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AS REPRESENTAÇÕES DO SUJEITO TRADUTOR E INTÉPRETE DE LÍNGUA DE SINAIS NO MEIO ACADÊMICO

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AS REPRESENTAÇÕES DO SUJEITO TRADUTOR E INTÉPRETE DE LÍNGUA DE SINAIS NO MEIO ACADÊMICO

Fernando Henrique Fogaça Carneiro – UFRGS Antonielle Cantarelli Martins – USP Janie Cristine do Amaral Gonçalves – UFPel

Introdução

Em nossa trajetória de professores, pesquisadores, estudantes e tradutores intérpretes de língua de sinais (TILS) – bem como uma série de outras marcas que nos constituíram até esse momento –, vivenciamos diversas situações por nós consideradas significativas, as quais produziram as diferentes formas de assumirmos cada uma dessas “posições de sujeito”, no sentido foucaultiano. De forma especial, nos últimos meses, temos nos questionado em relação a nossa própria constituição, subjetivada e objetivada, enquanto TILS e sujeitos-ouvintes. Este trabalho é fruto de nossas primeiras discussões e abarca um momento inicial de muitas pesquisas, que é a busca por trabalhos semelhantes ao que nos propomos, como forma de compreender o panorama atual da discussão a nível nacional ou global e avaliar a relevância de um determinado projeto para sua área de conhecimento associada. Feita essa busca, os dados encontrados foram categorizados e quantificados para, em seguida, ser realizada de uma análise qualitativa do discurso inspirada nas teorizações de Michel Foucault.

Tendo em vista a metodologia escolhida para esta pesquisa, pensamos ser importante apontar o que entendemos por discurso e por que motivo optamos por adotar uma perspectiva foucaultiana nesse contexto. Ao contrário das técnicas chamadas de “análise de conteúdo”, Foucault (2015) pontua que a análise do discurso, em sua concepção, não está preocupada com o que estava por trás do dito, ou o que se queria mesmo falar com tal enunciação. Para ele, analisar os discursos significa identificar quais enunciados os constituem (e são por eles constituídos), quais as relações entre esses enunciados, quais enunciações podem ou não podem ser empreendidas nesse contexto (FOUCAULT, 2015).

Nesse sentido, surgem três conceitos-chave para a realização de uma análise discursiva de inspiração foucaultiana: discurso, enunciado e enunciação. Por enunciação, Foucault (2015) trata de “atos de fala”. Certamente, não se trata somente do que é dito por meio da voz (ou das

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mãos), mas “[...] cada vez que um conjunto de signos for emitido.” (FOUCAULT, 2015, p. 123). Nesse sentido, podemos entender a enunciação como qualquer forma de expressão que produza sentidos – artes visuais, plásticas, cênicas, matemática, linguística, estatística etc.

Para Foucault (2015), as enunciações são únicas e abundantes, enquanto permeadas por uma certa “gramática” do discurso, uma série de regras do que pode ou não pode ser dito, noções que constituem os sujeitos que são capturados pelos discursos. A essas premissas Foucault (2015) chama de enunciados, os quais são marcados pela repetição e circulação de ideias, as quais constituem determinado discurso. Assim como as enunciações, os enunciados não necessariamente estão vinculados a algum ato linguístico de fala, mas a qualquer signo que produza sentidos. Dito de outra forma, “[...] um horário de trens, uma fotografia ou um mapa podem ser um enunciado, desde que funcionem como tal, ou seja, desde que sejam tomados como manifestações de um saber e que, por isso, sejam aceitos, repetidos e transmitidos.” (VEIGA-NETO, 2014, p. 94).

Enfim, o conceito de discurso. Não se pode afirmar categoricamente que “discurso é isso” ou “discurso é aquilo” – afinal nem o próprio filósofo o definiu dessa maneira. Em diferentes trechos da mesma obra citada, há múltiplos entendimentos desse conceito: “[...] conjunto de enunciados que se apoia em um mesmo sistema de formação.” (FOUCAULT, 2015, p. 131), ou então “[...] práticas que formam sistematicamente os objetos de que fala.” (FOUCAULT, 2015, p. 60”. Ao invés disso, o filósofo descreve durante toda a obra Arqueologia do Saber seus entendimentos a respeito do discurso, em geral por contraposição – tudo o que ele não é.

Foucault (2015) aponta que o discurso de que fala não está associado às ideias advindas do campo da História. Critica as ideias de tradição, influência, desenvolvimento e evolução, por entender que o discurso – e a história em geral – não está contido em uma linha do tempo contínua, com documentos que registram as conquistas de determinados povos para que se vá “adiante”. Ao contrário, marca que os discursos estão em constante mudança e são marcados, principalmente, pelas rupturas ao invés das continuidades. Nesse sentido, propõe abandonar essa ideia de “documento” (da História) e tratar as materialidades investigadas como “monumentos” (da Arqueologia), fragmentos que fizeram parte de um contexto anterior histórico e que são analisados em sua singularidade, sem a intenção de construir uma “linha contínua de fatos”. Nesta perspectiva, Foucault confere ao discurso uma perspectiva histórica, mas sem lhe retirar a vida e a sua forca produtivo-criativa, advinda dos varios sujeitos que com

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o discurso/monumento se relacionam. Ao fazer isto, Foucault de certa forma atribui ao discurso um status mais próximo da arte do que da história, e mais associado a um caráter de desconstrução.

Neste trabalho, utilizamos uma metodologia embasada nessas prerrogativas, observando o material quantitativo que obtivemos e o encarando como um monumento – único e próprio deste tempo –, buscando recorrências que possam evidenciar alguns dos enunciados que permeiam tais produções. Com isso, delimitamos o objetivo do trabalho: examinar enunciados produzidos ou postos em circulação por pesquisadores sobre a constituição do sujeito-TILS. Para tal, foram analisadas produções técnico-científicas registradas no Portal de Periódicos da CAPES1, processo descrito a seguir.

O acesso ao Portal ocorreu por meio do sistema da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), assinante da base e meio pelo qual foi possível explorar a totalidade dos registros obtidos. O termo buscado foi “intérprete AND língua* AND sina*)”2 somente no campo “Título”. Com isso, retornaram cerca de 30 resultados, dos quais 19 não estavam repetidos. Então, organizou-se um quadro, apresentado a seguir, com informações básicas sobre os trabalhos identificados.

Quadro 1 – Dados obtidos a partir de busca no repositório Periódicos da CAPES

Título Autor(es) Ano

A cultura surda e os intérpretes de língua de sinais (ILS) Gladis Teresinha Perlin 2002 As marcas do intérprete de língua de sinais na escola inclusiva Paula Michelle da Silva

Pereira 2006

Implicações e conquistas da atuação do intérprete de língua de sinais no Ensino Superior

Vanessa Regina de

Oliveira Martins 2006 Intérprete de língua de sinais, legislação e educação: o que temos,

ainda, a “escutar” sobre isso?

Vanessa Regina de

Oliveira Martins 2007 O professor intérprete de língua de sinais em sala de aula: ponto de

partida para se repensar a relação ensino, sujeito e linguagem Regina Maria de Souza 2007 O intérprete universitário da Língua Brasileira de Sinais na cidade de

Curitiba

Ana Cristina Guarinello et

al. 2008

Educação bilíngue para surdos: um olhar a partir da trajetória de intérpretes de Língua Brasileira de Sinais

Diléia Aparecida Martins; Vera Lúcia de Carvalho

Machado

2009

1 Disponível em: <http://www.periodicos.capes.gov.br>. Acesso em: 07 fev. 2019.

2 Foram utilizados os operadores lógicos “AND” (E) e “OR” (OU), bem como o símbolo “*” (qualquer sequência

de caracteres coringa). Dessa forma, contemplou-se os termos “intérprete”, “língua” e “sinais”, em qualquer ordem, com ou sem plural.

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Tradutor e intérprete de língua de sinais: história, experiências e caminhos de formação

Gisele Iandra Pessini Anater; Gabriele C. R. Dos

Passos

2010

A atuação do intérprete educacional de Língua Brasileira de Sinais no

Ensino Médio Laura Jane Messias Belém 2012

O intérprete de língua de sinais no contexto da educação inclusiva: o pronunciado e o executado

Ana Dorziat; Joelma

Remíngio de Araújo 2012 Profissão: Intérprete - contribuição das Ciências Sociais à formação de

Tradutores e Intérpretes de Língua de Sinais

Alexandre Guedes Pereira

Xavier 2012

O tradutor/intérprete de língua de sinais: um mediador de fronteiras culturais

Izaulita César Moura; Fátima Gonçalves

Cavalcante

2013

Desdobramentos foucaultianos sobre a relação de ensino do intérprete de língua de sinais educacional

Vanessa Regina de

Oliveira Martins 2014 Intérprete surdo de língua de sinais brasileira: o novo campo de

tradução / interpretação cultural e seu desafio

Ana Regina e Souza

Campello 2014

Da formação comunitária à formação universitária (e vice e versa): novo perfil dos tradutores e intérpretes de língua de sinais no contexto

brasileiro

Vanessa Regina de Oliveira Martins; Vinícius

Nascimento

2015

O papel do intérprete de Língua Brasileira de Sinais no ensino

fundamental em uma escola municipal de Sinop Marcia Silva Pinto 2016 Tradutores-interpretes de línguas de sinais: funções e atuação nas redes

de ensinos

Adriane Melo de Castro Menezes; Cristina Broglia

Feitosa de Lacerda

2017

O tradutor intérprete de língua de sinais (TILS) e a política nacional de educação inclusiva em contextos bilíngues para surdos: um estudo da

realidade da rede pública estadual paranaense

Danilo da Silva; Sueli de

Fátima Fernandes 2018 Um estudo sobre a formação de tradutores e intérpretes de línguas de

sinais

Juliana Guimarães Faria;

Anabel Galán-Mañas 2018 Fonte: Elaborado pelos autores.

De posse desses dados, identificamos que tais pesquisas evidenciavam uma série de ideias que estão(avam) sendo utilizadas frequentemente no meio acadêmico na época de sua circulação. Essas enunciações foram agrupadas de acordo com suas semelhanças, como forma de explicitar possíveis enunciados fortalecidos e postos em circulação por meio dos trabalhos acadêmicos analisados. Destaca-se o caráter contingente desta investigação e as rupturas históricas presentes nesses escritos, as quais temos por objetivo analisar.

Com isso, construímos e apresentamos neste artigo o corpus e a metodologia da pesquisa utilizada. Para isso, nas sessões que seguem, tecemos comentários a partir de excertos retirados das obras, na esperança de conseguirmos evidenciar enunciados significativos que circulam nos discursos acadêmicos em torno do sujeito-TILS.

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A constituição do sujeito-TILS

Em muitos dos trabalhos estudados, havia prescrições a respeito do papel do TILS em diferentes âmbitos (pessoal, profissional, social, por exemplo). Num primeiro momento, muitos foram os relatos acerca da função do TILS – ou melhor, o conjunto de motivos pelos quais esse profissional passou a existir.

A necessidade desse profissional [o TILS] está atrelada à condição e possibilidade do surdo expressar sua vontade em juízo, no qual precise se comunicar com ouvintes, assim como tenha atendido seus direitos de cidadão. (BELÉM, 2012, p. 17, grifo nosso).

O TILS é o profissional que tem a função de interpretar duas línguas: a Língua de Sinais e a Língua Portuguesa. Seus espaços de atuação são constituídos a partir das possibilidades de existência de pessoas surdas [...] (DORZIAT; ARAÚJO, 2012, p. 393, grifo nosso).

O intérprete de línguas de sinais (ILS) surgiu conforme a necessidade das comunidades surdas, inicialmente de modo informal, sendo mais para atender membros da própria família, feito isto pelos pais, depois formalmente, sendo necessário que a língua fosse oficializada. (PINTO, 2016, p. 1238, grifo nosso). [...] as ações afirmativas no Brasil nos últimos anos tendem a ampliar o número de surdos nos diferentes espaços sociais, sobretudo na educação básica e superior. Essa realidade, inegavelmente, tem despertado para novos postos de trabalho e exigência de qualificação profissional de nível superior, para tradutores e intérpretes de língua de sinais [...] (FARIA; GALÁN-MAÑAS, 2018, p. 282).

Nos três primeiros excertos, vemos frases as quais sustentam que o surgimento dessa (hoje) profissão ocorreu em função das necessidades dos surdos. Somado a isso está a enunciação disposta no quarto fragmento, a qual parece carregar a ideia de que a existência de postos de trabalho é diretamente proporcional à existência de surdos para serem atendidos. Apesar de não termos materiais empíricos que mostrem os efeitos dessa trajetória histórica, como entrevistas com TILS ou surdos, pensamos que estas são questões marcantes na constituição de uma determinada profissão: saber que ela existe em função de um grupo de pessoas e que, de certa forma, seu fazer está inevitavelmente atrelado a – ou mesmo a serviço de – essa comunidade.

Dito de outra forma, entendemos que esta relação de interdependência social e profissional, para os intérpretes, pode gerar algumas confusões em alguns momentos de prática profissional e ou prática social com surdos. Nesta aproximação em que o outro com quem se trabalha precisa estar tão perto, e necessitado dos seus serviços para exercer sua cidadania e

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funções sociais plenamente a partir de seu discurso, tem-se uma luz vermelha de alerta, estabelecida pela fronteira de identidade(s) que nos une e nos delimita, como sujeitos, ao mesmo tempo.

Por outro lado, mas no mesmo sentido do paradoxo enunciado acima, para os surdos, parece existir uma relação conflituosa com os TILS – afinal esses profissionais, ainda que necessários, devem estar sob suspeita a todo o momento por serem ouvintes (LOPES, 2011; GOMES, 2011). Podemos ver traços dessa desconfiança no material analisado.

Alguns ILS já percebem que a constituição da identidade tem elementos culturais significativos na alteridade como ILS. Notam também que a articulação com a cultura surda se constitui em algo específico. Ao mesmo tempo em que identifica o ILS, ela não é a cultura do ILS, portanto empurra em diferentes direções, diferentes identidades. Daí porque as reações dos sujeitos diante da cultura surda são as mais variadas constituindo, portanto, identificações diferentes em diferentes momentos. (PERLIN, 2002, p. 141, grifo nosso).

Entre os surdos há aqueles que remetem o intérprete como mal necessário. O ILS atua na intermediação cultural, atua na fronteira cultural das culturas ouvintes e surdas. Temos de reconhecer a identidade do ILS não como um processo de manipulação, mas como uma identidade política no momento aproximação cultural. Ela influi em suas atuações consensuais de significações culturais. (PERLIN, 2002, p. 145, grifo nosso).

[...] os dois tradutores utilizam a mensagem (M) bem preservada, sendo que a tradutora da LSB [surda] usou as informações contextualizadas (FI) bem claras para expressar melhor o sinalário (léxico). Evidencia a tradução de acordo com a cultura Surda. A tradutora de ASL [ouvinte] não preservou e não utilizou a informação induzida (LII) ou motivada por questão linguística para chegar às informações ao público alvo, por utilizar o léxico em mesmo sinalário de modo preservado e convencional. Não evidencia a tradução da cultura Surda mesmo usando a língua da comunidade surda norte-americana [...] (CAMPELLO, 2014, p. 161, grifo nosso).

Percebe-se nos escritos das autoras, ambas surdas, uma delimitação de fronteiras. Perlin (2002) pontua ainda que os TILS se constituem a partir da cultura surda, mas isso é apenas uma parte de sua subjetividade pois essa não é a cultura deles. A afirmação parece reforçar a ideia de que a cultura surda, assim como descrita por Gomes (2011), assume o papel de barreira entre o mundo dos surdos e o mundo dos ouvintes (e intérpretes), como forma de proteger seu legado, suas conquistas, sua identidade.

Ao mesmo tempo em que os TILS são, de certa forma, guiados por alguém dentro de um território desconhecido e inabitável, também são convidados a passar através das muralhas. Esse paradoxo é ilustrado diversas vezes nos textos analisados, os quais pontuam a necessidade

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de que esses profissionais tenham compreensão das diferenças culturais para que possam desempenhar satisfatoriamente sua profissão.

As identidades dos ILS não preenchem muitas das exigências culturais dos surdos. Questões de pertença e de vínculo são freqüentemente contestadas pelos surdos. Uma situação difícil é a de definir o ILS e a situação cultural. (PERLIN, 2002, p. 143). No meio do povo surdo, alguns ILS são mais aceitos que outros, reconhecidos como identidades mais compatíveis com a cultura surda. Isto significa que o intérprete emerge de certas relações políticas de discursos referentes à cultura surda. E na figura cúmplice do intérprete, aceita no povo surdo, existe a reinscrição cultural referencialmente política. (PERLIN, 2002, p. 144, grifo nosso).

As sequências destacadas acima do discurso da pesquisadora surda Gladis Perlin indicam que existem intérpretes que adentram mais profundamente os espaços culturais surdos com permissão cultural destes. Tais práticas são geralmente orquestradas pelos líderes comunitários que conferem este acesso e são seguidos depois pelos outros membros da comunidade. Em alguns casos alguns interpretes tem laços específicos com alguns surdos de parentesco, pratica profissional ou amizade; em outros casos, esta chancela de aproximação cultural é dada somente pelo desempenho profissional e ético diante da comunidade e do indivíduo surdo. Em ambas as situações, o critério do discurso e da pratica política deste intérprete são os princípios básicos para esta passagem e trânsito culturais lhe serem atribuídos pela comunidade.

Precisamos frisar aqui o nível de rigor e exigência ético cultural necessários a este profissional para que ele possa desempenhar suas funções a contento desta comunidade. Tais valores são compreensíveis, dada a história de opressão ouvinte sobre o povo surdo e suas comunidades, todavia, tolerância e permanente reconstrução destes discursos e papéis parecem ser extremamente necessários para que sujeitos surdos e intérpretes possam dialogar mais entre suas culturas3.

O ILS é para intermediar a cultura surda e a outra cultura pautada na audição e na fala. (PERLIN, 2002, p. 142).

[...] concebe[-se] o TILS como mediador de conteúdos, sobretudo se ele estiver atuando em sala de aula, local em que sua tarefa é bastante específica. Nessa posição, ele é um “mensageiro” do conhecimento; é também “elo” ou “ponte” entre duas culturas, responsável pelo acesso à informação e à compreensão pela pessoa surda daquilo que é dito. (ANATER; PASSOS, 2010, p. 209, grifo nosso).

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Para assegurar uma participação adequada dos surdos nesses diversos espaços sociais, o TILS precisa ter uma formação que implique reflexões sobre as especificidades surdas, que envolvem a língua e a cultura surdas; os conhecimentos da área onde pretende atuar e uma atitude ética, responsável e compromissada. Uma interpretação deficiente ou insuficiente pode causar prejuízos sérios aos surdos. (DORZIAT; ARAÚJO, 2012, p. 394, grifo nosso).

O interprete é tido como o canal comunicativo entre os surdos/deficientes auditivos e as pessoas que lhe cercam. Seu papel em sala de aula é servir como tradutor/mediador entre pessoas que dividem línguas e culturas diferentes. (PINTO, 2016, p. 1240, grifo nosso).

Assim, reforça-se a ideia de que o TILS deve, sim, ter conhecimento profundo da cultura surda, ainda que não vivencie essa cultura. O motivo para isso, como mostram os excertos, reside na responsabilidade deste profissional em ligar esses dois mundos – o surdo e o ouvinte – por meio de sua fluência na língua oral e na língua de sinais, seu conhecimento das culturas de cada povo, bem como uma série de outras caraterísticas desejáveis. Essas características desejáveis, reguladas por meio de diferentes estratégias4, se tornaram prescrições, as quais versam sobre a postura do intérprete, seu posicionamento, vestimenta, comportamento, enfim, sua função e suas atribuições. Isso pode ser visto nos fragmentos que seguem.

Durante todo o período em que estive trabalhando com este aluno, por diversas vezes ele comparou a minha postura como ILS com as demais profissionais que já atuaram com ele; em alguns momentos, para tirar proveito de algumas situações; em outros, para criticar as ILS anteriores, provavelmente devido aos problemas ocorridos no ano de 2004, entre eles a postura: pareciam não saber separar a amizade com o sujeito surdo da sua atuação como intérprete de língua de sinais. (PEREIRA, 2006, p. 153, grifo nosso).

Dos 13 TILS participantes de nossa pesquisa, 11 desenvolviam, em sua atuação, enquanto profissional responsável pela interpretação dos discursos e fatos ocorridos em sala, uma prática que possuía situações incongruentes com uma atitude profissional ética. Essas situações são caracterizadas nos dados como: ausentar-se de sala de aula, responder às atividades dos estudantes surdos e assumir para si as responsabilidades do professor. (DORZIAT; ARAÚJO, 2012, p. 402, grifo nosso). Além dos fatores de ordem informacional, existem aqueles inerentes ao papel profissional propriamente dito. A coexistência de dois profissionais em sala de aula – professor e intérprete – tem acarretado confusões de papéis. Observamos que, muitas vezes, o intérprete assumiu a função do professor dos estudantes surdos, função essa delegada pelo próprio professor, de forma intencional, embora tácita. (DORZIAT; ARAÚJO, 2012, p. 403).

Sob a égide de um código de ética, nota-se a presença de mecanismos de controle (por meio do próprio código) e regulação (na avaliação dos surdos e dos próprios TILS sobre eles

4 Tais formas de objetivação não serão abordadas neste ensaio, ainda que seus efeitos estejam presentes nos escritos

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mesmos) nas formas de ser do sujeito-TILS. Identificamos que muitas dessas orientações tomaram um formato mais padronizado e com uma base teórica mais sólida a partir de um determinado período, o qual coincide com a publicação do documento intitulado “O tradutor e intérprete de língua brasileira de sinais e língua portuguesa”, escrito por Ronice Müller de Quadros no ano de 2004 e publicado pelo Ministério da Educação. Este documento representa um marco orientador para profissionais e pesquisas na área com sua força balizadora. De fato, o documento consta nas referências bibliográficas que boa parte das produções analisadas.

Até então, viu-se que o TILS se configura como um sujeito que surge para atender ao surdo, que tem domínio da língua de sinais, que conhece bem a cultura surda – mas não se apropria dela, pois não é a sua – e que respeita todas as normas de controle e (auto)regulação dispostas no código de ética. Seriam esses traços suficientes para conformar a gramática do “bom profissional TILS”? Segundo o material examinado, não. Teriam ainda muitas nuances a serem observadas, como o local de atuação desse profissional, seu engajamento com a comunidade surda, sua participação nos movimentos sociais surdos. Contudo, cientes de termos cumprido com o que havíamos proposto para a escrita deste trabalho, iremos reservar tais discussões para pesquisas futuras.

Considerações finais

Ao assumirmos a tarefa emblematicamente foucaultiana de problematizar verdades há muito presentes e colocar sob suspeita grandes metanarrativas, entendemos que corremos o risco de sermos entendidos como pessoas contrárias aos surdos ou à profissão de TILS. Pelo contrário, nos encontramos, por vontade própria, nessas situações. Somos familiares, amigos, tradutores, intérpretes e professores de surdos, lutamos diariamente por um ensino qualificado, por estratégias metodológicas específicas, por novos saberes produzidos por e para surdos. Ainda assim, seguimos problematizando, exercitando nossa “hipercrítica” (VEIGA-NETO, 2014) sobre nós mesmos, questionando o que acreditamos e, em certa medida, nos “torturando”, colocando em xeque nossas crenças e práticas cotidianas.

Foi nesse sentido que se pensou a presente investigação. Por meio dela pudemos evidenciar alguns enunciados presentes nos discursos que tratam da constituição do sujeito-TILS, quais sejam, “O TILS só existe por causa dos surdos”, “O TILS precisa ter fluência na língua de sinais”, “O TILS precisa ter um conhecimento profundo da cultura surda”, “O TILS,

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assim como os demais ouvintes, podem vivenciar a cultura surda, mas não se apropriar dela”, “O TILS deve seguir o código de ética da profissão”. Nesse exercício de pesquisa, não temos a intenção de nos posicionar a favor ou contra qualquer um desses enunciados, ou mesmo afirmar que são errados ou perversos ou qualquer outro adjetivo. Mais do que isso, buscamos aqui trazer à tona algumas questões que para nós sempre foram óbvias, naturais, dadas, “desde sempre aí”. Por fim, recordamos uma frase presente no trabalho de Perlin (2002, p. 144): “[...] o ILS se constitui nas fronteiras da cultura surda. O ILS sempre fala de novo de voltar para casa. E para o ILS a cultura surda se constitui apenas em um aspecto de sua cultura.”. Diante de tal afirmação, que muito resume algumas das premissas aqui evidenciadas, fazemos os seguintes questionamentos: seriam os TILS sujeitos à margem dos surdos? Até que ponto a cultura, tal como descrita pelos autores, pode servir como uma fortaleza murada do povo surdo, impenetrável até pelas pessoas cujo motivo de existência de sua profissão os circunda? Estariam os TILS sempre sujeitos ao exame e avaliação dos surdos? De que formas esses mecanismos de controle e regulação produzem efeitos na sua subjetividade? Esses são os próximos movimentos de nossas pesquisas, cujos primeiros passos estão aqui registrados.

Referências

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BELÉM, L. J. M. A atuação do intérprete educacional de Língua Brasileira de Sinais no

Ensino Médio. 2012. Dissertação (Mestrado) – Programa de Pós-Graduação em Educação,

Faculdade de Ciências Humanas, Universidade Metodista de Piracicaba, Piracicaba, 2012. CAMPELLO, A. R. S. Intérprete surdo de língua de sinais brasileira: o novo campo de

tradução/interpretação cultural e seu desafio. Cadernos de Tradução, Florianópolis, v. 33, n. 1, p. 143-167, 2014.

CUMMINS, J. Negotiating identities: education for empowerment in a diverse society. Los Angeles: California Association for Bilingual Education, 1996.

DORZIAT, A.; ARAÚJO J. R. O intérprete de língua de sinais no contexto da educação inclusiva: o pronunciado e o executado. Revista Brasileira de Educação Especial, Bauru, v. 18, n. 3, p. 391-410, 2012.

FARIA, J. G.; GALÁN-MAÑAS, A. Um estudo sobre a formação de tradutores e intérpretes de línguas de sinais. Trab. Ling. Aplic., Campinas, v. 57, n. 1, p. 265-286, jan./abr. 2018.

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FOUCAULT, M. A arqueologia do saber. Tradução de Luis Felipe Baeta Neves. 8. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2015.

GIAMPAPA, F.; LAMOUREUX, S. Voices from the field: identity, language and power in multilingual research settings. Journal of Language, Identity & Education, [s.l.], v. 10, n. 3, p. 127-131, 2011.

GOMES, A. P. G. A invenção da cultura surda e seu imperativo no plano conceitual. In: KARNOPP, L. B.; KLEIN, M.; LUNARDI-LAZZARIN, M. L. (Org.). Cultura surda na

contemporaneidade: negociações, intercorrências e provocações. Canoas: Editora da

ULBRA, 2011. p. 121-136.

LOPES, M. C. Surdez & Educação. Belo Horizonte: Autêntica, 2011.

PEREIRA, P. M. S. As marcas do intérprete de língua de sinais na escola inclusiva.

Educação Temática Digital, Campinas, v. 7, n. 2, p. 148-157, jun. 2006.

PERLIN, G. T. A cultura surda e os intérpretes de língua de sinais (ILS). Educação

Temática Digital, Campinas, v. 7, n. 2, p. 136-147, jun. 2006.

PINTO, M. S. O papel do intérprete de Língua Brasileira de Sinais no ensino fundamental em uma escola municipal de Sinop. Revista Eventos Pedagógicos, Sinop, v. 7, n. 3, p. 1233-1243, ago./dez. 2016.

Referências

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