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UM SIMULACRO DE CONSTITUIÇÃO (UMA RESENHA SOBRE A OBRA A CONSTITUIÇÃO COMO SIMULACRO, DE LUIZ MOREIRA, PUBLICADA PELA EDITORA LUMEN JURIS EM

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UM SIMULACRO DE CONSTITUIÇÃO (UMA RESENHA SOBRE A

OBRA “A CONSTITUIÇÃO COMO SIMULACRO”, DE LUIZ

MOREIRA, PUBLICADA PELA EDITORA LUMEN JURIS EM 2007)

Resenha por: Julio Pinheiro Faro Universidade Federal do Espírito Santo - UFES

1. R

ESENHA

No Brasil, o quinto dia do décimo mês não é feriado. Deveria. Senão por uma questão de sentimento constitucional, ao menos em razão de uma cultura constitucional. Considerando-se como Considerando-sentimento constitucional a adesão consciente de um povo “às normas e instituições fundamentais de um país”, em virtude de haver um consenso de que elas “são boas e convenientes para a integração, manutenção e desenvolvimento de uma justa convivência1”.

Isto é, não apenas ter uma Constituição, mas ser em Constituição, saber-se implicado nela2, ou,

ainda, ter a consciência de ter participado na sua construção.

Esse sentimento não existe no Brasil. O povo, em diversos momentos históricos, não só em terras brasileiras, mas também em terras estrangeiras, “é e sempre foi um conceito de combate3”. O povo é um termo artificial, utilizado conforme a conveniência para legitimar

alguma coisa, sendo muito mais um argumento retórico do que uma realidade empírica. O povo serve, por exemplo, para conferir legitimidade ao poder constituinte, como se verifica no preâmbulo da Constituição brasileira de 1988: “nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembleia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático...”; e, também, como se observa no parágrafo único do art. 1º: “todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição”.

1 VERDÚ, Pablo Lucas. O sentimento constitucional: aproximação ao estudo do sentir constitucional como modo de integração política. Trad. Agassiz Almeida Filho. Rio de Janeiro: Forense, 2004, p. 75.

2 VERDÚ, Pablo Lucas. Obra citada, 2004, pp. 54-55.

3 MÜLLER, Friedrich. Quem é o povo? – A questão fundamental da democracia. Trad. Peter Naumann. 5. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p. 94.

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O argumento retórico é interessantíssimo. Reconhece-se que o poder emana do povo, mas só

depois de o poder já ter sido constituído. Não se trata de uma peculiaridade brasileira, já que

muitas, senão todas “as constituições modernas repousam sua pretensão à legitimidade em um ato fundador denominado ‘poder constituinte’4”. Note-se que esse poder nunca é

exercido pelo povo, e sim apenas se tem notícia de que em algum momento, quando ninguém sabe ao certo, o povo teria delegado esse poder a um corpo de representantes seus. De aí que, comumente, o poder constituinte seja exercido por uma assembleia ou por um congresso, “que realiza o desígnio de formular e promulgar os princípios que passarão a estruturar o sistema constitucional que terá preponderância sobre todo o sistema jurídico. Logo, sob a assembleia constituinte repousa o poder de prescrever as normas e ordenar as condutas5”. Eis o que Luiz Moreira quis dizer em sua obra, ora resenhada, com Constituição como simulacro.

Embora o termo constituição pudesse ter sido utilizado pelo autor com inicial minúscula, sua opção foi pela inicial maiúscula. Assim, há que se entender Constituição como aquele documento, ou conjunto de documentos, que estabelece as estruturas fundamentais de um Estado. E se simulacro significa aparência, imitação, a intenção do autor torna-se bastante clara: ele enxerga a Constituição como um documento meramente simbólico, uma Carta de engodos, que simula ser uma coisa que efetivamente não é. O exemplo utilizado pelo autor é claro: “simulacro é o ato de outorga que uma assembleia se dá a si mesma com o propósito de restringir, regular e prescrever os direitos atinentes à soberana manifestação dos sujeitos de direito6”. Não se esqueça que, no Brasil, apesar do que afirma o preâmbulo da Constituição,

não houve Assembleia Constituinte, mas Congresso Constituinte: o povo não constituiu ninguém para escrever a Constituição, todos já estavam constituídos, o poder constituinte constituiu-se a si mesmo.

E invocou o povo retoricamente: “a invocação do poder constituinte ‘do’ povo, a sua invocação mágica, sugere ilusoriamente o retorno a um estado social no qual houve, teria havido efetivamente, um ‘povo’7”. O povo passa, então, a ser um povo legitimante8, invocado

4 MOREIRA, Luiz. A constituição como simulacro. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 92. 5 MOREIRA, Luiz. Obra citada, 2007, p. 93.

6 MOREIRA, Luiz. Obra citada, 2007, pp. 93-94.

7 MÜLLER, Friedrich. Fragmento (sobre) o poder constituinte do povo. Trad. Peter Naumann. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 21.

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como um símbolo9 representativo e justificador de um Estado supostamente democrático de

direito. Tenta-se, assim, realizar uma transação osmótica de um sentimento constitucional a partir de uma Constituição que não contém tal sentimento para uma sociedade que não fez (e se faz, faz muito pouco) efetivamente parte do construir constante da Constituição.

Não há sentimento e também não há cultura constitucional. Esta também um ser em Constituição, uma forma de integração entre os cidadãos e o ordenamento jurídico, o que resulta na integração da comunidade nacional10. A cultura constitucional é um importante mecanismo

de consolidação dos interesses da sociedade e de seus grupos sociais. E isso ocorre, fundamentalmente, mediante o procedimento constituinte, um constante constituir, que se faz presente em processos de mutação, de interpretação, de modificação constitucional, podendo-se afirmar que “os preceitos constitucionais conectam-se com a consciência e o sentimento constitucionais da sociedade civil11”. Assim, não há nem sentimento nem cultura

constitucional, já que o povo não participa do processo de constante constituir de sua própria Constituição.

Então o feriado de cinco de outubro, nessa ordem de constatações, deveria existir por conta de toda a simbologia que representa uma Constituição enquanto simulacro. Apenas para manter as aparências, comemorando-se o aniversário da Constituição nacional para tentar infundir na sociedade um sentimento constitucional artificial. Um sentimento de que a Constituição não é apenas “um texto jurídico ou um conjunto de regras normativas, mas também expressão de um estado de desenvolvimento cultural, meio da auto-representação cultural de um povo, espelho da sua herança cultural e fundamento de novas esperanças12”. Um sentir

constitucional enquanto cultura, ainda que artificialmente existente, permite que a sociedade confie e adira à Constituição, tendo esta não só como divisor de águas, mas como documento fundamental, que deve ser cumprido e efetivado.

8 MÜLLER, Friedrich. Obra citada, 2010, p. 51. 9 MÜLLER, Friedrich. Obra citada, 2004, p. 21. 10 VERDÚ, Pablo Lucas. Obra citada, 2004, p. 111. 11 VERDÚ, Pablo Lucas. Obra citada, 2004, p. 126.

12 HÄBERLE, Peter. Constituição “a partir da cultua” e Constituição “enquanto cultura” – um projeto científico para o Brasil. In: PINHEIRO FARO, Julio; TEIXEIRA, Bruno Costa; MIGUEL, Paula Castello.

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E essa questão simbólica está muito presente no livro resenhado. Já na introdução Luiz Moreira escreve que “na esfera normativa prospera a recusa por uma compreensão da dimensão simbólica como algo que perpassa a civilização, uma postura que, no fundo, atribui à cultura uma nuança naturalista13”. Recusa esta que tem sua razão de ser no fato de que o simbolismo se encontra tão profundamente arraigado nas relações sociais, representando um

verdadeiro habitus, nos termos de Pierre Bourdieu, ou seja, “o modo como a sociedade se torna depositada nas pessoas sob a forma de disposições duráveis, ou capacidades treinadas e propensões estruturadas para pensar, sentir e agir de modos determinados14”. Habitua-se,

pois, na simbologia aquele que nela e dela vive, evitando compreendê-la, e sim tão-só praticando-a.

A Constituição como simulacro apresenta-se, então, como uma crítica ao processo de organização e de estruturação do Estado a partir da Constituição. O aparato jurídico, tão comum nas sociedades modernas, é um instrumento do monopólio estatal15 da imposição dessa

simbologia, que se encontra altamente carregada de exigências morais e jurídicas, em um movimento habitual que cada vez mais padroniza os modos de vida, impondo-se um sentir constitucional por meio de um arbitrário cultural constitucionalizante16. O Estado, ou melhor, os

donos do poder se colocam, assim, em evidência. Ora, ao fazer com que o povo assuma a titularidade de um poder constituinte originário, que é imaginário, o Estado se coloca como titular de um poder constituinte derivado, que é o que existe efetivamente. Poder derivado que, no fim das contas, está habilitado para emendar as escolhas do originário, para revisá-las, mudá-las e interpretá-las.

O Estado cria, assim, uma estrutura que tem como função efetivar e institucionalizar uma série de normas, inclusive e, ultimamente, principalmente de direitos fundamentais17.

Criam-se mecanismos institucionais, operados pela “burocracia estatal, profissional e especializada”, que tem como escopo tornar os direitos fundamentais “gênese e, ao mesmo tempo, propósito das políticas públicas18”. O ordenamento jurídico acaba sendo, então, o elemento

13 MOREIRA, Luiz. Obra citada, 2007, p. XI.

14 WACQUANT, Loïc. Notas para esclarecer a noção de habitus. Revista Brasileira de Sociologia da Emoção, vol. 6, n. 16, 2007, pp. 8-9.

15 MOREIRA, Luiz. Obra citada, 2007, p. 11. 16 MOREIRA, Luiz. Obra citada, 2007, p. 21. 17 MOREIRA, Luiz. Obra citada, 2007, p. 22. 18 MOREIRA, Luiz. Obra citada, 2007, p. 22.

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que vai justificar e permitir a atuação das instituições estatais. Um ordenamento criado pelo e para o Estado, com normas teoricamente adequadas, aptas a serem aplicadas19.

O direito é, portanto, um sistema, cheio de simbolismo, que procura, simbolicamente, estabilizar “a tensão entre fato e norma, garantindo assim segurança às relações jurídicas e evolução aos institutos20”. Substitui-se absolutismo pela soberania popular, como se o poder

supremo fosse efetivamente entregue ao povo, institucionalizando essa passagem por meio do direito codificado, ou seja, o Estado será traduzido em um “sistema jurídico organizado em torno da ideia de codificação, ou seja, o sistema jurídico terá o código como forma lógica21”.

Um código de normas, prescritivas porque estabelecem como as coisas devem ser e não como elas são22. Colhem-se fatos da vida e se lhes dão um código jurídico, juridicizando-os, seja por

meio de leis seja por meio de decisões judiciais. A simbologia é, pois, representada pela existência de códigos de conduta, institucionalizados como mecanismos de imposição de um arbitrário cultural, de um sentimento constitucional: a vida foi constitucionalizada, ou quem sabe, colonizada.

O Estado apropriou-se da simbologia eclesiástica e o direito se tornou o mecanismo de propagação dessa estrutura23. O controle se perfez na criação de códigos de conduta cujas

normas buscam impor aos indivíduos a maneira como eles devem se comportar24. Não

sendo a Constituição outra coisa senão um desses códigos visto, em muitos sistemas, como um código fundante, de modo que “a invocação da tutela constitucional garantiria a instauração do rito da passagem de uma esfera profana a uma esfera sacrossanta”, ficando tal sacralidade “ainda mais evidente na aura de intocabilidade, de ato fundador, de manancial que é conferida ao ato constituinte25”.

A Constituição, sob abordagem que mais se aproxima de uma visão da sociedade, não pode ser vista, em sua essência, senão como “a soma dos fatores reais do poder que regem uma

19 MOREIRA, Luiz. Obra citada, 2007, p. 38. 20 MOREIRA, Luiz. Obra citada, 2007, p. 47. 21 MOREIRA, Luiz. Obra citada, 2007, p. 52. 22 MOREIRA, Luiz. Obra citada, 2007, p. 56. 23 MOREIRA, Luiz. Obra citada, 2007, p. 74. 24 MOREIRA, Luiz. Obra citada, 2007, p. 79. 25 MOREIRA, Luiz. Obra citada, 2007, p. 80.

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nação26”, isto é, trata-se da “força ativa e eficaz que informa todas as leis e instituições

jurídicas vigentes, determinando que não possam ser, em substância, a não ser tal como elas são27”. As outras abordagens, normalmente indicadas – a política e a jurídica –, não podem

ser consideradas senão como representativas de uma visão do próprio Estado, e assim serão ou a decisão fundamental do Estado ou o ato fundante e constituinte da ordem jurídica. E, então, mais uma vez desenha-se com tinta indelével a Constituição como simulacro.

A Constituição como um código de conduta, composto por normas, escolhidas por um órgão, que afirma por si só sua própria legitimidade, e que “passarão a estruturar o sistema constitucional que terá preponderância sobre todo o sistema jurídico28”. O Estado cria,

assim, a partir do simulacro constitucional, embustes conceituais, elementos artificiais que lhe conferem legitimidade. Enfim, a Constituição como simulacro simula uma legitimidade. De maneira que se pode concluir, com o autor, que “a Constituição é uma grande conquista, mas não a última29”.

Julio Pinheiro Faro

Mestre em Direitos e Garantias Fundamentais pela Faculdade de Direito de Vitória (FDV); Diretor Secretário-Geral da Academia Brasileira de Direitos Humanos (ABDH); Professor de Introdução ao Estudo

do Direito, Direito Financeiro e Direito Tributário da Estácio de Sá (Vitória/ES); Professor-Coordenador do Grupo de Estudos em Políticas Públicas e Desigualdades

Sociais na FDV; Pesquisador vinculado ao Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu da FDV; Advogado e

Consultor Jurídico. E-mail: julio.pfhs@gmail.com

[Recebido em 22-10-2012] [Aprovado em 20-02-2013]

Artigo submetido a double blind peer review.

26 LASSALLE, Ferdinand. A essência da Constituição. Trad. Aurélio Wander Bastos. 9. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 20.

27 LASSALLE, Ferdinand. Obra citada, 2010, p. 12. 28 MOREIRA, Luiz. Obra citada, 2007, p. 93. 29 MOREIRA, Luiz. Obra citada, 2007, p. 105.

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