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Benjamin Constant A Liberdade dos Antigos Comparada à dos Modernos, 2 Lysander Spooner Vícios Não São Crimes: Uma vindicação da liberdade moral, 9

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Benjamin Constant –A Liberdade dos Antigos

Comparada à dos Modernos, 2 • Lysander

Spooner – Vícios Não São Crimes: Uma

vindicação da liberdade moral, 9 • Isaiah Berlin

– Dois Conceitos de Liberdade, 18 • Milton

Friedman – A Relação entre Liberdade

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A Liberdade dos Antigos Comparada à dos Modernos

Benjamin Constant (1767-1830)

Proponho-me submeter a vosso julgamento algumas distinções, ainda bastante novas, entre duas formas de liberdade, cujas diferenças até hoje não foram percebidas ou que, pelo menos, foram muito pouco observadas. Uma é a liberdade cujo exercício era tão caro aos povos antigos; a outra, aquela cujo uso é particularmente útil para as nações modernas. Esta análise será interessante, salvo engano, sob um duplo aspecto.

Primeiro, a confusão destas duas espécies de liberdade foi, entre nós, durante épocas por demais conhecidas de nossa revolução, a causa de muitos males. A França viu-se molestada por experiências inúteis cujos autores, irritados pelo pouco êxito que alcançaram, tentaram forçá-la a usufruir de um bem que ela não desejava e contestaram-lhe o bem que ela queria.

Em segundo lugar, levados por nossa feliz revolução (eu a chamo feliz, apesar de seus excessos; porque atento para seus resultados) a desfrutar os benefícios de um governo representativo, é interessante e útil saber por que este governo, o único sob o qual podemos hoje encontrar alguma liberdade e tranqüilidade, foi inteiramente desconhecido para as nações livres da antiguidade. Sei que pretendem-se descobrir marcas desse governo em alguns povos antigos, na república da Lacedemônia por exemplo, e em nossos ancestrais, os gauleses; mas é um engano.

O governo da Lacedemônia era uma aristocracia monacal, de modo nenhum um governo representativo. O poder dos reis era limitado, mas o era pelos Éforos e não por homens investidos de uma missão semelhante à que a eleição confere em nossos dias aos defensores de nossas liberdades. Sem dúvida, os Éforos, depois de terem sido instituídos pelos reis, foram nomeados pelo povo. Mas eram apenas cinco. Sua autoridade era religiosa tanto quanto política; participavam do próprio governo, quer dizer, do poder executivo; por isso, sua prerrogativa, como a de quase todos os magistrados populares nas antigas repúblicas, longe de ser simplesmente uma barreira contra a tirania, tornava-se, as vezes, ela própria uma tirania insuportável.

O regime dos gauleses, que se parecia bastante com aquele que um certo partido desejaria nos devolver, era ao mesmo tempo teocrático e guerreiro. Os padres gozavam de um poder sem limites. A classe militar, ou a nobreza, possuía privilégios insolentes e opressivos. O povo não tinha direitos nem garantias.

Em Roma, os tribunos tinham até certo ponto uma missão representativa. Eles eram os porta-vozes dos plebeus que a oligarquia, que é a mesma em todos os séculos, havia submetido, derrubando os reis, a uma escravidão duríssima. No entanto, o povo exercia diretamente uma grande parte dos direitos políticos. Ele se reunia para votar as leis, para julgar os patrícios acusados de delito: só havia, portanto, em Roma, fracos traços do sistema representativo.

Este sistema é uma descoberta dos modernos e vós vereis, Senhores, que a condição da espécie humana na antiguidade não permitia que uma instituição desta natureza ali se introduzisse ou instalasse. Os povos antigos não podiam nem sentir a necessidade nem apreciar as vantagens desse sistema. A organização social desses povos os levava a desejar uma liberdade bem diferente da que este sistema nos assegura.

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É a demonstrar-vos esta verdade que a leitura desta noite será consagrada.

Perguntai-vos primeiro, Senhores, o que em nossos dias um inglês, um francês, um habitante dos Estados Unidos da América entendem pela palavra liberdade.

É para cada um o direito de não se submeter senão às leis, de não poder ser preso, nem detido, nem condenado, nem maltratado de nenhuma maneira, pelo efeito da vontade arbitrária de um ou de vários indivíduos. É para cada um o direito de dizer sua opinião, de escolher seu trabalho e de exercê-lo; de dispor de sua propriedade, até de abusar dela; de ir e vir, sem necessitar de permissão e sem ter que prestar conta de seus motivos ou de seus passos. É para cada um o direito de reunir-se a outros indivíduos, seja para discutir sobre seus interesses, seja para professar o culto que ele e seus associados preferem, seja simplesmente para preencher seus dias e suas horas de maneira mais condizente com suas inclinações, com suas fantasias. Enfim, é o direito, para cada um, de influir sobre a administração do governo, seja pela nomeação de todos ou de certos funcionários, seja por representações, petições, reivindicações, às quais a autoridade é mais ou menos obrigada a levar em consideração. Comparai agora a esta a liberdade dos antigos.

Esta última consistia em exercer coletiva, mas diretamente, várias partes da soberania inteira, em deliberar na praça pública sobre a guerra e a paz, em concluir com os estrangeiros tratados de aliança, em votar as leis, em pronunciar julgamentos, em examinar as contas, os atos, a gestão dos magistrados; em fazê-los comparecer diante de todo um povo, em acusá-los de delitos, em condená-los ou em absolvê-los; mas, ao mesmo tempo que consistia nisso o que os antigos chamavam liberdade, eles admitiam, como compatível com ela, a submissão completa do indivíduo à autoridade do todo. Não encontrareis entre eles quase nenhum dos privilégios que vemos fazer parte da liberdade entre os modernos. Todas as ações privadas estão sujeitas a severa vigilância. Nada é concedido à independência individual, nem mesmo no que se refere à religião. A faculdade de escolher seu culto, faculdade que consideramos como um de nossos mais preciosos direitos, teria parecido um crime e um sacrilégio para os antigos. Nas coisas que nos parecem mais insignificantes, a autoridade do corpo social interpunha-se e restringia a vontade dos indivíduos. Em Esparta, Terpandro não pode acrescentar uma corda à sua lira sem ofender os Éforos. Mesmo nas relações domésticas a autoridade intervinha. O jovem lacedemônio não pode livremente visitar sua jovem esposa. Em Roma, os censores vigiam até no interior das famílias. As leis regulamentavam os costumes e, como tudo dependia dos costumes, não havia nada que as leis não regulamentassem.

Assim, entre os antigos, o indivíduo, quase sempre soberano nas questões públicas, é escravo em todos seus assuntos privados. Como cidadão, ele decide sobre a paz e a guerra; como particular, permanece limitado, observado, reprimido em todos seus movimentos; como porção do corpo coletivo, ele interroga, destituí, condena, despoja, exila, atinge mortalmente seus magistrados ou seus superiores; como privado de sua posição, despojado de suas honrarias, banido, condenado, pela vontade arbitrária do todo ao qual pertence.

Entre os modernos, ao contrário, o indivíduo, independente na vida privada, mesmo nos Estados mais livres, só é soberano em aparência. Sua soberania é restrita, quase sempre interrompida; e, se, em épocas determinadas, mas raras, durante as quais ainda é cercado de precauções e impedimentos, ele exerce essa soberania, é sempre para abdicar a ela.

Devo aqui, Senhores, deter-me um instante para prevenir uma objeção que me poderia ser feita. Há na antiguidade uma república na qual a escravização da existência individual ao corpo coletivo não é tão completa como acabo de descrevê-la. Esta república é a mais célebre de todas; podeis deduzir que desejo falar de Atenas. Voltarei a este ponto mais tarde e,

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admitindo a verdade do fato, expor-vos-ei a causa. Veremos por que, de todos os Estados antigos, Atenas é o que mais se pareceu com os modernos. Em qualquer outro lugar a jurisdição social era ilimitada. Os antigos, como diz Condorcet não tinham nenhuma noção dos direitos individuais. Os homens não eram, por assim dizer, mais que máquinas das quais a lei regulava as molas o dirigia as engrenagens. A mesma submissão caracterizava os belos séculos da república romana; o indivíduo estava, de certa forma, perdido na nação, o cidadão, na cidade.

Vamos agora retornar à origem dessa diferença essencial entre os antigos e nós.

Todas as repúblicas antigas eram fechadas em limites estreitos. A mais populosa, a mais poderosa, a mais importante delas não era igual em extensão ao menor dos Estados modernos. Como conseqüência inevitável de sua pouca extensão, o espírito dessas repúblicas era belicoso; cada povo incomodava continuamente seus vizinhos ou era incomodado por eles. Impelidos assim pela necessidade uns contra os outros, esses povos combatiam-se ou ameaçavam-se sem cessar. Os que não desejavam ser conquistadores não podiam depor armas sob pena do serem conquistados. Todos compravam a segurança, a independência, a existência inteira ao preço da guerra. Ela era o interesse constante, a ocupação quase habitual dos Estados livres da antiguidade. Finalmente, e como resultado necessário dessa maneira de ser, todos os Estados tinham escravos. As profissões mecânicas e mesmo, em algumas nações, as profissões industriais eram confiadas a mãos acorrentadas.

O mundo moderno oferece-nos um espetáculo totalmente oposto. Os menores estados atualmente são incomparavelmente mais vastos que Esparta ou Roma durante cinco séculos. Mesmo a divisão da Europa em vários Estados e, graças ao progresso do saber, mais aparente do que real. Enquanto antigamente cada povo formava uma família isolada, inimiga nata das outras famílias, uma massa de homens existe agora sob diferentes nomes, sob diversos modos de organização social, mas essencialmente homogênea. Ela é suficientemente forte para não temer hordas bárbaras. É suficientemente esclarecida para não querer fazer a guerra. Sua tendência é a paz.

Essa diferença acarreta uma outra. A guerra é anterior ao comércio; pois a guerra e o comércio nada mais são do que dois meios diferentes de atingir o mesmo fim: o de possuir o que se deseja. O comércio não é mais que uma homenagem prestada à força do possuidor pelo aspirante à posse. É uma tentativa de obter por acordo aquilo que não se deseja mais conquistar pela violência. Um homem que fosse sempre o mais forte nunca teria a idéia do comércio. É a experiência - provando que a guerra, isto é, o emprego da força contra a força de outrem, o expõe a resistências e malogros diversos - que o leva a recorrer ao comércio, ou seja, a um meio mais brando e mais seguro de interessar o adversário em consentir no que convém à sua causa. A guerra é o impulso, o comércio é o cálculo. Mas, por isso mesmo, devo haver um momento em que o comércio substitui a guerra. Nós chegamos a esse momento.

Não quero dizer que não tenha havido povos comerciantes entre os antigos. Mas esses povos de certa maneira oram exceção à regra geral. As limitações do uma leitura não me permitem apontar-vos todos os obstáculos que se opunham então ao progresso do comércio; aliás vós os conheceis tanto quanto eu; falarei apenas do um deles. O desconhecimento da bússola obrigava os marinheiros da antiguidade a não perder de vista as costas; Atravessar as colunas de Hércules, ou seja, passar o estreito de Gibraltar, era considerado o mais ousado dos empreendimentos. Os fenícios e os cartagineses, os mais hábeis dos navegadores, só o ousaram muito mais tarde e seu exemplo permaneceu longo tempo sem ser imitado. Em Atenas, da qual talaremos mais tarde, o juro marítimo era aproximadamente de sessenta por

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cento; o juro habitual era apenas de doze por cento, tanto a idéia de navegação distante implicava em idéia de perigo.

Além disso, se pudesse entregar-me a uma digressão, que infelizmente seria longa demais, eu vos demonstraria, Senhores, pelo detalhe dos costumes, dos hábitos, do modo de traficar dos povos comerciantes da antiguidade com os outros povos, que esse comércio era, por assim dizer, impregnado do espírito da época, da atmosfera de guerra e de hostilidade que os cercava. O comércio era então um acidente feliz: é hoje a condição normal, o fim único, a tendência universal, a verdadeira vida das nações. Aliás, elas querem o descanso; com o descanso, a fartura; e, como fonte da fartura, a indústria. A guerra é cada dia um meio menos eficaz de realizar seus desejos. Suas chances não oferecem mais, nem aos indivíduos, nem às nações, benefícios que igualem os resultados do trabalho pacífico o dos negócios regulares. Para os antigos, uma guerra feliz acrescentava escravos, tributos, terras, à riqueza pública ou particular. Para os modernos, uma guerra feliz custa infalivelmente mais do que vale.

Enfim, graças ao comércio, à religião, aos progressos intelectuais e morais da espécie humana, não há mais escravos nas nações européias. Homens livres devem exercer todas as profissões, atender a todas as necessidades da sociedade.

Pode-se prever facilmente, Senhores, o resultado necessário dessas diferenças.

Primeiro, a extensão de um país diminui muito a importância política que toca, distributivamente, a cada indivíduo. O republicano mais obscuro do Roma e de Esparta era uma autoridade. Não acontece o mesmo com o simples cidadão da Grã-Bretanha ou dos Estados Unidos. Sua influência pessoal é um elemento imperceptível da vontade social que imprime ao governo sua direção.

Em segundo lugar, a abolição da escravatura privou a população livre de todo o lazer que o trabalho dos escravos lhe permitia. Sem a população escrava de Atenas, vinte mil atenienses não teriam podido deliberar cada dia na praça pública.

Em terceiro lugar, o comércio não deixa, como a guerra, intervalos de inatividade na vida do homem. O exercício continuo dos direitos políticos, a discussão diária dos negócios de Estado, as discussões, os conciliábulos, todo o cortejo e movimento das facções, a agitação necessárias, recheio indispensável, se ouso empregar esta expressão na vida dos povos livres da antiguidade, que se teriam entediado, sem esse recurso, sob o peso de uma ociosidade dolorosa, acarretariam apenas perturbações e cansaço às nações modernas, onde cada indivíduo, ocupado por suas especulações, por seus empreendimentos, pelos resultados que obtém ou espera, quer ser desviado disso o menos possível.

Finalmente, o comércio inspira aos homens um forte amor pela independência individual. O comércio atende a suas necessidades, satisfaz seus desejos, sem a intervenção da autoridade. Esta intervenção é quase sempre, e não sei por que digo quase, esta intervenção é sempre incômoda. Todas as vezes que o poder coletivo quer intrometer-se nas especulações particulares, ele atrapalha os especuladores. Todas as vezes que os governos pretendem realizar negócios, eles o fazem menos bem e com menos vantagens do que nós...

Conclui-se do que acabo de expor que não podemos mais desfrutar da liberdade dos antigos a qual se compunha da participação ativa e constante do poder coletivo. Nossa liberdade deve compor-se do exercício pacifico da independência privada. A participação que, na antiguidade, cada um tinha na soberania nacional não era, como em nossos dias, uma suposição abstrata. A vontade de cada um tinha uma influência real; o exercício dessa vontade era um prazer forte e

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repetido. Em conseqüência, os antigos estavam dispostos a fazer muitos sacrifícios pela conservação de seus direitos políticos e de sua parte na administração do Estado. Cada um, sentindo com orgulho o que valia seu voto, experimentava uma enorme compensação na consciência de sua importância social.

Essa compensação já não existe para nós. Perdido na multidão, o indivíduo quase nunca percebe a influência que exerce. Sua vontade não marca o conjunto; nada prova, a seus olhos, sua cooperação. O exercício dos direitos políticos somente nos proporciona pequena parte das satisfações que os antigos nela encontravam e, ao mesmo tempo, os progressos da civilização, a tendência comercial da época, a comunicação entre os povos multiplicaram e variaram ao infinito as formas de felicidade particular.

Concluí-se que devemos ser bem mais apegados que os antigos à nossa independência individual. Pois os antigos, quando sacrificavam essa independência aos direitos políticos, sacrificavam menos para obter mais; enquanto que, fazendo o mesmo sacrifício, nós daríamos mais para obter menos.

O objetivo dos antigos era a partilha do poder social entre todos os cidadãos de uma mesma pátria. Era isso o que eles denominavam liberdade. O objetivo dos modernos é a segurança dos privilégios privados; e eles chamam liberdade as garantias concedidas pelas instituições a esses privilégios...

A independência individual é a primeira das necessidades modernas. Conseqüentemente, não se deve nunca pedir seu sacrifício para estabelecer a liberdade política. Concluí-se daí que nenhuma das numerosas instituições, tão aplaudidas, que, nas repúblicas antigas, impediam a liberdade individual é aceitável nos tempos modernos.

Provar essa verdade, Senhores, parece inútil num primeiro momento. Muitos governos de nosso tempo não parecem inclinados a imitar as repúblicas da antiguidade. No entanto, por menos gosto que tenham pelas instituições republicanas, há certos costumes republicanos pelos quais esses governos sentem certa afeição...

A liberdade individual, repito, é a verdadeira liberdade moderna. A liberdade política é a sua garantia e é, portanto, indispensável. Mas pedir aos povos de hoje para sacrificar, como os de antigamente, a totalidade de sua liberdade individual à liberdade política é o meio mais seguro de afastá-los da primeira, com a conseqüência de que, feito isso, a segunda não tardará a lhe ser arrebatada.

Vede, Senhores, que minhas observações não tendem absolutamente a diminuir a importância da liberdade política. Não extraio dos fatos que vos expus as conseqüências que certos homens deles extraem. Porque os antigos foram livres e porque não podemos mais ser livres como os antigos, eles concluem que estamos destinados a ser escravos. Gostariam de constituir o novo estágio social com um pequeno número de elementos que dizem ser os únicos apropriados à situação atual. Esses elementos são preconceito para atormentar os homens, egoísmo para corrompê-los, frivolidade para aturdi-los, prazeres grosseiros para degradá-los, despotismo para conduzi-los; e também conhecimentos positivos e ciências exatas para melhor servir ao despotismo. Seria estranho que esse fosse o resultado de quarenta séculos durante os quais o espírito humano conquistou tantos recursos morais e físicos; não posso admitir isso.

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segurança que é preciso enfraquecer, é a regalia que é preciso aumentar. Não é à liberdade política que desejo renunciar; é a liberdade civil que reclamo junto com outras formas de liberdade política. Os governos não têm hoje, como não tinham antigamente, o direito de atribuir-se um poder ilegítimo. Mas os governos que brotam de fonte legítima têm ainda menos do que os de antanho o direito de exercer sobre os indivíduos uma supremacia arbitraria. Possuímos ainda hoje os direitos que tivemos sempre, os direitos eternos de aceitar as leis, de deliberar sobre nossos interesses, de ser parte integrante do corpo social do qual somos membros. Mas os governos têm novos deveres. Os progressos da civilização, as transformações operadas através dos séculos pedem à autoridade mais respeito pelos hábitos, pelos afetos, pela independência dos indivíduos. Ela deve dirigir esses assuntos com mão mais prudente e mais leve.

Essa contenção da autoridade, que se mantém em seus estritos deveres, atém-se também a seus interesses bem entendidos; pois se a liberdade que convém aos modernos é diferente da que convinha aos antigos, o despotismo que era possível entre estes não é mais possível entre os modernos. Do fato de que estamos muitas vezes mais descuidados com a liberdade política do que eles podiam estar, e, em nossa condição costumeira, menos apaixonados por ela, pode-se concluir que negligenciamos demais às vezes, e sempre sem motivos, as garantias que ela nos assegura; mas ao mesmo tempo, como buscamos muito mais a liberdade individual do que os antigos, nós a defenderemos, se for atacada, com muito mais ímpeto e persistência; e possuímos para a defesa meios que os antigos não possuíam.

O comércio torna a ação da arbitrariedade sobre nossa existência mais vexatória do que antigamente, porque, sendo nossas especulações mais variadas, o arbítrio deve multiplicar-se para atingi-las; mas o comércio também torna a ação da arbitrariedade mais fácil de enganar, porque ele modifica a natureza da propriedade, que se torna, por esta modificação, quase inapreensível.

O comércio dá à propriedade uma qualidade nova: a circulação; sem circulação, a propriedade não é mais que usufruto; a autoridade pode sempre influir no usufruto, pois pode impedir o gozo dele; mas a circulação põe um obstáculo invisível e invencível a essa ação do poder social. Os efeitos do comércio estendem-se ainda mais longe; não somente ele emancipa os indivíduos, mas, criando o crédito, torna a autoridade dependente.

O dinheiro, diz um autor francês, é a arma mais perigosa do despotismo; mas é ao mesmo tempo seu freio mais poderoso; o crédito está submetido à opinião; a força é inútil, o dinheiro esconde-se ou foge; todas as operações do Estado ficam suspensas. O crédito não tinha a mesma influência entre os antigos; seus governos eram mais fortes que os particulares; em nossos dias estes são mais fortes que os poderes políticos; a riqueza é uma força mais disponível em todos os momentos, mais aplicável a todos os interesses e, em conseqüência, muito mais real e mais bem obedecida; o poder ameaça, a riqueza recompensa; escapa-se ao poder enganando-o; para obter os favores da riqueza, é preciso servi-la.

Em conseqüência das mesmas causas, a existência individual é menos englobada na existência política. Os indivíduos transportam para longe seus tesouros; levam com eles todos os bens da vida privada; o comércio aproximou as nações e lhes deu hábitos e costumes mais ou menos semelhantes; os chefes podem ser inimigos; os povos são compatriotas...

O perigo da liberdade antiga estava em que, atentos unicamente à necessidade de garantir a participação no poder social, os homens não se preocupassem com os direitos e garantias individuais. O perigo da liberdade moderna está em que, absorvidos pelo gozo da

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independência privada e na busca de interesses particulares, renunciemos demasiado facilmente a nosso direito de participar do poder político.

Os depositários da autoridade não deixam de exortar-nos a isso. Estão sempre dispostos a poupar-nos de toda espécie de cuidados, exceto os de obedecer e de pagar! Eles nos dirão; "Qual é, no fundo, o objetivo de todos os vossos esforços, o motivo de vosso trabalho, o objeto de vossas esperanças? Não é a felicidade? Pois bem, essa felicidade, aceitai e nós nos encarregaremos dela." Não, Senhores, não aceitemos. Por mais tocante que seja um interesse tão delicado, rogai à autoridade de permanecer em seus limites. Que ela se limite a ser justa; nós nos encarregaremos de ser felizes.

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Vícios Não São Crimes:

Uma vindicação da liberdade moral

Lysander Spooner (1808-1887)

I. Vícios são aqueles atos pelos quais um homem prejudica a si mesmo ou sua propriedade. Crimes são aqueles atos pelos quais um homem prejudica a pessoa ou a propriedade de outrem.

Vícios são simples erros cometidos por um homem em sua busca pela felicidade. Ao contrário dos crimes, eles não implicam nenhuma malícia em relação aos outros e nenhuma interferência em suas pessoas ou propriedades.

Nos vícios, a própria essência do crime — isto é, o desejo de prejudicar a pessoa ou a propriedade de outrem — inexiste.

É uma máxima da lei a de que não é possível haver crime sem intento criminoso; isto é, sem o intento de invadir a pessoa ou a propriedade de outrem. Porém, ninguém jamais pratica um vício com tal intento criminoso. Pratica-se um vício visando-se a própria felicidade tão-somente, e não por qualquer malícia em relação aos outros.

A não ser que essa clara distinção entre vícios e crimes seja feita e reconhecida pelas leis, não é possível que existam na terra quaisquer direitos, liberdades ou propriedades individuais; quaisquer direitos de um homem de controlar sua pessoa e propriedade, e o correspondente e igual direito de outro homem de controlar sua pessoa e propriedade.

Quando um governo declara que um vício é um crime, e o pune como tal, há uma tentativa de falsear a própria natureza das coisas. É tão absurdo quanto seria uma declaração de que uma verdade é uma mentira ou de que uma mentira é uma verdade.

II. Todo ato voluntário da vida de um homem ou é virtuoso, ou é vicioso. Isto significa dizer que eles estão de acordo ou em conflito com as leis naturais da matéria e da mente, sobre as quais sua saúde física, mental e emocional e bem-estar dependem. Em outras palavras, todo ato de sua vida tende a levar, pelo todo, a sua felicidade ou a sua infelicidade. Nem um único ato em toda a sua existência é indiferente.

Além disso, cada ser humano difere de todos os outros seres humanos em sua constituição física, mental e emocional, e também pelas circunstâncias pelas quais é envolvido. Portanto, muitos atos que são virtuosos e tendem a levar à felicidade no caso de uma pessoa são viciosos e tendem a levar à infelicidade no caso de outra.

Similarmente, muitos atos que são virtuosos e tendem a levar à felicidade no caso de um homem, num dado momento, sob um conjunto de circunstâncias, são viciosos e tendem à infelicidade no caso do mesmo homem, em outro momento, sob outras circunstâncias.

III. Saber quais ações são virtuosas e quais são viciosas — em outras palavras, saber quais ações tendem a levar, no todo, à felicidade, e quais tendem a levar à infelicidade — no caso de cada um dos homens, em cada uma das situações nas quais eles se encontrem, é o estudo mais profundo e complexo ao qual a maior mente humana já pôde ou jamais poderá se dedicar. É, contudo, o estudo constante ao qual todos os homens — tanto o mais humilde em intelecto quanto o maior — são necessariamente levados pelos desejos e necessidades de sua

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própria existência. É também o estudo do qual todas as pessoas, desde seus berços até seus túmulos, precisam tirar suas próprias conclusões; porque ninguém mais sabe ou sente, ou pode saber ou sentir, o que outro homem sabe ou como ele se sente, os desejos e necessidades, as esperanças e medos, os impulsos da natureza de outra pessoa ou a pressão das circunstâncias à que ela está submetida.

IV. Freqüentemente não é possível dizer que aqueles atos que são chamados de vícios realmente o sejam, exceto em grau. Isto é, é difícil dizer que quaisquer ações, ou cursos de ação, que são chamadas de vícios, são realmente vícios se paradas antes de certo ponto. A questão da virtude ou do vício, portanto, em todos esses casos, é uma questão de quantidade e grau, e não do caráter intrínseco de qualquer ato único, por si mesmo. Este fato se soma à dificuldade, para não dizer à impossibilidade, para qualquer um — exceto para o próprio indivíduo — estabelecer uma linha exata, ou qualquer coisa como uma linha exata, entre a virtude e o vício; isto é, dizer onde acaba a virtude e começa o vício. E esta é outra razão por que toda essa questão da virtude e do vício deva ser deixada para cada pessoa decidir por si mesma.

V. Vícios são normalmente prazerosos, pelo menos no momento em que se passa, e freqüentemente não se revelam como vícios, por seus efeitos, senão depois de serem praticados por muitos anos, talvez por uma vida inteira. Para muitos, talvez para a maioria, daqueles que os praticam, eles jamais se revelam como vícios durante a vida. As virtudes, por outro lado, freqüentemente parecem tão duras e severas, requerem o sacrifício de tanta felicidade presente, e os resultados, os quais provam que elas são virtudes, estão freqüentemente tão distantes e obscuros, tão absolutamente invisíveis às mentes de muitos, especialmente às dos jovens, que, pela própria natureza das coisas, não pode haver conhecimento universal, ou mesmo geral, de que são virtudes. Na verdade, estudos de profundos filósofos foram empreendidos — senão totalmente em vão, certamente com resultados bem pouco expressivos — para delimitar a fronteira entre as virtudes e os vícios.

Então, se é tão difícil, quase impossível, na maioria dos casos, determinar o que é e o que não é um vício; se é tão difícil, em quase todos os casos, determinar onde termina a virtude e começa o vício; e se essas questões, às quais ninguém pode realmente e verdadeiramente resolver senão para si mesmo, não devem permanecer livres e abertas para experimentação por todos, cada pessoa é privada do maior de seus direitos como ser humano, a saber: seu direito de inquirir, investigar, raciocinar, experimentar, julgar e determinar por si mesmo o que é, para si, uma virtude, e o que é, para si, um vício; em outras palavras: o que, no todo, conduz à sua felicidade, e o que, no todo, conduz à sua infelicidade. Se este grande direito não permanecer livre e aberto a todos, então todos os direitos do homem, como seres humano racionais, à "liberdade e à busca pela felicidade" são negados.

VI. Todos nós vimos ao mundo em ignorância de nós mesmos e de tudo a nossa volta. Por uma lei fundamental de nossa natureza, todos somos constantemente impelidos pelo desejo de alcançar a felicidade e pelo medo sofrer a dor. Mas nós temos tudo a aprender quanto ao que pode nos trazer a felicidade e evitar a dor. Nenhum de nós é totalmente igual a outra pessoa, física, mental ou emocionalmente; ou, conseqüentemente, em nossos requerimentos físicos, mentais ou emocionais para a aquisição da felicidade e para a evasão da infelicidade. Nenhum de nós, portanto, pode aprender essa indispensável lição da felicidade e da infelicidade, da virtude e do vício, através de outra pessoa. Cada um deve aprender por si mesmo. Para aprendê-la, o indivíduo precisa ter liberdade de tentar todas as experiências que são recomendadas por seu julgamento. Algumas de suas experiências terão sucesso e, por conta desse sucesso, são chamadas de virtudes; outras falham e, por causa dessa falha, elas são

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chamadas de vícios. Ele acumula conhecimento tanto através de suas falhas quanto através de seus sucessos; tanto através de seus vícios quanto de suas virtudes. Ambos são necessários para sua aquisição do conhecimento — de sua própria natureza, do mundo que o envolve e de suas adaptações ou não-adaptações um com o outro — que mostrará a ele como a felicidade é alcançada e a dor evitada. E, a não ser que ele possa tentar essas experiências para sua própria satisfação, sua aquisição de conhecimento é restringida e, conseqüentemente, também o é a busca do grande propósito e dever de sua vida.

VII. Um homem não tem obrigação alguma de aceitar a palavra de alguém, ou de dar autoridade a alguém, numa questão tão vital para si mesmo, em relação à qual ninguém mais tem ou pode ter tanto interesse quanto ele. Ele não pode seguramente confiar nas opiniões de outros homens, porque ele vê que as opiniões dos outros homens não são as mesmas. Certas ações ou cursos de ação têm sido praticadas por muitos milhões de homens, através de sucessivas gerações, e foram consideradas por eles como sendo, no todo, conducentes à felicidade e, portanto, virtuosas. Outros homens, em outras eras ou países, ou sob outras condições, consideraram, como resultado de suas experiências e observações, que essas ações conduziam, no todo, à infelicidade e que, portanto, eram viciosas. A questão da virtude e do vício, como já se notou numa seção anterior, também tem sido, na maioria das mentes, uma questão de grau; isto é, da extensão à qual certas ações devem ser executadas, não do caráter intrínseco de qualquer ato individual em si. As questões da virtude e do vício, assim, têm sido tão variadas e, de fato, tão infinitas quanto as variedades da mente, dos corpos e das condições dos diferentes indivíduos que habitam o mundo. E a experiência das eras deixou um número infinito dessas questões não resolvidas. Na verdade, mal se pode dizer que alguma tenha sido resolvida.

VIII. No meio dessa infindável variedade de opiniões, que homem ou conjunto de homens tem o direito de dizer, em relação a qualquer ação ou curso de ação particular "Nós fizemos esse experimento e resolvemos todas as questões envolvidas nele. Nós as resolvemos não apenas para nós mesmos, mas para todos os homens. E todos aqueles que forem mais fracos que nós serão coagidos a agir em obediência a nossa conclusão. Não serão feitas mais quaisquer experiências ou pesquisas por ninguém, e, conseqüentemente, não haverá mais aquisição de conhecimento por ninguém"?

Quais os homens que têm o direito de dizer isso? Certamente não há nenhum. Os homens que de fato dizem isso são grandes impostores e tiranos que impediriam o progresso do

conhecimento e usurpariam o absoluto controle sobre as mentes e os corpos dos outros

homens; deve-se, portanto, resistir a eles imediatamente e até o fim; eles são demasiado ignorantes em relação às próprias fraquezas e em relação às suas relações com os outros homens para serem dignos de algo que não piedade ou desprezo....

IX. É óbvio agora, pelas razões já apresentadas, que o governo seria completamente impraticável se fosse tomar conhecimento dos vícios e puni-los como crimes. Todo ser humano tem seus próprios vícios. Quase todos os homens têm muitos. E eles são de todos os tipos; fisiológicos, mentais, emocionais; religiosos, sociais, comerciais, industriais, econômicos, etc., etc. Se o governo deve tomar conhecimento de quaisquer desses vícios e puni-los como crimes, então, para ser consistente, deve tomar conhecimento de todos eles e puni-los imparcialmente. A conseqüência seria a de que todos estariam na prisão por seus vícios. Não haveria ninguém livre para trancar as portas daqueles que estivessem atrás das grades. De fato, não existiriam suficientes cortes para processar os réus, nem prisões suficientes para abrigá-los. Toda a empreitada humana de aquisição de conhecimentos, e até mesmo de aquisição dos meios de subsistência, seria eliminada: pois todos nós seríamos constantemente

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processados e estaríamos sempre aprisionados por nossos vícios. Mas mesmo se fosse possível aprisionar todos os viciosos, nosso conhecimento da natureza humana nos diz que, via de regra, eles seriam muito mais viciosos na prisão do que jamais foram fora dela.

X. Um governo que puna todos os vícios imparcialmente é uma impossibilidade tão óbvia que ninguém jamais foi, ou jamais será, tolo o suficiente para propô-lo. O máximo que alguns propõem é que os governos devessem punir algum, ou no máximo alguns, vícios considerados mais grosseiros. Mas essa discriminação é completamente absurda, ilógica e tirânica. Que direito tem qualquer conjunto de homens de dizer "Os vícios dos outros homens nós puniremos, mas nossos próprios vícios ninguém punirá. Nós impediremos que os outros homens busquem sua própria felicidade de acordo com suas convicções, mas ninguém poderá

nos impedir de buscar nossa própria felicidade de acordo com nossas próprias convicções. Nós

impediremos que outros homens adquiram qualquer conhecimento experimental do que é conducente ou necessário às suas próprias felicidades, mas ninguém poderá nos impedir de adquirir conhecimento experimental daquilo que é conducente ou necessário à nossa própria felicidade"?...

XII. É uma impossibilidade natural que o governo tenha o direito de punir os homens por seus

vícios; porque é impossível que um governo tenha quaisquer direitos, exceto aqueles que os

indivíduos que o compõem tinham anteriormente, enquanto indivíduos. Eles não poderiam delegar a um governo quaisquer direitos que eles próprios não possuíssem. Eles não poderiam

contribuir ao governo com quaisquer direitos, exceto com aqueles que eles mesmos possuíam

como indivíduos. Agora, ninguém, a não ser um tolo ou um impostor, pretende ter, como indivíduo, o direito de punir outros homens por seus vícios. Mas todos têm um direito natural,

enquanto indivíduos, de punir os outros homens por seus crimes; pois todos têm um direito

natural não apenas de defender suas pessoas e propriedades de agressores, mas também de assistir e defender todos os outros cujas pessoas ou propriedades sejam invadidas. O direito natural de cada indivíduo de defender sua própria pessoa e propriedade contra uma agressão, e de ir em assistência e em defesa dos outros que têm suas pessoas ou propriedades invadidas, é um direito sem o qual nenhum homem poderia existir na terra. E o governo não tem existência legítima, exceto quando incorpora e é limitado por esse direito natural dos indivíduos. Mas a idéia de que cada homem tem um direito natural de decidir o que são virtudes e o que são vícios — isto é, o que contribui para sua felicidade e o que não contribui —, e que deve ser punido por tudo aquilo que faz que não contribui para sua felicidade, é algo que ninguém jamais teve a impudência ou a estupidez de dizer. Somente aqueles que alegam que o governo tem algum poder legítimo, o qual nenhum indivíduo ou grupo de indivíduos

jamais delegou ou poderia delegar a ele, alegam que o governo tem qualquer poder legítimo

de punir vícios.

É suficiente para um papa ou para um rei — que diz ter recebido sua autoridade diretamente do Paraíso para governar os outros homens — alegar possuir o direito, como enviado de Deus, de punir os homens por seus vícios; mas é um gritante e completo absurdo que qualquer governo que alegue derivar seu poder do consentimento de seus governados, pretender ter tal poder; porque todos sabem que os governados nunca poderiam concedê-lo. Eles o concederem seria uma absurdidade, porque seria a concessão de seus próprios direitos de buscar suas próprias felicidades, uma vez que ceder o direito de julgar o que é conducente para suas felicidades é o mesmo que abrir mão de todo o direito de buscar a própria felicidade.

XIII. Nós agora podemos ver quão simples, fácil e razoável é um governo que puna crimes, em comparação a um que puna vícios. Crimes são poucos, e facilmente distinguíveis de todos os outros atos; e a humanidade geralmente concorda quanto a quais atos são crimes. Em

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contraste, vícios são inúmeros; e não há duas pessoas que concordem, exceto em comparativamente poucos casos, quanto a o que são vícios. Além disso, todos desejam ter suas pessoas e propriedades protegidas contra a agressão de outros homens. Mas ninguém deseja ter sua pessoa e propriedades protegidas contra si mesmo; porque é contrário às leis fundamentais da natureza humana que alguém deseje prejudicar a si próprio. O indivíduo só deseja promover sua própria felicidade e ser seu próprio juiz quanto a o que promoverá, e pode promover, sua felicidade. Isso é o que todos desejam e a que têm direito como seres humanos. E embora nós todos cometamos muitos erros, e necessariamente devamos cometê-los dada a imperfeição de nosso conhecimento, esses erros não são argumento contra o direito, porque eles todos tendem a nos dar o próprio conhecimento de que precisamos, que buscamos e que não podemos adquirir de outra forma.

Logo, o objetivo de punir crimes não só é totalmente diferente do objetivo de punir vícios, mas se opõe diretamente a ele.

A punição de crimes pretende assegurar a todo homem a maior liberdade de que ele possa desfrutar — em consistência com os iguais direitos dos outros — para buscar sua própria felicidade através do uso de seu próprio julgamento e de sua própria propriedade. Por outro lado, a punição de vícios pretende privar todo homem de seu direito e de sua liberdade naturais de buscar sua própria felicidade através do uso de seu próprio julgamento e de sua propriedade.

Estes dois objetivos, portanto, estão em direta oposição um ao outro. Eles se opõem tão diretamente quanto a luz e a escuridão, a verdade e a mentira ou a liberdade e a escravidão. São completamente incompatíveis um com o outro, e a pretensão de que os dois sejam adotados pelo mesmo governo é uma absurdidade, uma impossibilidade. Seria como pretender que os cidadãos de um governo cometessem crimes e impedissem crimes; que destruíssem a liberdade individual e protegessem a liberdade individual.

XIV. Finalmente, sobre a liberdade individual: todo homem deve necessariamente julgar e determinar para si o que é conducente e necessário a seu próprio bem-estar e o que o destrói; pois, se ele se omite da realização desta tarefa para si mesmo, ninguém mais pode realizá-la. E ninguém mais tentaria realizá-la para ele, a não ser em alguns poucos casos. Papas, padres e reis pretenderão realizá-la para ele em certos casos, se tiverem permissão para isso. Mas eles só a realizarão de forma que, ao fazê-la, possam auxiliar no cometimento de seus vícios e crimes. Em geral, eles somente a realizarão para fazerem o homem de idiota ou para o tornarem seu escravo. Pais, com melhores motivos que os outros, sem dúvida, também tentam freqüentemente fazer o mesmo trabalho. Quando coagem ou obrigam uma criança a se abster de fazer algo que não seja realmente perigoso para ela, lhe fazem um mal, não um bem. É uma lei da Natureza a de que, para adquirir conhecimento e para incorporar esse conhecimento em sua pessoa, cada indivíduo deve obtê-lo por si próprio. Ninguém, nem mesmo seus pais, podem lhe dizer qual é a natureza do fogo, de maneira que ele a conheça. Ele precisa experimentá-lo, ser queimado pelo fogo, antes que possa conhecer sua natureza...

XV. Mas estes homens que dizem que o governo deveria usar seu poder para impedir os vícios dirão, ou costumam dizer: "Nós reconhecemos o direito de um indivíduo a buscar sua felicidade à sua maneira e, conseqüentemente, o direito de ser tão vicioso quanto lhe aprouver; nós apenas defendemos que o governo proíba a venda para ele daqueles artigos usados por ele para cometer seus vícios."

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A resposta a isto é que a simples venda de qualquer artigo — independentemente do uso que é feito dele — legalmente é um ato perfeitamente inocente. A qualidade do ato de venda depende totalmente da qualidade do uso para o qual a coisa é vendida. Se o uso de determinada coisa é virtuoso e lícito, então a venda dessa coisa, para esse uso, é virtuoso e lícito. Se o uso que se faz dela é vicioso, então sua venda é também viciosa. Se seu uso é criminoso, então sua venda, para esse uso, é criminoso. O vendedor é, no máximo, um cúmplice no uso que é feito do artigo vendido, seja ele virtuoso, vicioso ou criminoso. Quando o uso que se faz é criminoso, o vendedor é cúmplice de um crime e é punível como tal. Mas quando seu uso somente é vicioso, o vendedor é somente cúmplice de um vício e, portanto, não é punível.

XVI. Mas se perguntará: "Não há o direito, da parte do governo, a impedir as ações daqueles que se inclinam à autodestruição?"

A resposta é que o governo não tem quaisquer direitos na questão, dado que essas pessoas que são chamadas viciosas permaneçam sãs, compos mentis, capazes de exercer discernimento racional e autocontrole; pois, enquanto permanecerem sãs, elas devem poder julgar e decidir por si mesmas se o que se considera que são seus vícios são de fato vícios; se eles realmente as estão levando à destruição; e se, no todo, elas serão destruídas ou não. Quando se tornarem insanas, non compos mentis, incapazes de discernimento racional ou autocontrole, seus amigos ou vizinhos, ou o governo, devem cuidar delas e protegê-las de males e de todos aqueles que lhes infligiriam danos, da mesma maneira que fariam caso a insanidade lhes tivesse acometido por qualquer outra causa que não os supostos vícios.

Porém, da suposição, por parte de seus vizinhos, de que um homem está no caminho da autodestruição, por causa de seus vícios, não se segue que ele seja insano, non compos mentis, incapaz de discernimento racional e autocontrole, de acordo com o significado legal destes termos. Homens e mulheres podem ser dados a vícios dos mais repugnantes, e a muitos deles — tais como a gula, o alcoolismo, a prostituição, a jogatina, as brigas, a mastigação de tabaco, o fumo, o uso do rapé, do ópio, o uso de espartilhos, a apatia, o desperdício, a avareza, a hipocrisia, etc., etc. —, e ainda assim serem sãos, compos mentis, capazes de discernimento racional e autocontrole, dentro do significado legal. E, enquanto forem sãos, devem poder controlar a si mesmos e suas propriedades, e serem seus próprios juízes quanto a onde seus vícios os levarão ao fim...

Caso se pergunte como determinar a sanidade ou a insanidade de um homem vicioso, a resposta será: pelos mesmos tipos de evidência que determinam a sanidade ou insanidade daqueles que são chamados virtuosos, e de nenhuma outra forma. Isto é, pelos mesmos tipos de evidência pelos quais os tribunais legais determinam se um homem deve ser mandado a um asilo de lunáticos ou se ele tem competência para tomar decisões ou dispor de suas propriedades. Quaisquer dúvidas devem pesar em favor de sua sanidade, como em todos os casos, e não de sua insanidade.

Se uma pessoa realmente se tornar insana, non compos mentis, incapaz de discernimento racional ou autocontrole, então é um crime que outros homens dêem ou vendam a ela os meios pelos quais ela pode ferir a si mesma. Não há crimes mais facilmente puníveis, não há casos nos quais os júris estariam mais prontos a condenar, que aqueles nos quais uma pessoa sã vende ou dá a um insano um artigo pelo qual este último provavelmente ferirá a si próprio.

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XVII. Mas será dito que alguns homens se tornam, por conta de seus vícios, perigosos a outras pessoas; que um bêbado, por exemplo, às vezes é briguento e perigoso para sua família e outras pessoas. Perguntar-se-á: "Não tem a lei nada a dizer neste caso?"

A resposta é: se, por conta de sua bebedeira ou por qualquer outra causa, um homem for de fato perigoso a sua família ou a outras pessoas, não apenas ele pode ter suas ações legitimamente reprimidas, tal como requer a segurança das outras pessoas, mas todas as outras pessoas — que sabem ou têm bases razoáveis para acreditar que ele é perigoso — podem ter reprimidos quaisquer de seus atos que forneçam os meios que podem torná-lo perigoso.

Só que do fato de que um homem se torna briguento e perigoso após ingerir bebidas alcoólicas, e do fato de ser um crime dar ou vender bebidas a tal homem, não se segue que seja um crime vender bebidas a centenas de milhares de outras pessoas, que não se tornam briguentas ou perigosas ao bebê-las. Antes que um homem possa ser condenado de um crime por vender bebidas alcoólicas a um homem perigoso, deve-se demonstrar que aquele certo homem para quem se vendeu as bebidas era perigoso e que o vendedor sabia, ou tinha bases razoáveis para supor, que o homem se tornaria perigoso ao bebê-las.

A presunção da lei é, em todos os casos, de que a venda é inocente; e o ônus da prova do crime, em todo caso particular, está com o governo. E o caso particular deve ser provado criminoso independentemente de todos os outros.

A partir destes princípios, não há dificuldades em condenar e punir os homens pela cessão de quaisquer artigos a um homem que se torne perigoso pelo uso deles.

XVIII. Freqüentemente se diz que alguns vícios são transtornos (públicos ou privados), e que transtornos podem ser condenados e punidos.

É verdade que qualquer coisa que de fato e legalmente for um transtorno (público ou privado) pode ser condenado e punido. Mas não é verdade que os meros vícios privados de um homem sejam, em qualquer sentido legal, transtornos a outros homens, ou ao público.

Nenhum ato de uma pessoa pode ser um transtorno a outra, a não ser que obstrua ou interfira de alguma forma na segurança e tranqüilidade do uso ou gozo do que é legitimamente dela.

O que quer que obstrua uma via pública é um transtorno e pode ser condenado e punido. Mas um hotel onde sejam vendidas bebidas, uma loja de bebidas ou mesmo um botequim não obstruem mais uma via pública do que um armazém comum, uma loja de jóias ou um açougue.

O que quer que envenene o ar, o torne ofensivo ou insalubre é um transtorno. Mas nem um hotel, nem uma loja de bebidas, nem um botequim envenenam o ar ou o tornam ofensivo ou insalubre a outras pessoas...

XIX. Diz-se que incitar outra pessoa a cometer um vício é um crime.

Isso é absurdo. Se qualquer ato particular é somente um vício, então um homem que incita outro a cometê-lo é simplesmente um cúmplice de um vício. Ele evidentemente não comete qualquer crime, porque o cúmplice não pode cometer ofensa maior que o responsável principal...

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Volenti non fit injuria é uma máxima do direito. A quem consente não se comete injúria. Isto é,

nenhuma infração legal. E toda pessoa sã, compos mentis, capaz de discernimento racional ao julgar a validade ou a falsidade dos argumentos aos quais assente, está "consentindo", aos olhos da lei; ela toma para si toda a responsabilidade por seus atos quando nenhuma fraude intencional foi exercida sobre si...

Nós observamos o mesmo princípio no caso dos boxeadores. Se eu pousar meus dedos sobre outro homem contra a vontade dele, não importa quão levemente e quão pouco ele tenha sido injuriado, o ato é um crime. Mas se dois homens concordarem em dar suas caras a bater até que elas fiquem deformadas, isso não é um crime, é somente um vício...

XX. Algumas pessoas têm o hábito de dizer que as bebidas alcoólicas são a maior fonte de crimes; que "elas enchem nossas prisões de criminosos", e que este é motivo suficiente para proibir sua venda...

E eu acho que se verá que se deve apiedar desses homens muito mais do que puni-los, pois foi a pobreza e a miséria, não a paixão pela bebida ou pelo crime, que os levaram a beber e a cometer seus crimes sob a influência do álcool.

A acusação de que a bebida "enche nossas prisões de criminosos" é feita, penso eu, apenas por aqueles homens que não são capazes de fazer mais do que chamar um bêbado de criminoso, e que não têm melhores fundamentos para suas acusações que o vergonhoso fato de sermos pessoas tão brutais e insensíveis a ponto de condenar pessoas tão fracas e infelizes quanto os alcoólatras, como se eles fossem criminosos...

XXI. Mas se dirá, novamente, que o uso de bebidas alcoólicas tende a levar as pessoas à pobreza, tornando-as assim um fardo para os contribuintes, e que esta é razão suficiente por que a venda delas deveria ser proibida.

Há várias respostas a esse argumento.

Uma resposta é a de que se o fato de que o uso de bebidas leva à pobreza e à miséria for razão suficiente para proibir a venda delas, então é razão igualmente suficiente para a proibição do

uso delas; pois é o uso, não a venda, que leva à pobreza. O vendedor é, no máximo, um

cúmplice do bebedor. E é uma regra do direito e da razão a de que se o responsável principal de qualquer ato não é punível, o cúmplice não pode ser.

Uma segunda resposta ao argumento é a de que, se o governo tem o direito e o dever de proibir qualquer ato — que não seja criminoso — apenas porque ele supostamente leva à pobreza, então, pela mesma regra, ele tem o direito e o dever de proibir todo e qualquer outro ato — não criminoso — que, na opinião do governo, tende a levar à pobreza. E, a partir deste princípio, o governo não apenas teria o direito, mas o dever, de investigar cuidadosamente os assuntos privados de todo homem e os gastos pessoais de todas as pessoas, para determinar quais deles tenderam e quais não tenderam à pobreza, e proibir e punir todos aqueles da primeira classe. Um homem não teria direito de gastar um centavo de sua propriedade de acordo com sua vontade ou julgamento, a não ser que a legislatura fosse da opinião de que aquele gasto não o levaria à pobreza...

Embora um homem possa freqüentemente, por inexperiência ou mal julgamento, gastar alguma porção dos produtos de seu trabalho de maneira imprudente, de uma forma que não promova seu maior bem-estar, ele ganha sabedoria, da mesma forma que em todas as outras

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questões, através da experiência; por seus erros tanto quanto por seus sucessos. E essa é a

única maneira pela qual ele pode adquirir sabedoria. Quando ele se convence de que fez um

gasto tolo, ele aprende a não mais fazê-lo. Ele precisa poder tentar seus próprios experimentos, e tentá-los para sua própria satisfação, nesta tanto quanto noutras questões; pois caso contrário ele não terá maior motivo para trabalhar ou criar riquezas.

XXII. Uma resposta diferente e definitiva ao argumento de que o uso de bebidas alcoólicas tende a levar à pobreza é a de que, via de regra, ele coloca o efeito à frente da causa. Ele assume que é o uso de bebidas que causa a pobreza, em vez de ser a pobreza que causa o uso de bebidas...

De fato, a pobreza de grande parte da humanidade, em todo o mundo, é o grande problema mundial. Que essa extrema e quase universal pobreza exista em todo o mundo, e que tenha existido durante todas as gerações passadas, prova que ela se origina em causas as quais a natureza humana comum daqueles que sofrem com ela não foi até hoje capaz de superar. Mas os que sofrem estão, ao menos, começando a ver essas causas e decidindo-se por eliminá-las, custe o que custar. E aqueles que imaginam que não têm nada a fazer além de atribuir a pobreza das pessoas a seus vícios, e repreendê-las por isso, então despertarão para o dia em que toda essa conversa estará no passado. E a questão então não mais será sobre quais são os vícios dos homens, mas quais são seus direitos?

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Dois Conceitos de Liberdade

Isaiah Berlin (1909-1997)

Quando há consenso sobre os fins, restam apenas questões relativas aos meios. Essas questões não são políticas, mas técnicas. Por isso, os que confiam em que algum fenômeno descomunal — como o triunfo definitivo da razão ou a revolução do proletariado — poderá transformar o mundo acreditam que todos os problemas políticos e morais podem ser transformados em problemas técnicos.

Há mais de cem anos, Heine advertiu os franceses a não subestimarem o poder das idéias. No entanto, os filósofos estranhamente parecem não ter consciência dos devastadores efeitos de suas atividades. Os melhores desdenham a política; no entanto, a política permanece indissoluvelmente ligada a qualquer forma de indagação filosófica. Negligenciar o pensamento político é entregar-se a crenças políticas primárias e desprovidas de críticas. Em conseqüência, nossas atitudes e ações permanecem obscuras para nós mesmos, a menos que compreendamos as questões mais relevantes de nosso tempo.

A principal dessas questões é a guerra aberta travada entre dois sistemas de idéias que propõem respostas distintas e conflitantes à questão central da política — a da obediência e da coação. “Por que devo obedecer a alguém?” “Por que não devo viver como me agrada?” “Preciso obedecer?” “Se eu desobedecer, poderei ser coagido?” “Por quem e até que ponto, e em nome de que e em favor de quê?”

***

Coagir um indivíduo é privá-lo da liberdade — mas, que liberdade? Como felicidade e bondade, e como natureza e realidade, o significado do termo “liberdade” é ambíguo. Não proponho discutir os mais de duzentos sentidos do termo, usado pelos historiadores das idéias. Proponho examinar apenas os seus dois sentidos principais.

O primeiro sentido político de liberdade, que (com base em muitos precedentes) chamarei de “negativo”, vem incorporado na resposta à pergunta “Qual é a área em que o sujeito — um indivíduo ou um grupo de indivíduos — está livre, ou se deveria permitir que fosse, da interferência dos outros?” O segundo sentido, que chamarei de positivo, vem incorporado na resposta à pergunta “O que ou quem é a fonte de controle ou de interferência que pode determinar que alguém faça, ou seja, uma coisa e não outra?” As duas perguntas são obviamente distintas, mesmo que haja alguma justaposição nas respostas a ambas.

O conceito de liberdade “negativa”

Sou livre na medida em que ninguém ou nenhum grupo de indivíduos interfere com as minhas atividades. A liberdade política, nesse sentido, é simplesmente a área em que posso agir sem sofrer limitações de terceiros. Ao contrário, coerção significa a interferência

deliberada de outros seres humanos na área em que eu poderia, de outra forma, agir. Não se possui liberdade política quando se está sendo impedido por outros de alcançar um objetivo.

Argumenta-se, plausivelmente, que, se um indivíduo é tão pobre que não pode dispor de alguma coisa que não é legalmente proibida (uma fatia de pão, uma viagem em volta do mundo, um recurso aos tribunais), ele tem tão pouca liberdade para dispor dessa coisa quanto teria se ela fosse proibida por lei.

“A natureza das coisas não nos põe loucos; o desejo doentio, sim” — disse Rousseau. Se acredito que estou em estado de carência por algum arranjo específico que considero ilegal ou

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injusto, refiro-me à opressão ou à escravidão econômica, ao papel que acredito que outros estão representando para frustrar meus desejos. Por “ser livre” nesse sentido, quero dizer não sofrer interferência de terceiros. Quanto maior a área sobre a qual não há interferência, mais ampla a minha liberdade.

Esse é o sentido que os filósofos políticos clássicos ingleses davam ao termo “liberdade”. Discordavam quanto à extensão que poderia ou deveria ter essa área. A razão dessa discordância era dupla. Primeiro, porque os fins e as atividades dos indivíduos não se harmonizam automaticamente. Segundo, porque os indivíduos atribuem alto valor a outros objetivos, como justiça, felicidade, cultura, segurança ou graus variados de igualdade. E por atribuírem alto valor a esses objetivos, os indivíduos estão dispostos a restringir a própria liberdade em favor de outros valores.

Em conseqüência, esses pensadores julgavam que a área de livre ação dos indivíduos deveria ser limitada pela lei. Segue-se daí a necessidade de traçar-se uma linha que separe a área da vida privada e a da autoridade pública. Mas propiciar direitos ou salvaguardas políticas contra a intervenção do Estado a indivíduos que mal têm o que vestir, que são analfabetos, subnutridos e doentes, é fazer pouco de sua condição. As primeiras coisas devem vir em primeiro lugar: há situações em que um par de botas vale mais que as obras de Shakespeare; a liberdade individual não é a principal necessidade para todo mundo.

***

Filósofos com uma visão otimista da natureza humana e com a crença na possibilidade de harmonização dos interesses humanos, como Locke ou Adam Smith, e, sob certos aspectos, Mill, acreditavam que o progresso e a harmonia social eram compatíveis com a manutenção de ampla área para a vida privada, além de cujos limites nem o Estado nem qualquer outra autoridade teriam permissão de passar. Hobbes, e os conservadores e reacionários que pensavam como ele, argumentava que, para evitar que os indivíduos se destruíssem uns aos outros e transformassem a vida social em uma selva, seria necessário instituir maiores salvaguardas para mantê-los em seus lugares. Isto é, aumentar o controle e reduzir a área de liberdade do indivíduo.

Mas liberais e conservadores concordavam que uma parcela da existência humana precisa continuar independente da esfera de controle social. Qualquer que seja o princípio segundo o qual deva ser traçada a área de não-interferência — o direito natural ou os termos de um imperativo categórico, a sacralidade do contrato social ou qualquer outro — “liberdade” nesse sentido significa liberdade de: ou seja, ausência de interferência além da linha traçada.

O que tornou a proteção da liberdade individual tão sagrada para Mill? Em seu famoso ensaio, ele afirma que a civilização não poderá progredir, a não ser que os indivíduos possam viver como desejam “no caminho que diz respeito apenas a eles mesmos”; que, por falta de um mercado de idéias livre, a verdade não virá à tona; e não haverá espaço para a espontaneidade, para a originalidade, para o gênio, para a energia mental, para a coragem moral. A sociedade será esmagada pela “mediocridade coletiva”.

Podemos observar três fatos a respeito dessa posição. Em primeiro lugar, Mill confunde duas noções distintas. A primeira é a de que a coerção, por frustrar desejos humanos, é má em si mesma, enquanto a não-interferência, que é o oposto da coerção, é boa em si. Esse é o conceito “negativo” de liberdade em sua forma clássica. Ninguém duvidaria que a verdade ou a liberdade de expressão pudesse florescer onde o dogma esmaga o pensamento. Mas a evidência histórica mostra que a integridade, o amor à verdade e o individualismo apaixonado também brotam em comunidades rigidamente controladas. Se isso ocorre, cai por terra o argumento de Mill em favor da liberdade como condição necessária para o aperfeiçoamento do gênio humano.

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Em segundo lugar, essa doutrina é relativamente moderna. Condorcet observou que a noção de direitos individuais não existia nos direitos romano e grego. A predominância desse ideal tem sido mais exceção que regra, mesmo na história recente do Ocidente. Tampouco esse sentido de liberdade constituiu um apelo à união para as grandes massas humanas. A vontade de não sofrer restrições é uma característica de alta civilização, tanto para os indivíduos quanto para as comunidades. O próprio senso de privacidade deriva de uma concepção de liberdade que é pouco mais antiga que a Renascença ou a Reforma. O seu declínio marcaria a morte de uma civilização, de todo um posicionamento moral.

A terceira característica dessa noção de liberdade é da maior importância. É a de que “liberdade”, nesse sentido, não é incompatível com alguns tipos de autocracia ou com a ausência de autogoverno. A liberdade nesse sentido tem relação com a área de controle, não com sua fonte e, pelo menos do ponto de vista lógico, não está relacionada necessariamente com a democracia ou com o autogoverno. Não há uma conexão necessária entre liberdade individual e democracia. A resposta à pergunta: “Quem me governa?” é logicamente distinta da pergunta “Até que ponto o governo interfere comigo?” É nessa diferença que reside o grande contraste entre os conceitos de liberdade positiva e liberdade negativa. O sentido “positivo” de liberdade surge ao tentarmos responder não à pergunta “Sou livre para fazer ou ser o quê?”, mas à pergunta “Por quem sou governado?” ou “Quem vai dizer o que sou e o que não sou, o que ser ou o que fazer?”

A conexão entre democracia e liberdade individual é muito mais tênue do que parece a muitos defensores de ambas. O desejo de ser governado por mim mesmo ou de participar do processo através do qual minha vida é controlada pode ser um desejo tão profundo quanto o de ter uma área livre para agir. Mas não são desejos relativos à mesma coisa. Na realidade, são tão diferentes que levaram ao grande conflito de ideologias que domina nosso mundo. Pois é a concepção “positiva” de liberdade, não a liberdade de, mas a liberdade para (levar uma forma de vida determinada) que os adeptos do conceito de liberdade “negativa” imaginam que seja nada mais do que um ilusório disfarce para a tirania brutal.

O conceito de liberdade positiva

O sentido “positivo” da palavra “liberdade” tem origem no desejo do indivíduo de ser seu próprio amo e senhor — o desejo de se autogovernar.

A liberdade que consiste em ser seu próprio senhor e a liberdade que consiste em não ser impedido de fazer minhas próprias escolhas por terceiros podem parecer conceitos não muito distintos entre si. No entanto, as noções “positiva” e “negativa” de liberdade percorreram historicamente caminhos distintos, até que entraram em conflito.

Uma maneira de tornar clara essa distinção é observar como a metáfora do auto-governo ganhou um momentum independente. Será que, ao se libertarem da escravidão espiritual ou da escravidão à natureza os indivíduos não se tornaram conscientes de um ego que domina e de algo neles que é dominado? O ego dominante é identificado com a razão (a minha “natureza superior”). Dominados são o impulso irracional e os desejos incontroláveis (a minha natureza “inferior”), que precisam ser rigidamente controlados para que o ego atinja a plenitude de sua natureza “real”.

Podemos imaginar que os dois egos estão divididos por um fosso ainda maior: pode-se conceber o ego real como algo maior que o indivíduo, como um “todo” social do qual o indivíduo constitui um elemento ou um aspecto: uma tribo, uma raça, uma igreja, um Estado, a grande sociedade dos vivos e dos mortos e dos que ainda estão por nascer. Essa entidade é então identificada com o ego “verdadeiro” que, impondo sua própria vontade coletiva ou

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“orgânica” sobre os “membros” recalcitrantes, consegue a sua (e, em conseqüência, a deles) própria liberdade “superior”.

O que torna plausível esse tipo de linguagem é o reconhecimento de que é possível, e às vezes justificável, coagir os indivíduos em nome de algum objetivo (digamos, justiça ou bem-estar público) que eles mesmos buscariam se fossem mais esclarecidos. Isso torna mais fácil aceitar que estou coagindo outros em seu próprio benefício, e não em meu interesse; e que sei, mais que eles próprios, do que realmente necessitam.

Mas poderei ir adiante e dizer ainda mais que isso. Poderei dizer que, na verdade, eles estão visando o que conscientemente resistem na sua incultura, porque há neles uma entidade oculta — seu desejo racional latente ou seu propósito “verdadeiro” — e que essa entidade é o seu ego “verdadeiro”. Adotado esse ponto de vista, é possível ignorar as verdadeiras aspirações dos indivíduos ou sociedades e oprimi-los e torturá-los em nome de seus egos “verdadeiros”. E com a firme certeza de que, qualquer que seja a verdadeira aspiração do homem, ela é idêntica à liberdade — à livre escolha de seu ego “verdadeiro”, embora quase sempre sufocado e desarticulado.

Isso mostra que as concepções de liberdade se originam diretamente de opiniões sobre o que constitui um ego, um pessoa, um indivíduo. Pode-se manipular as definições de indivíduo e de liberdade com o objetivo de que signifique o que o manipulador deseja. A história recente tem evidenciado que não se trata de questão puramente acadêmica.

Liberdade e soberania

A Revolução Francesa foi, em sua fase jacobina, a erupção do desejo de liberdade “positiva” de autogoverno coletivo de grande número de franceses que se sentiam liberados como nação, muito embora para muitos o resultado tenha sido uma severa restrição das liberdades individuais. Rousseau apontou que as leis da liberdade eram mais austeras que o jugo da tirania. Para ele, liberdade não é a liberdade “negativa” do indivíduo de não sofrer interferências em uma área definida, mas a posse por todos — e não somente pelos membros mais qualificados da sociedade — de uma quota do poder público que pode interferir em todos os aspectos da vida de todos os cidadãos. Em razão disso, Benjamin Constant viu em Rousseau o mais perigoso inimigo da liberdade individual.

Para Constant, Mill, Tocqueville e para a tradição liberal a que pertenciam, nenhuma sociedade é livre exceto se governada, de uma maneira ou de outra, por dois princípios inter-relacionados: primeiro, que nenhum poder (mas apenas direitos) pode ser considerado absoluto, de forma que todos os indivíduos, não importa o poder que os governe, tenham um direito absoluto de se recusarem a agir desumanamente; e, segundo, que há áreas limitadas, não traçadas artificialmente, onde os indivíduos devem ser invioláveis. Seus limites são definidos segundo regras amplamente aceitas há muito tempo, e observá-las já constitui participar da concepção do que seja um ser humano normal e, portanto, também do que seja agir de maneira desumana ou insana; regras de que seria absurdo dizer, por exemplo, que tais regras poderiam ser revogadas por algum procedimento formal da parte de alguma corte ou de algum poder soberano.

Esse conceito “negativo” de liberdade situa-se no pólo oposto dos propósitos daqueles que acreditam em liberdade no sentido “positivo”. Os primeiros querem limitar a autoridade como tal. Os últimos a querem posta em suas próprias mãos. Trata-se de um tema fundamental. Não se trata de duas interpretações diferentes de um só conceito, mas de duas atitudes profundamente distintas e irreconciliáveis quanto às finalidades da vida.

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