• Nenhum resultado encontrado

22 26 de outubro 2007 CAXAMBU MG. Grupo Sociedade Brasileira e Educação: o que já sabemos? O que precisamos saber?

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2021

Share "22 26 de outubro 2007 CAXAMBU MG. Grupo Sociedade Brasileira e Educação: o que já sabemos? O que precisamos saber?"

Copied!
29
0
0

Texto

(1)

310 Encontro Anual da ANPOCS

22 26 de outubro 2007

CAXAMBU – MG

Grupo Sociedade Brasileira e Educação: o que já sabemos? O que precisamos saber?

Autor – Profa. Dra. Maria da Graça Jacintho Setton Faculdade de Educação – USP

Titulo - A socialização como fenômeno social total: notas introdutórias sobre a teoria do habitus

(2)

Titulo - A socialização como fenômeno social total: notas introdutórias sobre a teoria do habitus1

Maria da Graça Jacintho Setton Professora de Sociologia Faculdade de Educação da USP gracaset@usp.br Resumo

O objetivo aqui é refletir sobre o processo de socialização segundo a perspectiva da sociologia da educação. Mais precisamente pensar a teoria da socialização a partir de um ponto de vista relacional articulando as principais agências educativas na modernidade. Parto do pressuposto de que a família, a religião, a escola e mais recentemente a mídia estabelecem tensas, mas, intensas relações de interdependência no cotidiano de todas as gerações. Ainda que cada uma delas seja autônoma, desenvolva práticas educativas diferenciadas bem como ocupe papel variado na trajetória dos indivíduos, estas agências, promovem, em conjunto, a adaptação dos sujeitos em seus ambientes sociais. Neste sentido a articulação das propostas de socialização de cada uma delas é atribuição dos sujeitos variando segundo a origem, as expectativas de reprodução dos grupos bem como as experiências individuais de cada um deles. A socialização/educação almejada por estas instâncias, neste sentido, é fruto de um trabalho coletivo que se expressa na necessidade de manutenção e/ou transformação da ordem, mas realizada pelo sujeito. Para melhor compreender o fenômeno da socialização contemporânea proponho pensar esta prática como um fenômeno social total. Isto é, uma prática social vivida por uma dinâmica processual, a partir da troca de bens e mensagens simbólicos entre agencias e agentes socializadores, que envolve simultaneamente a todos os indivíduos com a tarefa de manter o contrato e o funcionamento da realidade social.

Introdução

1 Estas reflexões estão sendo desenvolvidas a partir da pesquisa Família, escola e mídia: um estudo sobre as

práticas de socialização contemporâneas, financiada pela FAPESP, nos anos de 2005/2007. O estudo tem

como objetivo investigar a importância das matrizes de cultura – família, religião, escola e mídias – na construção dos habitus de jovens do ensino médio, no Norte e no Sudeste do Brasil.

(3)

Em Ensaio sobre a dádiva. Forma e razão da troca nas sociedades arcaicas ({1924}1974), Marcel Mauss, analisando o regime de direito contratual e o sistema de prestações econômicas de sociedades ainda chamadas “primitivas” apresenta para nós a noção de fenômeno social total. Mauss se refere a um conjunto enorme de fatos que se relacionam de maneira complexa. Nestes fenômenos “tudo se mistura, tudo o que constitui

a vida propriamente social das sociedades que precederam as nossas – até as da proto-história. Nesses fenômenos sociais “totais”, como nos propomos chamá-los, exprimem-se, ao mesmo tempo e de uma só vez, toda espécie de instituições: religiosas, jurídicas e morais – estas políticas e familiais ao mesmo tempo; econômicas – supondo formas particulares de produção e de consumo, ou antes, de prestação e de distribuição, sem contar os fenômenos estéticos nos quais desembocam tais fatos e os fenômenos morfológicos que manifestam estas instituições” (1974:41).

Ao longo deste texto Mauss passa a relatar as principais características dos fenômenos sociais totais partindo do exemplo das trocas de bens e do contrato de contraprestação de presentes realizado em algumas sociedades da Oceania e da América do Norte. Para os interesses desta reflexão seria interessante apreender algumas dessas idéias, pois elas me ajudam a desenvolver o argumento de que a socialização2 pode ser igualmente vista como um fenômeno social total.3 Procurar uma analogia entre o fenômeno das trocas destas sociedades e a socialização enquanto um fato social amplo e complexo, ou seja, analisar as práticas socializadoras nas suas dimensões econômica, moral, estética e política é uma forma de melhor compreendê-la e contextualizá-la no mundo contemporâneo.

2 “A socialização é o processo pelo qual o ser humano absorve a cultura, ou possivelmente várias culturas,

durante seu período de vida. Um dos subtipos da socialização é a aculturação, que consiste na aprendizagem de uma cultura diferente daquela que tem origem no grupo. A socialização não é simplesmente o processo de aprendizagem dos conhecimentos específicos da tecnologia, língua e organização social, porém igualmente implica a aprendizagem dos comportamentos culturais definidos por uma determinada sociedade. Durante o processo de aprendizagem de um comportamento cultural, que se estende da infância até a morte, o ser humano deve igualmente aprender a se ajustar emocionalmente ao impacto dos controles sociais, que lhes foram apresentados por seus pais, parentes mais velhos, professores, empregadores e outros substitutos culturais”(Davis, Allison, 1944)

3

Ainda que alerte para o fato que os fenômenos totais são manifestações freqüentes em sociedades que ainda não desenvolveram contratos individuais puros, onde os mercados não fazem circular dinheiro, vendas ou mesmo a noção de preço, creio que ele inspira a compreender, em formações complexas e globalizadas como as nossas, aspectos da educação que são fortes e predispõem toda a sociedade a se dedicar voluntária e inconscientemente sobre ela, mas ao mesmo tempo, numa espécie de contrato obrigatório.

(4)

Vale salientar que não se trata de um exercício de erudição acadêmica, mas uma construção reflexiva que me ajuda a circunscrever as instâncias de socialização numa perspectiva relacional tendo como eixo central a participação do sujeito social em seu processo educativo. Mais do que isso, me ajuda a pensar estas instâncias em suas dimensões econômica, moral, estética e política, responsáveis pela formação de um habitus, sistema de disposições tal como pensando por Pierre Bourdieu. Considero que o processo de socialização das formações atuais é um espaço plural de múltiplas referências identitárias. Ou seja, a modernidade caracteriza-se por oferecer um ambiente social em que o indivíduo encontra condições de forjar um sistema de referências que mescle as influências familiar, escolar e midiáticas (entre outras), um sistema de esquemas coerente, no entanto híbrido e fragmentado. Embora saiba que no contexto moderno cada uma das instâncias formadoras desenvolva campos específicos de atuação, lógicas e valores éticos e morais distintos, penso que são os próprios indivíduos que tecem as redes de sentido que as unifica em suas experiências de socialização. É o indivíduo que tem a capacidade de articular as múltiplas referências que lhe são propostas ao longo de sua trajetória. É o sujeito a unidade social na qual se pode efetivar diferentes sentidos de ações, ações essas derivadas das suas múltiplas esferas de existência. No sujeito cruzam-se e interagem sentidos particulares e diferentes. Ele não é apenas o único portador efetivo de sentidos, mas a única sede possível de relações entre eles.4

Assim sendo, estou optando por uma perspectiva sociológica. Ou seja, busco a relação dialética entre indivíduo e sociedade. Busco uma forma de interpretar as ações sociais, as práticas coletivas a partir de uma troca incessante entre as duas faces de uma mesma realidade (o individuo e as matrizes sociais de cultura). Analisando o processo de socialização a partir da articulação das ações educativas de várias instâncias produtoras de bens simbólicos, busco compreender o jogo da reciprocidade e interação estabelecido pelos sujeitos. Em outras palavras, pretendo apreender a dinâmica do campo da socialização contemporâneo a partir da tensão entre agentes socializadores, e como conseqüência a

4 As noções de indivíduo, sujeito e agente social são aqui usadas enquanto sinônimos. Saliento, todavia, que

parto do pressuposto de que o sujeito social tem uma participação ativa no processo de socialização. Numa continua troca simbólica, a relação entre ele e as instituições que o rodeiam é o que mantém e transforma as estruturas do mundo coletivo.

(5)

apreensão de uma luta simbólica de valores entre eles. Parto metodologicamente da experiência de indivíduos social, temporal e culturalmente diferenciados.5

Trabalho com a hipótese da existência de vários modelos de articulação entre as matrizes de sentido responsável pela formação de sujeitos sociais singulares. Assim sendo, cabe perguntar, qual o papel de cada uma destas instâncias na vida dos sujeitos sociais? Quais os pontos de ruptura ou convergência entre elas? Em outras palavras, como se estabelece a composição do habitus dos indivíduos contemporâneos? Como se pensar a ação, ou seja, a força e a determinação das múltiplas agências socializadoras e suas distintas referências na construção do indivíduo da atualidade?

Ao considerar a socialização contemporânea como um fato social total a intenção não é se apropriar da noção das trocas contratuais, potlach ou kula, de forma mecânica e linear. Ao contrário, o interesse é se apropriar desta noção como um instrumento de análise que ajude a pensar a educação como um fenômeno geral e generalizado, que implica necessariamente uma troca, uma reciprocidade, ainda que tensa e, às vezes, em forma de luta, sob pena de colocar a vida social em risco. Um fenômeno que envolve a todos e que para se realizar se manifesta nas dimensões econômica (origem social), política (posição ideológica), religiosa (crença) e estética (gosto) na vida de todos nós. Como lembra Mauss, depois de, um tanto forçadamente, haver dividido e abstraído sobre algumas das matrizes de cultura, é preciso que os sociólogos se empenhem em recompor o todo.

Mas o fato total não chega a ser total pela simples reintegração dos aspectos descontínuos: familiar, escolar, religioso, midiático de cada uma deles; é preciso ainda que o fato social total se encarne em uma experiência individual. Ou seja, primeiro em uma história individual que permita observar o comportamento dos seres totais e não divididos em faculdades; segundo, a partir de um sistema de interpretação que simultaneamente considere os múltiplos aspectos (físico, psíquico, sociológico) de todas as condutas. “O fato

social total, apresenta-se, pois, com um caráter tridimensional. Deve fazer coincidir a

5 A socialização aqui é compreendida como um processo que busca a construção de um ser social. Seu caráter

é contratual, revestido de um forte conteúdo moral e ético, pois implica a orientação segundo padrões de comportamento definidos e legitimados à priori. Entretanto, este processo pode ser pensado sob dois pontos de vista. Ora como imposição de padrões à conduta individual, sendo muitas vezes definido como processo de condicionamento e controle da sociedade sobre os indivíduos; ora como um processo de aquisição de conhecimento e aprendizado, interiorização de padrões de conduta que nos tornam mais humanos e civilizados. Desta reflexão apreende-se a ambigüidade do processo e o caráter ideológico da formação das

(6)

dimensão propriamente sociológica com seus múltiplos aspectos sincrônicos: a dimensão histórica, ou diacrônica; e, finalmente, a dimensão fisio-psicológica. Ora, é só nos indivíduos que esta tríplice abordagem pode ser feita.(...) A noção de fato social total está em relação direta com a dupla preocupação, que para nós havia parecido única até agora, de ligar o social e o individual de um lado, o físico (ou o fisiológico) e o psíquico de outro

(Levi-Strauss,1974:14-15).

Para desenvolver este argumento irei me reportar a duas maneiras de interpretar as práticas e as ações sociais no mundo contemporâneo. Mais especificamente vou dar ênfase a duas teorias da ação que discutem o processo de socialização. Para esta reflexão vou me ater a dois autores que marcaram decisivamente este campo de investigação. A primeira se refere a Pierre Bourdieu e sua teoria do habitus. O segundo, Bernard Lahire, que em uma interpretação particular e crítica a Bourdieu propõe uma leitura contemporânea da socialização, cunhando a expressão homem plural (2002).

O homem plural frente à teoria do habitus de Pierre Bourdieu

Bernard Lahire é atualmente professor da École Normale Superieure Lettres et Sciences Humaines e Diretor do Grupo de Pesquisa sobre Socialização no CNRS, na Universidade de Lyon, França. 6 Tem como tema central de suas pesquisas o processo de socialização, a sociologia das disposições sociais e culturais, eixos temáticos que proporcionam entrada para se discutir a sociologia da educação e a sociologia da cultura.

Bernard Lahire é também um grande admirador e ao mesmo tempo um grande crítico da obra de Pierre Bourdieu. É possível observar em seus escritos uma acentuada necessidade de problematizar uma das principais contribuições deste autor. Como ele mesmo diz, trabalha a favor e contra Bourdieu o tempo todo (Lahire,2002:11). Um dos pontos centrais da tese de Lahire é questionar a teoria da prática de Bourdieu, a teoria da ação dos agentes sociais, principalmente no que se refere à teoria do habitus.

6

De carreira meteórica tem se dedicado a um grande numero de pesquisas e sua produção intelectual é invejável. Com 45 anos de idade alcançou um espaço de destaque na academia francesa. Hoje já é possível contabilizar um número expressivo de livros publicados (dez) e uma infinidade de capítulos e artigos em periódicos franceses e internacionais.

(7)

Segundo Lahire não se pode pensar o indivíduo contemporâneo sendo regido apenas por um único princípio de conduta. Hoje cada vez mais as crianças são socializadas a partir de uma multiplicidade de princípios o que poria em xeque a teoria do habitus. Considera que Bourdieu engessou a própria sociologia ao consolidar um único olhar sobre a teoria das disposições culturais, a teoria do habitus. Os indivíduos, segundo ele, não agiriam de forma homogênea nas muitas situações de vida, não agiriam coerentemente o tempo todo a partir de um sistema de disposições homogêneo, coerente e único. Apoiado no conceito de

habitus, Lahire afirma que Bourdieu constrói um homem perfeito, enquanto que a realidade

demonstra ser o indivíduo altamente complexo (Lahire, 2004a).

Para melhor apresentar a discussão proposta, Lahire considera que existem duas correntes de pensamento sobre a teoria da ação. Grosso modo, a primeira baseada na unicidade do ator e a segunda baseada na sua fragmentação interna. De um lado, pesquisa-se sobre a visão de mundo, a relação com o mundo ou a fórmula geradora das práticas, e de outro, admite-se a multiplicidade de saberes incorporados, de experiências vividas, do “eu” e dos papéis interiorizados pelo ator. O interesse principal da primeira posição é expressa, segundo Lahire, por Bourdieu, pois para ele a teoria do habitus permite construir e compreender de maneira unitária as dimensões da prática que são frequentemente estudadas de modo disperso, dando ênfase ao caráter sistemático e unificador das condutas (Lahire, 2002).

Afirmar que cada dimensão do estilo de vida simboliza as outras, que cada domínio das práticas é uma relação metafórica semelhante a todas as outras, parece para Lahire terrivelmente homogeneizador. A teoria do habitus é compreendida aqui como um princípio ativo, de unificação das práticas e de representações. O conceito de habitus contribui, sem nada conceder ao empírico, a segurança de uma ilusão socialmente bem fundada. Para Lahire é um mito a identidade pessoal invariável. E mais, dirá que existe uma multiplicidade nos sistemas de hábitos incorporados ligados a diferentes domínios da existência e universos sociais que vivemos que a teoria do habitus de Bourdieu não contemplaria (Lahire,2002,2004a,2006).

Segundo Lahire, a questão da unicidade ou da pluralidade do ator é uma questão histórica tanto quanto teórica. A questão deve ser posta nestes termos: quais são as condições sócio-históricas que tornam possível um ator plural ou um ator caracterizado por

(8)

uma profunda unicidade? Ao escrever o prefácio da obra de Panofsky7, apropriando-se das idéias deste autor, Bourdieu não abordaria a questão da excepcionalidade do contexto histórico analisado. Se o tivesse feito teria que relativizar a unicidade, a durabilidade e a transferência de esquemas ou de disposições constitutivas do habitus. Ainda de acordo com Lahire, os primeiros trabalhos de Bourdieu nos anos 60 levou-o a construir uma teoria do ator e da ação mais sensível à pluralidade de esquemas de experiências incorporadas. Nestes trabalhos relativos à sociedade Cabila, Bourdieu (1963) oscilaria entre o modelo do desdobramento do social e mental, que supõe que os atores se utilizam de maneiras de pensar e de agir diferentes, e muitas vezes contraditórias, em ambientes e universos sociais diferentes, e aquele que implica na mistura, na confusão de gêneros e de registros, e finalmente a contradição no coração mesmo da cada prática (Lahire,2002).

Para Lahire, o paradoxo da construção da teoria do habitus reside em ter concebido a adaptação de um sistema de disposições em sociedades pouco diferenciadas e transferido este esquema para as sociedades modernas, altamente heterogêneas. Em espaços como a família, a escola, os amigos e/ou as múltiplas instituições culturais, que as crianças são levadas à freqüentar, pode-se observar demandas diversificadas, concorrentes e, às vezes, contraditórias no que se refere aos princípios da socialização (Lahire, 2002).

Assim Bernard Lahire considera que a produção homogênea do habitus em todas as esferas da vida é um sonho. As disposições culturais desejadas e programadas possuem resistências: interesses mobilizados em direção oposta, públicos diferentes, referências concorrentes etc. A coerência dos esquemas de ação, os habitus que os atores podem interiorizar depende da coerência dos princípios de socialização a que estão submetidos Desde que um ator esteja simultânea e sucessivamente no seio de uma pluralidade de mundos sociais não homogêneos e as vezes contraditórios, ou no seio de universos sociais relativamente coerentes mas apresentando em certos aspectos contradições, expomo-lo a um estoque de esquemas de ação ou de habitus não homogêneos, não unificados e consequentemente a práticas heterogêneas, variando segundo o contexto social no qual será levado a valorizar (Lahire, 2002).

7 Texto que se encontra no livro A economia das trocas simbólicas, Ed. Perspectiva, 1982, org. Sergio Miceli,

(9)

Mais do que considerar a coerência e a homogeneidade dos esquemas que compõem o estoque de cada ator individual como uma situação padrão, aquela que é a mais observável em uma sociedade indiferenciada, é preferível pensar que esta situação é mais improvável, a mais excepcional. Para ele é mais freqüente observar atores individuais menos unificados e portadores de habitus heterogêneos, e em certos casos, opostos e contraditórios. Aquilo que vivemos com nossa família, na escola, com os amigos ou alhures não é sinteticamente somado de maneira tão simples. Sem postular uma lógica de descontinuidade absoluta pressupondo que estes contextos são radicalmente diferentes, sugere pensar que todas as experiências não são sistematicamente coerentes, homogêneas e mesmo compatíveis. Além disso, cada vez mais o contato precoce com outros universos além da família estão presente em nossas vidas (creches, TV, empregadas domésticas). É difícil pensar em um universo coerente e harmonioso mesmo em relação ao universo familiar. É forçoso constatar que a experiência da pluralidade de mundos tem todas as chances de ser precoce nas sociedades atuais. Para Lahire vivemos simultânea e sucessivamente em contextos sociais diferenciados e não equivalentes. Um olhar micro-sociológico permite observar, em espaços relativamente homogêneos, diferenças internas importantes nas interações e nas situações sociais em que vivemos. O autor vai mais adiante, para ele é difícil encontrar configurações familiares absolutamente homogêneas. Poucos são os casos em que o universo familiar é coerente, produtor de disposições gerais orientadas em direção a uma mesma direção. É preciso ver a heterogeneidade interna dos ambientes familiares, o cruzamento de orientações distintas no seio familiar (Lahire, 2002,2004a).

Além disso, lembra Lahire, por não ocuparmos posições semelhantes em todos os espaços sociais, vivemos experiências variadas, diferentes e às vezes contraditórias. Um ator plural é então produto de experiências - cada vez mais precoces - de socialização em contextos sociais múltiplos e heterogêneos. Pertence simultânea e sucessivamente, no curso de sua trajetória, a universos sociais variados ocupando posições diferentes. Em síntese, todo indivíduo exposto a uma pluralidade de mundos sociais se submete aos princípios de socialização heterogêneos e, às vezes, contraditórios, e em assim sendo, não responderia ou agiria segundo um sistema único de disposições de habitus.

(10)

Problematizando a crítica

Ainda que muito do que B. Lahire apresentou seja um avanço em relação à teoria da socialização, o que demonstrei em outro contexto (Setton,2005), penso que para os interesses desta reflexão deveria, primeiramente, fazer algumas considerações de ordem mais geral a respeito de sua obra.

No que se refere à sua crítica à teoria do habitus de Bourdieu, sem duvida, B. Lahire deve ser parabenizado por alertar para uma série de vícios que uma sociologia mal fundamentada e pouco exigente pode fazer com a teoria proposta por Bourdieu. Ou seja, dada a importância e legitimidade deste autor é comum observamos o uso de seus conceitos, teorias e ou teses principais sem que haja de fato uma leitura atenta e bem circunstanciada de cada uma delas. Todos temos ciência de um mau aproveitamento dos conceitos cunhados por ele tais como capital cultural, capital social e mesmo o conceito de

campo. Vejo também que muito da teoria do Bourdieu pode ser falsamente importada sem

que haja uma contextualização de suas teses. Por exemplo, falar de capital cultural ou da influência da escola como espaço formador de habitus em um país como o Brasil deve ser devidamente mediado pela compreensão de uma estrutura social e um sistema escolar seguramente diferente daquele que inspirou nosso autor.

Creio também que grande parte das críticas que Lahire tece a Bourdieu tem origem em perspectivas metodológicas distintas entre os autores. Bourdieu sempre fez uma sociologia dos grupos sociais e das formas de dominação existentes em uma sociedade hierarquizada segundo a divisão desigual de poderes e privilégios. Com forte caráter inovador a sociologia de Bourdieu poderia ser compreendida como uma sociologia política pois conseguiu apontar em temas como gosto (Bourdieu,1979), o campo da alta costura (2002) ou a freqüência a museus (Bourdieu,1969,2003) uma estrutura social organizada segundo diferenças econômicas e culturais. Suas análises, ainda que adensadas por um olhar antropológico, sempre partiram de um ponto de vista estatístico e macro-sociológico.

A teoria do habitus construída por Bourdieu e empiricamente verificada no estudo sobre a variação do gosto cultural entre segmentos sociais franceses, na década de 70, foram pouco questionadas na ocasião de sua publicação, pois surgiram em um ambiente intelectual altamente favorável ao questionamento da ordem escolar. Parte da academia se

(11)

apropriou destas ideais porque vinham reforçar as denuncias das estruturas perversas de reprodução da ordem social via sistema de ensino. Ainda que Bourdieu tivesse denunciado os mecanismos de dominação cultural e as variadas formas de emprego de uma violência simbólica, em distintos campos sociais, sua intenção, na ocasião, era questionar as correntes ideológicas em disputa, na época, como as teorias do capital humano e uma sociologia da educação economicista ou estritamente pedagógica (Bourdieu, 1998).

Mas creio que fundamentalmente, a critica que Lahire faz de Bourdieu se trata da necessidade de refundar um campo reflexivo dentro da sociologia. Lahire parece querer retomar uma outra forma de fazer sociologia, e para isso precisa apontar pontos de ruptura entre sua forma de fazer e a forma de fazer a sociologia bourdieusiana. Tudo leva a crer que Lahire quer fundamentar o alcance de uma sociologia do indivíduo. Seus últimos trabalhos,

O homem Plural ,2002), Retratos Sociológicos (2004a) e mais recentemente A cultura dos indivíduos (2006), são dedicados a formular um fazer sociológico a partir do sujeito. No

entanto, alerta, propõe ser diferente das teorizações sobre os sujeitos, tal como os interacionistas, os fenomenólogos ou a própria psicologia. Segundo ele, para se caracterizar o social não precisamos nos ater às grandes categorias como classes, sexos ou idades, ou mesmo raças e religiões. Uma série de outros aspectos pode ser determinante e agir de forma a influir em nossas práticas. Mesmo compreendendo que estes primeiros sejam aspectos fundamentais, quer direcionar um olhar para as diferenças internas entre os indivíduos que não se reduzem às grandes categorizações.

Para Lahire, o social não se reduz ao coletivo, ou ao geral, mas marca sua presença nos aspectos mais singulares de cada indivíduo. Um grande número de disposições não está relacionada às condições sociais, de classe ou trajetória. Algumas, até aquelas mais recorrentes dos traços de personalidade e de temperamento não são produto das condições de existência material, no entanto, não deixam de ser de ordem social (Lahire,2006).

Partidário então de uma sociologia do indivíduo, ou de suas singularidades, o autor pretende dar um salto em relação às teorias sociológicas, mais propriamente à sociologia da socialização. Segundo seu ponto de vista a teoria sociológica, há um certo tempo, passa por um estado de letargia aceitando sem questionamentos a teoria da prática de Bourdieu. Pretende então apontar quais os erros que a sociologia vem sistematicamente seguindo ao ocultar a possibilidade de construir um outro olhar sobre a realidade do social bem como o

(12)

que a própria ciência da sociedade acrescentaria e ganharia em esclarecimento se estivesse aberta para outra leitura (Lahire,2004a,2006).

Apresenta, pois, a intenção de fazer um estudo sociológico a partir da configuração disposicional dos sujeitos singulares utilizando-se das noções real dobrado (individualizado) e real desdobrado (desingularizado). Nesta versão desdobrada da realidade o individuo é definido pelo conjunto de suas relações, compromissos, pertencimentos e propriedades passados e presentes. Nele se sintetizam ou se combatem, combinam-se ou coexistem de forma mais ou menos pacífica, elementos e dimensões de uma cultura que geralmente são estudados separadamente pelos pesquisadores das ciências sociais. Mas o mundo social não é construído desta maneira, o individuo não segue estas mesmas divisões; o mesmo indivíduo é escolarizado, protestante, comerciante etc. Cada indivíduo diferencia-se de todos os outros. Esta versão dobrada (individual) do social não substitui a versão desdobrada, mas a longo prazo permite torná-la mais complexa. (Lahire, 2004a)

Para Lahire, ao captar as razões das variações intra-individuais dos comportamentos e a complexa articulação dos patrimônios de disposições individuais dos contextos de seu desencadeamento ou de seu estado de vigília compreender-se-á o que muitas vezes a sociologia não explicou até agora. Ou seja, retoma de forma critica os instrumentos de pensamento de uma tradição teórica em matéria de teoria da ação. Os atores não são movidos por puras e simples determinações internas e/ou as disposições que mencionam não podem ser reduzidas a rotinas. Admite que Bourdieu registrou o maior esforço de explicitação em matéria de teoria disposicionalista da ação. Não obstante, lembra ele, como habitualmente estamos acostumados a este vocabulário supomos que sabemos o que é uma disposição ou um esquema, ou uma formula geradora de práticas. Este conformismo não molda nossa maneira de ver? indaga. Assim, propõe fazer um uso controlado e reflexivo deste aporte teórico (Lahire, 2004a).

Segundo Lahire, a disposição é uma realidade reconstruída que como tal nunca é observada diretamente pelo cientista social. Ela pressupõe a realização de um trabalho interpretativo para dar conta de comportamentos, práticas e opiniões. Trata-se de fazer aparecer os princípios que geraram a aparente homogeneidade e ou diversidade de praticas e gostos. Para ele é necessário perguntar que tipo de limitação o conceito de disposição

(13)

oferece ao pesquisador e que tipo de metodologia devemos usar para acompanhar seu estudo. Mais do que um certo conformismo teórico Lahire faz uma critica conceitual aos trabalhos que usam com pouca seriedade a contribuição de Bourdieu. Crê que as noções de disposição e transferibilidade devem ser melhor esclarecidas a fim de poder avançar na compreensão do social. Em seu livro Sucesso escolar nos meios populares esta discussão está mais presente. Nesta obra discute o conceito de capital cultural na sua forma de herança transferível de cultura. Problematiza as formas homeopáticas, osmóticas dos comportamentos culturais, dizendo ser necessário duvidar desta força formadora. Propõe então observar as condições de transferência, as condições de transmissão deste capital cultural, as forma de cultura escrita, o trabalho pedagógico das famílias populares, entre outros aspectos.

Nas suas discussões mais recentes, em O Homem Plural e A Cultura dos Indivíduos, Lahire parte da hipótese de que o indivíduo se socializa a partir de uma pluralidade e de uma heterogeneidade de disposições incorporadas, não agindo sobre o mundo, não construindo suas práticas seguindo um princípio único norteador. Para ele, o indivíduo faz uso de uma variedade grande de referencias disposicionais, às vezes referencias incoerentes, ou até mesmo contraditórias. Aposta na pluralidade das fórmulas geradoras das práticas incorporadas.

Neste sentido, ele de fato avança nas discussões sobre o tema na contemporaneidade. Contextualiza uma nova configuração de socialização no mundo moderno; considera as mudanças sofridas nas relações familiares fazendo de suas colocações leituras imprescindíveis. Chama atenção também sobre a necessidade de melhor circunstanciar as diferentes formas de se produzir disposições culturais.

Não obstante, penso que suas críticas podem ser problematizadas. Argumentar que Bourdieu apenas formulou a idéia de herança cultural, sem se preocupar em apreender como isto se dá efetivamente na realidade cotidiana, é uma afirmação injusta. Bourdieu (1964a,1964b) e sua equipe publicaram uma série de estudos sobre as estratégias de reprodução social das famílias de elite que delimitam e contextualizam um conjunto de situações em que as práticas de cultura, o gosto pela cultura, ou a familiaridade com a cultura letrada é transmitida ou não. Lahire parece se esquecer de uma longa tradição de trabalhos da equipe de Bourdieu na École de Hautes Estudes em Sciences Sociales, em

(14)

Paris, entre eles o de Monique Saint Martin, trabalhos que ecoaram também no Brasil (Almeida&Nogueira,2003).

Para o interesse deste artigo, creio ser importante enfatizar, no entanto, suas criticas relativas ao conceito de habitus. Para este crítico, Bourdieu formalizou e sistematizou o entendimento do conceito de habitus em uma formação já fortemente diferenciada.

Em síntese, segundo o argumento que desenvolve em o Homem Plural, “é que se definimos o habitus como um sistema homogêneo de disposições gerais, permanentes, sistemas transferíveis de uma situação a outra, de um domínio de práticas a outro, então cada vez menos agentes de nossas sociedades serão definíveis a partir de um tal conceito.(....) Nas sociedades em que as crianças conhecem muito cedo uma diversidade de contextos socializantes os patrimônios individuais de disposições raramente são muito coerentes e homogêneos (Lahire, 2004a:319).

Ainda que considere sua contribuição inegável, acompanhado com interesse o desenvolvimento dos argumentos de Bernard Lahire, penso que ainda sua compreensão sobre teoria da ação, ou a teoria do habitus de Bourdieu deve ser repensada.

Habitus como produto de um esforço coletivo e individual

Diferentemente de Bernard Lahire, creio que o conceito de habitus tal como discutido por Bourdieu, pode ainda dar conta da especificidade da formação da identidade pessoal e grupal dos indivíduos na contemporaneidade. Mais do que isso, creio que o conceito de habitus segundo Bourdieu, fundamenta a hipótese de que é preciso compreender o fenômeno da educação/socialização, principalmente na modernidade brasileira, como total. Não totalizante, mas exatamente o contrário, fruto de um processo amplo, estruturado a partir de uma multiplicidade de experiências formadoras, que resulta em um habitus híbrido. Considero importante registrar ainda que parto de uma perspectiva relacional, indivíduo e sociedade, não dando ênfase a nenhum desses dois lados da moeda, tal como poderia correr risco Bernard Lahire, em sua tentativa de construir uma sociologia do indivíduo.

O entendimento que faço sobre a teoria do habitus poderia incluir sim o adjetivo plural. Considero-o expressivo, ou seja, habitus plural resulta do encontro, e/ou

(15)

enfrentamento de muitas referencias às vezes dispares, mas saliento, não deixaria de ser um sistema único de referencia, uma matriz geradora de disposições ainda que sejam disposições heterogêneas. Em outras palavras, um habitus plural mas ainda se apresentando na forma de um de sistema, capaz de gerar princípios de ação, percepção e julgamento (Setton,2002a). Mesmo que as ações dos sujeitos não sejam tão coerentes, mesmo que apresentem fissuras e aspectos contraditórios a prática do agente contemporâneo é resultado da confluência de várias vivências por isso capaz de ser pensado enquanto unidade, como um fenômeno social total. Ou seja, produto de vivências de socialização contextualizadas em muitas matrizes culturais, presentes na vida de cada um de nós, experimentadas sobretudo em situações coletivas.

Circulando desde a primeira infância na família, o indivíduo estrutura-se e prepara-se para vivenciar, aproveitando ou não as chances de prepara-se subjetivar na escola, nas experiências religiosas e/ou na circularidade de influências disponibilizadas pelas mídias. Assim, pensar o indivíduo contemporâneo a partir da configuração de forças entre estas agencias de socialização me impõe um outro aporte teórico, impõe a necessidade de compreender este processo de maneira mais complexa e dinâmica. Como diria Levi-Strauss,

“a noção de fato total está em relação direta com a dupla preocupação, que para

nós havia parecido única até agora, de ligar o social e o individual de um lado, o físico (ou o fisiológico) e o psíquico de outro. Mas compreendemos melhor a razão disso, que é dupla: de um lado, é apenas ao término de toda uma série de reduções que se estará na posse do fato total, que compreende: 1) diferentes modalidades do social (jurídico, econômico, estético, religioso, etc.. 2 ) diferentes momentos de uma história individual, nascimento, infância, educação, adolescência, casamento, etc.. 3) diferentes normas de expressão desde fenômenos fisiológicos como reflexos, secreções, afrouxamentos e acelerações, até categorias inconscientes e representações conscientes, individuais ou coletivas. Tudo isto é, um certo sentido, social, uma vez que é apenas sob a forma de fato social que esses elementos de natureza tão diversa podem adquirir uma significação global e tornar-se uma totalidade (Levi-Strauss:1974-15).

(16)

Para o encadeamento desta discussão, seria interessante lembrar que nos textos relativos à discussão do conceito de habitus, Bourdieu enfatiza-o como um sistema de disposição que se compõe a partir da complementação e quase nunca a partir da incoerência entre matrizes de cultura (Bourdieu,1979,1983b,1998).8 O autor trabalha o conceito de

habitus escolar, por exemplo, como resultado de uma sinergia entre projetos pedagógicos

familiar e escolar. Ou seja, a ênfase de Bourdieu sempre recai na complementação e quase nunca na incoerência das influências que moldam os habitus dos indivíduos (Bourdieu, 1964a,1964b,1979). Seriam por que os espaços socializadores por ele trabalhados- família e escola - dependem de uma sinergia interna forte, o que de uma certa forma contribuiu para a construção do conceito de capital cultural? Seria porque sua fonte de verificação empírica não lhe propunha o desafio de pensar a incoerência? Seria porque Bourdieu não tinha como inquietação as transformações pelas quais a sociedade contemporânea estava passando? Será ainda porque sua preocupação era observar as estruturas de dominação ainda expressivamente importantes, observadas na tradição, na herança de cultura, na França dos anos 70, e da escola, ainda como espaço privilegiado? Creio que todos estes motivos seriam pertinentes e poderiam trabalhar em sinergia.

Penso que é possível divergir de Lahire quando ele afirma que a teoria do habitus de Bourdieu não é mais produtiva para pensar o homem contemporâneo pois Bourdieu o construiu a partir de uma base sistêmica e unitária, homogênea. Um mundo socializador que não existe mais nas formações modernas.

Em trabalho anterior escrevi meu entendimento sobre esta questão (Setton,2002a).

Habitus, segundo minha leitura, é um conceito e assim deve ser circunstanciado

historicamente; conceito que expressa a mediação - indivíduo – sociedade - é principio explicativo das práticas e das representações de indivíduos em conjunturas específicas e particulares. Habitus deve ser visto como mediação que se constrói processualmente, em muitos momentos da trajetória dos sujeitos, conjunto de experiências acumuladas e interiorizadas, incorporadas, portanto passíveis de se sedimentarem e se realizarem como respostas aos momentos de necessidade. Sendo espontâneas em momentos de tranqüilidade identitária ou repensadas, em momentos de crise e conflito, os habitus não precisam ser

8 Em alguns momentos coloca a incongruência das ações e práticas como uma alodoxia, um desvio que

(17)

para se constituírem enquanto habitus, coerentes e homogêneos. Podem ser híbridos desde que as condições de socialização assim o determinarem. As fronteiras entre as matrizes de valores não são sempre explícitas e nunca são vividas como díspares pelos sujeitos pesquisados. Os exercícios de se objetivar e explicar as ações são exercícios interpretativos que buscam sempre a coerência. Para nós pesquisadores as incongruências podem ser identificadas mas nunca serão vividas pelos agentes como tal.

Neste sentido, creio também que o conceito de habitus híbrido é melhor que incoerente ou plural pois admite mais explicitamente a idéia de criação, amálgama, mistura realizada pela vivência e pela capacidade de cada um de nós montarmos uma experiência identitária. O conceito de habitus híbrido é melhor também pois ajuda a pensar a conjunção de elementos de matrizes de cultura díspares, o moderno da escola e da cultura letrada com o tradicional da cultura popular e da oralidade, por exemplo. Não somos sujeitos incoerentes, somos resultado de um conjunto heterogêneo de experiências de formação cultural que nos particulariza. Assim é possível pensar o habitus dos muitos segmentos sociais brasileiros, vivendo em formações de cultura diferenciadas, modernas ou tradicionais; é mais fácil compreender as confluências entre as matrizes de cultura em segmentos sociais diferentes que vivem em formações culturais que aparentemente se opõem.

Norte e Sudeste do Brasil, duas formações de cultura só aparentemente contraditórias, pois elas enquanto conjunto de experiências é responsável por proporcionar a cultura híbrida do brasileiro; elas estão presentes em todos os lugares e em todos os momentos de nossa experiência de socialização; a circularidade das idéias, objetos, valores, homens moldados por tradições ou moldados por exigências de racionalidade e cálculo se adensam e se misturam em um processo complexo, dinâmico, certamente em ritmos diferenciados, mas disponíveis para todos.

Esta é a diferença, não é simplesmente plural e nem simplesmente incoerente e contraditório o habitus dos indivíduos da contemporaneidade. A experiência de socialização vivida em formações sociais como a brasileira nos impõe pensar os habitus mais que plurais, eles são produto de experiências de socialização particulares, são resultado de valores identitários oriundos de muitas matrizes de cultura, mas nem por isso incongruentes ou contraditórios, seriam híbridos.

(18)

Ou talvez habitus sincréticos, pois sua criação admite a perda de alguns aspectos, mas a admissão de outros em um processo de difícil previsão. É produto criativo de sujeitos em situações peculiares e singulares pois depende de um conjunto de circunstâncias sociais, políticas, religiosas, econômicas, escolares, midiáticas, globalizadas, que não se apresentam iguais para todos (Sanchis, 2001). A noção de habitus sincrético admite também a importância do sujeito na construção de sua relação com o mundo exterior, num diálogo constante entre suas necessidades individuais e as referencias de cultura disponibilizadas; a busca do individuo na construção de sua identidade a partir de elementos vindos da objetividade das matrizes de cultura, interpretadas segundo olhares particularizados. Não mais agente do processo de socialização passivo, mas sujeito de sua história e ação. Sujeito que nunca se socializa por inteiro, mas que se apresenta como sendo o resultado de um conjunto de experiências socializadoras, nunca totalizantes, mas produto de um processo complexo, dinâmico, produto de uma orquestração de trocas e símbolos identitários, sem maestro, classificados e organizados segundo contextos particulares, ou seja, um produto híbrido, uma espécie, um tipo social resultante de um fenômeno social total, tal como descrito por Marcel Mauss.

Considerações finais

Como apreender a especificidade do modelo de socialização na atualidade? Como compreender a particularidade do processo de construção dos habitus a partir das mudanças estruturais e institucionais das agências de socialização?

Como já fiz em outros textos (Setton,2002a,2002b) proponho responder estas questões a partir da análise da emergência de uma nova configuração cultural, onde o processo de construção dos habitus individuais passa a ser mediado pela coexistência de distintas matrizes produtoras de valores culturais e referências identitárias.

Proponho considerar a família, a escola, as instituições religiosas e as mídias, entre outras, no mundo contemporâneo, como instâncias socializadoras que coexistem numa intensa relação de interdependência. Ou seja, instâncias que configuram hoje uma forma permanente e dinâmica de relação. Parto da hipótese que o processo de socialização das formações modernas pode ser considerado como um espaço plural de múltiplas relações sociais. Pode ser considerado como um campo estruturado pelas relações dinâmicas entre

(19)

instituições e agentes sociais distintamente posicionados em função de sua visibilidade e recursos disponíveis. Salientar a relação de interdependência entre as instâncias e agentes da socialização, a meu ver, é uma forma de afirmar que as relações estabelecidas entre eles podem ser relações de continuidade ou de ruptura. Podem, pois, determinar uma gama variada e heterogênea de experiências singulares de socialização.

Desta forma, reitero, pensar as relações entre a família, a escola, as mídias a partir do conceito maussiano de fato social total é analisar estas instituições sociais segundo uma relação dinâmica criada pelo conjunto de seus integrantes, recursos e trajetórias particulares. Sobretudo porque a articulação das propostas de socialização de cada uma destas instituições é atribuição dos sujeitos variando segundo a origem social, étnica, religiosa, segundo as expectativas de reprodução dos grupos bem como as experiências individuais de cada um deles.

A socialização/educação almejada por estas instâncias, neste sentido, é fruto de um trabalho individual e coletivo, da troca dialógica entre indivíduo e sociedade. Assim, proponho compreender o fenômeno da socialização contemporânea como um fenômeno

social total. Isto é, uma prática social vivida por uma dinâmica processual, a partir da troca

de bens e mensagens simbólicos entre instâncias socializadoras e agentes sociais, prática que envolve simultaneamente a todos, em todas as dimensões da vida dos agentes e tem como tarefa manter o contrato e o funcionamento de um consenso social, na unidade da ação individual.

Bibliografia

Almeida, Ana & Nogueira, Maria Alice (orgs.) (2003), A escolarização das elites –

um panorama internacional de pesquisa.Ed. Vozes, Petrópolis.

Bourdieu, Pierre (1963). Travail et travailleurs en Algérie. Mouton. Paris. (1964a). Les étudiants et leurs études. Mouton. Paris.

(1964b). Les heritiers, les étudiants et la culture. Minuit. Paris.

(1965). Un art moyen, essai sur les usages sociaux de la photographie. Minuit. Paris.

(1969). L’amour de l’art, les musées d’art européens et leur public. Minuit. Paris.

(20)

(1972/2000). Esquisse d’une théorie de la pratique - précedé de trois études

d’ethnologie kabyle. Ed. Seuil. Paris

(1979). La distinction - critique social du jugement. Minuit. Paris. (1980). Le sens pratique. Minuit. Paris.

(1982). A economia das trocas simbólicas. (org. Miceli, S.). Ed. Perspectiva. São Paulo.

(1983a). Questões de Sociologia. Ed. Marco Zero. Rio de Janeiro.

(1983b). Pierre Bourdieu (org. Ortiz, R.). Coleção grandes Cientistas Sociais. Ed. Atica. São Paulo.

(1990). Coisas Ditas - Ed. Brasiliense. São Paulo.

(1992). Pierre Bourdieu avec Löic Wacquant - Réponses. Seuil. Paris. (1998). Escritos de Educação. org. Nogueira&Catani. Ed. Vozes. Petrópolis. (1999). A miséria do mundo. Ed. Vozes. Petrópolis.

(2002) A produção da crença – contribuição para uma economia dos bens simbólicos. (org. Setton, Maria da Graça), Ed. Zouk, São Paulo.

&Darbel, Alain (2003) O amor pela arte – os museus de arte na Europa e seu público. Ed. Zouk, São Paulo.

Lahire, Bernard. (2004b). Retratos Sociológicos – disposições e variações

individuais. Ed. Artes Medicas, Porto Alegre.

___(2002). O Homem Plural – os determinantes da ação. Ed. Vozes, Petrópolis. ___(2006) A cultura dos indivíduos. Ed. Artes Medicas, Porto Alegre.

___(2004) Trajetória acadêmica e pensamento sociológico. In Educação e Pesquisa. Revista da FE-USP. São Paulo, p.315-321.

___(2004a) Retratos Sociológicos - disposições e variações individuais. Ed. ArtMed, Porto Alegre.

___(1997). Sucesso Escolar nos meios populares - as razões do improvável. Ed. Ática. São Paulo.

Mauss, Marcel. ({1924}1974), Ensaio sobre a dádiva, forma e razão da troca nas sociedades arcaicas. In Sociologia e Antropologia, vol II, EPU/EDUSP, São Paulo.

(21)

Levi-Strauss, Claude,(1974) Introdução – A obra de Marcel Mauss. in Sociologia e

Antropologia, Marcel Mauss, vol II, EPU/EDUSP, São Paulo, p.1-37.

Oliveira, Roberto Cardoso,(1979), Introdução a uma leitura de Mauss. In Marcel

Mauss. Coleção Grandes Cientistas Sociais. Ed. Atica, São Paulo, p.7-50.

Sanchis, Pierre, (2001), Religiões, religião...alguns problemas do sincretismo no campo religioso brasileiro. In Fiéis e cidadãos – percursos de sincretismo no Brasil. Org.Pierre Sanchis), Ed. UERJ, Rio de Janeiro, p.9-57.

Setton, Maria da Graça J.(2002a), A teoria do habitus em Pierre Bourdieu: uma leitura contemporânea. In Revista Brasileira de Educação, ANPED, Rio de Janeiro, maio/agosto, n/20,p.60-70.

___-(2002b) Família, escola e mídia: um campo com novas configurações. In

Educação e Pesquisa, Revista da FE-USP, vol.28, jan.jun, p.107-116.

____(2005) A particularidade do processo de socialização contemporâneo. In

(22)

A educação com caráter voluntário – a reciprocidade, o contrato social

O primeiro dos elementos que caracteriza este tipo de acontecimento social é que ele se dá de maneira voluntária, por assim dizer aparentemente de forma livre e gratuita e, no entanto, revela uma prática imposta e interessada. Freqüentemente apresentado na forma da doação de uma mensagem oferecida generosamente, sabemos que nesta transação pode haver formalismo e mentira social bem como obrigação e interesses econômicos. Seguindo os passos de Mauss seria interessante perguntar: qual é a regra do direito e de interesse que, nas sociedades de tipo atrasado e arcaico, faz com que o presente recebido seja obrigatoriamente retribuído? Que força há na coisa dada que faz com que o donatário a retribua? Nosso autor acredita ter encontrado nesta prática “ uma das rochas humanas sobre as quais estão erigidas nossas sociedades” (1974:42).

Em muitas localidades em que se verificou o fenômeno observou-se que “ não são indivíduos, e sim coletividades que se obrigam mutuamente, trocam e contratam; as pessoas presentes ao contrato são pessoas “morais” – clãs, tribos, famílias – que se enfrentam e se opõem, seja em grupos, face a face, seja por intermédio de seus chefes, ou seja ainda das duas formas ao mesmo tempo” (1974:45).

“Trata-se, antes de tudo, de gentilezas, banquetes, ritos, serviços militares, mulheres, crianças, danças, festas, feiras em que o mercado é apenas um dos momentos e onde a circulação de riquezas constitui apenas um termo de um contrato muito mais geral e muito mais permanente. Enfim, essas prestações e contra-prestações são feitas de uma forma sobretudo voluntária, por presentes, regalos, embora sejam, no fundo, rigorosamente obrigatórias, sob pena de guerra privada ou pública. Propusemo-nos chamar a tudo isso de sistema de prestações totais (1974:45).

Competição por riquezas – dimensão econômica

Como bem coloca Mauss, essas práticas envolve a todos “ clãs, casamentos, iniciações, sessões de xamanismo e de culto dos grandes deuses, dos totens ou de antepassados coletivos ou individuais de clã – confunde-se em uma inextricável trama de ritos, de prestações jurídicas e econômicas, de fixações de posições políticas na sociedade

(23)

dos homens, na tribo e nas confederações de tribos, e mesmo internacionalmente. O que é notável nessas tribos, porém, é o princípio da rivalidade e do antagonismo que domina todas essas práticas (1974:46). Competitividade que se tece aparentemente entre os chefes, uma luta dos nobres para assegurar entre eles uma hierarquia que resultará em proveito de seus clãs. Para melhor esclarecer as trocas denomina-as como prestações totais de tipo agonístico.

O comércio do Kula é de ordem nobre. Parece ser reservado aos chefes, sendo estes ao mesmo tempo os chefes de frotas, de canoas e comerciantes, e também donatários de seus vassalos, no caso de seus filhos e cunhados, que são também seus súditos, e ao mesmo tempo chefes de diversas aldeias enfeudadas. É exercício de maneira nobre, na aparência puramente desinteressada e modesta.(73)

Eles procuram o melhor parceiro da tribo oposta. A causa é séria; a associação que se tende a criar estabelece uma espécie de clã entre os parceiros. Para escolher, é preciso, portanto, seduzir, deslumbrar. Sempre levando em conta as categorias, cumpre chegar ao objetivo antes dos demais ou melhor do que eles, provocando assim trocas mais abundantes das coisas mais ricas, que naturalmente são de propriedade das pessoas mais ricas. Concorrência, rivalidade, ostentação e procura de grandeza e de lucro são os motivos diversos que estão por baixo de todos esses atos. (85)

Aspectos mágicos e religiosos

Em Samoa, “ esse sistema de presentes contratuais estende-se muito além do casamento; acompanha os seguintes acontecimentos; nascimento da criança, circuncisão, enfermidade, puberdade do jovem, ritos funerários, comércio” (1974:49). Acrescenta-se a isso “ o elemento da honra, do prestígio, de mana que confere riqueza e o da obrigação absoluta de retribuir essas dádivas sob pena de perder mana, esta autoridade, esse talismã e esta fonte de riqueza que é a própria autoridade” (50). Explicando a necessidade da retribuição um nativo explica “ se eu conservasse esse segundo taonga para mim, isso poderia trazer-me um mal sério, até mesmo a morte. Tal é o hau da propriedade pessoal, o

hau dos taonga, o hau da floresta” . Em outras palavras “os taonga e todas as propriedades

rigorosamente ditas pessoais têm um hau, um poder espiritual. Você me dá uma delas, eu a dou a um terceiro; este a retribui com uma outra porque é impelido pelo hau de meu

(24)

presente; e, quanto a mim, sou obrigado a dar-lhe esta coisa, pois é preciso que eu lhe devolva aquilo que, na verdade, é o produto do hau de seu taonga” (54)

Assim, para os nativos, “o que no presente recebido e trocado, cria uma obrigação, é o fato de que a coisa recebida não é inerte. Mesmo abandonada pelo doador, ela ainda é algo dele. “Por meio dela, o doador tem uma ascendência sobre o beneficiário, assim como o proprietário tem, por meio da coisa, uma ascendência sobre o ladrão”. Observa-se pois a natureza do vínculo jurídico criado pela transmissão de uma coisa, uma forma de se analisar uma teoria geral da obrigação.

“...o vínculo de direito, vínculo pelas coisas, é um vínculo de almas, pois a própria coisa tem uma alma, é alma. Disso segue que presentear alguma coisa a alguém é presentear alguma coisa de si. Em seguida, podemos assim fazer uma idéia melhor da própria natureza da troca por dádivas, de tudo aquilo que chamamos de prestações totais... Compreendemos clara e logicamente, nesse sistema de idéias, que é preciso retribuir a outrem aquilo que, na verdade, é parcela de sua natureza e substância, pois aceitar alguma coisa de alguém é aceitar alguma coisa de sua essência espiritual, de sua alma; a conservação desta coisa seria perigosa e mortal, e isso não simplesmente porque seria ilícita, mas também porque esta coisa que vem da pessoa, não só moralmente, mas física e espiritualmente, esta essência, este alimento, estes bens, móveis e imóveis .... dão uma ascendência mágica e religiosa sobre o indivíduo. Enfim, esta coisa dada não é coisa inerte. Animada, amiúde individualizada, tende a regressar ..ao lar de origem” (56).

“ Em todo caso, o conjunto dessas coisas é sempre, em todas essas tribos, de origem espiritual e de natureza espiritual(118). Mas, por outro lado, ao mesmo tempo em que os bens são transmitidos, a riqueza e a sorte também o são. É seu espírito, seus espíritos auxiliares que tornam o iniciado possuidor de cobres, eles próprios, meios para adquirir cobres, riquezas, posição e, enfim, espíritos – todas estas coisas, de resto, equivalentes. Por meio delas, obtêm-se as posições; é porque se obtêm a riqueza que se obtém o espírito; este, por sua vez, possui o herói vencedor de obstáculos; por fim, este herói faz com que lhes paguem seus transes xamanísticos, suas danças rituais, os serviços de seus governos. Tudo se liga e se confunde; as coisas tem uma personalidade e as personalidades são, de certa maneira, coisas permanentes do clã. Se se dão e se retribuem as coisas, é porque se dão e se

(25)

retribuem ‘ respeitos’ – dizemos ainda ‘gentilezas’. Mas é também porque o doador se dá ao dar, e, ele se dá, é porque ele se ‘deve’ – ele e seu bem – aos outros.(128-129)

A dimensão política e moral

“A prestação total não envolve apenas a obrigação de retribuir os presentes recebidos, mas supõe duas outras também importantes: a obrigação de dá-los, por um lado, e a obrigação de recebê-los, por outro”(57).

“ Contudo, essa estreita mistura de direitos e de deveres simétricos e contrários deixa de parecer contraditória se pensarmos que, antes de tudo, há uma mistura de vínculos espirituais entre as coisas, que são em certa medida alma, e os indivíduos e os grupos, que se tratam em certa medida como coisas. E todas essas instituições exprimem unicamente um fato, um regime social, uma mentalidade definida: é que tudo, alimento, mulheres, crianças, bens...é matéria de transmissão e retribuição. Tudo vai-e-vem como se houvesse uma troca constante de uma matéria espiritual compreendendo coisas e homens, entre os clãs e os indivíduos, repartidos entre as categorias, sexos e gerações” (59).

“ As dádivas oferecidas aos homens e aos deuses têm também por fim comprar a paz para uns e outros. Afastam-se assim os maus espíritos, mais geralmente as más influências, mesmo não personalizadas; pois uma maldição de homem permite aos espíritos enciumados penetrar em um pessoa e matá-la, permite que as influências más ajam, e as faltas contra os homens tornam o culpado fraco em face dos espíritos e das coisas sinistras. “(65).

“A esmola é o fruto de uma noção moral da dádiva e da fortuna, por um lado, e de uma noção do sacrifício, por outro. A liberalidade é obrigatória, porque a Nêmesis vinga os pobres e os deuses do excesso e felicidade e de riqueza de certos homens, que devem desfazer-se delas; é a antiga moral da dádiva transformada em princípio de justiça; os deuses e os espíritos consentem que as partes que lhes seriam destinadas e que seriam destruídas em sacrifícios inúteis sirvam para os pobres e para as crianças” (66).

Seria importante ressaltar também que “ o fim é antes de tudo moral, o objeto é produzir um sentimento amistoso entre as duas pessoas em jogo, e se a operação não tivesse este efeito, teria falhado por completo”. No fundo são misturas. Misturam-se as almas nas coisas; misturam-se as coisas nas almas. Misturam-se as vidas, e é assim que as pessoas e

(26)

as coisas misturadas saem cada qual de sua esfera e se misturam; o que é precisamente o contrato e a troca” (70-71).

“A própria doação reveste-se de formas muito solenes: a coisa recebida é desdenhada, desconfia-se dela, só a apanham um instante após ter sido atirada a seus pés. O doador afeta uma modéstia exagerada; após ter levado solenemente e ao som de búzios eu presente, desculpa-se de dar apensas restos, e lança aos pés do rival e parceiro a coisa dada. Procura-se em tudo isso mostrar liberalidade, liberdade e autonomia, ao mesmo tempo que grandeza. E, não obstante, no fundo, são mecanismos de obrigação, e mesmo de obrigação pelas coisas, que operam” (75).

Considerações finais - Fenômeno social total

“ Em princípio, a circulação desses signos de riqueza é incessante e infalível. Nem se deve guardá-los por muito tempo, nem ser lento, nem ser duro ao desfazer-se delas, nem se deve gratificar com eles nenhuma pessoa além dos parceiros determinados” ...(77)

“ Esta instituição tem também sua face mítica , religiosa e mágica. Possuí-los é inebriante, reconfortante, apaziguante em si. Um simples contato transmite suas virtudes(78).

“Enfim, ao lado ou, se se quiser, por baixo, por cima, ao redor e, em nossa opinião, no fundo desse sistema de kula interno, o sistema de dádivas trocadas engloba toda a vida econômica, tribal e moral dos trobriandeses. Ela é “impregnada” pó ele...ela é um constante “dar e tomar”.(86)

“Dessas observações sobre alguns povos melanésios e polinésios já se depreende uma figura bem delineada do regime da dádiva. A vida material moral e a troca funciona aqui sob a forma desinteressada e obrigatória ao mesmo tempo. Além disso, esta obrigação exprime-se de maneira mítica, imaginária ou, se se quiser, simbólica e coletiva: assume o aspecto de interesse ligado às coisas trocadas. Estas nunca são completamente desligadas dos que as trocam: a comunhão e a aliança que eles estabelecem são coletivamente indissolúveis. Na realidade, esse símbolo da vida social – a permanência da influência das coisas trocadas – apenas traduz, de maneira assaz direta, o modo pela qual os subgrupos dessas sociedades segmentadas, de tipo arcaico, imbricam-se constantemente uns nos outros, e sentem que se devem tudo”(92).

(27)

“Duas noções são, contudo, bem mais evidenciadas aí do que no potlach melanésio ou nas instituições mais evoluídas ou mais decompostas da Polinésia; a noção de crédito, de prazo, e também a noção de honra. (96). O tempo é necessário para executar toda contraprestação. A noção de prazo está, portanto, implicada logicamente quando se trata de retribuir visitas, de contratar casamentos, alianças, de estabelecer uma paz, de vir a jogos e combates regulados, de manifestar respeito recíprocos, todas as coisas que se trocam no mesmo tempo em que se trocam as coisas cada vez mais numerosas e preciosas, na medida em que essas sociedades são mais ricas” (97).

“ A dádiva acarreta necessária a noção de crédito. A evolução não fez passar o direito da economia de escambo para a venda e, esta, da venda à vista para a venda à prazo. É sobre um sistema de presentes dados e retribuídos a prazo que se edificaram de um lado o escamo, por simplificação e por aproximações de tempos outrora disjuntos e, por outro lado, a compra e a venda, esta a prazo e a vista, e também o empréstimo.(98)

“ Não menos importante é o papel que nessas transações desempenha a noção de honra. O consumo e a destruição são aqui realmente ilimitados. Em certos potlach deve-se gastar tudo o que se possui e nada guardar. Decide-se quem será o mais rico e também o esbanjador mais desatinado. O princípio de antagonismo e de rivalidade estabelece tudo. O estatuto político dos indivíduos, nas confrarias e nos clãs, as categorias de todas as espécies obtêm-se pela “guerra de propriedade”, bem como pela guerra, pelo acaso, pela herança ou por aliança e casamento. Mas tudo é concebido como se fosse uma “luta de riqueza””.(99)

“Tanto quanto a noção de magia, a noção de honra não é estranha a essas civilizações. Mesmo nas tribos realmente primitivas o ponto de honra é tão delicado quanto nas nossas. Fica-se satisfeito por prestações, ofertas de comida, de prerrogativas e de ritos bem como por dádivas. Os homens souberam empenhar a honra e o nome muito antes de assinar. Pois o potlach é muito mais um fenômeno jurídico: é um daqueles fenômenos que nos propusemos chamar de “ totais”; É religioso, mitológico e xamanístico, visto que os chefes que nele se empenham representam e encarnam os antepassados e os deuses cujo nome usam, cujas danças eles dançam e cujos espíritos os possuem. É econômico e cumpre aquilatar o valor, a importância, as razões e efeitos dessas transações enormes, mesmo na atualidade, quando expressos em valores europeus. O potlach é também um fenômeno de morfologia social; a reunião de tribos, de clãs e de famílias, e mesmo de nações, produz um

(28)

nervosismo e uma excitação notáveis; confraternizam-se, contudo continuam estrangeiros; comunicam-se e opõem-se em um gigantesco comércio e um constante torneio. Passamos por cima dos fenômenos estéticos, que são extremamente numerosos. Enfim, mesmo do ponto de vista jurídico, além daquilo que já despreendemos da forma desses contratos e daquilo que poderíamos chamar de objeto humano do contrato, e ademais do estatuto jurídico dos contratantes, cumpre acrescentar o seguinte; os objetos materiais dos contratos, as coisas que são trocadas, têm, também, elas, uma virtude especial que faz com que sejam dadas e sobretudo com que sejam retribuídas. (104).

Durkheim e a sociologia francesa servirão de orientadores neste debate. Ainda que muito do que foi falado sobre a educação seja passível de crítica e questionamentos creio que ainda são paradigmáticos nas questões que envolvem as práticas de socialização atuais. Bourdieu, Dubet, Charlot e Lahire, são autores que ajudaram na montagem deste argumento.

Penso que para iniciar, devo recuperar parte da obra de Durkheim aquela relativa à seus estudos sobre a religião. Durkheim mais do que justificar a importância da educação para a sociologia, definindo-a como...apontou a prática simbólica como essencial a vida social. Avançado para seu tempo Durkheim afirmou que a religião foi uma das primeiras expressões de um entendimento sobre a sociedade. Para ele o estudo das representações religiosas compunha um rico material sobre as práticas sociais, morfologia, estrutura, reprodução e manutenção do funcionamento dos organismos sociais. A partir dos entendimentos sobre como os grupos se dividiam e mantinham relações, poderia-se analisar e compreender as sociedades.

(29)

Referências

Documentos relacionados

O objetivo deste experimento foi avaliar o efeito de doses de extrato hidroalcoólico de mudas de tomate cultivar Perinha, Lycopersicon esculentum M., sobre

17 CORTE IDH. Caso Castañeda Gutman vs.. restrição ao lançamento de uma candidatura a cargo político pode demandar o enfrentamento de temas de ordem histórica, social e política

O enfermeiro, como integrante da equipe multidisciplinar em saúde, possui respaldo ético legal e técnico cientifico para atuar junto ao paciente portador de feridas, da avaliação

*-XXXX-(sobrenome) *-XXXX-MARTINEZ Sobrenome feito por qualquer sucursal a que se tenha acesso.. Uma reserva cancelada ainda possuirá os dados do cliente, porém, não terá

O Museu Digital dos Ex-votos, projeto acadêmico que objetiva apresentar os ex- votos do Brasil, não terá, evidentemente, a mesma dinâmica da sala de milagres, mas em

nhece a pretensão de Aristóteles de que haja uma ligação direta entre o dictum de omni et nullo e a validade dos silogismos perfeitos, mas a julga improcedente. Um dos

Equipamentos de emergência imediatamente acessíveis, com instruções de utilização. Assegurar-se que os lava- olhos e os chuveiros de segurança estejam próximos ao local de

Tal será possível através do fornecimento de evidências de que a relação entre educação inclusiva e inclusão social é pertinente para a qualidade dos recursos de