelo qual era responsá
vel, enquanto chefe da Un_idade de Antropologia do
Museu
de Folclore Edison Carneiro daquela Instituiçã
o, poderia ser o canal ideal para a realizaçã
o dosseios do artista
.
a
an
-Esse projeto, concebido em 1982 por Lelia Gontijo
res
e Dinah Guimaraens,
propiciara a publicaçã
o, em
1983,
dovro
0 Mundo Encantado de Antô
nio de Oliveira que,
ao abordar a o -Soa-li
-bra desse escultor popular mineiro
,
patenteava a estreita vinculaçã
o existente entre os objetos por ele criados e seu universo so-cial
.
Sua obra era um testemunho da realidade,
retratava-se-
~
2mesmo tempo em que revelava o ethos e a visão de mundo
artista
.
ao
daquele
tendo por objetivo pesquisar e divulgar o trabalho de artistas po pulares e que se caracterizava primordialmente por oferecer
si
ã
o para que o pró
prio artista expressasseseus
valores,
pretando sua obra e seu meio social
.
Assim, no per
í
odo de 1985 a 1988, dediquei-
me a ouvir e registrar em fitacassete
os depoimentos de Antonio deGast
ã
o,ten do em vista a publicaçã
o de um livro.
A
Os relatos em sua maioria foram coletados na residência do artista
.
Outros advieram das caminhadas ao longo das praias, na restinga e pelas ruas da cidade.
A
coleta desse material requereu cumplicidade entre pes quisadore
informante, situaçã
o ideal parao
bom resultadoqualquer pesquisa de campo
.
Nã
o foi um dado que sea priori
,
mas teve queser
constru
í
do,
pouco a pouco, na que o projetoera
realizadoe
nossa
relaçã
o se
consolidava,admitir que o grau de intimidade e confiabilidade necess
á
rias para que o trabalho fluí
sse nã
o foi uma tarefa difí
cil deser
empreen-dida
. v
á
rios fatores contribuí
ram para isso.
0 of
í
cio antropoló
gico, centrado fundamentalmente pesquisa de campo, tem, ao longo dosanos,
me
auxiliado aas barreiras que podem surgir ao
se
defrontarem indiví
duos com es tilos de vida e visõ
es
de mundo diferentes, no caso
, o pesquisador e seu informante.
Impõ
e-
seà
quele diminuir a importâ
ncia dos valo res sociais deseu
pró
prio grupo enquanto referê
ncia para o traba oca- inter-de apresentasse medida
Devo
na evitarlho de pesquisa e
,
pela compreensão da visão do mundo do grupo pejsquisado
,
relativizara
distâ
ncia social que o separa do"
outro"
.
Tal fato assume relevâ
ncia ainda maior ao lembrar que a pesquisa antropoló
gica temsua
particularidade marcada pela meto-dologia que emprega, e
, nesse
sentido o trabalho de campo e pri-mordial, distinguindo mesmo a d
é
marche da antropologia das demaisciências sociais (cf
.
COPANS, 1974).
Em outras palavras,
a pesqui.sa
é
fruto da relaçã
o que se estabelece entre pesquisador e obser vado,
cabendoà
queleter
sempre presente a especificidade dessa6
rela
çã
o para que possa controlar seus efeitos.
Assim,
é
especial o momento de estabelecimento dos pri-contatos
com ogrupo
ao qualse
propõ
e a realizaçã
o da pesquisa
.
Sã
o sabidamente conhecidos a importâ
ncia da entrada em campo e o cuidado que se deve
ter ao
dar iní
cio a uma relaçã
o que se pretende estreita comos
informantes(cf
.
BENJAMIN
, 1953).
À
sve
-zes, esse momento pode mesmo comprometer todo o empreendimento ou, pelomenos
,ser
responsá
vel por imponderá
veis quev
ã
o
surgindo ao longo do processo de pesquisa e que obrigam a rever a relaçao
e,
conseqüentemente, os dados at
é
entã
o recolhidos.
Nesse sentido
,
a escolha do mediador torna-
sedial
.
No
presente caso,
esse papel foi assumido por uma pessoa de meirosprimor
-minhas rela
çõ
es que,
saida do Rio de Janeiro, ha alguns anos resi^3
"
animador cultural"
.
dia em Cabo Frio, onde era umNo desempenho de sua fun
çã
o,
emcontato
com Antonio Gastã
o,
essa pessoa havia estabelecido uma forte relaçã
o de amiza de.
Fora
ela a responsá
vel pelacoleta e
organizaçã
ode
Cabo em
Frio, dos objetos que integraram a exposição da Sala do Popular a que j
á
fiz referê
ncia, tendo sido mesmo atexto do cat
á
logo da mostra onde, inicialmente , li sobreAnt
ô
nio.
Amena Mayall nã
o só
foi mediadora nos primeiros contatos quea ter com o artista
,
como
també
m tornou-
se colaboradoraí
mpar nosprimeiros meses da pesquisa
.
Desde o princí
pio,
incorporou-seequipe do projeto , recolhendo ela mesma parte dos depoimentos
.
A
elaboraçã
o do livro significava a realizaçã
o4
M Aantigo projeto idealizado pelos dois
.
Na
vis
ão deAntonio
,
execu
çã
o devia-
se ao empenho da pessoa amiga que, aliando poderà
rede de relaçõ
es no Rio de Janeiro, lhe estava dandoEm parte, ele tinha raz
ã
o.
Fora Amena Mayall o contato e a media-ção
.
Esse fato fez-me subordinado nos primeiros meses da pesquisa.
Para Ant
ô
nio, eu era o"
instrumento"
na
execuçã
o do projeto,v
á
rias ocasiõ
es, quando lhe sugeria umtema
para gravaçã
o , nio me dizia: Artista autora do vim a de umsua
concretude.
Em Antô
-7
- ,
- Isso nao precisa gravar. Amena ja sabe.
Essa situação em momento algum chegou a prejudicar a r�
lação de pesquisa, uma vez que, tão logo percebida, foi profund�
mente discutida com a outra pesquisadora. Se, por um lado, o alto
grau de confiança e amizade que existia entre Antônio e Amera era
fator importante para a gravação dos �epoimentos, por outro,o mes
mo grau de confiança e arüzade existia entre ela e eu, possibili
tando a troca de impressões, o dimensionamento de tarefas e a con
dução da pesquisa.
,
No entanto, apos um ano, Amena Mayall veio a falecer.
Sua morte representou um momento crucial para o projeto,colocando
em risco sua continuidade. Procurei Antônio e vi o quanto estava
abatido. Parte do sonho havia sido desfeito. Após muito conversar,
a hesitação inicial que o levava naquele momento a querer abando
nar o projeto se diluiu, e ele se dispôs a prosseguir, em homena
'
gem a amiga. Como disse, "Amena. Ela foi o começo de vida da
gen-te e ainda é o começo. Não gen-tem ninguém como ela aqui não. Ela
ar-rastou esses artistas todos lá do meio do mato". A partir de
en-tão, nossa relação se modificou, assentando-se em outras
bases.
Uma comunidade afetiva (HALBWACHS, 1990) foi se construindo entre
nós. A ausência, agora, do mediador fez com que
redefiníssemos
nossas posiçoes. Aos poucos, minha identidade foi sendo transfor
mada. No inicio, eu era o professor chamado por Amena para ajudar
no livro. A seguir, transformei-me em Ricardo, professor do
Rio
de Janeiro e que, trabalhando num museu, fazia pesquisa e regis
trava as "coisas importantes do passado", o que denotava a trans
formação de minha imagem.
As categorias professor e pesquisador revelam-se
apro-priadas a minha inserção na visão de mundo de Antônio.
Lidando
com informantes em pesquisas de campo, explicar o que e antropol�
gia e a maneira de atuar de um antropólogo
é
um
empreendimento
em que, nas vezes em que o tentei, raramente fui bem-sucedido.
"fecha-8
do
"
,
do tipo que pressupõ
e definiçã
o explí
cita de metodologia, hi pó
teses de trabalho,
cronograma fí
sico e financeiro, etc.de uma situa
çã
o em que os recursos orç
amentá
rios institucionais-pelo
menos
para aquele ano- estavam
relativamente assegurados.
A a duraçã
o da pesquisa també
m nã
o. constava de meu quadro de preocupa
çõ
es.
0 trabalhodeveria
durar o tempo que fosse necessá
riosua
realizaçã
o
, o que só
a
pró
pria pesquisa de campo seria de definir.
Metodologicamente,
estava preparado para aplicart
é
cnicas consagradas pela antropologia, principalmente a observa- entrevis-Partia
a capaz as
ç ao da realidade, o registro dos fatos e a gravaçao de
tas informais baseadas
,
inicialmente, emtem
á
ticas amplas que po-deriam, com o desenrolar da pr
ó
pria pesquisa e na medida em que se revelassem relevantes,
vir a ser cada vez mais verticalizadas.
Nã
o fiz uso de questioná
rio previamente elaborado.
Em vez da constru
çã
o a priori deum
objeto,
tinha questõ
es
que pretendia inves-tigar
.
Era
meu interesse entender que relaçã
o haviaentre
os obje tos que Antonio produzia e sua vida.
Por que um pescador aposentaani
-tantos
do usava seu tempo para esculpir barcos, passaros e outrosmais? Por que
,
na condiçã
o de aposentado, nã
o faziacomo
outros,
retiravando-
se do"
cená
rio social"
e passando a"
viver para
a famí
lia"
,
expressã
o muitas vezes ouvida em referê
nciaaos
in diví
duos da terceira idade? Por que falava tanto no passadomesmo tempo em que se dedicava
à
militâ
ncia em prol da ecologia,a ponto de se tornar conhecido em toda a cidade? Eram questõ
es des-se tipo que
eu
entã
o formulava.
Assim,
iniciei a pesquisa.
Essas
primeiras indagaçõ
es traziam , embutidas nelas mes mas,
preocupaçõ
es com questõ
es mais amplas,
como a relaçã
o entre arte e sociedade,
trabalho e lazer,
tempo e espaç o , que, devo ad-mitir, nem sempre eram percebidas claramente por mim
.
Na
em que delas fui tomando consci
ê
ncia, pude formulá
-
las de forma cientí
fica, e,
assim, construir meu objeto de pesquisa.
Essas te-m
á
ticas instigavam-me,
fazendocom
que recorresse a teoriasme auxiliassem na compreens
ã
o da realidade com que estava lidando.
aomedida
Por
um lado , os dados que coletava em campo se impunham,
exigindo que eu procurasse respaldo teó
rico para interpretá
-los.
Por
a pr
ó
pria compreensã
o teó
rica levantava questõ
es queeu
bus-cava investigar
.
Durante
parte do trabalho de campo, senti-
me per dido com o material de que dispunha.
Os
relatos de Antonio quese
referiamao
passado deCa
-bo Frio revelavam
-
se impermeá
veisà
observaçã
o.
Eu
mena d
é
cada de 1980, ouvindo sobre acontecimentos havidos em perí
o-dos distantes no tempo
.
Resolvi , assim, recorrer a fontes biblio-ou
-tro
,
encontrava
gr
á
ficas para melhor,
no meu ponto de vista de entã
o , compreenderAo 1 er sobre a hist
ó
-o discurso que estava ouvindo.
Mero engano.
ria de Cabo Frio, consultando os
autores
que a escreveram, se ,
porencontrava
concordâ
nciaentre
a
narrativa de Antonio um lado,
as interpreta
çõ
es da historiografia local,
por outro lado, fatos havia quen
ã
o correspondiamà
realidade.
Pelo menosà
descrita por
esses autores
e queera
,
até
ent
ã
o
, paradigmá
tica para
mim.
Como interpretar o fato deAnt
ô
nio se referir a ocorrê
n -cias que dizia haver vivenciado na primeira infâ
ncia e descobrir, erealidade
nas
"
fontes oficiais"
da histó
ria, que aqueles acontecimentos ha -viam ocorrido em data anterior a seu nascimento? Comoseus relatos sobre fatos
com
ele acontecidos quando era ainda um bebe, contados a mim como sendo produto desua
memó
riadual? Essas constata
çõ
es me levaram naqueles momentos a um impas-se: ou
eu admitia estar lidando com um indiví
duo especial, capazentender
indivi
-de transpor barreiras -de tempo e vivenciar uma realidade
tal e que tamb
é
m fosse possuidor de um cé
rebro privilegiado, ondese
armazenavam suas vivê
ncias desde a mais terna idade, ou eu te-ria que o considerar uma farsa
.
As
duas possibilidades implicavam o comprometimento da continuidade do projeto.
A
dú
vidapre-na
-acompa -nhou-me algum tempo
.
No entanto,
jã
naquelemomento,
havia se es-tabelecido uma afinidade entre nó
s, de modo que nenhuma das consi^ dera
çõ
es me
pareciam viá
veis, e eu buscava rechaçá
-las.
Para isso eu teria queencontrar uma
terceira hipó
tese
que me explicasse o10
que os dados revelavam. 0
caminho
me foi indicado,
em algum lugar quen
ã
o
registrei,
ao me deparar com palavras de Oswald de Andra-de
,
que dizia:"
A
genteescreve
o que ouve- nunca
o que houve"
.
Essa
frase deslocava a questã
o e me fez lembrar de textossobre verdade, objetividade,
realidade
e o quanto esses conceitos devem ser relativizados.
Como,
aliá
s,
assinala Eclé
a Bosi, a His-t
ó
riaé
també
m um ponto de vista sobre a realidade. Os livros que a registram sã
o"
uma versã
o do acontecido,
nã
o raropor
outros
livros comoutros
pontos de vista"
(
BOSI, 1983:1).
partir da
í
, percebi que havia verdade no quecontava
Antonioque minha tarefa era a de entender o significado de seu discurso
.
Para isso, tornava-
se importante que eu dominasse a ló
gica de sua narrativa, e o entendimento adveio quando encaminhei minhas leitu ras teó
ricas para a aná
lise do fenó
meno da memó
ria.
As
colocaçõ
es de Maurice Halbwachs acerca da memó
ria individual e de comose confunde com a mem
ó
ria coletiva foram a chave que me ouvir o discurso de Antó
nio como uma fala legitima e sobre a realidade.
lidos desmentidosA
e essa permitiu verdadeiraA
maneiracomo
a pesquisateve in
í
cio-
a partir daex
-plicita
çã
o de Antó
nio deseu
desejo de publicar um livrosua cidade e da
inexist
ê
ncia de um projeto"
fechado"
de minha parte
-
contribuiu grandemente para o encaminhamento posteriortrabalho
.
Diferente da situaçã
o costumeira, em que o pesquisador formula seu interesse, define uma situaçã
o empí
rica para investi-gar
,
expõ
eao
grupo eleito(
que també
m o elege)
sua proposta,
eu entrei em campo parame
deparar com uma situaçã
o em quemeu
formante
"
definia as questõ
es que julgava importantes seremcons
^
L
deradas
.
"
Isso
nã
oé
importante"
foi uma frase pronunciada porAn
tô
nio e que ouvi muitas vezes no decorrer do trabalho, como
res
-posta a assuntos que eu julgava pertinentes
.
Nesses casos, oú
ni-co caminho a seguir era deixar passar um tempo para refazer a per gunta, postergando
-
a,
à
svezes, at
é
um pró
ximo encontro.
Analiso essa questã
ocomo
uma decorrê
ncia do fato deAnt
ó
nioter
definido sobredo
-claramente ,
para simesmo
,
o queest
á
vamos
realizando.
Uma passa-gem que exemplifica o exposto foi a sess
ã
o de fotografias prepa-rada e dirigida por Antonio
.
Numa de minhas idas a Cabo Frio , fa-lei que retornariaem
breve com um fotó
grafo do Rio de Janeiro a fim de fazer uma documentaçã
o para ilustrar o livro.
No diacombjl
nado ,ao
chegar, encontrei Antonio trajando camiseta e boné
novos
e umcen
á
rioconstru
í
do por ele, onde deverí
amosexecutar
o traba lho.
Na"
oficina"
ondeconstumava
trabalhar, sob umaá
rvore ao
la do dacasa,
Antô
nio havia reunido os objetos que queria fotografa dos.
0 local fora arrumado: troncos e galhos usados para esculpir ferramentas, servir estavam empilhados;
restos de madeira, retirados;guardadas
.
Uma tarrafa havia sido pendurada naá
rvore ,
ade pano de fundo para as fotografias
.
Sua interferê
ncia nã
o parou aí
.
Durante o
trabalho,
buscava dirigir o fotó
grafo, indicandoos
melhoresâ
ngulos, doseu
ponto de vista,
paraa
fotografia,iniciativas do
outro
eram acompanhadas porcoment
á
rios seus,
tipo:
"
Esseretrato
nã
o
vai ficar bom,
é
melhor você
tirar daqui.
"
Nesse sentido, os limites que a situaçã
o de pesquisa comumente
impõ
e ao pesquisador-
tais como o respeito ao tempo"
outro"
e a existê
ncia de"á
reas de segredo"
do grupo asnos
é
difí
cil penetrar-
eram acrescidos pelos parâ
metros para a realizaçã
o do projeto, segundo as formulaçõ
es de Antô
nio.
A situa
çã
o constumeira que eu vivenciei pode ser repro-duzida
nas
seguintes palavras: no dia previamente marcado,
euchq
gavaem
Cabo Frio e ia para acasa
deAnt
ô
nio.
Ele já
me esperava para mais um dia de trabalho que, apó
s a conversa protocolarpessoas que se reencontram, se iniciava com ele dizendo:
"
Vamos li garo
gravador que hoje eu vou falar sobre talassunto
"
.
E,entã
o , eu tinhao
informante ideal no sentido dos grandesAs
do do quais de depoimentosque me forneceia sobre os diversos temas.
A
inserção de perguntas mais amiú
de foi possí
velà
medida que o trabalho prosseguiu e a ansiedade de Antô
nio em"
daro
seu recado"
foi arrefecendo.
Para-lelamente
, as
"
minhas"
questõ
es foram ficando mais claras para1 2
de modo que
,
aot
é
rmino do trabalho de campo, nossos interesses se haviam equilibrado.
Em 1989, finalmente, pudemos ver publicado o livro
An
-t
ô
nio de Gastã
o, pescador de Cabo Frio.
A
obra, ilustrada por fo tografias e desenhos, traz
emanexo
mapas e um disco com composi-çõ
es deAnt
ô
nio ecantos
tradicionais da regiã
o
.
relato no qual
,
ao narrar sua histó
ria de vida, o autor traçatam
bé
m a histó
ria de seu grupo e deseu
meio social.
Assim, julguei haver conclu
í
do o projeto 0 Artista Popu lar e seu Meio em Cabo Frio.
Com ele, encerrava-se també
m uma eta pa de meu ciclo de vida profissional.
Essa impressã
o foi fortemente
ampliada pelamorte
deAnt
ô
nio,
ocorrida em janeiro de 1990,
poucos meses apó
s o lançamento
do livro.
No
entanto,
algum tempo depois, comecei a achar a obra incompleta.
A
opçã
o por darà
s memó
rias deAnt
ô
nio o cará
ter
um relato na primeira pessoa, por ele assinado , me fizera omitir
minha participa
çã
o no processo deconstru
çã
o dessas mesmas memó
-rias
.
"
As pessoas tem que participar"
,
dizia Antô
nio, e eu parti-cipara
.
Com ele, viajara no tempo.
Fora seu ouvinte, sua assistê
n cia e,
nessa condiçã
o,
a motivaçã
o para, naquelemomento
,
revisi-tar
o passado.
Nesse
sentido,eu era
responsá
vel també
m pela obra concretizada.
A
pesquisa fizera de mim um personagem da histó
ria de vida de Antô
nio.
Eu vivi essa histó
ria como ator,
e elatamb
é
m parte de minha histó
ria de vida.
Incompleta, precisava con cluí
-la.
Precisava tornar-
me també
m um
narrador e desfiar minhasmem
ó
rias no relato de quem foiAnt
ô
nio para mim,
como foi a rela-çã
o vivida por nó
s dois, o que aprendi e apreendi.
Eu
tinhahist
ó
ria acontar
, eera
precisocont
á
-
la.
É
o que faço agora.
SÓ assim,
acredito,
o ciclo será
fechado,
e a obraestar
á
completa.
mim també
m,Trata-
se
de umde
e
NOTAS
1
-
Emprego aqui o termo carreira no sentido que lhe foi atribuí
-do por Hughes, E
.
,
ou seja, como"
a moving perspectivewhich a person interprets the meaning of his various attribu-tes
,
actions and the things that happento
him"
(
apudBECKER
, H.
,
1963:102).
in
2
-
Os termosé
thos e visã
o de mundo sã
o empregados nestetraba-lho segundo a acep
çã
o de Clifford Geertz, para quem"
na dis -cussã
o antropoló
gicarecente ,
os aspectos morais ( ecos) de uma dada cultura, os elementos valorativos
,
foram re-sumidos sob otermo
é
thos, enquanto os aspectos cognitivos, e xistenciais foram designados pela expressã
o visã
o de mundo.
0é
thos de um povoé
otom,
o cará
tere
a qualidade desua
vi
-da, seu estilo moral e esté
tico e sua disposiçã
o,
é
a atitude subjacente em relaçã
o a ele mesmo e ao seu mundo que areflete
.
A visã
o de mundo que esse povotem
é
o quadro quee
-
| labora das coisascomo
elas sã
o na simples realidade , seucon
!
ceito de natureza
,
de si mesmo, da sociedade"
(GEERTZ,
1978: 143-
44)
.
est
é
ti-vida
3 - 0 cargo de animador cultural foi criado pela Secretaria
Esta
-dual de Cultura e vigorou com bastante intensidade no rior do estado durante a d
é
cada de 1970.
Fazia parte de sé
rie de medidasestrat
é
gicas implantadas pelo governodual de ent
ã
o,
visando a desenvolver açõ
es de cará
terral em todo o territ
ó
rio fluminense.Ao
animador cultural,eloentre
as manifestaçõ
es locais e oó
rgã
o oficialpela pol
í
tica cultural do estado,
cabia implementar açõ
es que promovessem o florescimento e a continuidade dasde cultura pr
ó
prias de cada municí
pio.
inte -uma esta
-cultu
-respons
á
vel expressões
4
-
Aqui,
ouso
do termo projeto diz respeito ao conceito volvido por SCHUTZ(
1979),
ou seja, uma açã
o previamentedesen
-de
-14
terminada
para atingir uma finalidade especí
fica e que,
se sentido , extrapola o pr
ó
prio objetivo imediato,se raz
ã
o da pró
pria vida do indiví
duo.
A esse
respeito,
artigo de Gilberto Velho (1988).
nes
-tornando -ver5 - Para a realiza
çã
o do livro pude contarcom
a participaçã
o dev
á
rios colegas doINF
que se foram integrando ao projetoà
me dida que solicitados, alé
m de outros profissionais, contrata-dos pela Institui
çã
o para execuçã
o de tarefas especí
ficas.
To dos vê
m nomeados na folha de cré
ditos da publicaçã
o , e a eles participaçã
o de Claudia Mareia Ferreira, museó
loga,
ent
ã
o responsá
vel pelo Museu de Folclore Edison Carneiro,
que por diversas ocasiõ
es me acompanhou ao campo, e da antropó
loga Elizabeth Travassos,
respons