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ARTHUR GRIMM CABRAL CORPORIFICAÇÃO DO IMATERIAL: EXERCÍCIOS DE CONTROLE E SUBJETIVAÇÃO NOS PERFIS DO ORKUT

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ARTHUR GRIMM CABRAL

CORPORIFICAÇÃO DO IMATERIAL: EXERCÍCIOS DE CONTROLE E SUBJETIVAÇÃO NOS PERFIS DO ORKUT

Dissertação submetida ao Programa de Pós-Graduação em Psicologia, da Universidade Federal de Santa Catarina para obtenção do grau de Mestre em Novembro de 2010. Orientadora: Profa. Dra. Maria Juracy Filgueiras Toneli.

FLORIANÓPOLIS 2010

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Livros Grátis

http://www.livrosgratis.com.br

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Aos afetos e apoios incondicionais proporcionados por minha família ao longo de toda a caminhada.

À ousadia, coragem e ternura que pude aprender com a Jura, como orientadora e amiga, ao longo dos últimos 5 anos. Orientadora que educa não ao temor daquilo que pode nos derrubar, mas à ousadia de construir novos mundos possíveis.

Aos pensamentos-corpo disparados pelas professoras Ana, Elke, Mônica, Diana, Thiago e Nastaja, bem como às danças compartilhadas entre toda(o)s a(o)s colegas, sem o que este trabalho não teria sido possível.

Aos pensamentos-música disparados por Nicholas. Aos Marquitos e a potencialização da vida. Aos labirintos atravessados com Cecília.

Aos sorrisos e alegrias divididos com todo o núcleo Margens – Adri, Karlinha, Peruchi, Ju Ried, Alex, Nando, Danilo, Marília, Dani, Gabriela, Denise, Su, Rita...

Às ruas e corpos retomados com as companheiras da GAFe Às cervejas e papos com a Luísa.

À amizade de Anelise.

Às preciosas contribuições proporcionadas por Tânia Galli Fonseca, Pedro de Souza e Mériti de Souza.

À CAPES/CNPQ pela bolsa concedida, possibilitando dedicar-me integraldedicar-mente à vida acadêmica durante este período.

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Partindo das reflexões de Gilles Deleuze sobre a predominância das sociedades de controle na contemporaneidade, a presente dissertação esboça uma cartografia dos perfis do Orkut. Focando não especificamente no que o(a)s usuário(a)s escrevem sobre si, mas na interface criada pela equipe da Google, busca compreender que modos de subjetivação são incitados pelo website. O desaparecimento do anonimato, a onipresença de rostos ao longo de todo o site, uma tecnologia de visualização que independe de diálogos para ver ou ser visto e a visibilidade de laços de amizade entre o(a)s usuária(o)s são algumas das questões aqui discutidas. A partir disso, a naturalização da internet como um espaço ―revolucionário‖ é questionada, entendendo que seu espaço é múltiplo, diverso, e compreende diferentes dinâmicas de poder.

Palavras-chave: subjetivação, Orkut, sociedades de controle, ciberespaço.

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From Giles Deleuze‘s reflections about the predominance of control societies on contemporaneity, the present research constructs a critical cartography of Orkut‘s profiles. Focusing not on what the users write about themselves, but on the interface created by Google‘s team, it seeks to undertand which modes of subjectivation are produced by such website. The disapearence of the anonimacy, the omnipresence of faces all over the site, a vision technology in wich one independs of dialogs to see or be seen, and the visibility of friendship networks among the users are some of the issues here discussed. From this, the naturalization of internet as a ―revolutionary‖ space is questioned, understanding that it is multiple, diverse, and comprehends different power dynamics.

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11 SUMÁRIO

1. NOTAS INTRODUTÓRIAS

a)UMA BREVE APRESENTAÇÃO... 15

b) INTENSIDADES INVESTIGATIVAS... 21

c) ROSTOS GANHANDO RELEVO... 25

d)LINHAS DE INTEGRAÇÃO, LINHAS DE PERSONALIZAÇÃO: DA GUERRA FRIA À WEB 2.0... 34

2. ORÁCULOS, CIBORGUES E CORPOS-SEM-ÓRGÃOS... 45

a) CIBERESPAÇO LISO X CIBERESPAÇO ESTRIADO... 60

b) ORÁCULOS... 66

c) A INVENÇÃO DO FAKE OU A INVENÇÃO DO REAL... 75

d) O CONVITE. ... 82

3. ALGUNS EFEITOS DE SUBJETIVAÇÃO a) OS AVATARES... 86

b) COINCIDÊNCIA ENTRE AUTOR E TÍTULO... 94

c) QUEM SÃO SEUS AMIGOS? ... 101

4. O QUE UM PERFIL DO ORKUT FAZ VER? ... 103

5. CARTOGRAFIAS INICIAIS... 122

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13 ÍNDICE DE IMAGENS

1. Perfil do Orkut ―Winston Smith‖ ... 25

2. Site www.youtube.com ……... 33

3. Perfil do Orkut ―*Error* (person not found)‖ ... 44

4. Software IRC... 59

5. Programa MSN Messenger... 61

6. Ficha para fazer cadastro no site do Orkut... 69

7. Imagem da propaganda do navegador Google Chrome... 71

8. ―Como denunciar roubo de identidade‖ (―Estatuto da comunidade‖ do Orkut)... 74

9. Convite para adicionar alguém como ―amigo‖ no Orkut... 81

10. Mensagem que surge quando se tenta deletar a foto do avatar do perfil... 85

11. Página principal e avatar de um perfil do Orkut... 87

12. Página inicial do perfil do Orkut assinado ―Cor.Ação‖ ... 103

13. Quantificações ―confiável‖, ―legal‖ e ―sexy‖ dos perfis do Orkut... 113

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Capítulo 1: Notas introdutórias a) Uma breve apresentação.

It is our mission to help you create a closer, more intimate network of friends. We hope to put you on the path to social bliss soon. (Orkut 2009)

Supõe-se a existência de verdades eternas, que sobrevoam a história, como um princípio fundamental regendo em segredo uma diversidade de acontecimentos. Verdades que coexistem frente ao risco de que sem princípios, fios condutores que dão coesão à Terra, mergulharíamos no caos. ―Verdades eternas‖ inscrevem ordenações, delineiam formas que separam as existências do acaso, do caos, da pura dispersão.

O ―indivíduo‖ é uma dessas verdades que, num determinado momento histórico, consolidou-se supostamente eterna, natural e existente ―desde sempre‖. ―Liberdade‖ é o nome dado ao conjunto de condições (supostamente naturais) dentro das quais sujeitos racionais podem tomar escolhas, e ser responsabilizados por suas conseqüências. Instituições como a Escola, a Família, Fábrica, Exército, Hospitais e Presídios – atravessadas pela figura política do Estado – articularam-se ao longo do século XVII buscando talhar as condições para o pleno exercício da responsabilidade de cada indivíduo. Buscam purificá-los das misturas e socializações ―perigosas‖ – temendo a irracionalidade do anarquismo e do comunismo –, tal como buscam protegê-los das contradições experimentadas pelo próprio psiquismo – temendo a proliferação da loucura. Dentro do exercício de poderes de cunho Disciplinar, entre o movimento das massas e os pesadelos do enlouquecimento, a figura do Indivíduo foi talhada com a promessa de harmonizar o corpo da sociedade dentro de leis ―naturais‖ (Foucault, 2003).

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Verdades declaradas eternas carregam promessas de uma pretensa harmonia que nunca foi politicamente inocente: o desenrolar das condições que dividiam, docilizavam e potencializavam as forças envolvidas na afirmação do indivíduo coexistia com sistemáticas violências frente a existências excluídas deste processo, às quais o estatuto de sujeito era inviabilizado. Mulheres, pela perpetuação do sexismo, negra(o)s pela perpetuação do racismo, não-europeus(não-européias) pela perpetuação do colonialismo, lésbicas e gays com a perpetuação do heterossexismo, louca(o)s com a perpetuação da psiquiatria, operária(o)s com a perpetuação da divisão de trabalho – a despeito da pretensa universalidade, a tecitura da forma Sujeito funcionava como consolidação bastante específica para uma figura branca, masculina, européia, e heterossexual: o homem. Uma existência ―livre‖, racional, com plenas possibilidades de escolher e ser responsabilizada pelas conseqüências destas escolhas, responsabilização que se ―harmoniza‖ com o corpo político do Estado. Trata-se de um projeto político cuja configuração é implicitamente específica ao exercício do Masculino.

Inserindo-me dentro de um programa de pós-graduação em Psicologia, considero que fechar os olhos para o conjunto de violências contingentes à configuração do que é o Sujeito, ou permanecer considerando-o como uma ―verdade eterna‖ a-histórica, implicaria uma cumplicidade com tais processos de violência e exclusão ao reforçar sua invisibilidade. Neste sentido, a presente pesquisa parte do propósito de investigar não a Subjetividade como uma substância, um dado a priori, mas a partir dos jogos de saber e poder dentro do qual esta é produzida.

Ao longo do advento da modernidade, uma série de resistências e lutas sociais ganhou corpo, no sentido de explicitar e confrontar as opressões constitutivas dos projetos societários que tomam o indivíduo como centro. Mulheres, negra(o)s, operária(o)s, lésbicas, gays e colonizada(o)s articularam suas experiências de violência e exclusão como base para organizarem-se politicamente, em resistências que ora

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buscavam incluir tais grupos dentro das condições de subjetividade dominante (garantindo-lhes o direito à liberdade e cidadania liberais), ora transformar radicalmente o regime social em questão.

Tais lutas nasceram imersas num paradoxo: articulando suas experiências de assujeitamento frente a um modelo hegemônico de Sujeito, buscam criar condições para que novas subjetividades sejam viáveis – as quais por sua vez correm o risco de invibilizar outras experiências de assujeitamento que precisariam ser enfrentadas. A categoria ―mulher‖, articulada ao movimento feminista para visibilizar uma gama de assujeitamentos sofridos por mulheres e construir sua identidade política, defronta-se com o risco de invisibilizar outras experiências de opressão que não são explicitamente compartilhadas por todas as mulheres – mulheres negras, chicanas, latinas, lésbicas. De forma semelhante, a categoria ―negro‖ excluindo a possibilidade de se lidar com a violência sofrida por mulheres; o movimento homossexual, subsumindo sistematicamente especificidades de mulheres lesbianas, bem como recortes de classe social; as militâncias anarquistas e marxistas reiterando sistematicamente racismos, xenofobias, heterossexismos, misoginia, dentre outras.

Militâncias ecológicas e veganas, especialmente quando articuladas ao feminismo, tornam visível o quanto as diversas formas de dominação que operam entre humanos estão intimamente ligadas à violência contra animais – entendendo que não é possível dar fim ao sexismo sem transformar radicalmente uma sociedade especista. A intersecção entre estas diferentes lutas torna-se um aspecto fundamental quando se enseja pensar transformações sociais, ao mesmo tempo em que se apuram olhares mais críticos sobre os mecanismos em jogo na produção de identidades políticas, e no que consiste sua transformação.

No entanto, a partir da segunda metade do século XX, mais acentuadamente a partir do início do século XXI, uma nova configuração política parece problematizar isso ainda mais: a transformação do campo social frente a processos tecnológicos que

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borram a distinção humano-máquina, uma crescente desterritorialização de instituições de cunho disciplinar (fábrica, família, escola), anunciam – pela boca de alguns – a morte do ―homem‖ ou ―humano‖ enquanto forma predominante no entendimento do nexo social.

Rosi Braidotti chama atenção que, se por um lado as ―crises pós-modernas‖ abrem um amplo campo para subjetivações até então desviantes e periféricas, por outro já passam a constituir determinismos de uma nova ordem:

por um lado a inevitabilidade das economias de mercado enquanto forma historicamente dominante do progresso humano, e por outro o essencialismo biológico, sob a carapuça do ‗gene egoísta‘ e um novo evolucionismo biológico e psicológico. (...) O traço comum dessas novas narrativas-mestre é o retorno de diferentes formas de determinismo, seja a versão neo-liberal ou genética: o primeiro defende a superioridade do capitalismo, o segundo a autoridade despótica do DNA (Braidotti, 2005, p. 1 – tradução livre).

O neoliberalismo enquanto inteligibilidade de governo faz funcionar mecanismos de poder cujo foco já não é tanto normativo – isto é, pautando suas ações sobre uma suposta natureza humana – mas empresarial-administrativo, sob a noção de capital humano. A noção de capital humano, diferentemente da noção de natureza, se volta menos à procura de uma origem do que a potenciais de produção relativos à circulação de fluxos monetários. Isso opera através de uma progressiva entrada da inteligibidade econômica no que seriam as ―decisões‖ de cada pessoa – com quem casar? Qual o melhor momento para ter filhos? – entre os quais os aspectos que poderiam ser considerados subjetivos (satisfação, prazer, desejo) seriam entendidos como ―produtos‖ de um investimento bem-calculado (Foucault, 2008).

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A partir disso, vemos que os campos da subjetividade, da biologia e da economia são desterritorializados, e unificados numa linguagem comum: a da informação. São borradas as fronteiras que distinguiam os cérebros humanos de máquinas, passando ambos a ser compreendidos como complexos sistemas de inputs e outputs – de forma que as maneiras de sentir e perceber o mundo perdem um lugar de ―indeterminabilidade‖, e passam a ser tratadas também como matérias passíveis de ser produzidas em complexos sistemas de comunicação. A isso, somam-se também os mapeamentos da biologia molecular, encontrando na dupla-hélice do DNA uma possível tradutibilidade dos processos orgânicos em relação a fluxos de informação.

―As forças no homem entram em relação com forças de fora, as do silício, que se vinga do carbono, as dos componentes genéticos, que se vingam do organismo, as dos agramaticais que se vingam do significante”, sugere Deleuze (1988, p. 141). ―A junção entre motor/máquina e organismo, efetuada pela engenharia de circuitos comunicacionais e controle por feedback, produziram uma entidade histórica específica ontologicamente nova: o ciborgue, a aprimoração do sistema comando-controle-inteligência (C3I)‖, é a leitura elaborada por Donna Haraway (1993, p. 299 – tradução livre).

A figura do ciborgue, tecida por Donna Haraway, nos mergulha em paradoxos políticos semelhantes ao da figura do indivíduo: por um lado, é produto de um capitalismo transnacional altamente militarista e masculinista, ensejando produzir nos corpos um sistema de servidão quase automática, funcionando por ―acoplagem‖ a sistemas sem necessidade dos antigos encarceramentos das sociedades disciplinares. Por outro, engendra novos potenciais inventivos na medida em que são borradas as tradicionais divisões como masculino/feminino, natureza/cultura, homem/animal, tornando possível a construção de alianças políticas extremamente potentes. Frente aos processos identitários que o capitalismo contemporâneo vem colocando em dissolução, Haraway não se entrega ao otimismo nem à nostalgia, mas –

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tal como muito se fez em torno da questão da identidade – mergulha no encontro de paradoxos, mapeando ao mesmo tempo os riscos e as possibilidades que os novos contextos propiciam.

Se a produção do indivíduo enquanto unidade política da sociedade moderna, longe de ser uma ―descoberta natural‖, foi um espaço cavado a partir de diversos aparelhos e práticas sociais, pode ser destacado o papel dos documentos de identificação (certidão de nascimento, carteira de identidade, cartão de motorista, certidão de casamento, etc) demarcando institucionalmente os segmentos pelos quais cada indivíduo é atravessado, e as zonas nas quais ele é convidado a ocupar. Delimitam também conjuntos de direitos e deveres pelos quais cada indivíduo é responsabilizado em suas ações: enquanto adolescente ou adulto, homem ou mulher, casada(o) ou solteira(o), e assim por diante.

Desde o ano de 2004, a rede de relacionamentos ―Orkut‖ situada na internet populariza no Brasil páginas intituladas ―Perfis‖, que configuram no espaço de seu título o nome dos próprios usuários, delimitando em seu centro uma descrição elaborada pelo mesmo sobre si e, no lado direito da página, uma lista de ―amigos‖ que estão também dentro da rede (com links para os respectivos perfis) e uma outra lista de ―comunidades‖ a que ele pertence. A semelhança desta interface com a de uma carteira de identidade é dificilmente uma coincidência, o que nos coloca em vias de questionar: em que sentido os perfis do Orkut funcionam como documentos de identificação dentro da internet? Que tipo de segmentaridade se produz neste espaço? Que vinculação carrega com os mecanismos de responsabilização que marcaram a emergência da figura do Indivíduo Moderno?

Diferentemente da carteira de identidade, o preenchimento de informações sobre os perfis do Orkut está em grande medida ―nas mãos‖ da(o)s própria(o)s usuários. As informações disponibilizadas carregam pouca semelhança com os dados genéricos e pretensamente ―impessoais‖ que configuram os documentos de identidade, dando por

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sua vez predominância a gostos, paixões e pequenas peculiaridades de cada um com uma linguagem predominantemente lúdica. O que não se encontra inteiramente nas mãos dos usuários são as listas de amigos, os recados deixados pelos mesmos, e a lista de comunidades das quais participa.

―Quem conhece quem‖, ―o que você pensa‖ e ―o que você tem feito da vida‖ são questões que este documento registra sobre cada um. Este registro remete menos a espaços fechados dentro dos quais cada um circula (o que remeteria às ―instituições de confinamento‖) do que a zonas ondulatórias que atravessam cada um (gostos, pensamentos, afetos), de modo que estudá-los pode oferecer um entendimento mais claro sobre a transição entre as antigas ―sociedades disciplinares‖ às novas ―Sociedades de controle‖, como nos sugere Deleuze (1992).

A questão do presente trabalho é tracejar como funcionam os perfis do Orkut: como é talhado, a partir de que perguntas e questões, ao que se articula e de que maneiras é acionado, criando pistas para compreender que modos de subjetivação encontram-se implicados no contexto político contemporâneo.

b) Intensidades investigativas

Ordenei que tirassem meu cavalo da estrebaria. O criado não me entendeu. Fui pessoalmente à estrebaria, selei o cavalo e montei-o. Ouvi soar à distância uma trompa, perguntei-lhe o que aquilo significava. Ele não sabia de nada e não havia escutado nada. Perto do portão ele me deteve e perguntou:

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– Não sei direito – eu disse -, só sei que é para fora daqui, fora daqui. Fora daqui sem parar: só assim posso alcançar meu objetivo.

– Conhece então o seu objetivo? – perguntou ele.

– Sim – respondi. – Eu já disse: ―fora-daqui‖, é esse o meu objetivo.

– O senhor não leva provisões – disse ele. – Não preciso de nenhuma – disse eu. – a viagem é tão longa que tenho de morrer de fome se não receber nada no caminho. Nenhuma provisão pode me salvar. Por sorte esta viagem é realmente imensa.

(Kafka, 2002, p. 141)

Sem provisões e sem destino pré-definido, cavalga um cavaleiro cujo único propósito é permanentemente sair de onde se está, deixar de ser aquilo que se é. Chama-se a isso devir (Deleuze & Guattari, 1996-D): percorrer constelações de possibilidades sem deixar-se confundir com elas enquanto forma fixa, destino ou termo final.

Devires não podem ser salvos nem por preparos prévios, tampouco por pontos de chegada. Seu risco é outro: o de não ser rápido o suficiente para encontrar alimentos no caminho. É então que um devir, ou linha-de-fuga, perde seu caráter de experimentação e torna-se linha de morte ou abolição (Deleuze & Guattari, 1996-C). Se tal fracasso advém, entretanto, isso não se dá pela ausência de um ―destino‖ que deveria ter sido alcançado, mas por lentidões das mais diversas impedindo que novas conexões alimentem os deslocamentos. Tracejar linhas-de-fuga exige prudência, atenção, mas sobretudo leveza (Deleuze 1998), disposição para se despir de tudo aquilo que pesa sobre os devires e lhes atrasa ao encontro dos acontecimentos.

O presente texto anuncia então sua partida: nos entremeios da internet, pretende cartografar linhas de força no site de relacionamentos

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Orkut, hospedado pela empresa Google. Intenta, naquilo que nestes sites denominou-se como “perfis” de seus usuários, produzir figuras e problematizações acerca da dinâmica de controle e poder que se consolida na contemporaneidade – controles e poderes articulados a tecnologias de produção de subjetividade.

O ponto de partida desse trabalho é abordar a internet pelo viés cartográfico. A cartografia é uma proposta de pesquisa que não se configura dentro da separação entre sujeito-objeto, mas sobre um campo de processos em devir – ou seja, fluxos de matérias não-formadas, que percorrem formas sem fixar-se nelas... que, aliás, percorrem/constituem objetos e sujeitos, mas que não se confundem com estes enquanto termos finais.

Desta intenção, tira-se pelo menos duas consequências: primeiro, que não se busque construir sobre a internet, sobre o Orkut ou sobre a contemporaneidade qualquer tipo de ―análise‖ que se proponha a apresentar “verdades”, ―tendências” ou “significações ocultas”. É antes um convite à desmontagem das verdades e significações, para que se produza novas conexões entre os fluxos que ali estão em jogo. Em outros termos: uma cartografia não pretende ―descobrir‖ nada, mas potencializar formas novas e diferentes de se olhar para determinadas questões.

Muito freqüentemente, foi questionado ao longo da pesquisa: como delimitar os perfis que vão ser trabalhados? Delimitar perfis para ser analisados nos coloca em um duplo problema: por um lado como dar conta do amplo número de usuários da rede do Orkut e da variedades na maneira como seus perfis são construídos sem algum tipo de delimitação? Por outro, escolher categorias de delimitação implica em gerar questões de pesquisa a mais, na medida em que os próprios critérios precisariam ser problematizados – caso escolhesse só perfis de pessoas ―solteiras‖, ou só de ―brasileiros‖, ou só de ―torcedores do Flamengo‖, estas próprias categorias precisariam ser trabalhadas, e talvez não se tratassem propriamente do foco da pesquisa.

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Carregando o intuito de compreender melhor sobre alguns exercícios de poder que ganham predominância na contemporaneidade, o que está em jogo não se trata dos ‗conteúdos‘ escritos nos perfis do Orkut, mas no tipo de espaço aberto em que os próprios conteúdos são produzidos sob formas determinadas. A questão não está em se ―pessoas dizem que são solteiras ou casadas‖, se ―gostam de escrever assim ou aXim‖, mas sim: que espaço é este onde ser solteiro ou casado é colocado em questão juntamente com uma série de outras informações? A que tipo de rede se conectam as escritas que são elaboradas sobre si mesmo ou sobre outros? Em suma, o foco está menos no ―conteúdo‖ específico dos perfis, do que em sua interface: que perguntas articulam e balizam sua construção? Que formato é produzido? O que se encontra linkado ao quê? O que é tornado visível, e para quem? A que problemáticas sua lógica interna encontra-se vinculada, e que efeitos de subjetivação podem ser traçados a partir disso?

Neste sentido, será adotado um movimento de deriva entre diferentes perfis do Orkut, a título de criar experiências de proximidade e estranhamentos frente aos mesmos. Algumas imagens vão sendo convocadas para compor este trabalho, não para serem ―analisadas‖, mas para se articularem à produção de novos olhares, sensibilidades e experiências. Haverá critério para a escolha de tais imagens? Se for possível encontrá-lo, não se trata de nada proposto a priori, mas fruto do jogo de forças e intensidades que tais figuras implicarem ao presente trabalho.

Uma cartografia acerca do Orkut inscreve-se com o propósito não de ―representá-lo‖, de descobrir ―verdadeiras leis‖ em seu funcionamento, mas de articular possíves problematizações. Enseja-se aqui entender a produção de imaginários e significações instituídos em nível de a priori, ―impensados‖ dentro de um determinado campo social. Se é evidente que a ―revolução informática‖, o advento da internet e os sites de relacionamento dela decorrentes operaram num contexto de intensas transformações, abrindo novos campos de possibilidades com

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os quais não se pode mais pretender ―voltar atrás‖, esta mesma irreversibilidade dentro de certas falas pode entrar em jogo na produção de uma paralisia, de ―consensos inquestionáveis‖ acerca do que seria vida dentro da internet.

c) Rostos ganhando relevo.

(screenshot do perfil ―Winston Smith‖, criado pelo autor, acessado no dia 9 de Junho de 2010)

Pergunto-me se os europeus se vêem como eu os vejo eu que sou eles

mas com olhar agora amulatado. Por trás do vidro observo os que comem e bebem no bistrô e vejo os mesmos rostos

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alongados pescoços que ainda há pouco vi entre molduras nas galerias do Louvre. Ao contrário dos nossos – tão mutantes –

os rostos europeus estão parados há séculos forjados por idênticas formas fotos de um passaporte que

respeita fronteiras.

Mas como meu olhar além do vidro outra é a ordem que vem

nos novos tempos. Com seu rosto migrante

entre máscara e carne se intrometem infiltram frontes

deslizam zigomas impregnam pálpebras empurram têmporas

e a pele e a cor e os já domados pêlos entressacham

para forçar o molde e comer

traço a traço os seus contornos. (Colassanti, 2009, p. 40 e 41)

Não se tratando de substâncias naturais que alguém possua numa suposta zona interior isolada do tempo e do espaço, as constelações de subjetividade são efeitos de jogos de força que se desenrolam a partir de determinadas configurações históricas e sociais. Toda forma é um composto de relações de forças. Estando dadas forças, perguntar-se-á então primeiramente com que forças de fora elas entram

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em relação e, em seguida, qual a forma resultante (Deleuze, 2006, p 132).

Até o século XVII, as forças humanas se compõem em relação com forças de elevação ao infinito – o que leva à composição não de uma forma-homem, mas de uma forma-deus. Face despótica, soberana, que sobrecodificava a vida e a terra sob a potência secreta de um mundo transcendente, extenso. Uma tal visão desencarnada e total é o prenúncio do que corporificará a objetividade científica sob o rosto do homem branco, ocidental e heterossexual – mas o que está em jogo, ainda, são forças divinas fora do mundo humano.

Tal sociedade, centralizada sob a figura do soberano que encarna a figura divina, era alimentada por exercícios de poder essencialmente como instância de confisco, mecanismo de subtração, direito de se apropriar de uma parte das riquezas: extorsão de produtos, de bens, de serviços, de trabalho e de sangue (...), direito de apreensão das coisas, do tempo, dos corpos e, finalmente, da vida (Foucault, 2003, p 128). Poder de fazer morrer ou deixar viver.

No entanto, na Europa do séxulo XVIII

A democracia anunciou o fim da identidade Deus e Estado, separou e libertou as religiões do Estado. O rei governava associado a uma religião oficial. O povo governa, agora, libertando todas as religiões do governo central, segundo o princípio constitucional no qual o homem livre segue a lei universal, para todos os cidadãos (Passetti, 2003. P. 239).

Quando a soberania já não se encontra mais em mãos de um divino imortal, mas em mãos humanas às voltas com a finitude da vida, o aparelho do Estado mergulha em transformações: já não consiste mais em afirmar a divindidade de um ―além-da-vida‖, mas de produzir, conservar e afirmar a vida em sua concretude presente, em si mesma. Neste sentido, o aparelho Estatal torna-se Biopolítica: incorpora a Vida como algo interno à política(Foucault, 2003-b).

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Com a afirmação do corpo espécie, se combaterá todo tipo de ―aliança demoníaca‖ dos corpos com vírus e contaminações; na afirmação do corpo-máquina(Foucault, 2003-a), buscar-se-á extrair do corpo a máxima eficiência: o controle disciplinar não consiste simplesmente em ensinar ou impor uma série de gestos definidos; impõe a melhor relação entre um gesto e a atitude global do corpo, que é sua condição de eficácia e rapidez (Foucault 1997, p. 130).

O socius não se inscreve mais nas superfícies, mas mergulha nas profundezas da carne: alma, prisão do corpo (Foucault, 1997). Os jogos de identificação abandonam a antiga filiação a laços de sangue, relativos à ascendência dos antepassados, mas progressivamente localizavam os indivíduos à sua progenitura, sua capacidade de reprodução: bom sujeito é o que gera filhos saudáveis.

A Sexualidade figura como um dispositivo preponderante da modernidade, na medida em que o ―sexo‖ biológico define quem se deve amar para ter uma existência inteligível. Sob a moral do cristianismo, este era enunciado sob a lógica do pecado, temendo os movimentos da carne que levassem à perdição da alma; mas, conforme o advento da medicina, quando o organismo ganha um lugar nos regimes de veridição, o que antes operava enquanto ―crime‖ ou ―pecado‖ será tornado ―anomalia‖ e ―aberração‖. Anomalias que, ao invés de punidas em espetáculos públicos, são mergulhados na silenciosa esfera da existência impossível: corpos abjetos (Butler, 1993; 1999).

O exercício do poder disciplinar, entretanto, não é apenas negativo: todo o trabalho de ―purificação‖ dos corpos em relação a contágios e desvios está ligado a outro, positivo, que implica em extrair do organismo o máximo de forças úteis por tempo de trabalho. Enquanto as oficinas e espaços de produção anteriores possuíam espaços e tempos relativamente ―livres‖, a disciplina dispõe de um cálculo detalhado sobre os gestos e disposições corporais mais eficientes para a escala de produção que se quer obter. Dividir e distribuir o espaço com rigor é a ciência desenvolvida, enfim, para evitar os contágios que rompam com a

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plena ―saúde‖ das estratificações, entrando a serviço não apenas da medicina, mas de tantos outros tipos de controle: econômicos (evitando o contrabando), militares (evitando a deserção), na fábrica (visando extrair o máximo de produtividade), escolares (otimizando a docilidade dos corpos), dentre outros. Divide-se o espaço em tantas parcelas quanto corpos ou objetos há a se repartir: cada indivíduo no seu lugar; e em cada lugar um indivíduo(Foucault, 1997, p. 123).

Anátomo-política do corpo – buscando intensificar suas forças produtivas – e biopolítica das populações – produzindo purificação do humano enquanto espécie – são grandes máquinas abstratas que conjugam as forças de subjetivação ao longo do século XIX e primeira metade do século XX. Corpos docilizados através do estudo milimétrico de gestos úteis, são construídos no atravessamento de diversas instituições de confinamento: família, escola, exército, fábrica, hospital, asilo, etc. Corpos atravessados por documentos de identidade, que ligam cada indivíduo diretamente e sem mediação aos aparelhos de Estado: em cada certidão de nascimento, o nascimento de um cidadão. Cidadania essa promissora em direitos, automaticamente articulados a deveres que se tornam progressivamente naturais: ideário de liberdade que não se opõe, mas que se efetua, com o cumprimento das leis naturalizadas de um ―bom governo‖.

Simultaneamente a um exercício milimétrico do controle dos corpos e outras matérias, o aparelho Estatal banhado na maquinaria disciplinar vê-se às voltas com a afirmação de limites ao excesso de regulamentações:

(...)o maior mal de um governo, o que faz que ele seja ruim, não é o príncipe ser ruim, é ele ser ignorante. Em suma, entram simultaneamente na arte de governar e pelo viés da economia política, primeiro, a possibilidade de uma autolimitação, a possibilidade de que a ação governamental se limite em função da natureza do que ela faz e daquilo sobre o que ela age [e, segundo, a questão da verdade]. Possibilidade de autolimitação e questão da verdade: essas

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duas coisas são introduzidas na razão governamental pela economia política (Foucault, 2008-B, p24).

Pode-se falar aqui de um momento em que a Verdade e os regimes de veridição substituem a Justiça, e as formulações morais, como aquilo que definirá um ―bom governo‖. Neste sentido, não é postulada qualquer contradição entre a vigilância nos espaços de confinamento, e liberdade: a primeira funciona para fazer pulsar, através de técnicas minunciosamente estudadas, nem mais nem menos que as leis ―naturalmente‖ imanentes a determinado objeto. A cientificidade anatômica da disciplina, tal como a cientificidade econômica do Estado, garante que as leis existam não como ―privação‖ da liberdade, mas como pleno funcionamento da mesma.

No atravessamento das formas Estado por regimes de veridição é que se pode falar do capitalismo como axiomática: diante dos fluxos desterritorializantes da moeda, procura sobrecodificar atividades, pensamentos e sentimentos humanos, reorganizando os valores de desejo sobre a dependência sistemática dos valores de uso e valores de troca:

Passear ‗livremente numa rua, ou no campo, respirar ar puro, cantar meio alto, tornaram-se atividades quantificáveis de um ponto de vista capitalístico. (...)A ordem capitalista pretende impor aos indivíduos que vivam unicamene num sistema de troca, uma traduzibilidade geral de todos os valores para além dos quais tudo é feito, de modo que o menor de seus desejos seja sentido como associal, perigoso, culpado (Guattari, 1987, p. 202).

Se por um longo tempo tais aparelhos funcionavam de forma complementar às instituições Disciplinares, a segunda metade do século XX fará ali soar outras vozes: que a escola já não educa mais como deveria, que a prisão é uma escola para criminosos, que as

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―comunidades terapêuticas‖ são mais eficazes que os hospitais psiquiátricos na cura da loucura. ―Crise‖ da família, ―crise‖ do Estado: “são as sociedades de controle que estão substituindo as sociedades disciplinares” (Deleuze, 1992, p. 220).

De nações que demandavam ―cidadões‖, passamos a um planeta que comporta ―gente demais‖, cuja superpopulação ameaça a humanidade de extinção. Produzir a vida já não está mais em questão: a biopolítica da população dá lugar a uma ecopolítica planetária (Passetti, 2003). Na realidade em que se proliferou lixo em demasia, a reciclagem ganha corpo e a produção torna-se progressivamente seletiva, de modo que o trabalho mecânico de corpos dóceis é progressivamente substituído pela integração de fluxos de inteligência (Ibid).

O alvo do controle não são sujeitos cujo comportamento expressa normas sociais internalizadas; ao invés, o controle visa a uma interminável modulação de humores, capacidades, afetos e potencialidades, reunidas em códigos genéticos, números de identificação, perfis de avaliação e listas de preferência; quer dizer, corpos de dados e informação (incluindo o corpo humano como informação e dados) (Clough, 2000, p. 3 – tradução livre).

No lugar do panóptico, localizando um olhar atento a muitos, as sociedades de controle invertem o vetor: são as próprias pessoas que recorrem a aparelhos telemáticos (televisão, internet, etc) para saber o que é realidade, verdade, divertimento e para participar do mundo. Mais do que encarcerar, a contemporaneidade experimenta uma demanda progressiva por integração:

o investimento não é mais no corpo propriamente dito; interessa agora é extrair o máximo de energias inteligentes, fazer participar, criar condições para cada um se sentir atuando e decidindo no interior das políticas de governos, em organizações não-governamentais e nas construções de uma economia eletrônica (...). Os asilos, as prisões, os hospitais,

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os manicômios, as escolas, o sexo, as crianças são atravessados por direitos. Sociedade de plenos direitos. (Passetti, 2000, p. 30).

Não se busca mais, como na disciplina, reduzir as forças políticas do corpo, mas maximizar a participação dos programas de inteligência: ―o súdito constrói a imagem de si como cidadão midiático, participante de quaisquer decisões, sentindo-se livre para responder o que lhe é solicitado e inserindo-se numa discursividade que sublinha as sensações de liberdade‖ (Passetti 2003, p. 81). Antigas coações familiares, morais e religiosas passam a ser satirizadas, desvalorizadas, denunciadas em toda a sua inconveniência, na medida em que funcionam como carcerárias dos fluxos desejantes que o capitalismo contemporâneo almeja dar conta. Não basta mais obedecer, mas ser empreendedor, afirmar-se singular: a criatividade exigida tanto na esfera do consumo, quanto na esfera da produção – que passam progressivamente a confundir-se. Entra em cena um sujeito ―inquieto, incerto, amedrontado de não ser suficientemente ágil, criativo, flexível. Buscando desvencilhar-se do peso de tudo o que tende a repousar sobre si, ele teme carregar muito corpo, muita memória, muita identidade‖ (Sant‘Anna, 2001, p. 25), em ojeriza a tudo aquilo que se anuncie como limite para novas possibilidades de experimentação.

A questão que pretendo colocar aqui é: em que medida a inteligibilidade centrada num ―corpo natural‖, descrita por Judith Butler (1993), não estaria sendo deixada para trás? Se, conforme Haraway (1993) nos aponta, a informática da dominação substituiu os organismos por sistemas bióticos, deixando de proceder a sacralização de ―corpos puros‖ ou originários, até que ponto os regimes de inteligibilidade e exclusão dos corpos não se encontram sob novas formas de operação?

A partir da ampla disseminação das tecnologias de conexão à Internet, integrando zonas significativamente diversas ao longo do globo dentro de um mesmo ―oceano de navegação‖, a noção de ciberspaço

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(Levy, 2005; Lemos, 2008) configura-se como um campo que parece borrar antigas fronteiras e binarismos tão arraigados como ―sujeito X objeto‖, ―homem X máquina‖, ―público X privado‖. Na complexa combinação de cores e textos que lhe configuram seu espaço, os perfis do Orkut funcionam de um modo bastante singular em relação a outras páginas da internet: a sensação de que se está diante de uma pessoa de carne e osso, um corpo que não se confunde à máquina – independentemente de conhecer determinada pessoa noutro espaço ou não. A pergunta que se poderia colocar é: quais as condições de possibilidade desse ―real‖? Por quais mecanismos regulatórios dessa mesma máquina a “sensação de um corpo fora da máquina” é construída? Que outras experiências ou conexões não são, por sua vez, excluídas a título de ―irreais‖ ou ―falsas‖?1

1 Estas últimas questões são inspiradas nas reflexões de Judith Butler em seu livro Bodies that

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d) Linhas de Integração, linhas de personalização: da “Guerra Fria” à “Web 2.0”.

Fig X: screenshot da página www.youtube.com, no dia 9 de Novembro de 2009, comemorando os 20 anos da queda do Muro de Berlim enquanto ―um poderoso símbolo da livre expressão política ao redor do mundo‖.

Não estamos na era da informação. Não estamos na era da Internet. Nós estamos na era das conexões. Ser conectado está no cerne da nossa democracia e nossa economia. Quanto maior e melhor forem essas conexões, mais fortes serão nossos governos, negócios, ciência, cultura, educação... (Weinberger 2003).

“Skarvurska!” é uma palavra que inexiste no léxico de qualquer dicionário. Ganhou espaço de enunciação na propaganda da empresa NET, que vende serviços conexão à internet. Designa uma espécie de celebração da parte de pessoas que, trajando roupas próprias a um clima frio, despedem-se de uma vida de limitada comunicação com o mundo, para outra com ―ilimitada‖ (ou assim parece insinuar o comercial) conexão à internet.

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Tanto a palavra, como o clima e as roupas trajadas pelos atores da propaganda propõem-se a uma semelhança com a idéia que brasileiros possuem acerca de países do Leste Europeu. Países que, duas décadas atrás, separavam-se geopoliticamente de “nosso” mundo capitalista pela chamada ―Cortina de Ferro‖, os quais os aparelhos de Estado do eixo ocidental diziam ser ―tecnologicamente atrasados e politicamente anti-democráticos‖. Romper a cortina de ferro significava, no imaginário ocidental, ―salvar‖ o eixo oriental do totalitarismo que impedia a ―livre‖ emergência da democracia, simultaneamente à promoção de seu desenvolvimento tecnológico.

Em uma das propagandas da NET, aparece a imagem de um homem com bigode e óculos, congelado diante da fila de seus supostos compatriotas que partiam da “Sibéria” para outro mundo. Está dada a mensagem: congelar no tempo é o destino dos solitários que não se integram à conectividade generalizada do planeta. Imagem daquilo que o capitalismo contemporâneo esforça-se por conjurar e esquecer: a discordância e o dissenso próprios de um mundo dividido, sob o signo da solidão.

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Ao longo da primeira metade do século XX, o intenso desenvolvimento de potências econômicas e militares desemboca em duas guerras de dimensões que até então se desconhecia: colocam em jogo todo o território planetário. Ao fim da Segunda, em 1945, a bomba de Hiroshima produz ao redor de todo o globo uma perspectiva até então inédita: que a tecnologia produzida pelo humano, em diferentes nações, carrega a possibilidade de destruir não apenas um “outro” inimigo, mas a todo o globo. Sob a égide de tal imagem, é fundada a Organização das Nações Unidas – órgão internacional que busca reunir todas as nações do planeta de forma a evitar que outra guerra o aniquile. Medo este que se mistura a iminentes tensões entre os EUA e a USRR, duas potências político-econômicas que disputavam não um território específico, mas o corpo do planeta como um todo.

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Tais nações desenvolvem tecnologias com a finalidade de lançar-se ao espaço: em 1961, o russo Yúri Gagarin nos declara que a cor da Terra é azul. Satélites passam a povoar o espaço, e as primeiras fotografias tiradas pela NASA testemunham a mesma frase. Nos anos 70, movimentos ecológicos começam a denunciar que não são apenas as potências bélicas que ameaçam a vida no planeta, mas os próprios meios de produção econômica. Este conjunto de acontecimentos delimita a visibilização de um corpo-planeta: visto de longe, foi a um só tempo totalizado, e começou a ganhar contornos da possibilidade de sua morte (Passetti, 2003). Se encontrava-se dividido em dois eixos, sua guerra já não poderia mais ocorrer nos termos de antigamente: um novo senso de tolerância imperava que tal disputa não poderia mais ser decidida apenas pelo poderio bélico, mas na conquista das ideologias (capitalismo X socialismo) ou, melhor dizendo, no potencial de produção de subjetividade destas forças.

Considerar a implicação da ―produção de subjetividade‖ nesta guerra não quer dizer, de maneira alguma, que isso a tenha tornado menos violenta: nas ditaduras latino-americanas, em que os EUA investiu, a prisão e a tortura dos ―elementos perigosos” conjugava-se diretamente com a produção de subjetividades intimistas, desinteressadas pelo espaço público e fechadas sobre ideais de ego:

Há, por conseguinte, um interesse cada vez maior pelos problemas da personalidade (' a procura de uma autenticidade que exige a todo custo que o sujeito seja transparente, "autêntico" através de todos os seus atos.(...)Acredita-se que a aproximação, a descoberta de si mesmo, a liberação das repressôes, a busca da autenticidade e do calor humano são os fatores essenciais para o bom andamento de uma sociedade. As categorias políticas são transformadas em categorias psicológicas; o importante não é o que se faz, mas o que se sente. Ou seja, há um esvaziamento político, há uma psicologizaçào do cotidiano e da vida social. (Coimbra, 1995, p. 33-34).

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As potências econômicas do Oeste conseguem, dessa forma, acionar um plus aos modos de produção capitalísticos: para além da mera individualização, que insere os corpos em grandes séries molares, ativam processos de personalização: ―são as mesmas calças, os mesmos cigarros, as mesmas vitrolas HiFi – enfim, as mesmas coisas com os mesmos materiais –, só que no mundo capitalista nos personalizamos‖ (Guattari & Rolnik, 2005, p. 150-151)

―Personalizar‖ é um processo que possui semelhanças e diferenças em relação ao que Guattari e Deleuze chamam de processos de singularização: assemelham-se na medida em que já não supõem uma mera serialização do invivíduo, reproduzindo modelos de estruturas molares. Ativam certas linhas de fuga, na medida em que supõem uma certa criatividade que, no entanto, permanecem presas a um regime de signos pós-significante, onde os fluxos desejantes já não giram em torno de Significações centrais ou universais, mas geram pontos de subjetivação móveis que rebatem sujeitos de enunciação em enunciados pré-fabricados:

―nem mesmo há mais necessidade de um centro transcendente de poder, mas, antes, de um poder imanente que se confunde com o ―real‖, e que procede por normalização (...) como se o sujeito duplicado fosse, em uma de suas formas, causa dos enunciados dos quais ele mesmo faz parte na sua outra forma‖ (Deleuze & Guattari, 1996-b, p. 84-85).

Os mecanismos de Comunicação tornam-se, neste regime, objetos científicos indispensáveis, conforme os aparelhos de mass-media tentam apropriar-se e produzir pontos de realidade onde as subjetivações fixam seus jogos de enunciação (Deleuze & Guattari, 1996-b).

Foi por tais processos, cristalizando desejos que minavam o substrato mental do sistema pós-stalinista (Guattari, 1992, p. 12), que o fim dos anos 80 assiste à queda da Cortina de Ferro, simbolizando o fim

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da Guerra Fria que dividia o planeta em dois eixos. Com a queda do Muro, simboliza-se uma pretensa integração total do corpo da Terra enquanto uno, sob a égide do projeto democrático e da economia capitalista. ―Livre transmissão de informações‖, autenticidade nas formas de expressão e inexistência de fronteiras pairam em diversos aparelhos de mídia ao redor do mundo como supostos consensos para uma nova cidadania ―globalizada‖ e ―cosmopolita‖, frente aos quais toda crítica situa-se como arcaísmos de um mundo autoritário que se deixou para trás.

Também no final dos anos 80, o eixo capitalista já convivia há quase algumas décadas com a digitalização dos meios de expressão proporcionada pelos computadores. Por digitalização, há de se entender um processo através do qual diferentes matérias de expressão (imagens, textos e sons) conseguem ser operacionalizadas por informações comuns: cifras de 0 e 1 reunidas em bits. Produz-se uma espécie de infratexto, que fractaliza e trabalha ―por dentro‖ toda matéria de expressão, tornando sua gravação e transmissão cada vez mais ―leve‖, bem como possibilitando outras formas de agenciá-las (a título de exemplo, a possibilidade de ―apagar‖ um texto num documento de word).

Já existia, desde 1978, um aparelho conhecido por modem, capaz de transformar impulsos eletrônicos produzidos pelo computador ―em impulsos sonoros ou digitais compactados, capazes de viajar com grande velocidade nas redes de telefone‖ (Santaella, 2003, p. 84), convertendo novamente em texto, imagem ou som após sua recepção por outro computador. Tal tecnologia articula-se à integração de computadores em redes, que possibilitam novas formas de organizar informações: ao invés de concentrá-las num único ponto, que ―transmitiria‖ unilateralmente a outros, possibilita-se um roteamento dinâmico dos dados, de modo à informação sobreviver mesmo na destruição de um ou vários terminais. Esta tecnologia recebe o nome de Internet.

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Em 1992 – após a queda do Muro de Berlim e o fim da a União Soviétiva – Tim Berners-Lee desenvolve o sistema de marcação de dados computacionais conhecido por HTML (“Hyper Text Marked Language”). O que tal sistema proporciona é uma espécie de tradução: consegue converter em caracteres textuais a operacionalização tanto da “forma” como do “conteúdo” dos dados a ser transmitidos. São as tags (―etiquetas‖), simbolizadas pelas setas ―<‖ e ―>‖, que demarcam o espaço de informação próprios à expressão – enquanto o conteúdo propriamente dito é inserido entre estas. Forma-se algo assim: ―<etiqueta> dados </etiqueta>‖.

No entanto, mais do que aspectos simplesmente ―formais‖ de um texto, o espaço das tags consegue agenciar algo mais: a posssibilidade de linkar um texto a outro, compondo o que se entende por ―hiper-textos‖. Conforme o hiper-texto combina-se à tecnologia da internet, monta-se o que passa a ser globalmente conhecido por World Wide Web, onde a produção de informações agencia simultaneamente a integração entre computadores ao redor do globo. Como destaca Lúcia Santanella:

A distribuição de informação por servidores interconectados já estava em uso no mundo científico, mas não havia qualquer meio prático que permitisse navegar de um para o outro, permanecendo no interior dos documentos do trabalho em curso. (...) Foi a associação do conceito de servidores de informação ligados em uma teia de alcance mundial (a web) e o hipertexto que produziu um efeito de bola de neve. A partir de um documento presente em um servidor, o usuário tem a possibilidade de navegar de um texto (e de um servidor) para outro ao clicar nos ponteiros, verdadeiras encruzilhadas de informação que, de forma limitada, estão interconectadas umas às outras (Santanella, 2003, p. 21).

Em um quadro histórico que assistia ao fim da guerra fria e ao ―fracasso‖ de modelos econômicos caracterizados pela ―planificação

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Estatal‖, a Internet ganha potência nos anos 90 com uma aparente autonomia com relação a instituições governamentais, e cujo campo de exploração encontra-se ―inteiramente nas mãos dos usuários‖, produzindo um potencial consenso desde empresários a militantes de esquerda: “Internet equivale a liberdade”. Mesmo boa parte das críticas que se voltam à Internet, nos aponta Pierre Levy (2000), baseiam-se em denunciar as barreiras socio-econômicas que limitam seu acesso a uma determinada população – consolidando tacitamente a idéia de que se tal acesso fosse potencializado, maiores possibilidades seriam abertas.

Essa ―liberdade‖ aparentemente consensual no que concerne à Internet, entretanto, inscreve-se dentro de campos discursivos que dificilmente querem dizer a mesma coisa: para alguns, estamos diante de um espaço de comunicação privilegiado para produzir e negociar com o mínimo de intermediários possíveis, tornando viável uma ―verdadeira democracia‖ entre quem produz e quem consome. Pode ser destacado, em relação a isso, o comércio de E-books. A liberdade prometida pela internet neste contexto significa livrar-se do ―vampirismo‖ gerado pela intermediação dos negócios, envolvendo pessoas que ―levariam a melhor‖ tanto sobre os autores quanto sobre os consumidores de determinado produto trabalhando o mínimo possível.

Ao mesmo tempo, coexiste outra esperança de liberdade concernente à Internet, gestada a partir de movimentos contra-culturais das décadas de 1970 e 1980, que se opunham a fenômenos de mass-mediatização gerados pela rádio e pela televisão: neste contexto, a Internet testemunha uma verdadeira era “pós-mediática”, onde a palavra já não se encontra mais cristalizada nas mãos de autoridades e especialistas e ganha uma circularidade possível entre ―pessoas comuns‖. Não é desconsiderável a influência e a importância que o movimento das rádios livres e comunitárias tiveram na construção desse processo, e mesmo o quanto estes mesmos movimentos ganham novas possibilidades de renovação a partir da Internet.

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Destacas aqui tais linhas de discursividade não se dá no intuito de instaurar uma dicotomia, posto que tais movimentos encontram-se longe de qualquer oposição. Se é verdade que existem os que vêem na internet pura e simplesmente uma ―excelente oportunidade para lucrar‖ e figuras enfaticamente militantes habitando tal espaço pela possibilidade de empoderar grupos minoritários, tampouco são desconsideráveis os momentos em que ambas as linhas se reforçam, e constituem possibilidades uma para a outra. Mais importante do que os ―papéis‖ visivelmente encarnados são as linhas que esta ou aquela figura permitem passar, ou bloqueiam, no decorrer dos processos em que se encontram envolvidos. O que importa aqui é cartografar que fluxos e zonas de imobilidade encontram-se em jogo, pois seja sob a ênfase da ―liberdade de comércio‖ ou da ―liberdade de comunicação‖, a sustentação da Internet como equivalente de liberdade funciona como um a priori, um princípio regulatório que precisa ser problematizado, sob o risco de naturalizar e negar a historicidade e diversidade de processos coexistentes.

Ao final dos anos 90, uma nova transformação atravessa os sistemas de marcação envolvidos na navegação da Web. Inaugura-se o XML (Extensible Markup Language), que diferencia-se do HTML por uma série de questões: o programa volta-se inteiramente à organização de “dados” (ou conteúdo) das informações, de modo que as etiquetas/tags deixam de estruturar a expressão e tornam-se ―classificadores‖ de informação.

Dessa forma, os tags já não são mais ―comandos‖ únicos e pré-fabricados, mas adquirem uma independência onde as classificações podem ser elaboradas da forma que se julgar mais conveniente. A formalização da expressão deixa de ser interna ao próprio texto, e passa a se agenciar conjuntamente com outros programas. Os dados, puros conteúdos desterritorializados das matérias de expressão, viajam de uma forma muito mais leve, ao mesmo tempo que se tornam muito mais facilmente organizáveis.

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Novas experiências de publicidade surgem: conforme a participação ocorre, empresas rastreiam com maior facilidade a dinâmica de procura por determinados bens de consumo, criando uma ―oferta personalizada‖. “Pessoas que compram este CD também compram…”. A venda de muitos itens que individualmente vendem pouco traz mais retorno financeiro que as vendas de produtos que individualmente vendem muito.

Tal tecnologia acaba aprimorando e espalhando, nos websites espaços onde não apenas o ―dono‖ daquele domínio escreve textos, mas os próprios ―visitantes‖ dos websites. A partir disso, vão se construindo novas experiências de estar na internet: blogs acionam a possibilidade de determinados sites ―emprestarem‖ domínios para os visitantes que assim o desejarem, de modo que se responsabilizem pelos conteúdo que ali dentro serão administrados. A título de exemplo: é disponibilizado a qualquer internauta criar seu espaço no site www.blogspot.com criando um domínio tal como ―[qualquernome].blogspot.com”, responsabilizando-se totalmente pelos textos que serão ali administrados. Semelhante possibilidade será aberta, mais tarde, nos fotologs, cujo conteúdo trabalhado centra-se em imagens e fotografias.

Websites como os blogs, fotologs, youtube, e também o Orkut figuram com uma lógica que é diferente dos anos 1990: ao invés de se focarem sobre o conteúdo do que ali é veiculado, seu domínio é sobre a interface, a organização destes conteúdos ali dentro – de modo que os conteúdos são inteiramente produzidos por seus ―usuários‖. Alguns dão o nome de ―inteligência coletiva‖ a este processo: que um site torna-se muito mais interessante quanto menos seu autor pretender controlar o que se pensa e o que é dito, abrindo possibilidades a que cada vez mais pessoas digam o que pensam. Classificar as informações, entretanto, não se trata de uma atividade neutra que simplesmente ―dá voz‖ à inteligência de uma multidão – como se houvesse um grande ―sujeito coletivo‖ a priori, aguardando para ser descoberto – mas delimita uma

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série de pressupostos e condições dentro das quais estas vozes emergem como uma verdade supostamente ―espontânea‖ ou ―natural‖.

Em 2004, no website de relacionamentos Orkut, possibilita-se um novo tipo de agenciamento: são páginas conhecidas por perfis, onde texto e imagem configuram a visualização da ―identidade‖ do responsável por aquele domínio. O título dessa página é, supostamente, o próprio nome do usuário, que vai ao ar logo ao lado de uma fotografia 3x4 escolhida pelo mesmo. No centro da página, uma série de perguntas configuram o conteúdo escrito, girando em torno da questão: quem sou eu? A esta página principal, ícones linkam a: album de fotografias, página de recados, vídeos e fans.

Ian Buchanan (2008) aponta um processo de transformação da Internet entre a década de 1990 e os anos 2000: se na década de 90 a ênfase da internet funcionava em torno das conexões (estranhos com estranhos, amigos com amigos, etc), os anos 2000 aprimoram as tecnologias de ―rastreamento‖, transformando de forma decisiva boa parte do estar em rede.

Muito embora conectar pessoas – estranhos com estranhos, amigos com amigos – seja uma característica predominante do papel cultura da Internet, esta é predominantemente usada para procurar por objetos, em específico, mercadorias, e no caso da pornografia e das fofocas de celebridade se pode bem dizer que se procura por pessoas enquanto mercadorias. (Buchanan 2008, p. 13 – tradução livre)

É no sentido desta transição – entre um ciberespaço centrado nas conexões e um novo ciberespaço centrado na rastreabilidade – que o presente trabalho propõe-se a cartografar os perfis do Orkut, entendendo-os como um ―local‖ especial dentro dessa transição: trata-se de um dos primeiros espaços onde a ―face‖ de um usuário, seu nome e

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sua descrição sobre si mesmo, ganham autonomia em relação ao que eram os diálogos estabelecidos em anonimato e tempo real dos chats. Mas, para além de Buchanan (2008), considero menos interessante opor os mecanismos de ―conexão‖ e ―rastreabilidade‖, do que encontrar as linhas em que estes mecanismos se encontram – afrontando-se ou conjugando-se – na produção de subjetividades contemporâneas.

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Capítulo 2: Oráculos, Ciborgues e Corpos-sem-órgaos

(screenshot do perfil ―*Error* (person not found)‖, acessado no dia 3 de Março de 2010)

As máquinas de escrever não sabem o que dizem2. Ao contato do dedo em suas teclas, seus mecanismos colocam diferentes contornos de tinta ao encontro dos papéis, produzindo uma realidade sígnica distinta de seus mecanismos. Nem a tinta, nem o papel, nem os dedos da(o) escritor(a) lhe pertencem – mas a potência de colocá-los em encontro, em conexão, isso é o que lhes diz respeito propriamente. Sua existência não se confunde com a da tinta, do papel, dos dedos da datilógrafa, nem com as palavras que produz, mas encontra-se intimimamente ligada a todas elas num destino comum. Longe de

2 Sobre a externalidade das máquinas em relação ao que tomam por objeto, inspiro-me na

afirmação de Félix Guattari e Giles Deleuze (1996-e) acerca das ―máquinas de guerra‖, sustentando que estas não tomam a guerra por objeto a não ser quando apropriadas por aparelhos de estado.

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qualquer passividade, seu potencial enquanto máquina consiste em ―conectar‖ processos.

A relativa ―ignorância‖ das máquinas é freqüentemente narrada como um destino melancólico, análogo à história de velhos operários que executam há anos as mesmas tarefas sem jamais perguntarem-se do porquê. Mas o destino da máquina de escrever é outro, pois é raro que repita diariamente as mesmas letras – e quando o faz, isso se deve mais à burocracia das instituições que lhe capturam, do que à sua própria condição de máquina. Nas mãos de um(a) poeta ou de um(a) oficial do Estado, seu corpo (sem órgãos) dança forças motrizes distintas, desvela potências distintas, que em momento algum confundem-se com ―inércia‖.

Se a exterioridade das máquinas (sua não-apropriação) em relação ao que tomam por objeto confunde-se com ―inércia‖ ou ―impotência‖, é sobretudo necessário indagar em que medida e sob quais condições a dimensão da ―potência‖ confundiria-se com a do conhecimento. ―Saber o que se está falando‖ trata-se de um efeito bastante específico, onde o encontro entre diferentes esferas remete à apropriação ou domínio de uma sobre a outra – e neste sentido, entendemos que bocas humanas supõem saber mais do que máquinas acerca daquilo que dizem.

Diversas correntes de pensamento afirmam que a esfera do ―humano‖ é antes um construto e um efeito contingente a mecanismos de produção, a despeito de que o funcionamento destes muito freqüentemente lhes tome como um a priori essencialista. Rompendo efetivamente com o dualismo humano/maquínico, Guattari, Deleuze (1976) e Donna Haraway (1993) trabalham esta indistinção com o propósito de afirmar possibilidades de existência que se pautam pela conexão, pela afinidade entre heterogêneos, desafiando os aparelhos que pressupõem a naturalidade da apropriação e dominação como constitutivos do mundo.

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Esquizoanalistas (nos termos deleuzo-guattarianos) e ciborgues (figura suscitada por Donna Haraway) não sabem o que dizem. As peles abertas e porosas a um espaço háptico (Deleuze & Guattari, 1996-e), onde ondas de vento coexistem com as de rádio, suas bocas agarram as ferramentas que bem conseguem, desmontando e recompondo mecanismos com os quais sua própria sobrevivência encontra-se em jogo. Distantes dos sonhos de uma consciência liberta e esclarecida, suas resistências não são oposições ―de fora‖ ao espaço em que vivem, mas se entrelaçam com relações de poder que simultaneamente lhes oprimem e os constituem.

O binarismo ―natural X artificial‖, bem como o de ―natureza X cultura‖, trata de uma esfera de inteligibilidade amplamente problematizada por Judith Butler. Ainda quando adotadas no sentido de se opor aos significados ―culturalmente inscritos em torno de corpos sexuados‖, a autora sustenta que a pressuposição mesma de um “eu” anterior a ‗marcações culturais‘ carrega cumplicidades com os mesmos aparatos de poder que produzem estas marcas. ―A questão não é: que significados essa inscrição carrega dentro dela, mas que aparatos culturais arranjam este encontro entre instrumento e corpo, que intervenções nestas repetições ritualísticas são possíveis? (Butler, 1999, p. 199 – tradução livre).

Ao falar deste ―encontro entre‖, Butler sugere buscar uma zona híbrida, em que estas distinções encontram-se borradas, um ―entre-mundos‖ que não se confunde com um espaço de liberdade, mas é ele próprio produtivo dos binarismos e separações. ―Significações‖ e ―organismos‖ são estratos (Deleuze & Guattari, 1996-a) que remetem a um plano à parte de onde se desenrolam as conexões reais entre corpos, mas eles próprios encontram-se abertos, são atravessados e produzidos por máquinas abstratas – depositárias de processos que ora os solidificam, ora os dissolvem.

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No começo era o movimento.

Não havia repouso porque não havia paragem do movimento. O repouso era apenas uma imagem demasiado vasta daquilo que se movia, uma imagem infinitamente fatigada que afrouxava o movimento. Crescia-se para repousar, misturavam-se os mapas, reunia-se o espaço, unificava-se o tempo num presente que parecia estar em toda a parte, para sempre, ao mesmo tempo. Suspirava-se de alívio, pensava-se ter alcançado a imobilidade. Era possível enfim olhar a si própripio numa imagem apaziguadora de si e do mundo.

Era esquecer o movimento que continuava em silêncio no fundo dos corpos. Microscopicamente. Ora, como se passaria do movimento ao repouso se não houvesse já movimento no respouso? No começo não havia pois começo. (Gil, 2005, p. 14)

Cunhado a partir de um poema de Antonin Artaud, corpo-sem-órgãos talvez seja um dos conceitos mais caros a Félix Guattari e Giles Deleuze ao longo de duas de suas obras escritas a dois (―O Anti-édipo‖ e ―Mil Platôs‖). Uma imagem facilmente criada em torno deste conceito é que estejam tratando de um corpo ―fantasioso‖, imaginário, transcendente a qualquer materialidade – o que tornaria tentador afirmar, na presente pesquisa, que os perfis do Orkut seriam tipos de corpos-sem-órgãos. Mas, num movimento desconcertante, lançam logo de saída: trata-se de qualquer coisa, menos de um corpo imaginário ou uma representação. Ao contrário, tratam-se de forças absurda e assombrosamente reais.

Este conceito desafia uma determinada noção acerca do corpo, onde este estaria situado dicotomicamente entre dois mundos: por um lado, o corpo como aquilo que se imagina ou se fale que é dentro de

Referências

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