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SOBRE A LOUÇA, O LINHO E A REDE: processos contemporâneos de construção de valor entre artesãs de Alcântara (MA )

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Academic year: 2021

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Raquel Gomes Noronha

Sobre a louça, o linho e a rede:

proceSSoS contemporâneoS de conStrução de

valor entre arteSãS de alcântara (ma)

Resumo

Neste artigo, buscamos mapear e analisar os processos de atribuição de valor aos ar-tefatos produzidos artesanalmente por três povoados do município de Alcântara, MA. A louça, o linho e a rede – formas nativas de se nomear a produção cerâmica de Ita-matatiua, a tecelagem com a fibra do buriti em Santa Maria e a tecelagem das redes de dormir em Brito, respectivamente – fazem parte do sistema simbólico-cultural destes povoados, e além de uma forma de geração de renda, são também saberes e fazeres tra-dicionais ligados ao território étnico de Al-cântara, seja por meio dos recursos natu-rais utilizados para sua produção, seja pelas condições climáticas que regulam o tempo da produção artesanal. Trabalhamos com a hipótese de que o artesanato contemporâ-neo é nascido para circular e com isso está aberto a novas representações além das construídas a partir da sua produção – por-que as próprias condições atuais de produ-ção já foram construídas a partir de rela-ções de um mercado globalizado.

PalavRas chave

Valor. Artesanato. Consumo.

abstRact

In this article, we map and analyze the val-ue attribution processes of the handmade artifacts produced by three villages in the Alcântara municipality in the state of MA. The louça (tableware), the linho (linen) and the hammock – native ways of naming the ceramic production in Itamatatiua, the weaving with “buriti” fiber in Santa Maria and the weaving of the hammocks used for sleeping in Brito, respectively – are a part of the symbolic-cultural system in these villages. They are a way of generating in-come and are also traditional knowledge and practices linked to the ethnic territory of Alcântara, be it through natural resourc-es used for their own production or through the weather conditions that regulate the time of the handmade production. We work with the hypothesis that states that con-temporary handicraft is subject to circula-tion and with that it is open to new repre-sentations other than the ones created due to its production – because the actual cur-rent production conditions were created from an already globalized market.

KeywoRds

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1 Introdução

Neste artigo, buscamos mapear e anali-sar os processos de atribuição de valor aos artefatos produzidos artesanalmente por três povoados do município de Alcântara, MA. A louça, o linho e a rede – formas na-tivas de se nomear a produção cerâmica de Itamatatiua, a tecelagem com a fibra do bu-riti em Santa Maria e a tecelagem das re-des de dormir em Brito, respectivamente – fazem parte do sistema simbólico-cultural destes povoados, e além de uma forma de geração de renda, são também saberes e fa-zeres tradicionais ligados ao território étni-co de Alcântara, seja por meio dos recur-sos naturais utilizados para sua produção, seja pelas condições climáticas que regulam o tempo da produção artesanal.

Enquanto artefatos destinados à venda, poderíamos, a partir da teoria marxista, re-forçar o caráter do artesanato como merca-doria e a sua inserção na economia de mer-cado, igualando-o a qualquer artefato pro-duzido industrialmente para este fim. Neste percurso, as mercadorias são atreladas ao di-nheiro, ao mercado e ao valor de troca, liga-das à forma de circulação dinheiro-merca-doria-dinheiro, sendo esta uma das defini-ções da fórmula geral do Capitalismo. Nes-te sisNes-tema, a importância da mercadoria re-side na conversão de seus atributos funcio-nais em valor de troca e a sua equivalência em capital – a mensuração do seu valor em dinheiro. Em sua dialética, Marx nos propõe que a mercadoria se caracterize como tal em sua potencial permutabilidade, e que suas qualidades funcionais, estéticas e simbólicas unifiquem-se no valor de troca, fazendo da sua produção o lugar privilegiado da cons-trução deste valor.

Em nossa análise, buscamos observar o processo produtivo das comunidades

arte-sãs de Alcântara em um momento anterior ao da permutabilidade em si, abrangendo em nossa discussão as representações das artesãs e seu imaginário sobre o consumo de seus artefatos, suas memórias sobre as experiências de venda, e o papel dos agen-tes externos às comunidades em suas ca-deias produtivas. Pretendemos, na perspec-tiva que Arjun Appadurai (2008) nos apon-ta, avançar na discussão sobre o artesanato em sua sociabilidade.

Nosso esforço é pensar o artesanato não apenas como uma mercadoria, o que impli-ca aprisionar todas as tensões e produções de sentido sobre este artefato, produzido em condições específicas, e reduzi-lo ao fato de que são destinados à venda, negando todas as relações simbólicas estabelecidas no seu processo produtivo e no seu consumo. De fato, durante nossa pesquisa em Alcânta-ra, percebemos esta destinação ao mercado, mas também percebemos uma série de re-presentações das artesãs que se constroem para além do valor de troca – valores perce-bidos e construídos nas relações sociais que se estabelecem há décadas - ou mesmo sé-culos – que tornam estas produções artesa-nais fator fundamental para a reprodução social destas comunidades. Em uma propos-ta de análise social, ainda que a destinação destes artefatos seja a venda, propomos ir além do valor de troca, observando as estra-tégias de atribuição de valor das artesãs em seu imaginário sobre os seus produtos e so-bre quem os consomem e suas supostas mo-tivações e pulsões para o consumo.

Lançaremos mão dos estudos de Néstor García Canclini (1983) sobre o artesanato no México para entendermos melhor as rela-ções sociais estabelecidas nas instâncias da produção e do consumo destes artefatos; das reflexões de Appadurai para pensarmos sua trajetória, pensando os artefatos não como

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mercadorias, mas em seus contextos mercan-tis e suas histórias de vida. Segundo o au-tor, as coisas têm uma vida e podem tran-sitar dentro e fora do estado de mercadoria. Ao buscarmos identificar os valores atribuídos aos artefatos pelas artesãs, esta-mos trabalhando com um sistema de repre-sentações (HALL, 1997), construído a partir de uma abordagem discursiva. Nesta análi-se, a nossa própria intervenção na comuni-dade, como pesquisadora, integra este sis-tema, pois o que é representado pelas ar-tesãs nos incluirá, então serão representa-ções sobre representarepresenta-ções. Este sistema, as-sim como a atribuição de valores, se esta-belece em dois momentos. O primeiro, no ato da troca, com a presença dos produtos prontos, entre os diversos agentes envolvi-dos: as coisas em si, os integrantes da equi-pe de equi-pesquisa, as artesãs e suas represen-tações sobre os consumidores de seus arte-sanatos e os agentes que participam das su-as cadeisu-as produtivsu-as. O segundo momen-to é anterior à troca, que é a própria consti-tuição das representações das artesãs sobre o seu fazer e das suas relações com outros agentes envolvidos nas cadeias produtivas, que constituem o seu imaginário sobre os seus artefatos e as fazem produzir da forma como produzem, criando coisas a partir de seu referencial simbólico-cultural.

O sistema de representações, portanto, na definição de Stuart Hall, se constitui não por conceitos individuais, mas pelas dife-rentes formas de organizá-los, agrupá-los, arranjá-los e classificá-los, e pelas comple-xas formas de se estabelecer relações entre tais conceitos. Para o autor, representação é uma prática, uma espécie de trabalho, em que se utilizam objetos materiais e efeitos. Mas o significado não depende dos atribu-tos materiais do signo, mas da sua função simbólica. (HALL, 1997, p. 25).

Os sistemas de representações das ar-tesãs de Alcântara não são construídos de uma forma homogênea e endógena a cada povoado. A atribuição de valores ao arte-sanato está ligada a um imaginário sobre o seu consumo, construído a partir de uma sé-rie de categorias nativas e conceitos intro-duzidos por agentes externos, em relações nas quais os povoados nos quais os arte-sanatos são produzidos travam um emba-te, nos níveis discursivos e da práxis. São gestores e consultores de projetos do SE-BRAE, pesquisadores, designers, a vendedo-ra da loja de artesanato da sede Alcântavendedo-ra, os compradores que chegam aos povoados buscando os produtos, entre outros.

As disputas que se estabelecem entre o conhecimento técnico dos gestores e o co-nhecimento tradicional das artesãs refle-tem-se nos artefatos e na sua visualidade, nas suas características funcionais e esté-ticas, nas estratégias adotadas pelas arte-sãs para representarem o que produzem, e temos assim um artefato que não se traduz apenas em um uso, em sua equivalência em dinheiro ou nas relações de poder estabe-lecidas entre os agentes da cadeia produti-va, mas em um emaranhado de significados traduzidos em um sistema de representações de valores, de diversas naturezas.

Pensar as representações das artesãs so-bre o artesanato que produzem pela perspec-tiva foucaultiana implica reduzir as subje-tividades às formas discursivas, deixando--as serem construídas a partir de generaliza-ções, como o discurso das artesãs, o discurso das agências de gestão e fomento, o discur-so da pesquisadora, entre outros. As subjeti-vidades, frutos da inserção dos sujeitos em sua cultura, ficariam subjugadas às normas e leis do discurso, sujeitos às relações de po-der, que subjazem às práticas culturais. Na visão crítica de Hall, na abordagem

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foucaul-tiana da representação, os sujeitos até po-dem produzir textos particulares, mas estão sempre operando no limite da epistème, no regime da verdade, um sujeito que é sujeito do e ao discurso (HALL, 1997, p. 55).

Com isso, pretendemos ampliar a discus-são sobre o valor do artesanato, deslocan-do deslocan-do âmbito econômico e das relações de poder o foco da discussão, trazendo-a pa-ra o campo da construção das identidades. Entendendo a produção artesanal como for-ma cultural, podemos debruçar-nos sobre os processos simbólicos, além dos econômi-cos e de poder que se estabelecem durante a sociabilidade do artefato.

Um sistema de representações se es-tabelece a partir destes artefatos que, ao nosso olhar, já são produzidos para a di-áspora. A definição de representação que Hall nos oferece, como um processo pelo qual os membros de uma cultura usam a linguagem para produzir significado, nos traz a possibilidade de considerar que não há nada fixo, final ou que represente uma verdade. Trabalhamos com esta hipótese – que o artesanato contemporâneo é nasci-do para circular e com isso está aberto a novas representações além das construí-das a partir da sua produção – porque as próprias condições atuais de produção já foram construídas a partir de relações de um mercado que vai além das relações lo-cais. Não há garantias de que a produção de sentido será a mesma durante as rela-ções estabelecidas no trânsito deste arte-fato, que haverá um equivalente simbólico para representá-lo em outra cultura. Não queremos dizer que a inserção do artesa-nato no mercado é um fenômeno contem-porâneo, o artesanato de Alcântara sempre foi comercializado. O que mudou foi o uso atribuído ao artefato e a escala de comer-cialização, do âmbito local para o

nacio-nal, e até internacional. Nos aprofundare-mos nesta análise a seguir.

2 a produção para o trânsito

Sabemos que o que analisamos nos dis-cursos e práticas das artesãs é uma atribui-ção de sentido, dentre muitas possíveis. Na visão de Hall, “o significado depende da re-lação estabelecida entre as coisas no mun-do – pessoas, objetos e eventos, reais e fic-cionais – e o sistema conceitual, que pode operar como suas representações mentais.” (HALL, 1997, p.18). Para Canclini (1983), na contemporaneidade, o artesanato deixa de ser consumido pelo seu valor de uso, pela funcionalidade, pela utilidade que tinham originalmente para as comunidades pro-dutoras, e passam a ser consumidos como objetos de decoração, pelo seu significado simbólico. Nas palavras do autor,

[...] se a panela e o chapéu artesanais existem na moradia urbana, não é devido à sua uti-lidade mas por seu valor decorativo, não se espera deles que desempenhem um papel no espaço da prática doméstica mas sim no tem-po que atribui o sentido à vida pessoal e fa-miliar. (CANCLINI, 1983, p.107)

O que Canclini nos indica ter acontecido no México também pode ser observado en-tre os três grupos pesquisados em Alcânta-ra, porém em um estágio mais adintado no processo que o autor nomeia trânsito inter-cultural. Em Santa Maria, Brito e Itamata-tiua o artesanato, em geral, não é utiliza-do pelas comunidades produtoras, que rela-tam um processo de descontinuidade do uso dos artefatos e localizam o tempo do uso no passado. O que observamos é um processo acentuado de atribuição de valores simbó-licos ao artesanato produzido pelas próprias

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artesãs, e não somente por quem “tradicio-nalmente” os consome e ressemantiza a sua utilização, como os turistas, os decorado-res, os consumidores em geral. Hoje, quem mais usa os artefatos – no sentido stricto do termo – são seus consumidores, e não seus produtores. Sobre a questão da recepção do artesanato, segundo Ricardo Gomes de Li-ma, é importante nos determos em delinear o mercado, a tratá-lo de forma heterogênea, para entendermos os direcionamentos esté-tico-formais que as artesãs imprimem à sua produção. O encaminhamento dado pelo autor à questão aponta para uma submissão estética das artesãs às demandas do merca-do. Em suas palavras,

Devemos indagar justamente acerca desta questão: até que ponto direcionar uma pro-dução artesanal de cunho tradicional para atender a determinado segmento do merca-do não é submeter a estética da produção a uma estética particular de recepção, (...)? Até que ponto não estamos cerceando a estética primeira, da produção, ao submetê-la à es-tética da recepção, podando, assim, possibi-lidades de abertura de canais de criação de agentes sociais que dão forma aos objetos? (LIMA, 2010, p.29)

Ao que foi dito por Lima, acrescento que esta adequação ao mercado vai além de uma submissão estética da produção, mas refere--se a um processo mais amplo, de negocia-ção entre as artesãs e os agentes envolvidos em suas cadeias produtivas. A produção ar-tesanal é boa para pensar os processos de ressignificação identitários, que vão além dos discursos sobre autenticidade e pureza da cultura popular. Como nos aponta Hall, é no âmbito da cultura popular que se estabe-lece um território no qual as transformações sociais acontecem (HALL, 2009 p.232)

Em Itamatatiua, povoado remanescente de quilombos com cerca de duzentos anos de existência, a produção artesanal é con-siderada baixa atualmente, em comparação com outros períodos em que o uso da ce-râmica era uma prática entre a própria co-munidade e os povoados mais próximos. Itamatatiua era fornecedora de potes pa-ra Alcântapa-ra e outros municípios da Baixa-da Maranhense. Como a água não era enca-nada, havia necessidade do armazenamen-to da água retirada de poços nos grandes potes de cerâmica que eram produzidos em Itamatatiua, secularmente. Na fala da artesã observamos as mudanças desde a década de 1970, quando houve uma drástica diminui-ção nas vendas de potes:

Pesquisadora: O que vocês mais faziam nes-se tempo?

Artesã 1: A gente fazia mais era pote, né? Pesquisadora: Porque vocês faziam pote? Artesã 1: Porque pote era o que dava, né?! (...) Porque o pote, a gente viu que tinha mui-ta saída, né?! Porque a gente, era todo mun-do, levava pra tirar água. Depois, começou o plástico, e todo mundo só queria balde, era mais leve. A água encanada também... Aí caiu mais o pote. Aí a gente resolveu fazer travessa, panela, copo...

Artesã 2: (...) Assim era. Ele [o comprador/ atravessador] garrava, comprava tudinho, pagava e comprava tudinho, eu criei meus fi-lhos foi só com isso aqui: louça... Vendia praí tudo, pra Bequimão, pra Pinheiro... O pote saía era quente [do forno] pro carro...

Nos dias atuais, o pote, um vaso com grandes dimensões, chegando a ter 80 cm de altura, não é mais utilizado pelos com-pradores para o armazenamento de água, mas para a decoração de jardins, em pro-jetos de decoração. A substituição do

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po-te pelo balde de plástico pode ser observa-da na própria sede observa-da Associação de artesãs, na qual se utiliza o utensílio industrializado para armazenar o barro amassado.

Em um momento de conversa informal com as artesãs, elas nos contavam sobre a pousada de Itamatatiua, que estava fechada há alguns anos e agora a “Associação” esta-va “tomando de conta”, por uma decisão da própria comunidade. Durante a conversa, elas demonstravam uma profunda preocu-pação com os custos para renovar o enxo-val da pousada, e nos chamou a atenção a decisão de comprar as louças “brancas” pa-ra a pousada, por uma questão de status que a louça industrializada representa peran-te a louça de barro. Perguntamos por que não faziam de barro, já que esta é uma das encomendas mais corriqueiras que elas re-cebem (fazer aparelhos de jantar para pou-sadas e restaurantes), e elas se mostraram surpresas e desconcertadas com a proposta. Com este fato, iniciamos uma conversa so-bre a utilização do artesanato pela comuni-dade, passando pela questão do gosto pes-soal e às suas representações sobre a desti-nação do produto artesanal:

Pesquisadora: Você usa em casa as coisas que faz?

Artesã: Não... Não dizem que em casa de fer-reiro usa espeto de pau? Não tem esse dizer? Não uso nadinha... Nem pra enfeitar. Pra não dizer que não tenho nada, eu tenho uma fa-rinheira...

Pesquisadora: Mas por que não usa?

Artesã: É por que assim, quando a gente fa-la que vai fazer um conjunto lá pra casa, aí chega outra pessoa e compra, aí todo tempo faz, faz... Faz mas vende. Mas eu gosto... Eu tinha uma tigela que eu comia... Mas no tem-po dos meus pais que trabalhavam em roça, eles usavam só coisa de barro, era fogareiro

de barro, caldeirão de barro pra fazer arroz, era tudo... Aí tinha prato de barro, esse copo de barro, tigela de barro que a gente levava pra roça. E aí agora que ninguém quer, nin-guém usa... Só usam agora coisas de louça... Tem que comprar... É por isso que as coisas tão caras. A gente sabe fazer as coisas, né? Mas vai comprar na loja...

Com este depoimento, propomos uma reflexão sobre o artesanato como um índi-ce de outro tempo na comunidade na qual é produzido. Ao falarem do valor de uso dos produtos artesanais, as artesãs se remetem a um tempo passado. Hoje, o que valorizam é a louça comprada na loja, e chegam a achar graça quando percebem que um comprador pretende utilizar de fato o produto, como no caso das bilhas, travessas, ou panelas, e não como enfeite, objeto de decoração.

É importante ressaltarmos a presença desta categoria enfeite, como algo desloca-do desloca-do funcional, como nos apontou Cancli-ni, no início deste item. Quando a artesã re-conhece uma segunda atribuição do artesa-nato, a de enfeite, ela assume pelo menos duas dimensões de valor de seu artesanato, uma que é a funcional e utilitária – o uso – e a segunda referenciada em um aspecto emocional – o decorativo, o belo. Quando perguntamos se ela acha bonito o que pro-duz, reponde que sim, mas que a prioridade do artesanato é a venda. O que observamos aqui é um deslocamento do lugar de enun-ciação da artesã, que nesta conversa passa da condição de produtora para a de consu-midora, mas rapidamente retoma à primeira posição, quando percebe a possibilidade de vender o seu produto que sai do seu estado de contemplação na casa da artesã rumo a seu contexto mercantil.

Um dos aspectos identitários do artesa-nato de Alcântara pauta-se nesse

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movimen-to de ressemantização da categoria marxis-ta de uso, que congela o signo uso nos as-pectos funcionais e utilitaristas do artefato e na sua conversão em mercadoria. No cesso de atribuição de valores que nos pro-pomos desconstruir, o uso é múltiplo e não se encerra nos aspectos funcionais. Os usos são negociados a partir da encomenda, mes-mo que haja um portfólio definido pelas ar-tesãs, ou peças prontas para serem adquiri-das na loja. O uso – ou parafraseando Appa-durai – “o destino da coisa” se estabelece na relação entre produtores e consumidores, no deslocamento do artefato e no seu trânsito intercultural, nas múltiplas representações que se cruzam na sua vida social.

Em Santa Maria, comunidade que se esta-beleceu no início do século XX em Alcânta-ra, e que teve o artesanato da fibra de Buriti introduzido por migrantes de outros povoa-dos na década de 1970, há uma produção ar-tesanal bastante estruturada e direcionada ao mercado e ao turismo, em comparação com os outros povoados. As artesãs possuem uma pasta com a ficha técnica de cada produto, bastante detalhada com formato, esquema de uso de cores, tabela de precificação, construí-da com a consultoria do SEBRAE.

As artesãs desenvolvem produtos além dos solicitados nas encomendas e

mensal-mente enviam para a loja de artesanato na sede do município de Alcântara. Utiliza-se de utensílios de medição como réguas e tre-nas, além de contarem os fios botados1 nos

teares para que as peças tenham um padrão de formato, saiam na metragem2, com

sime-tria na utilização de cores. Recebem feedba-ck da vendedora da loja quanto aos comen-tários dos clientes, sobre o que mais agra-da, as críticas (raras, segundo elas) sobre o acabamento dos produtos, dicas das cores que são mais procuradas e realimentam a sua produção a partir destas referências. Já receberam encomendas maiores, de empre-sas como a Natura, e fazem parte da rede de parcerias do Instituto Meio, que intermedeia contratos de comunidades artesãs com em-presas interessadas em adquirir e comercia-lizar produtos da sociobiodiversidade3,

enfa-tizando a responsabilidade social e ambien-tal. Representam o “artesanato maranhen-se” em diversas feiras de Turismo em todo o Brasil sempre convidadas pelo SEBRAE.

Durante o período que passamos no po-voado e visitamos as casas das artesãs, ob-servando os momentos de trabalho para identificarmos as etapas de sua cadeia pro-dutiva, um fato nos chamou a atenção: al-gumas artesãs declararam ter vergonha de usar os seus produtos. Observemos a fala:

1. Botar significa o processo de colocar os fios no tear, e é uma etapa comum às cadeias produtivas de

Santa Maria e Brito.

2. Categoria nativa para designar as peças feitas em série que obedecem à um padrão de medida, solicita-do pelo cliente.

3. Designação adotada pelo Ministério do Desenvolvimento Agrário para classificar os produtos com iden-tidade cultural local. Lia Krucken (2009) nomeia tais produtos como terroir. “Podemos traduzir a catego-ria terroir como produto com identidade local, mas manteremos o uso da forma francesa, pela própcatego-ria identidade com a categoria território e a conotação simbólica nela contida, assumindo assim uma dimen-são mais ampla, contemplando os aspectos sociais, as relações com a biodiversidade do território, e as di-mensões culturais, relacionadas aos saberes e fazeres tradicionais, constituindo-se como um patrimônio (KRUCKEN, 2009 apud NORONHA, 2011, p.121)”.

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Artesã 1: Quando a gente vai à Alcântara [na sede do município] a gente vê aquelas mu-lheres, todas chiques, né, aí elas bota uma sacola de linho, chega, sai “toda, toda”... Aí nós fica só olhando... Pra gente usar? A gen-te gen-tem até vergonha...

Pesquisadora: Mas por que tem vergonha? Artesã 1: Sei lá, acho que é porque a gente é acostumado com elas... Eu acho, porque ve-jo assim as artesãs, eu acho difícil ver uma que tem uma sacola... Mas uma sacola dessa eu duvido que ela [uma artesã] agarre assim, igual que a gente vê lá em Alcântara, as mu-lheres chegam vão que vão...

Artesã 2: Eu acho. E as pessoas dão muito mais valor, né. Quem compra.

Artesã 1: E não é isso que eu tô dizendo? Eu acho que sim, porque a gente só produz as-sim porque sabe que essa é a renda da gen-te, sabe? Mas geralmente quando a gente vê o trabalho dos outro assim, a gente tem uma vontade, e a gente não, acho que a gente já se acostumou, só bater e mandar pra loja pra vender, mas não tem aquela vontade, de querer né, pra ter pra gente.

Uma forma de falarem sobre a não uti-lização do artesanato é atribuir a sua desti-nação à loja, à venda para o outro. Ao asso-ciarem a produção do artesanato à geração de renda, dão ênfase ao valor econômico e ao potencial de mercadoria do artesanato. Observamos que a artesã reconhece que “as pessoas dão muito mais valor”, quando se referem a um valor que é simbólico, mate-rializado na auto-estima, por ser “chique”, status alcançado pelo uso de um produto artesanal, feito manualmente, atributos ex-tremamente valorizados e ressemantizados com o uso contemporâneo do artesanato.

Parece incompatível a possibilidade de uso das sacolas para as artesãs, chegam a dizer que acham feio e se surpreendem ao

perceberem a utilização de seus produ-tos pelas “turistas”. Uma artesã nos conta uma passagem em que foi confundida por uma pessoa de Alcântara com uma “turis-ta” quando ia para São Luís, no ferryboat, pois utilizava uma sacola de linho. Enquan-to consumidoras, a partir deste lugar de fa-la, não atribuem utilidade ou qualquer tipo de valor simbólico ou emocional positivos. Este comportamento revela um etnocentris-mo, pois evidencia o fato de não conside-rarem o que produzem como algo digno de

provocar desejo, e consequentemente ser

um signo que se converta em dinheiro em um contexto mercantil. Acham curioso que alguém de fora, uma turista, se sinta bem, “toda, toda”, ao utilizarem os seus produtos. O fato de sentirem vergonha de usar o seu produto aproxima-se da necessidade per-cebida em Itamatatiua de utilizarem louças brancas na pousada. Não representam seus produtos a partir de valores emocionais po-sitivos. Demonstram surpresa em perceber que o sistema de representação que constro-em sobre o seu produto encontra-se constro-em di-reções opostas ou ao menos conflitante com os dos outros.

Durante a pesquisa em Alcântara, obser-vamos que a funcionalidade que estes arte-fatos supostamente teriam na vida cotidia-na das comunidades já fora há muito tempo perdida, ou substituída por utensílios indus-trializados. A produção artesanal contem-porânea de Alcântara é uma produção para o outro (NORONHA, 2011), cercada por cui-dados estéticos, como uso de cores, acaba-mento e formato, direcionados para o con-sumidor, por meio da encomenda.

O valor de uso do artesanato de Alcân-tara não é convertido em valor de troca na instância da sua permutabilidade, mas o ar-tesanato aqui já nasce para a troca. O seu uso é traçado no seu projeto, antes de

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exis-tir propriamente. A sua “vida social”, a sua trajetória, é muitas vezes definida na nego-ciação entre as artesãs e os designers que “criam” novos produtos ou “qualificam” produtos criados por elas; entre as artesãs e os gestores que analisam tendências de moda e de mercado para “direcionarem” a produção; entre as artesãs e os comprado-res que definem conjuntamente uma enco-menda, ou mesmo pelos compradores que já chegam com o produto definido, apenas pa-ra as artesãs executarem.

Sobre a atividade projetual das artesãs, encontramos importantes reflexões nas pes-quisas de Paulo Keller, sobre as cadeias pro-dutivas do artesanato em fibra de buriti em Barrerinhas e Tutóia (MA). Nas palavras do pesquisador,

O trabalho do artesão não se define apenas pelo uso das mãos ou um simples trabalho manual e sim envolve a capacidade de pro-jetar e criar objetos a partir de elementos da cultura e o domínio ou arte do saber fazer aquele artefato em particular. O fazer artesa-nal envolve assim um processo produtivo e criativo. (KELLER, 2011, s/p)

Esta visão corrobora o papel ativo das artesãs, mesmo em condições de extrema negociação em que muitas vezes às artesãs são submetidas. É de extrema importância a discussão sobre o papel do designer nestes processos. Há estudos mais aprofundados sobre este assunto em Borges (2011), Keller (2011), Lima (2010) e Noronha (2012).

Podemos dizer, amparados por Hall, Canclini e Appadurai, que a produção arte-sanal que analisamos já nasce na diáspora, em trânsito. Deslocado de uma função es-pecífica, este artefato nasce, vive e transi-ta a partir de uma série de relações sociais que se estabelecem a partir de sua

existên-cia – conceitual e material – e dos papéis que exercem nas sociedades contemporâne-as, como o da sua materialidade reguladora de tempo e espaço.

O artesanato enquanto uma categoria definida por determinados parâmetros co-mo a destinação ao uso pelas comunidades produtoras, a reprodução de um saber e um fazer tradicionais parece-nos, hoje, um sig-nificante deslocado de seus significados, já ressemantizados e mais livres de uma ori-gem e de uma função específica. Pensar o artesanato em diáspora nos permite am-pliar uma concepção mais tradicional de sua identidade, e mapeá-la a partir de refe-renciais múltiplos, fora de uma tradição es-pecífica e em diversos processos de tradu-ção cultural.

3 Para além do uso:

ressignificando a necessidade

No capítulo Trocar, do livro as Palavras e as coisas, Michel Foucault discorre sobre a formação do valor e evidencia a capacidade das coisas serem substituídas – representa-das – por outras perante a iminência da tro-ca. Dizer que uma coisa vale algo, significa que pode ser substituída por outra coisa no ato da troca. O autor nos aponta a possibi-lidade de que o valor de alguma coisa não se estabeleça apenas no ato da troca, mas é anterior a ela; é necessário que as coisas existam já carregadas de valor. Afirma ain-da que o valor só existe no interior ain-da re-presentação, na atribuição de sentido, que é construído na troca e na permutabilidade (FOUCAULT, 1999, p.263). O aparente pa-radoxo que se cria nos é interessante para deslocarmos a nossa análise do uso do arte-sanato como uma necessidade a priori para que sua produção se desencadeie e nos dei-xa atentos a outras formas de valor que

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po-dem ser evocadas e atribuídas ao artesana-to antes da troca em si, em um estágio que Foucault designa como “a raiz, o primeiro grito que dera nascimento às palavras an-tes mesmo que a linguagem tivesse nasci-do” (op.cit, p.264).

Em sua análise, Foucault recorre à for-mação dos discursos para pensar o que sub-jaz ao sujeito na atribuição de valor, am-pliando o conceito de necessidade, incluin-do-se a precisão, a utilidade, o gosto e o prazer. O desejar algo se assemelha à lin-guagem, um sistema de representações, que é construído a partir de referenciais que não são apenas individuais, mas construídos a partir das sobreposições e acúmulos, desig-nações e julgamentos dos agentes envolvi-dos na sua construção.

O que tem valor é definido por Foucault como aquilo que satisfaz a uma necessida-de, e sabemos que esta necessidanecessida-de, na vi-são do autor, é constituída a partir de dis-cursos sobre a necessidade, obedecendo às regras e às leis nas quais foram constituí-dos. O valor do artesanato se constrói a par-tir das relações que se estabelecem entre os agentes e a capacidade dos artefatos de abrigarem na sua materialidade uma série de significados – os artefatos têm significa-dos e produzem representações.

O autor nos aponta que a capacidade de algo valer alguma coisa consiste na sua substituição por determinado signo que te-nha um significado para determinado gru-po, como exemplifica com a moeda: um pe-daço de metal, que é precioso porque tem um preço, e este preço varia durante os sé-culos, podendo valer o que pesa em termos de metal precioso – uma visão do signifi-cante – e o que vale além do próprio peso, uma representação de um signo real – uma visão que além de considerar o significante, o metal precioso, incorpora um elemento de

significação que transcende o aspecto eco-nômico e se amplia rumo aos significados simbólicos, compartilhados culturalmente.

Propomos pensar a construção do valor do artesanato como um sistema de repre-sentações, cujas representações envolvidas vão além das relações de poder que consti-tuem os discursos, perpassando as identida-des e as subjetividaidentida-des dos agentes que par-ticipam do processo e, como Hall nos apon-ta, são constituídas por elementos fragmen-tados, hibridizados, descolados de uma rela-ção estável de tempo e espaço. Assim, pen-samos o valor como uma categoria constru-ída culturalmente, e não apenas no âmbito da economia ou de uma forma de poder.

O desejo pelo artesanato contemporâ-neo pode ser imaginado a partir da exacer-bação do apego ao local, à raiz, no âmbi-to da “pós-modernidade global”, nas pala-vras de Hall. O autor nos aponta que, ain-da que o liberalismo e o marxismo, em suas diferentes críticas, apontavam para um de-senraizamento das identidades em busca de um ideal de universalidade e valores mais cosmopolitas e universais, o que acontece é um revival do “local” a partir da circulação das pessoas e, no nosso caso, dos artefatos também – identidades extremamente liga-das à sua origem, mais sem a pretensão de retornar a ela, em um irrevogável processo de tradução (HALL, 2001).

Olhando as identidades pela perspectiva de Hall, podemos pensar o consumo do arte-sanato e o artearte-sanato em si, em sua sociabi-lidade, para além dos processos de valoração considerados por Foucault e Marx. O primei-ro, ao considerar a atribuição de valor como relações assimétricas de poder enfraquece o papel dos sujeitos como agentes e a possibi-lidade de negociações – o papel da identida-de – como pontos identida-de iidentida-dentificação e identida-de sutu-ra, impedindo que os vestígios da diferença

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sejam identificados, ficando sempre camu-flados pelas instâncias discursivas.

O segundo, aqui já atualizado por nos-sas leituras de Hall e Canclini, ao assumir a constituição do valor de troca na instân-cia da permutabilidade e não da produção, não considera o projeto da mercadoria que antecede à sua produção. Em sua aborda-gem materialista, a partir da infraestru-tura, fica difícil conceber uma existência conceitual de um artefato. É no seu pro-cesso de formalização que os valores vão sendo atribuídos. Os valores simbólicos existiam sim – fetichizando a mercadoria – na constituição do valor de troca, na en-trada da mercadoria na sua vida mercantil, como observa Appadurai.

Em um breve percurso a seguir, propo-mos observar que além dos valores atribuí-dos ao artefato na instância da permutabi-lidade, no contato com o outro, havia valo-res sendo atribuídos a priori, antes mesmo da existência material do artefato, inaugu-rando a etapa de projeto dos artefatos. Es-te processo é fruto das grandes transforma-ções ocorridas no século XX, com as espe-cializações no campo da produção. A inser-ção do designer nas cadeias produtivas do artesanato tem um grande impacto na cons-trução do valor, mas este é um assunto so-bre o qual não nos debruçaremos aqui.

Com a manutenção das estruturas de classe do capitalismo, a Escola de Frankfurt lança seu olhar à superestrutura, criticando as novas relações estabelecidas com o triun-fo da burguesia, a partir da atualização dos modos de produção. Sobre a atribuição de valor aos artefatos, em suas reflexões so-bre a obra de arte na era da reprodutibilida-de técnica, Walter Benjamin (1994) tem um importante papel em nossa discussão, pois analisa o processo de reprodução e aliena-ção da obra de arte, que deixa de ter uma

existência única, uma “quintessência trans-mitida pela tradição” e pela propriedade, para lançar-se à exposição perante a massa.

Na reflexão do autor, a arte emancipa-se do ritual, das referências espaciais e temrais, para fundar-se em outra práxis, a po-lítica. O valor de culto é paulatinamente substituído pelo valor de exposição – a obra de arte passa a ter uma conotação política, as audiências passam a ser orientadas sobre o que pode e deve ser visto a partir de um recorte, a partir de uma edição. Mais especi-ficamente falando sobre as grandes narrati-vas modernas, da qual faz da produção ar-tesanal uma metáfora, o autor critica a su-pressão do tempo, tão fundamental ao pro-cesso de acúmulo e releitura da tradição, das diversas camadas de saberes que são adicionadas para a sua construção. No pro-cesso de globalização, que Hall nos descre-ve, observamos uma tentativa de recompor certos fragmentos desta tradição, não na tentativa de recompô-los em sua totalida-de, mas de “editá-los”, como Benjamim pre-viu anteriormente, fazendo deste pastiche uma das possíveis versões para a constitui-ção dos seus valores, considerando o artesa-nato em sua sociabilidade.

Ao longo do século XX observamos as transformações dos processos produtivos, e as especializações de papeis sociais na pro-dução de artefatos. Já na década de 1950, quando C. Wright Mills assistiu, assombra-do, ao papel do designer na sociedade nor-te-americana, e teceu uma série de conside-rações diferenciando o trabalho deste pro-fissional e do artesão, buscava, com isso, estabelecer limites entre a produção com destino ao mercado capitalista, e uma pro-dução cuja principal característica era a não-existência de um “motivo ulterior para o trabalho além do produto que está sendo feito e o processo de sua criação” (MILLS,

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2009, p.76). Como Canclini observou no fi-nal da década de 1970 no México, e nós, em Alcântara em 2010, este traço considerado um diacrítico por Mills hoje já não distingue uma e outra forma de produção.

Este processo histórico ao qual nos de-tivemos muito rapidamente, e requer fu-turos aprofundamentos, é importante para justificar nossa opção teórico-metodológi-ca de considerar o artesanato em diáspora, em uma tentativa de pontuar momentos de ruptura da vida social dos artefatos, mos-trando o processo de descentramento dos seus “usos originais” e do deslocamento do processo de atribuição de valor na instância da permutabilidade, ampliando nossa análi-se para o momento anterior ao da troca, re-forçando a hipótese inicial que os artefatos nas comunidades de Alcântara já “nascem” em trânsito.

4 o artesanato de alcântara na Pós-modernidade

Pensar o processo de circulação de arte-fatos artesanais na contemporaneidade im-plica que definamos o que entendemos por pós-modernidade. Quando propomos pen-sar o artesanato como um sujeito da diás-pora, em uma aproximação do artefato com um sujeito pós-moderno, estamos conside-rando que este artefato seja também um su-jeito construído a partir de novas relações de sociabilidade e de identidade construí-da sobre muitos referenciais, deslocamen-tos entre tempo e espaço, como foi possível observar no percurso do artefato durante o século XX.

As novas relações que se estabelece-ram na produção e no consumo do artesa-nato proporcionam novas relações e, con-sequentemente, representações sobre o seu papel social. O uso e o não-uso pelas

arte-sãs, o pote que serve para armazenar água ou serve de enfeite, são representações que se constroem a partir das relações estabe-lecidas entre produtores, consumidores e o próprio artefato. Neste item, propomos, a partir de características da própria pós-mo-dernidade, nas definições de Hall, observar e analisar as subjetividades das artesãs em relação aos artefatos que produzem.

Entre as artesãs de Alcântara é possí-vel identificar uma série de representações que qualificam a necessidade da utilização de seus produtos, o que a produção arte-sanal representa na vida comunitária, e as referências às diversas dimensões de valo-res que são atribuídos à produção artesanal. O conjunto de representações das artesãs quando são organizados, hierarquizados e analisados de determinada forma – a forma a qual nós nos propomos a classificar – é o que transforma este conjunto de representa-ções em um sistema de representarepresenta-ções, con-forme a definição de Hall. Na análise é pre-ciso que tomemos as nossas próprias repre-sentações como parte deste sistema, já que estas representações (nossas e das artesãs) foram construídas a partir da nossa relação.

A primeira ressalva que faço, sobre o “eu” que escreve, é o fato que nos possibilita pensar o artefato como um sujeito de uma forma quase que naturalizada: ser designer. Essa posição nos possibilita pensar o arte-fato em sua forma conceitual, antes de sua existência formal. Parece-nos familiar con-siderar o processo da matéria à forma co-mo uma realização conceitual de um plano, um projeto, preexistente ao artefato em si. É possível acionar a qualquer momento um ponto da sua cadeia produtiva a fim de en-tender os processos de atribuição de valor operados pelas artesãs. Metodologicamen-te esMetodologicamen-te fato é importanMetodologicamen-te porque possibili-ta a decomposição do artefato em seus

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múl-tiplos valores, e assim, como Hall nos pro-põe que seja o sujeito pós-moderno – “con-ceptualizado como não tendo uma identi-dade fixa, essencial ou permanente” (HALL, 2001. p.12) – a identidade do artesanato é também “uma ‘celebração móvel’: formada e transformada continuamente em relação às formas pelos quais somos representados ou interpelados nos sistemas culturais que nos rodeiam” (op. cit).

Nesta abordagem subjetiva, propomos pensar o artesanato como sujeito, constituí-do identitariamente na pós-modernidade. A partir da fragmentação das representações sobre o artesanato, deslocando-o do aspec-to moderno e tradicional do uso e da tro-ca, propomos uma abordagem mais ampla da categoria valor. Lia Krucken nos ofere-ce uma metodologia para análise de

produ-tos terroir, com a estrutura analítica da Es-trela de valor (KRUCKEN, 2009, p. 28). Con-siderando os objetivos deste artigo, limita-dos por prazos e formato, e não desconside-rando a imensa possibilidade de classifica-ção e hierarquizaclassifica-ção das representações das artesãs sobre os valores atribuídos aos arte-fatos, optamos pelo uso da Estrela de valor como uma estratégia conveniente de análi-se, porque engloba as principais dimensões que pudemos identificar durante a pesqui-sa. Outras nomenclaturas e possibilidades de classificação são possíveis, mas por hora, nos restringiremos a estas.

Posicionamos diversas frases das artesãs entre as seis categorias de valor enumeradas pela autora, que além do valor econômico, inclui o ambiental, o funcional, o emocional, o simbólico-cultural e o social (figura 1):

Figura 1

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Podemos observar que as representa-ções das artesãs sobre alguns aspectos de sua produção artesanal localizam-se em diversas esferas do valor, que vão além do valor de uso e valor de troca. Assumimos o valor como categoria que extrapola o âm-bito econômico e do poder, e se espraia para diversas instâncias das vidas dos in-divíduos, assim como o conceito de neces-sidade, que extrapola a precisão e a utili-dade dos artefatos e chega aos limiares do desejo, do gosto e do prazer.

Ao definirmos as frases, em meio a muitas páginas de transcrições de entre-vistas e anotações de diário de campo, pa-ra exemplificar nossa proposta de aná-lise do valor, estamos evidenciando nos-so lugar de fala enquanto pesquisadores e, portanto, apresentando uma seleção que é fruto de um objetivo específico e um re-corte que reflete as nossas concepções so-bre cada uma destas dimensões de valores, uma edição, um recorte específico de tu-do que foi pesquisatu-do. Assim, somos nós mesmos agentes e sujeitos de nossa pró-pria análise, que reflete as nossas repre-sentações sobre o que estamos propondo para a discussão.

Desta forma, continuaremos nossa análise pela explicação do que entende-mos sobre cada uma das dimensões de va-lor propostas por Krucken, e como e por-que alocamos estas frases nas esferas de valor propostas na classificação, eviden-ciando os contextos de produção de sen-tido das frases. Lançaremos mão de fatos e conversas que durante a pesquisa de cam-po nos cam-possibilitaram escolher estas frases e não outras, para constituirmos o que es-tamos chamando de identidade do artesa-nato na pós-modernidade.

4.1 o valor ambiental como a representação do natural

Falar dos aspectos ambientais quando tratamos de produtos terroir, significa ir ao cerne da sua definição: produto ligado ao território. O valor ambiental é aludido pelas artesãs a partir do material que utilizam, e a forma de tratamento à que são submetidos. Surgem principalmente em Santa Maria on-de o artesanato tem uma ligação direta com o meio ambiente, cuja matéria-prima do ar-tesanato provém da palmeira do buriti. Es-tamos também realçando uma importante questão tratada por Hall, sobre as identida-des culturais na pós-modernidade, que é o processo de tradução.

Em nossas conversas sobre as encomen-das do artesanato, o valor ambiental surge na forma da busca pelo produto com tingi-mento natural, proveniente da utilização de corantes como o açafrão (amarelo), o uru-cum (laranja), o salsão (verde), o mangue e a cinza (marrom). O uso do corante natural é muito procurado pelos consumidores por meio do apelo da responsabilidade ambien-tal. Ao comprarem um produto como as sa-colas ou jogos americanos de Santa Maria, além do apelo da responsabilidade social, compram-se a aproximação da natureza por intermédio dos corantes naturais. Sobre este tema, observemos a conversa:

Pesquisadora: O que vocês acham que é dife-rente no artesanato de vocês?

Artesã: É o colorido e o linho... A gente tra-balha com o linho e elas [de Barreirinhas] trabalham com a borra...

Pesquisadora: Então, da onde que surgiu a ideia de colorir?

Artesã: É porque como a gente tem a meni-na que trabalha meni-na loja, ela vê o que o turis-ta diz, aí o pessoal do SEBRAE pesquisam na

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internet também, por que a gente ainda não tem acesso à internet. Aí pesquisa: olha, esse ano o forte é o colorido, é o forte é o bem ver-melho... Aí a gente vai fazer da forma que tá. Pesquisadora: E os corantes, como vocês es-colhem?

Artesã: Antes a gente só usava os naturais... Mas depois o SEBRAE trouxe a anilina... Aí ficou bem colorido... Mas tem encomen-da que só pode usar os naturais... Tem gente que gosta só de mangue e natural... O pessoal gosta muito só de natural...

Sobre o uso dos corantes observamos as representações das artesãs construídas a partir de representações de agentes que par-ticipam da cadeia produtiva. Quando con-tinuamos a perguntar sobre o motivo pelo qual as pessoas gostavam mais do natural, a líder do grupo, respondeu-nos com um exemplo. Contou que a empresa Natura ha-via entrado em contato com o grupo, soli-citando uma encomenda de cinquenta sa-colas, todas com fio tingido com mangue e com fibra natural, sem tingimento. E que nesta encomenda não podiam usar corante artificial, só os corantes naturais, porque is-so tinha a ver com o projeto deles (Natura). Observamos nesta passagem duas si-tuações em que a produção das artesãs fi-ca submetida às representações de outros agentes, externos à comunidade. A primeira delas quando o SEBRAE introduz a utiliza-ção da anilina, inserindo na cadeia produti-va um novo elemento, que passa a caracte-rizar a produção artesanal de Santa Maria. Consideremos ainda na fala, como as arte-sãs se valem desta característica do uso da cor para diferenciarem o seu produto dos produzidos em Barreirinhas, além da uti-lização do linho (parte mais delgada da fi-bra do buriti) em detrimento da borra (fifi-bra in natura), resultando em um produto mais

fino, mais delicado do que o produzido na comunidade concorrente.

Outra questão importante é como a in-formação sobre o mercado chega até as ar-tesãs. Elas, mesmo sem terem internet, estão conectadas a estes sistemas globais de con-sumo, por meio da pesquisa que a vendedora da loja de Alcântara realiza empiricamente, exercendo um papel de mediadora entre as artesãs e os consumidores, a nível local, e o SEBRAE a nível global, trazendo as tendên-cias de moda e das feiras de turismo. Obser-vemos que há diversas camadas de informa-ção que se acumulam, fruto de processos et-nocêntricos, traduções por sobre traduções, que são interpretadas a partir do que as arte-sãs representam sobre os seus artefatos.

Para concluirmos este item, retomamos o trecho “Mas tem encomenda que só pode usar os naturais...”. Na encomenda, o esto-pim da produção, que é a presença da von-tade e o gosto do consumidor na comunida-de, mesmo que ele esteja há quilômetros de distância, o verbo poder, em sua condição de restrição, dá o tom da relação assimétri-ca estabelecida entre quem compra e quem produz. Para que a encomenda satisfaça o gosto do outro, as artesãs abrem mão do co-lorido que tanto valorizam e que conside-ram um traço diacrítico de sua produção.

Na ocasião da análise de suas cadeias produtivas, as artesãs reconheceram o ca-ráter valioso da tintura natural, e cogi-tam o aumento do preço destas peças, já que acrescentam mais uma etapa na sua cadeia, a extração, tratamento e manipu-lação dos pigmentos, antes do tingimen-to propriamente ditingimen-to. Cogitam a criação de um “selo”, que diferencie o produto com o tingimento natural, prevendo que esta in-formação seja preciosa para o consumidor, fruto de uma destinação a priori ao trânsi-to intercultural.

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4.2 o valor emocional como a representação da auto-estima

Como valor emocional, pretendemos mapear as representações das artesãs sobre seus gostos pessoais a partir de dois luga-res de fala: artesãs-produtoras, artesãs-con-sumidoras. Ao transitarem entre estes dois lugares, vimos representações que oscilam entre o gostar e o não gostar, o sentir orgu-lho e o sentir vergonha.

Durante a pesquisa, houve um momento de reunião entre as artesãs das três comuni-dades, e durante uma das etapas do traba-lho, convidamos as artesãs a “vender” o seu produto. Solicitamos que cada grupo apre-sentasse e falasse sobre as principais carac-terísticas dos seus produtos. Nos momento da “venda”, as artesãs buscaram enfatizar as qualidades emocionais positivas da sua pro-dução caracterizando o seu lugar, o territó-rio no qual aquele artefato é produzido.

Artesã, de Santa Maria: E o bater deles [de Barreirinhas] lá não é como o daqui. O ter, eles não une. É falta de não querer ba-ter pra economizar fibra. Não unir, economi-za fibra e faz o trabalho mais rápido. Econo-miza mão-de-obra. Com o tempo ele quebra, porque a palha quebra.

Enquanto produtoras exaltam caracte-rísticas positivas da sua produção, demons-tram como o seu artesanato está ligado ao lugar, e até mesmo à identidade étnica, e enfatizam que o uso do seu artefato é desti-nado ao outro. Quando perguntamos à mes-ma artesã se ela usa a sacola que produz, remete o uso de seu produto ao outro, monstrando uma baixa auto-estima e clara ter vergonha do produto, como já de-monstramos anteriormente:

Artesã, de Santa Maria: Quando a gente vai a Alcântara [na sede do município] a gen-te vê aquelas mulheres, todas chiques né, aí elas bota uma sacola de linho, chega, sai “to-da, toda”... Aí nós fica só olhando, pra gente usar? A gente tem até vergonha...

Pesquisadora: Mas por que tem vergonha? Artesã: Sei lá, acho que é porque a gente é acostumada com elas... Eu acho, porque ve-jo assim as artesãs, eu acho difícil ver uma que tem uma sacola... Mas uma sacola dessa eu duvido que ela [uma artesã] agarre assim, igual que a gente vê lá em Alcântara, as mu-lheres chegam vão que vão...

Observamos aqui o que Hall descreve em processos de homogeneização cultural, co-mo uma nova articulação entre o local e o global. Sem tratar esta questão de uma for-ma naif, como se na pós-modernidade as identidades locais fossem absorvidas pe-lo consumo gpe-lobal, pensamos este proces-so como uma forma de negociação e estra-tégia de permanência no mercado das arte-sãs. Ao enfatizarem o caráter local e territo-rial do artesanato, criam um carimbo e eti-quetas para mostrar e comunicar ao mun-do que seus produtos são locais. Na hora em que propomos a conversa sobre a utilização da produção por elas, deslocam a atribuição do uso para o mercado, para as outras mu-lheres. Nas palavras de Canclini:

Um tarasco jamais precisará assinalar a ori-gem das panelas ou nos jarros que ele produz para utilizar com seus iguais. A inscrição é necessária para o turista que misturará esta cerâmica com as que foram compradas em outros lugares, sendo que o mais significa-tivo é a distinção social, o prestígio de quem esteve em tais lugares para comprá-las, do que os próprios objetos. (1983, p.106)

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O seu produto é feito para o outro. E o inverso também acontece, enfatizando o ca-ráter contraditório e descentrado da pós--modernidade. Durante a conversa sobre este assunto, perguntei de que tipo de sa elas gostavam, e elas me mostraram bol-sas de courino, com aplicações em metal, e mesmo cópias de grifes famosas. O não uso e a vergonha de usar o artesanato revelam

a face oposta do apego e valorização do lo-cal pelo mercado global e a consequente va-lorização do artesanato pelos “consumido-res globais”; as artesãs também se inserem na globalização como consumidoras, só que pela via oposta, pelo consumo de “produtos globais”, advindos das linhas de produção chinesas, que chegam maciçamente aos lu-gares mais distantes do globo.

Figura 2

clichê de identificação da origem da cerâmica, valorizando a identidade local

Figura 3

duas globalizações: artesanato tradicional, desejos globais

4.3 o valor simbólico-cultural como a representação da tradição

Os valores simbólico-culturais referem--se às representações sobre outros tempos na comunidade, o artesanato ligado à tra-dição e à identidade do local. Como o lo-cal mais antigo é Itamatatiua, foi lá que en-contramos maior referência a estes valores. É quando encontramos referências sobre a identidade étnica remanescente de quilom-bos, é quando o artesanato liga-se a um passado e a um saber tradicional, conside-rado pela artesã como uma herança.

Para exemplificar esta dimensão, va-mos recorrer a uma ocasião em Itamatatiua

quando conversávamos sobre a pintura a frio das peças cerâmicas. Esta técnica con-siste em pintar a peça já queimada com tin-ta acrílica ou tintin-ta para tecido, fazendo de-senhos e grafismos de acordo com o gos-to do artesão. No meio acadêmico e entre os especialistas da área esta técnica é con-siderada uma intervenção “negativa” na ce-râmica considerada tradicional, pois enco-bre as marcas da queima artesanal. A técni-ca mais adequada, segundo os especialistas, é a técnica da vitrificação, que consiste em uma pintura da superfície da peça cerâmi-ca já queimada com óxidos, seguida de uma nova queima, daí ser conhecida também co-mo pintura a quente.

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Uma artesã de Itamatatiua, diz que é de interesse do grupo aprender a segunda téc-nica, mas esbarram no entrave do controle da temperatura do forno, que varia na quei-ma de determinados óxidos. Como a técni-ca de queima é tradicional, com o uso de le-nha, fica difícil controlar a temperatura de-pois que o forno é fechado e a lenha acesa. A técnica da pintura a frio é bastante uti-lizada e as artesãs se dividem quando per-guntamos por que pintam e se gostam do resultado. Sobre este processo, observemos a discussão:

Artesã 1: Aí, depois que o SEBRAE veio a gente não fazia assim em grupo; a gente fa-zia nas casa de gente. Aí depois que o SE-BRAE veio organizar a gente e a gente ga-nhou essa sede... O SEBRAE que disse pra gente pintar as peças pra ficar melhor, que os turistas gostam...

Artesã 2: Mas tem turista que não gosta não, que dizem que gostam mais da queimada, e das manchadas do fogo mesmo, porque são tradicionais daqui de Itamatatiua...

Artesã 1: É, varia, cada qual gosta de um jei-to. É bom a gente ter na loja de todo tipo, mas os turistas às vezes gostam da boneca pintada, mas também gostam da tradicional do quilombo...

As artesãs de Itamatatiua demonstram em suas falas que percebem o valor atribu-ído à identidade do produto pelos consu-midores. Observam as preferências de con-sumo porque elas próprias têm a sua loja e com isso entram em contato direto com o comprador de seus produtos. O outro para quem produzem está mais próximo, podem conversar com ele e saber de suas preferên-cias. As representações sobre o tradicional e o quilombo surgem a partir do que o ou-tro valoriza em sua produção. A estratégia

da qual se valem é ter os dois tipos de bone-ca, uma visão mercadológica de atender ao gosto de quem compra.

Este contato com o outro, o encontro com o diferente, e a própria eminência da produção para o trânsito, produz represen-tações híbridas, permeadas por outras re-presentações externas à comunidade. A identidade do artesanato, por mais que re-corra ao passado para afirmar a tradição, é constituída com o reconhecimento da diver-sidade e da heterogeneidade de representa-ções que pousam sobre o artefato. Quando nomeamos esta produção artesanal de con-temporânea, estamos enfatizando estes as-pectos ligados à diferença e à transforma-ção, como Hall nos orienta.

Artesã: A cerâmica de lá é muito boa, Itama-tatiua é manual e Rosário é na forma. A te tem que vender, por que é desse que a gen-te tira o susgen-tento, que a gengen-te tirou para criar os nossos filhos, se não vender, fica difícil de comprar qualquer coisa. Nossa mãe que ensi-nou, nossa avó, é uma herança e nunca tem que terminar, é uma herança muito boa e to-do munto-do gosta das peças da gente.

O gostar das peças é associado à heran-ça, ao saber que é passado de geração em geração. O caráter da produção manual é ressaltado em relação à produção da cidade de Rosário, onde a cerâmica é produzida no torno. No depoimento da artesã, encontra-mos uma recorrência da representação so-bre o caráter geracional da produção e o or-gulho do trabalho e do sustento da família fazendo louça:

Artesã: Aprendi a cerâmica com minha mãe, quando eu tava com 11 anos a minha mãe era viva. Quando eu tava com 12 anos a mi-nha mãe morreu, aí eu já sabia fazer várias

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coisas, já sabia fazer o pote, o jarro. Quando eu tinha 18 anos meu pai faleceu, mas como eu já era dona da minha venta, já me respon-sabilizava por minhas despesas. Aí depois ar-ranjei filho e marido, comecei a fazer louça, vendia, adquiria dinheiro e comprava as coi-sas do meu filho. Por isso tenho maior orgu-lho e nunca largo de fazer, por que foi uma coisa muito importante pra mim, criei meus filhos foi fazendo louça. Por isso que gosto e nunca deixo de fazer, só depois de morrer. É uma coisa muito importante.

Nas falas das artesãs observamos a repe-tição do gosto e do orgulho associados à he-rança e ao fato de terem conseguido criar os filhos com a produção cerâmica. A auto-es-tima é alimentada com o fato de terem con-seguido satisfazer a uma necessidade a par-tir do que aprenderam com os antepassados, e pelo fato de isso ser reconhecido pelo ou-tro, no seu gostar.

4.4 o valor social como a representação do trabalho

A dimensão social do valor surge nas re-lações estabelecidas entre as artesãs e o ar-tesanato como regulador do cotidiano, na divisão das tarefas do lar e o trabalho com o artesanato, a organização da família entre o artesanato e a roça, o tempo dedicado à ati-vidade e a remuneração – o artesanato co-mo o trabalho destas mulheres. Aqui as re-presentações sobre o artesanato estão liga-das a questões bastante pragmáticas. A pro-dução do artesanato apresenta-se de forma enraizada, ancorada à estabilidade e à soli-dariedade comunitárias.

Em Brito, o menor grupo de artesãs que pesquisamos, onde a produção é, na melhor das hipóteses, quatro a cinco redes por mês, toda atividade é realizada pelas mulheres, exceto a compra da matéria-prima que tam-bém é feita pelo marido de uma das artesãs, quando viaja para a capital. Lá, fica claro o papel do artesanato como uma atividade fe-minina, da qual os homens não participam.

Artesã: Lá tem pouca mulher mesmo... o res-to tudo é só homem, e disseram que não que-riam fazer porque não é serviço de homem, é de mulher, aí só têm nós, até quando nós puder.

Em Itamatatiua, a ajuda masculina é pouca, quase nenhuma, restringe-se ape-nas ao trabalho de retirar o barro do cam-po, que é uma atividade remunerada, para a qual as artesãs contratam de dois a três ho-mens, uma vez por ano, para executá-la. Na fala das artesãs, muitas delas viúvas, o pa-pel do artesanato figura como única fonte de renda para o sustento dos filhos:

Artesã 1: Aqui só tem viúva... não dependemos de homem pra nada. O trabalho é todo feito por nós. A maioria criou os filhos sozinha.

Artesã 2: De vez em quando meu filho aju-da, mas é muito difícil. Tinha um homem que participava, mas ele montou uma olaria e saiu... O artesanato daqui quem faz é mu-lher... Difícil não ter uma aqui que não tenha criado os filhos com os potes...

Já em Santa Maria, a participação dos homens é maior. Na forma de ajuda, os ho-mens participam desde a extração do olho4 4. Parte central da copa da palmeira, com as folhas novas, ainda fechadas. É do olho que se extrai a fibra,

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do buriti até o acabamento, e a participação masculina aumenta quando há alguma en-comenda. Além dos homens, toda a famí-lia participa do acabamento quando há uma grande encomenda, inclusive uma artesã colabora com outra, revelando a solidarie-dade entre as artesãs:

Artesã 1: Quando tem encomenda, a casa fi-ca sem varrer, o comer sem fazer... E meu marido me ajuda, né? Eu fico aqui atrás no tear, e nem chego em casa. Ele que varre, que cozinha, cuida das crianças. Quando tem en-comenda é assim...

Artesã 2: O meu marido tira o olho, ajuda no riscamento e no emendamento. É uma boa ter um marido assim...

Nos povoados de Alcântara o papel so-cial do artesanato está associado à geração de renda, e também como elemento de co-esão social. A participação da família nos momentos em que chegam as encomendas é fundamental para o cumprimento dos pra-zos de entrega, que geralmente são muito curtos, não respeitando o tempo normal de todas as etapas da cadeia produtiva. A so-lidariedade entre as artesãs também é per-cebida nos momentos de grande produção.

Durante a estadia em Santa Maria, pre-senciamos uma situação que reflete o papel do artesanato como regulador da solidarieda-de comunitária. Estávamos caminhando com uma artesã quando encontramos outra artesã indo para São Luís ficar com a filha que esta-va hospitalizada. Naquela semana, haveria a entrega que as artesãs fazem à loja. Mensal-mente elas produzem determinada quantida-de quantida-de jogos americanos e sacolas, para quantida-

deixa-rem em consignação na loja da sede do mu-nicípio. Como iria para São Luís, a artesã não teria tempo de finalizar a sua produção. A outra artesã pegou todas as peças, ainda sem acabamento e se propôs a terminá-las. Quan-do a artesã se foi, perguntamos como elas fa-riam com o pagamento das peças, já que am-bas teriam trabalhado. Ela respondeu que o trabalho não era seu, era da outra artesã, que ela só estava ajudando, que naquele momen-to era a filha da outra que estava doente, e em outra ocasião poderia ser a filha dela.

Percebemos durante muitas situações que o artesanato também tem um impor-tante papel na solidariedade que regu-la as reregu-lações sociais, e seu valor não resi-de apenas em uma equivalência em dinhei-ro. Entre as artesãs a ajuda com a produ-ção alheia mostra a força que a associaprodu-ção tem na comunidade. Não é o artesanato de uma ou outra artesã, é o artesanato de San-ta Maria e de ISan-tamaSan-tatiua.

Em Brito, não há formalização de uma associação ainda que seja o único povoado em que a produção é realmente coletiva: ca-da artesã executa parte ca-das etapas ca-da cadeia produtiva, e em uma rede podem trabalhar até quatro artesãs. Como o fluxo de comer-cialização é pequeno, porque a produção é mais recente e ainda pouco organizada, ob-servamos a preponderância da necessidade financeira sobre a força do grupo:

Artesã: (...) E aí ficamos, porque a S. arranjou de se empregar, por que ela tava com uma

conta pra pagar... Nesse outro seminário5,

parece que nós já tava em nove, aí saiu, eu não sei, vendo assim acho que só tem eu e R. O negócio é o seguinte, elas querem traba-5. A artesã refere-se a um momento durante nossa pesquisa, em que nos reunimos na sede de Alcântara, nos

dias 10 e 11 de dezembro de 2010. Estivemos presentes pesquisadores e sete representantes de cada comuni-dade para discutirmos as cadeias produtivas, geração de renda e os processos de valoração do artesanato.

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lhar em uma coisa que receba logo. Mas nem todo trabalho hoje tem a condição da pessoa começar e ter logo o resultado imediato...

Desta forma a dimensão social do valor atribuído ao artesanato perpassa a categoria necessidade que aqui aparece com a cono-tação da precisão. O artesanato é forma de sustento, artesanato é trabalho.

4.5 o valor econômico como a representação do preço

Durante a pesquisa tratamos da ques-tão da atribuição de preço aos produtos. In-dagamos como eram atribuídos os preços, se elas conseguiam incluir no preço o tem-po trabalhado, os custos da matéria-prima e dos tingimentos, do trabalho terceirizado na extração da matéria-prima, entre outros.

Em Itamatatiua encontramos a for-ma for-mais aleatória de atribuição de preço, na qual as artesãs simplesmente atribuem o preço pelo tamanho da peça, e a partir de seus parâmetros ponderam se é caro ou barato. Neste momento observamos uma grande contradição no processo de constru-ção deste artefato diaspórico: o produto é para outro, o preço é para elas.

Em Santa Maria, por outro lado, a pre-cificação foi construída a partir da con-sultoria recebida pelo SEBRAE, avaliando--se o tempo de produção, os custos envol-vidos na cadeia produtiva, o lucro, os gas-tos com transporte e comissão de vendas na loja. Todos estes fatores levaram a um pre-ço final que ainda não é praticado, mas que gradualmente as artesãs vêm incrementan-do o preço para chegar ao patamar da ta-bela. Perguntei se os compradores reclama-vam do preço, e elas dizem que sempre re-clamam, por isso estão aumentando o preço aos poucos.

Mas é em Brito que encontramos uma re-presentação que contrasta com o que aponta-mos no item anterior, sobre a evasão das ar-tesãs para outras atividades, e dificuldade de geração de renda. Em uma conversa entre as artesãs, falavam sobre o preço dos produtos:

Artesã de Itamatatiua: Não acha que tá mui-to caro?

Artesã de Brito: A gente não bota o preço, quem bota o preço é o produto. O cliente acha que vale aquele preço por que é bom o produto.

A relação entre o produto e o preço é de-terminante para a artesã, que qualifica o seu produto pela durabilidade. “Esta conversa entre as artesãs nos elucida uma importan-te representação da arimportan-tesã sobre a função da rede como um artefato, tendo uma

existên-cia autônoma e ativa nas relações de tro-ca.” (NORONHA, 2011, p.101).

Artesã: Porque a gente faz a rede, a de 2,5kg, eu vendo de R$100,00, a de 3kg, R$110,00 mas só que o nosso preço é esse, mas já teve pessoas que como o material é bom, o valor da rede, já deu até mais. Uma de 3kg, uma rapaz de Brasília, ele perguntou qual era o valor da rede, aí eu disse que era R$110,00, aí ele deu R$130,00.

Neste sentido observamos que a precifica-ção se constrói na circulaprecifica-ção do próprio arte-fato, e a atribuição de valores é feita a partir da qualidade percebida pelo outro. Podemos con-siderar este processo extremamente emancipa-dor porque libera as artesãs para outros pro-cessos de valoração que não seja somente o econômico, diminuindo os questionamentos sobre o porquê do preço, o porquê da variação do preço em função do tamanho, e atribuem ao artefato este diálogo com o seu outro.

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4.6 o valor funcional como a representação do tempo

O artesanato que retira as mulheres dos afazeres domésticos representa um papel re-gulador das relações da família e do tem-po da vida cotidiana. Todo o temtem-po dispen-sado ao tratamento da matéria-prima até o acabamento e entrega dos produtos consti-tui um trabalho diário, reduzido apenas na época do inverno6, quando as condições

cli-máticas dificultam a produção. O artesanato é considerado trabalho e emprego por mui-tas desmui-tas mulheres, que muimui-tas vezes tem apenas esta fonte de renda. Vejamos o de-poimento da artesã:

Artesã: É muito trabalhoso e às vezes a gen-te bota, porque assim se a gengen-te tivesse quem comprasse assim na hora, comprasse, pagas-se, num ficasse material empacado, sabe? Era bom, mas às vezes a gente manda pra loja, le-va é dias, a gente fez uma encomenda, já le-vai fazer é mês, até agora a gente ainda não re-cebeu, quer dizer, que é uma situação assim, que as vezes já desagrada a gente até pra gente continuar trabalhando porque quem mora no interior, não tem emprego, o emprego da gente é esse aqui, tem que viver disso né?

Na fala da artesã, o tempo da encomen-da e o tempo do pagamento não condizem com a dedicação cotidiana das artesãs, o papel do artesanato como emprego destas mulheres. O retorno é sempre mais lento do que o esforço empenhado em entregar a en-comenda no prazo. O tempo é sempre um adversário das artesãs.

A representação das dimensões relati-vas do tempo – o tempo da encomenda, o tempo da produção e o tempo do

pagamen-to – inserem o deslocamenpagamen-to tempo-espaço na identidade do artesanato. Como uma das grandes rupturas dos sujeitos pós-moder-nos, o descolamento do tempo e do espaço apresenta-se de forma ambígua às artesãs. Nos itens anteriores, 4.4 e 4.5, observamos que o artesanato também tem funções de manutenção e ordenação de relações comu-nitárias tradicionais e quando saem da co-munidade, inserem-nas no contexto da pós--modernidade, pois passam a circular em outras apreensões de tempo, deixando um vazio entre o tempo dedicado ao artesana-to como trabalho, cotidianamente e o tempo da espera do retorno financeiro, que depen-de depen-de entregas, prazos, cartões depen-de crédito.

Quando a artesã de Itamatatiua nos rela-tou que “o pote saía era quente pro carro” a relação comercial que se estabelecia era ou-tra: entregava o produto, recebia o dinhei-ro. O comprador estava lá. Hoje, dificilmen-te ele está. O podificilmen-te tinha uma função funda-mental na vida da comunidade e do entor-no. Tinha um uso cotidiano, e não apenas simbólico. A necessidade da precisão, pa-ra estas comunidades, é mais urgente que a necessidade-desejo.

Em Brito, uma artesã nos fala sobre o processo de atribuição de valor a partir da característica funcional da durabilidade do seu produto:

Artesã: O valor de 100 reais é pra rede de 2,5 kg por que vale, por que as redes são boas, elas valem aquele preço. O fio torcido a rede fica mais pesada e mais durativa. E o singelo a rede fica mais leve, mas dura muito também.

Com o feedback sobre a durabilidade da rede, as artesãs atribuem às qualidades do próprio produto a construção do preço,

Referências

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