• Nenhum resultado encontrado

Heidegger e o problema do solipsismo existencial: uma leitura habermasiana

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2021

Share "Heidegger e o problema do solipsismo existencial: uma leitura habermasiana"

Copied!
123
0
0

Texto

(1)

0

UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA

RENÊ HAMILTON DINI FILHO

HEIDEGGER E O PROBLEMA DO SOLIPSISMO EXISTENCIAL: Uma leitura habermasiana

Florianópolis 2009

(2)

1

RENÊ HAMILTON DINI FILHO

HEIDEGGER E O PROBLEMA DO SOLIPSISMO EXISTENCIAL: Uma leitura habermasiana

Dissertação apresentada como requisito parcial à obtenção do título de Mestre em Filosofia do Programa de Pós-Graduação em Filosofia do Centro de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Santa Catarina.

Orientador: Prof. Luiz Hebeche, Dr.

Florianópolis 2009

(3)
(4)

3

RESUMO

Este trabalho procura mostrar uma leitura que Habermas faz da proposta de superação da metafísica realizada por Heidegger. Esta leitura conduz à idéia de que tal empreendimento leva a um solipsismo existencial, devido à centralização das relações no ser-aí. Assim, Heidegger retornaria a um projeto de cunho metafísico. Habermas pretende fazer a crítica à subjetividade por meio do conceito de intersubjetividade. Para expor esta crítica foi necessário explicar conceitos centrais, como racionalidade, pragmática e consenso. Habermas procura aprimorar a corrente hermenêutica por meio de avanços realizados pela corrente semântica, culminando na proposta de um mundo de vida linguisticamente interpretado, entendido pragmaticamente. Porém, se por um lado o projeto heideggeriano gerou o problema do solipsimo existencial, por outro, de modo equivalente, a proposta habermasiana levou-o ao dilema da superação do “abismo” entre verdade e justificação, o qual somente pôde ser resolvido com a assimilação dos conceitos de realismo mínimo e naturalismo fraco.

Palavras-chave: solipsismo existencial, intersubjetividade, realismo mínimo e naturalismo fraco.

(5)

4

ABSTRACT

This dissertation starts off by presenting Habermas' reading of Heidegger's attempt to overcome metaphysics. It is shown, first of all, that such a reading is prone to succumb to existential solipsism, in virtue of the centralization of relationships in the Dasein, which is tantamount to saying that Heidegger would be heading back to metaphysics. In turn, Habermas strives to make the criticism of subjectivity by means of the concept of intersubjectivity. In order to show this criticism, it is necessary to explain some central concepts like rationality, pragmatism and consensus. Habermas is intent on polishing up the hermeneutic standpoint by resorting to the achievements in semantics, which leads us to a viewpoint of a world of life that is interpreted form a linguistc point of view, as it is thought of pragmatically. However, if on the one hand Heidegger's approach contenances existential solipsism, on the other hand, Habermas' approach gets stuck in the dillema of overcoming the "gap" between truth and justification, which can only be solved by assimilating the concepts of a minimun realism and a weak version of naturalism.

(6)

5

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ... 6 1 CONCEITOS FUNDAMENTAIS EM HABERMAS ... .... 15 1.1. O SURGIMENTO DOS CONCEITOS DE RACIONALIDADE E

MODERNIDADE... 15 1.2. O CONCEITO DE CONSENSO EM HABERMAS... ... 27 1.3. A INFLUÊNCIA DAS CORRENTES HERMENÊUTICAS E

ANALÍTICAS: O GIRO LINGÜÍSTICO ... 33 1.4. A RACIONALIDADE EM HABERMAS... ... 39 1.5. A PRAGMÁTICA UNIVERSAL ... 56

2 O PROBLEMA DO SOLIPSISMO EXISTENCIAL E A SUPERAÇÃO DE VERDADE E JUSTIFICAÇÃO... 66 2.1. HABERMAS E O DISCURSO FILOSÓFICO DA MODERNIDADE:

CRÍTICAS A HEIDEGGER... 66 2.2. SER E TEMPO: APROPRIAÇÕES E CRÍTICAS ... .... 72 2.3. O PROBLEMA DO "ABISMO" ENTRE VERDADE E JUSTIFICAÇÃO... .... 104

CONCLUSÃO... ... 111 REFERÊNCIAS... ... 119

(7)

6

INTRODUÇÃO

Este trabalho procura mostrar como Habermas utiliza-se das correntes analíticas e hermenêuticas da filosofia da linguagem, e qual a importância da crítica ao solipsismo existencial em “Ser e Tempo” para o seu pensamento. Porém, para que esta exposição se realize, mostrou-se necessário ampliar a visão sobre o pensamento de Habermas. Esta empreitada, unida à anterior, gerou esta análise da leitura habermasiana de Heidegger.

A primeira parte deste trabalho procurará explicitar alguns conceitos importantes para a compreensão do pensamento de Habermas, tais como o surgimento da discussão sobre racionalidade e modernidade com Weber e Hegel (o qual será abordado brevemente), e a compreensão contemporânea dos conceitos de consenso, racionalidade e pragmática. Deixaremos em segundo plano a exposição da diferença de seu pensamento antes e depois de 1999. Nesta parte seguiremos unicamente o pensamento de Habermas, sem considerar o de Heidegger, para que se possa compreender qual é o instrumental utilizado na análise de “Ser e Tempo”.

A segunda parte atém-se mais às apropriações e críticas que Habermas faz de Heidegger, principalmente quanto à questão do solipsismo existencial, pois esta remete à questão central da filosofia do sujeito e à questão metafísica que a envolve. Estas críticas e apropriações contribuem para mostrar como Habermas supera o problema do “abismo” entre verdade e justificação, último texto desta parte.

Habermas desenvolve sua empreitada em um diálogo com a filosofia da linguagem, buscando resolver as questões que daí surgem e mostrando as incorporações e rejeições ao projeto de Heidegger. Queremos esclarecer aqui como sua proposta distingue-se da de Heidegger, através de temas como a intersubjetividade, o pré-teórico e a relação entre discurso e linguagem.

De um modo geral, o trabalho situa-se no âmbito da filosofia da linguagem. A filosofia da linguagem não é propriamente uma escola ou doutrina. Ela aparece como questão filosófica. Em Platão, a questão resolve-se postulando as idéias como referência extralingüística a garantir a significatividade da linguagem. Em Aristóteles, ela subjaz em uma teoria do significado. Para os estóicos, a questão foi problematizada nas relações entre significado e significante, significado e coisa. A linguagem, aliás, não é assunto somente da filosofia, mas também da psicologia, da antropologia, da gramática.

(8)

7

Contemporaneamente, a filosofia da linguagem pode ser entendida em dois sentidos. A corrente filosófica denominada hermenêutica compreende a linguagem como um diálogo (lógos) entre presente, passado e futuro; esta é a dimensão histórico-reflexiva-hermenêutica da linguagem. Portanto, a linguagem já existe antes da distinção metafísica entre pensar e falar, antes da questão epistêmica sujeito-objeto. O conceito de “abertura” diz que o homem está disposto a conhecer sempre e de modo diferente o ser, pertencendo essencialmente ao círculo hermenêutico entre compreender e explicar. O pensar está ligado ao mundo e à linguagem, opondo-se à objetivação.

Em contraposição, uma outra corrente, chamada analítica, entende a linguagem como o instrumento com que o homem domina o mundo. Aceita plenamente o conhecimento obtido pelas ciências naturais e pela matemática; aceita, portanto, o método causal-analítico das ciências, opondo-se à teologia, à metafísica e aos juízos de valor. Esta corrente surgiu nos anos 30 do século passado com o positivismo lógico do círculo de Viena, cujos principais representantes são R. Carnap, F. Waissmann, H. Reichenbach, desenvolvendo-se em G. Frege, B. Russell, A. N. Whitehead, A. Tarski, J. Lukasenswicz e L. Wittgenstein. A filosofia analítica deixou de questionar o “mundo das coisas”, debruçando-se sobre a própria linguagem, buscando distinguir enunciados dotados de sentido de sentenças que nada significam. Os pensadores que mais contribuíram para este método foram B. Russerl, G. E. Moore e L. Wittgenstein. Aqui, o conceito fundamental é o de signo, dividido em: a) sintaxe: relação de signos lingüísticos entre si; e b) semântica: relação dos signos lingüísticos com o designado.

A filosofia analítica busca fundamentação em seu discurso seguindo uma dupla direção. Inicialmente, G. Frege, B. Russell, R. Carnap, Nelson Goodman, e Willard van Quine construíram sistemas, ou linguagens ideais, com o intuito de eliminar a ambigüidade da linguagem, tornando-a mais precisa e objetiva, dotada de maior cientificidade. E, posteriormente, G. Moore, G. Ryle, J. L. Austin procuraram esclarecer a linguagem através do uso dos termos da linguagem natural, almejando formar uma metalinguagem. L.Wittgenstein expressa-se por ambas as linhas, resguardadas suas características e especificidades. Ele busca discutir a distinção entre pensar (conceito) e falar (palavra), através do que denomina jogos de linguagem. A dicotomia em seu pensamento pode ser entrevista tanto no “Tractatus Logicus Philosophicus” como nas “Investigações Filosóficas”.

Sucessor da escola de Frankfurt, Habermas buscará auxílio nas duas correntes, a hermenêutica e a analítica, para fundamentar, entre outras coisas, as ciências sociológicas. Mas seu texto transcende um tratado sociológico, pois o consenso entre falantes sustenta-se

(9)

8

por meio de um discurso pragmático que procura revisar a tradição pelo viés da filosofia da linguagem, propondo um novo modo de entender as ciências naturais e humanas.

Habermas, no início da “Teoria da Ação Comunicativa”, expõe uma das proposições fundamentais do livro: “o tema fundamental da filosofia é a razão”; outra tese de Habermas é a de que a razão manifestar-se-ia historicamente; logo, se ela é histórica é porque valoriza fatos e interpretações de fatos, confirmando com isto que a linguagem não só explicita a razão, mas é ela mesma a razão. Este assunto está conectado com a questão da crítica da metafísica, que Habermas faz à tradição que sustenta uma teoria da consciência. Sua saída consiste em substituir a consciência pela linguagem de modo que se elimine a noção de “processo” entre a razão e a linguagem. Elas devem ser coincidentes, razão = linguagem.

Habermas tem a intenção de abolir a teoria metafísica da linguagem com uma linguagem pragmática, ou seja, para ele, a noção de processo faria retornar a uma teoria da consciência, o que neste caso significaria manter um idealismo epistemológico.

A tese de Habermas pode, grosso modo, ser resumida da seguinte forma: se há condições formais da ação comunicativa, então elas serão um reflexo intransponível e último da própria ação comunicativa. Podemos obter os elementos e atributos que caracterizam a idéia de razão por meio de uma correspondência entre a linguagem e a lógica que a fundamenta, a qual obedece ao princípio de não-contradição, e então ter-se-ia as condições formais ou uma base para o recurso ao fundamento na linguagem.

Para Habermas, o princípio do discurso e as pretensões de validade do discurso são as condições de possibilidade da ação comunicativa, as quais serão expostas através da linguagem, entendida pragmaticamente. As pretensões são quatro: 1) retitude: adequação das normas ao que se quer; 2) verdade: conteúdo proposicional; 3) veracidade: manifestação das ações; 4) inteligibilidade: compreensão do ato (condição da própria fala: lógica). O princípio do discurso é: “Nada pode ser reivindicado como válido a não ser aquilo que possa ser fundamentado racionalmente através de argumentos” (HERRERO, 1991, p. 56). Estas são as condições para uma ação comunicativa que pode possibilitar consenso e entendimento.

A pragmática, defendida por Habermas antes de “Verdade e Justificação”, pode ser entendida como uma “pragmática da verdade”: no próprio interior da ação comunicativa cria-se um concria-senso (processo em constante realização, por cria-ser a linguagem aí, viva, reformulante), ou seja, durante a prática do discurso dá-se o caráter pragmático-consensual da verdade, definindo-se também o critério e a natureza da verdade. Deste modo, surgem intersubjetivamente as condições de possibilidade da comunicação.

(10)

9

No entanto, Habermas precisa mostrar se as condições de possibilidade da ação comunicativa têm de ser aceitas por aqueles que buscam o entendimento, a posteriori, ou se elas têm também um fundamento a priori, lógico.

Habermas claramente sustenta uma fundamentação concomitante com a lógica tradicional, apoiando-se no conceito de ‘contradição performática’, desenvolvido por Apel (que, por sua vez, baseou-se no argumento de Aristóteles contra os sofistas, no livro IV da ‘Metafisica’). A estratégia desse argumento é levar o argumentador a, reflexivamente, dar-se conta que, ao argumentar, compromete-se com certas condições que não podem ser negadas sem contradição (performativa), mas que também não podem ser provadas dedutivamente sem círculo, ou seja, sem petição de princípio. Através da redução ao absurdo dos argumentos daqueles que negam a possibilidade das condições da ação comunicativa, conseguir-se-ia provar indiretamente a necessidade das condições de possibilidade do entendimento. Esta proposta procura resolver o problema do formalismo kantiano pela supressão de um eu metafísico, substituindo a consciência monológica por uma pragmática-consensual.

A fundamentação de uma linguagem pragmática, sob os princípios de uma lógica que não pode se auto-negar, possibilitaria condições formais da linguagem e do discurso, ou seja, uma pragmática da verdade e da ética. Apoiando-se no giro lingüístico de Wittgenstein, “verdade” certamente se manifesta na linguagem. Deste modo, a verdade tem origem, para Habermas, na ação de comunicação. O princípio de universalização da ética encontra seu fundamento junto às condições de possibilidade da ação comunicativa. Porém, a pergunta que ainda deverá ser respondida é: qual a relação de importância e dependência da linguagem com a verdade lógica?

O segundo Wittgenstein defende que o significado dos enunciados é determinado por uma pluralidade de jogos de linguagem e depende do emprego das expressões. O significado seria o mais concreto, não sendo possível distinguir o significado da pluralidade de suas condições. Enunciados e expressões ganhariam seu significado no cotidiano à medida que se domina o modo de emprego. O significado é o modo como uma expressão lingüística é usada. Deste modo, a análise ou descrição das expressões no interior de uma língua é ‘jogo de linguagem’ e este faria a demarcação do sentido próprio de tais expressões. Este é também um método de análise lingüística, em que, diferentemente da análise feita pelos filósofos analíticos, o enunciado não é mais o núcleo da análise. Rompe-se com a tradição que acreditava que a proposição ou o enunciado fosse o núcleo do significado. A proposta de Habermas é a de que as propriedades lógico-semânticas dos enunciados (sua estrutura predicativa) estariam nas questões pragmático-intencionais inerentes ao emprego dos

(11)

10

enunciados, no interior de um jogo; este seria um modo de mostrar a compreensão do significado lingüístico. São ante-predicativos os fatores pragmático-intencionais que permitem aos enunciados não apenas significarem, mas a posteriori possuírem valores semânticos de verdade ou falsidade.

Habermas concorda em muitos pontos com a posição de Wittgenstein. Porém, o modo como Habermas utiliza o primeiro e o segundo Wittgenstein, é coisa de que não trataremos senão de relance, sem perder de vista a análise habermasiana da questão do solipsismo existencial.

A questão do solipsismo é típica da filosofia moderna, em que a epistemologia é o modo de se responder à questão sobre o “eu” e o “mundo”. Descartes, Leibniz e Kant são representantes deste tempo, onde cabia a questão do solipsismo, já que o objetivo máximo era fundamentar a relação entre sujeito e objeto.

Foi Heidegger quem superou a filosofia como epistemologia. Então, que sentido há em acusá-lo de solipsismo, se o que propõe é a eliminação do modelo sujeito-objeto ou objeto-designação? Habermas está na contemporaneidade da filosofia da linguagem e sua crítica não é ingênua. Ela direciona-se ao modo como Heidegger fundamenta a linguagem, a partir da constituição existencial do ser-aí, que, segundo Habermas, ainda demonstra traços de um solipsismo.

A questão filosófica que tratava do eu e do mundo tornou-se a relação entre o pensamento e a linguagem. Como expõe o professor Emanuel Carneiro Leão, no prefácio de Ser e Tempo, a questão do ser é a questão do pensar e, para Heidegger, deveria ser entendido que “pensar o sentido do ser é escutar a realidade nos vórtices das realizações” (HEIDEGGER, 1988a, p, 15). O que se escuta é um teórico (entendido como um pré-lingüístico), o que envolveria, para seus críticos (inclusive Habermas), um processo oculto que remontaria às teorias tradicionais da consciência. A solução consiste em apoiar-se em Wittgenstein: pensar é linguagem.

De qualquer modo, Heidegger não concorda com a gramática de Wittgenstein, pois acredita que pensar e linguagem são derivados existenciários do ser ontológico. Já Wittgenstein entende que pensar é linguagem. Sendo assim, para Heidegger as circunvoluções do ser não é linguagem, mas mostram-se pela linguagem: esta diferença se faz marcante através do que entende como lógos hermenêutico e lógos apofântico.

Também devemos ressaltar que Habermas distancia-se tanto de Heidegger como de Wittgenstein. Ele entende que o pensamento se faz com o conhecimento do mundo. E ‘mundo’ deve ser entendido como mundo compartilhado. Sendo assim, o conhecimento

(12)

11

somente pode ser conhecimento compartilhado e criado comunicativamente no ato da fala, intersubjetivamente.

A tese de Habermas consiste em demonstrar que o acordo entre os falantes se dá a priori por meio de regras lógicas imanentes ao discurso. Nesse ponto, pode-se ressaltar que, para Heidegger, o pensamento “antecede” a lógica e a linguagem, pois estas são resultado de um processo de “cristalização”, que realizamos em nossa relação de abertura com o ser. É neste ponto que alguns autores acusam Heidegger de estar preso à tradição que entende o “pensamento” como sendo fruto de um processo oculto.

A crítica feita por Habermas ao solipsismo existencial busca ressaltar que Heidegger estaria preso à tradição da filosofia da consciência, o que acarretaria em um monocentrismo nas relações do ser-aí. Conseqüentemente, a fundamentação da linguagem despreza os elementos pragmáticos-intencionais desenvolvidos pela corrente analítica, o que remeteria a uma dificuldade em distinguir e definir os tipos de enunciados científicos e filosóficos, embaralhando ciência e filosofia. Habermas acha que, para esta distinção, é necessário assumir, como já dissemos, um realismo mínimo. Outra crítica a Heidegger acusa-o de desprezar o valor da razão e do entendimento, tornando a ética e a política secundários.

Para Habermas, o conceito de modernidade conecta-se com o conceito de racionalidade através da complementação das duas grandes correntes da filosofia, a hermenêutica e a analítica. Mas se, por um lado, Habermas critica Heidegger e a filosofia hermenêutica, por outro, irá utilizar-se de seus avanços para corrigir a corrente analítica a fim de restaurá-la como uma filosofia pragmática que valoriza a fala entre os falantes. Assim, ele expõe os elementos do discurso que mostram o sentido de uma racionalidade ou de racionalidades do discurso. Todo esse processo será fundamentado através do que Habermas denomina pragmática universal.

Como já dito anteriormente, a primeira parte deste trabalho tem o objetivo de mostrar a importância que a virada pragmático-lingüística tem para a leitura que Habermas faz de “Ser e Tempo”. Esta virada procura resolver o problema do subjetivismo transcendental (ou da consciência). Habermas busca uma filosofia prática, e vê nos esforços da tradição o desenvolvimento de uma teoria que abandona a práxis.

Para Habermas, a filosofia é pragmática universal. É a partir dela que lê a tradição, na intenção de mostrar a normatividade do entendimento mútuo. Ele inspira-se principalmente na teoria crítica da sociedade, desenvolvida pela escola de Frankfurt. Habermas dá à práxis o nome de ação comunicativa, fundamentando uma teoria do discurso que embasa as concepções morais, éticas, do direito e democracia.

(13)

12

Apesar de afirmar que sua filosofia não se inspirou pela questão metafísica do ser, ou pela epistemologia, ou ainda pela semântica das proposições enunciativas, Habermas mantém-se criticamente ligado a elas, reformulando-as e refletindo-as pragmaticamente.

A intenção de Habermas é mostrar que, depois da virada lingüística, deve-se eliminar a hierarquização entre a teoria do conhecimento, considerada a “filosofia primeira”, e o agir e a comunicação, que haviam sidos subjugados à esfera dos fenômenos, ou seja, ocupavam um status derivado. Com a virada, pretende-se nivelar a representação e o agir, pois a linguagem prestar-se-ia a ambos.

Para tanto, ele realiza uma releitura da filosofia analítica, utilizando-se do instrumental da corrente hermenêutica; este é o caminho que o leva à pragmática formal. Por outro lado, utiliza os avanços da filosofia analítica (principalmente a teoria dos atos de fala) para mostrar a complexa relação entre a abertura lingüística do mundo e os processos intramundanos de aprendizagem. A dialética entre ambos constituiria um conceito de mundo, que deve ser entendido como enraizado em uma maneira prática de chegar a bom termo sobre as coisas (consenso, responsabilidade, ética, moral), que por sua vez deve estar fundada na capacidade de resolvermos problemas: a pragmática universal.

A pragmática universal é o modo de entrecruzarmos os tipos de racionalidades ou realidades. Por esse motivo, desenvolve-se uma “ontologia” para mostrar que temos realidades que se fundam no modo como nos dirigimos linguisticamente às coisas. Habermas dá a cada realidade linguisticamente estruturada o nome de racionalidade, em cuja composição surge o sentido de uma racionalidade em sentido geral (“Racionalidade”, com maiúscula). São três as racionalidades: epistêmica, teleológica e comunicativa, sendo a linguagem um quarto âmbito.

A discussão que Habermas trava com a ontologia tradicional se dá no sentido de resgatar um naturalismo, o qual chamará de fraco. Assim, ele busca resolver o problema de como conciliar o mundo da vida linguisticamente estruturado e o desenvolvimento histórico-natural das formas de vidas socioculturais.

Por outro lado, ele provoca uma discussão epistêmica do realismo; pois, como conciliar a suposição de um mundo além do mundo de vida de cada pessoa, que se apresentaria idêntico para todos os observadores, com a filosofia da linguagem contemporânea, que nega qualquer acesso a um mundo que não seja desde sempre lingüisticamente interpretado?

A saída consiste no entrecruzamento das racionalidades. A racionalidade epistêmica expressaria as representações estruturadas pela abertura lingüística, enquanto a racionalidade

(14)

13

teleológica mostraria, por meio da ação comunicativa, os processos intramundanos de aprendizagem.

Habermas entende que Heidegger ainda pertence à tradição da filosofia da consciência, apesar de seus avanços. Mostraremos como Habermas entende isto, a partir da “acusação” de solipsismo existencial que faz a “Ser e Tempo”.

O naturalismo fraco e o realismo mínimo são o modo como Habermas encontra para refutar um ser-aí heideggeriano que desvaloriza intersubjetivamente o outro para a construção do conhecimento, não aceitando que o discurso possa ser fundamentado. Habermas afirma que Heidegger nega a possibilidade de atribuição objetiva de verdade ou falsidade às sentenças e enunciados, negando, consequentemente, a possibilidade de qualquer realismo ou naturalismo.

Em “Teoria da Ação Comunicativa”, Habermas busca desenvolver uma teoria consensual da verdade, sustentada pelo uso pragmático da linguagem, para resolver a relação entre os enunciados e a realidade. Teoria e prática: estas relações pragmáticas dependeriam de uma constituição prévia dos objetos da experiência. Com isso, Habermas liga a verdade à pragmática universal e a uma teoria do conhecimento, atendo-se deste modo ao problema da objetividade.

A teoria do conhecimento de Habermas remete principalmente a Kant, mas, no entanto, não assimila a consciência transcendental, a qual entende a constituição das experiências regulada por formas a priori. Ele entende que a constituição das experiências resulta da interação entre receptividade sensível, ação e representação lingüística. Ou seja, ao invés de assimilar a síntese transcendental dos dados para a formação da consciência do objeto, Habermas vai propor uma síntese transcendental da interpretação, que ocorre linguisticamente através do acordo entre falantes, ou da comunidade de comunicação.

Habermas procura uma fundamentação antropológica para a teoria do conhecimento: todas as experiências são pautadas pelo sentido. O que significa que todo horizonte de sentido é guiado pela existência. Habermas entende este estágio da constituição de sentido como um pré-teórico que mostra a gênese do sentido, o que difere da questão da validade do conhecimento. Esta deve ser compreendida dentro da esfera reflexiva, no âmbito dos atos de fala pragmáticos, e não mais no âmbito existencial.

A formação de mundo peculiar a cada pessoa mostra que o conhecimento inicia-se interpretativamente por meio da subjetividade individual. Porém, as condições de possibilidade da linguagem são construídas pelo caráter consensual e pragmático do discurso,

(15)

14

regulando, deste modo, a formação de mundo através do processo público de aprendizagem, e consequentemente a decisão sobre a verdade dos enunciados.

Em “Verdade e Justificação”, Habermas decide abandonar a fundamentação de uma teoria da verdade. Esta virada radical é de difícil exposição. É, porém, importante entender que não ocorre um abandono de sua teoria do conhecimento antropológica. No entanto, ele resolve assumir a diferença entre as sentenças que são verdadeiras (fazem referência ao mundo) e sentenças que são justificadas (possuem um conteúdo normativo). Esta distinção (que não era assumida em “Teoria da Ação Comunicativa”) ocorre em função da adoção de um realismo mínimo e de um naturalismo fraco. E é justamente este o caminho que Habermas encontra para escapar dos meandros da filosofia da consciência e do solipsismo que lhe subjaz.

(16)

15

1 CONCEITOS FUNDAMENTAIS EM HABERMAS

1.1. O SURGIMENTO DOS CONCEITOS DE RACIONALIDADE E MODERNIDADE

Com o ensaio “Modernidade – um projeto inacabado”, Jürgen Habermas, em 1980, recebeu o prêmio Adorno. Os aspectos filosóficos desta proposta foram discutidos mediante o neo-estruturalismo francês e o conceito de pós-modernidade. A crítica estruturalista da razão tornou-se seu principal tema, desenvolvido em “Discurso Filosófico da Modernidade” (adiante DFM), escrito em 1985. Neste, fica claro que o autor pretende revigorar o conceito de razão, trilhado pelos pensadores iluministas e da escola de Frankfurt. Ele entende que é necessário mostrar como o racionalismo ocidental foi corrompido pela crítica da metafísica. Habermas entende que esta discussão deve ser realizada com Heidegger.

A discussão com a modernidade dar-se-á por meio da revitalização de um caminho hegeliano, weberiano e do “esclarecimento”. Neste sentido, o projeto se mostra: a união da teoria crítica (tema de sua época) com uma teoria social (desenvolvida pelos estudiosos de Frankfurt) remete a uma teoria crítica da sociedade. A fundamentação habermasiana procura valorizar o aspecto comunicativo. Assim, a união da teoria crítica da sociedade com a filosofia da linguagem comunicativa levou ao desenvolvimento da teoria da ação comunicativa.

O conceito de modernidade é tratado por Habermas na “Teoria da Ação Comunicativa” (adiante TAC), em um diálogo com Max Weber; e, mais tarde, no DFM, em uma rediscussão com Hegel. No entanto, ater-nos-emos a mostrar mais detalhadamente a discussão de Habermas com Weber, e somente de relance abordaremos sua relação com Hegel.1 O projeto da ‘modernidade’ de Hegel e Weber leva Habermas a desenvolver o conceito de inacabamento do processo de modernidade.

Mostra-se importante fazer uma retrospecção introdutória sobre a leitura que Habermas faz de Weber, e depois Hegel. O primeiro trata a modernidade sob o conceito de racionalidade e nos esclarece de onde surge o conceito tríplice de racionalidade desenvolvido por Habermas; já a discussão que Habermas faz com Hegel no DFM trata a questão do

1 A idéia é mostrar a influência de Hegel em Habermas. A exposição da leitura habermasiana de Hegel é longa e

detalhada e sua análise, apesar de importante, foge à meta do texto. O tema sobre o inacabamento da modernidade será melhor explicado na última parte. Assim, a interpretação que Habermas faz de Hegel para a compreensão do conceito de modernidade não será aprofundada, mas comentada rapidamente.

(17)

16

inacabamento do projeto da modernidade. É importante também entender a diferença de posições que o autor toma a respeito da racionalidade entre TAC e DFM.

Habermas entende que Max Weber lança mão do conceito de racionalidade como um fio condutor da análise do que chamou de ‘processo de desencantamento’, decorrente da crise das imagens religiosas ocorrida na Europa, o que permitiu uma situação favorável ao desenvolvimento de um ‘racionalismo’. Este processo racional foi concomitante ao desenvolvimento das ciências empíricas, propiciando uma cultura ‘profana’ e gerando uma idéia do mundo que negava as imagens que tradicionalmente a religião pregava. Esta nova imagem do mundo foi entendida também como a passagem histórica da idade medieval para a idade moderna.

‘Modernidade’ era, então, um modo de anunciar um novo pensamento e uma nova imagem do mundo, o racionalismo ocidental, resguardando a esperança de uma nova era. Esta deveria ser entendida como um novo modo de vida: a ‘sociedade moderna’, foco dos estudos de Weber. À medida que o cotidiano foi tomado por uma racionalização cultural e social que valorizava uma ação administrativa e econômica com respeito a fins, iniciou-se um processo de dissolução das formas de vida tradicionais.

Em TAC, o autor menciona que esse conceito de racionalização com respeito a fins, desenvolvido por Weber, é compartilhado também por Marx, Horkheimer e Adorno. Èmile Durkheim e G.H. Mead chamaram a atenção: a racionalização dá-se pela universalização das normas de ação e por uma generalização dos valores, os quais dirigem a formação das identidades, forçando a individuação e a alienação. A racionalidade moderna propicia, portanto, um relacionamento reflexivo com as tradições.

Em TAC, Habermas enumera os fenômenos que Max Weber elencou para caracterizar o racionalismo da cultura ocidental, mas, em razão da extensa lista, ele procura analisar os aspectos da crítica de Weber sob os pontos de vista conceitual e de conteúdo, para saber se o autor entende o racionalismo ocidental de modo restrito a uma cultura, ou se utiliza o conceito em sentido universal. Para isso, Habermas apóia-se na divisão de Parsons para analisar o racionalismo ocidental: os aspectos da sociedade, da cultura e da personalidade. Com relação ao primeiro aspecto, a modernização desenvolve-se concomitantemente com (1) a economia capitalista e (2) o Estado moderno, que se relacionam mutuamente, formando um (3) Estado de direito, que repousa sobre um princípio de positivação. Estas três características da sociedade moderna seriam a expressão do racionalismo ocidental, responsáveis pela caracterização dos outros dois aspectos da modernização: a cultura e a personalidade.

(18)

17

A racionalização cultural dá-se na ciência e técnica modernas, na arte autônoma e em uma ética regida por princípios fundados na religião; deve ser entendida como “a ampliação do saber empírico, e da capacidade de predição, e do domínio instrumental e organizativo sobre os processos empíricos”. (HABERMAS, 1989, p. 216).

Este método de racionalização cultural repercute nos processos de aprendizagem, pois gera uma objetivação metódica da natureza, devido à influência da escolástica e à matematização no método de formação das teorias e das experimentações. Logo, toda inovação técnica será dependente desse desenvolvimento da ciência. Habermas ressalta em Weber: é a “recepção metódica da ciência a serviço da economia, o que verdadeiramente se converte em uma das peças-chave para o desenvolvimento da ‘metodização da vida’, e que contribuíram para determinados fenômenos como a Reforma e o Renascimento”. (HABERMAS, 1989, p. 216).

No entanto, Habermas frisa que Weber se atém à discussão sobre a história da forma moderna de conduzir a vida (Lebensführung), e à significação prática que esse modo de vida tem para a economia. A fim de explicar o nascimento da sociedade moderna, ele não se deteve essencialmente na história da ciência e da técnica para a compreensão da cultura ocidental, senão para delimitá-la. Para Habermas, este tangenciamento da questão deve-se ao fato de Weber acreditar que o desenvolvimento da ciência contrasta com a estrutura do pensamento científico, e deve ser analisada por meio das formas da racionalidade.

Esta compreensão científica do mundo, que considera o conhecimento empírico-analítico e consequentemente uma transformação mecânico-causal da realidade, levou ao processo histórico-universal de desencantamento do mundo, de onde surgem definitivamente tensões com os postulados religiosos e éticos. A ciência passa a ser respaldada na matemática, e repudia qualquer consideração sobre coisas que se referem ao ‘sentido’ do acontecer intramundano. Assim, a arte também é um dos fenômenos de racionalização cultural, já que suas atuações dentro e fora das igrejas “constituem agora como um cosmos de valores autônomos que são apreendidos de forma cada vez mais consciente”. (HABERMAS, 1989, p. 218).

A autonomia artística é uma autonomia de legalidade própria. Weber está preocupado com a apreensão de tais valores estéticos autônomos para a dominação do material, ou seja: como a produção das técnicas artísticas pode influenciar reflexivamente para a dominação do material? Neste sentido, a racionalização refere-se às técnicas de realização dos valores.

Junto a essa emancipação dos valores estéticos, surge a possibilidade da racionalização da arte e do cultivo de uma consciência apartada das influências dos valores cotidianos. Surge

(19)

18

então um modo de vida descompromissado com os valores tradicionais, podendo decair na vida boêmia, compreendida aqui como uma obsessão patológica, por descomprometer-se não somente com os valores tradicionais, mas com qualquer possibilidade de construção de valores.

Entretanto, Weber acredita que a arte, como a história da ciência, ocupa um papel secundário na caracterização sociológica do conceito de racionalidade social. Esta vida boêmia, motivada pelos juízos estéticos de individuação, é um exemplo de contra-cultura que, junto com a ciência e a técnica de um lado e as modernas idéias jurídicas e morais de outro, formam o conjunto da cultura racionalizada.

Weber entende também como racionalização a autonomia do direito e da moral. O rompimento com as idéias prático-morais das doutrinas éticas e jurídicas com respeito às imagens do mundo permitiu distinguir as diferenças internas entre a razão prática e teórica, diferenças que eram obscurecidas pelas imagens do mundo cosmológicas, religiosas e metafísicas.

Quase ao mesmo tempo em que se desenvolveram as ciências experimentais, ocorreu a sistematização da ética e do direito, como ética formal e direito natural racional. Mas este processo realizou-se sobre o pano de fundo da interpretação religiosa, o que incentivou a dicotomia entre a salvação, pautada na redenção interior, e o conhecimento de um mundo exterior e objetivo.

A religiosidade soteriológica e comunitária, baseada na referência ao próximo e regida por princípios de universalidade, elimina a separação entre moral externa e interna, apontando para uma fraternidade universalista que relativiza o valor de qualquer associação concreta (como a tradição jurídica).

Desta forma, uma ética formal baseada em valores universalistas busca desvalorizar normas jurídicas que apelem a tradições sagradas, pois tais normas transformam-se em simples convenções, efeito de uma positivação: “Quanto mais marcada se torna a relação entre idéias jurídicas e a ética da intenção, tanto mais se convertem as normas, procedimentos e matérias jurídicas em objeto de discussão racional e de decisão profana” (HABERMAS, 1989, p. 221). Weber entende que seria importante investir na fundamentação racional das normas e no princípio de positivação do direito, com a idéia de que, utilizando-se um estatuto formalmente sancionado, pode-se criar qualquer direito.

A racionalização cultural, de onde surgem as estruturas de consciência das sociedades modernas, é expressa sob componentes cognitivos, estético-expressivos e moral-valorativos da tradição religiosa. Com a ciência e a técnica, a arte autônoma e os valores relativos ao

(20)

19

direito e a moral, temos três esferas de valor que obedecem à sua própria lógica. Inevitavelmente, com a formação dessa consciência, cobra-se uma legalidade própria e interna, fazendo com que ocorra conflito entre a esfera religiosa e a ética. Neste momento, surgiria algo muito “... importante para a história das religiões, o desenvolvimento e transformação dos bens (mundanos e extramundanos) em algo racional, conscientemente alcançado e algo sublimado pelo saber” (HABERMAS, 1989, p. 222). Este seria, para Habermas, o ponto de partida para a dialética da racionalização em Weber.

Com relação à personalidade, a racionalização refere-se ao modo metódico de vida (methodische lebensführung), e é implicada pela racionalização da cultura. Esta relação há de ser importante para o surgimento do capitalismo, pois é através dos valores e das disposições de ação que se descobrem as influências da ética de intenção universalista religiosa. Mais especificamente, é por meio da idéia de profissão da ética protestante que se fundamentaria uma atitude cognitivo-instrumental em relação aos processos intramundanos e às interações do trabalho social.

Weber remete às idéias calvinistas, pietistas, metodistas e de seitas nascidas de movimentos batistas com o intuito de entender o comportamento racional de vida subjacente à consciência cotidiana, e também mostrar os traços fundamentais para o processo de desencantamento: recusa da salvação por meios mágicos e sacramentais; adoção de um mundo em que, a qualquer momento, o crente pode ser divinizado, ao mesmo tempo em que este mundo não permite a visualização dos eleitos; e a idéia de profissão luterana, que faz do mundo um instrumento de Deus, tornando-o fiel e submisso ao cumprimento dos incansáveis deveres profissionais, cujo êxito externo não representa o fundamento real de si, mas um fundamento cognitivo do destino soteriológico individual. Em conseqüência disto, a vida metódica regida por princípios centrados no eu e a concentração nos recursos para alcançar a salvação apropriam-se de todos os âmbitos da existência.

Max Weber opera uma distinção entre a racionalidade do domínio teórico da realidade e a racionalidade do domínio prático. Habermas aponta que o domínio prático é o mais importante, pois seria o âmbito em que o sujeito apreende os critérios para controlar seu mundo. E assim, o conceito racional de ajuste a fins seria crucial para se entender o conceito de racionalidade que Weber quer apresentar. Weber trata a ‘modernização’ como ‘racionalização social’ porque a empresa capitalista está separada de sua ação econômica racional e o instituto estatal moderno está separado da ação administrativa racional, e ambos estão separados em uma ação racional com ajuste a fins (HABERMAS, 1989, p. 226).

(21)

20

Porém, deve-se sublinhar que não se pode reduzir a racionalidade prática a uma racionalidade com ajuste a fins.

Habermas reconstrói os cinco passos que Weber utiliza para explicar o conceito de racionalidade prática. Primeiro, ele parte da definição de técnica, que deve ser entendida como uma regra ou conjunto de regras que permitam a reprodução de uma ação. Deve-se fazer distinção entre a racionalização de técnicas em que se pode apenas observar sua regularidade comportamental de outras técnicas que podem basear-se em previsão e cálculo. Neste sentido, há técnica para tudo, e isto seria a prova de que precisamos testar quais seriam os meios mais racionais a guiar nossas ações. Ou seja, pode-se distinguir o saber de fato do saber intuitivo.

Em segundo, considerando a técnica e a racionalidade a respeito de fins como meios (somente onde o sujeito capaz de ação possa realizar os seus fins), como se poderá julgar a eficácia, o êxito, como critério de valor, já que a eficácia racional se mede objetivamente na intervenção no mundo?

Surge então, na interpretação de Habermas, a possibilidade de se entender que haja ações subjetivamente racionais com respeito aos fins com pretensão de objetividade. Para resolver este impasse, Weber lança mão do conceito de correção. “Cada vez que um determinado ponto do comportamento humano se orienta neste sentido com maior correção técnica que antes, estamos diante de um progresso técnico” (HABERMAS, 1989, p. 230). Para Habermas, este domínio técnico é muito amplo, pois trata de regras que visam não só dominar a natureza, mas também a arte e a política, etc. Poder-se-ia empregar este conceito também no âmbito sociológico?

Em terceiro, Habermas ressalta que, para Weber, as ações racionais voltadas para um fim não são somente uma racionalidade instrumental dos meios, mas também uma racionalidade de eleição de um fim com ajuste a valores. Sob este ponto de vista, uma ação racional não poderá ser somente tomada por alguma pessoalidade ou obediência a tradições. Há uma substituição da submissão à tradição pela escolha diante da constelação de interesses. Weber diz que a racionalidade formal realiza-se com as deduções que o sujeito faz em seu próprio interesse, considerando a constelação de escolhas que o meio lhe fornece, como no caso do conhecimento das técnicas econômicas. Já a racionalidade material indica as exigências (ética, política, igualitária...) que se colocam para garantir resultados. Ou seja, ‘racional’ relaciona-se com valores e fins materiais. Quando o sujeito é capaz desta racionalidade ele é capaz de ter esclarecimento sobre os princípios que o guiam, sob o aspecto instrumental da eficácia dos meios e o aspecto da correção dos fins. Weber caracteriza este

(22)

21

caráter instrumental e de eleição da racionalidade como uma racionalidade formal, em contraposição aos juízos de valor que subjazem às preferências.

Em quarto, Habermas entende que, por mais claros que sejam os sistemas de valores, não pode haver algum conteúdo específico nos postulados dos valores ou em convicções de valor últimas. Sendo assim, Weber entende que agir eticamente (com dignidade, critérios de beleza, etc.) significa obrigar-se a cumprir motivos racionais. A racionalidade dos valores medir-se-ia por propriedades formais que visam a uma fundamentação de uma vida de princípios, e não por algum conteúdo material. Os valores de uma racionalidade formal são somente aqueles abstraídos e generalizados em princípios, os quais podem ser interiorizados como formais, a ponto de, com eles, poder-se transcender as situações concretas e penetrar em todos os âmbitos da vida.

Habermas observa que a doutrina de Weber a respeito dos valores e interesses ambiciona um utilitarismo, visando converter os interesses em princípios éticos, e convertendo a racionalidade com respeito a fins em um valor. No entanto, como os interesses mudam, estes princípios éticos nunca poderiam alcançar o status de uma ética kantiana do dever, pois não visam uma máxima universal de bem.

Em quinto, Weber analisa a racionalidade prática sob três aspectos: utilização de meios, eleição de fins e orientação de valores. Estes teriam, respectivamente, as funções de: racionalidade instrumental na solução das tarefas técnicas e na construção de meios eficazes; capacidade de eleição entre as alternativas de ações; e uma racionalidade normativa na solução de tarefas prático-morais, no marco de uma ética regida por princípios. Habermas interpreta que esses três aspectos da racionalidade desenvolvidos por Weber correspondem a distintas categorias do saber: técnico, estratégico e prático-moral. Os aspectos técnicos e estratégicos do saber traduzem-se em ações orientadas a fins empíricos e analíticos e podem alcançar a precisão de um saber comprovado cientificamente. Já o saber prático-moral pode aperfeiçoar-se no âmbito das imagens religiosas do mundo e, quando autônomo, no âmbito do direito, da moral e da arte, que são competências de ações e motivos voltados para uma ação racional, e não um saber do tipo empírico.

Max Weber situa a racionalidade em um âmbito que compreende tanto a teoria como a prática. No entanto, Habermas entende que as estruturas da consciência não têm tradução direta em ações e normas de vida, sendo primariamente expressadas nas tradições culturais, sistemas e símbolos; ou seja, Weber atém-se à racionalização cultural, pois trata da sistematização das imagens do mundo e da lógica interna das esferas de valor, o que geraria uma racionalização das imagens do mundo através de relações internas entre sistemas e

(23)

22

símbolos (racional é um mundo categorialmente desencantado, ‘superando o pensamento mágico’, em direção a uma concepção moderna, reelaborando todo o conhecimento tradicional sem se identificar com ele). Isto seria a prova de que Weber não teria desenvolvido uma teoria da ação, mas uma teoria da cultura.

Habermas enxerga um viés kantiano em Weber, devido a uma tendência à análise do processo de racionalização como objetivação de um saber, assemelhando-se a um processo empírico. É como se a validez pudesse ser objetivamente verificada. Desse modo, Weber parte para uma análise, cujo objetivo é descrever os aspectos das ordens da vida.

Weber aponta o papel fundamental do protestantismo na transformação da racionalização ética das imagens do mundo, pois suas práticas desenvolveram-se sob o mesmo desencantamento que as práticas investigativas geradas por imagens do mundo cognitivamente racionalizadas. A despeito de fatores externos (como o mercado ou o Estado) ter-se-ia desenvolvido coadunadamente um processo de consciência que surgiu da síntese das tradições judaico-cristãs, árabes e gregas; este é o aspecto cultural da consciência.

Para Weber, as idéias e os interesses são originários. Ele analisa o processo de modernização sob dois aspectos: o de motivação, que é a encarnação institucional das estruturas da consciência; e o econômico, que se traduz na luta pelo poder político. Habermas entende que, quando Weber procura explicar os processos de modernização e o nascimento do capitalismo e do estado europeu no século XIX, o faz sob as estruturas da consciência.

Para Habermas, Weber permite observar que a socialização cognitiva da racionalização das imagens do mundo produz um descentramento em relação às imagens propiciadas pelas religiões. Weber entende que há uma relação cognitivamente objetivada com o mundo dos fatos, e também uma relação jurídica e moralmente objetivada em relação ao mundo interpessoal, o que permite compreender o subjetivo.

Habermas diz que a compreensão do mundo através da tradição cultural traduz-se na ação social sob três aspectos: 1) os movimentos sociais, inspirados em movimentos tradicionalistas, idéias modernas de justiça e ideais filosóficos burgueses e socialistas; 2) sistemas culturais de ação emancipadora e especialização da ciência: uma teoria do direito, publicidade jurídica informal e produção de arte através do mercado; 3) o caminho da racionalização: uma institucionalização da ação social com arrego a fins, que afeta as diversas camadas da população, introduzindo mudanças estruturais em toda a sociedade. Habermas afirma, porém, que Weber se dedica somente ao terceiro.

A economia capitalista e o estado moderno são as duas instituições que Weber vê materializadas nas estruturas da consciência moderna, desenvolvendo-se juntamente com o

(24)

23

processo de racionalização. Racionalização é entendida na perspectiva social. A racionalização social deve mostrar o modelo de organização que a empresa capitalista e o Estado moderno fazem da realidade. É a concentração dos meios materiais a condição necessária para a institucionalização das ações racionais com arrego a fins. Para o progresso dessas instituições, faz-se necessária uma administração pública que também opere racionalmente com vista a fins. Weber enxerga nessa simetria a chave para mostrar que a empresa capitalista moderna necessita, para existir, de uma justiça e uma administração que funcionem segundo previsões e cálculos, isto é, sob normas fixas em geral.

No entanto, para se entender as relações de trabalho e esclarecer como foi enraizado o processo de racionalização capitalista, não se necessita estudar a gestão econômica e administrativa, mas a própria institucionalização, o que remete à integração social entre as estruturas de ação racional com ajuste a fins e as estruturas da personalidade e o sistema institucional. A materialização institucional das estruturas da consciência surge com a racionalização ética das imagens do mundo.

Tacitamente, Habermas caracteriza o empreendimento weberiano como sendo o processo histórico universal de racionalização das imagens do mundo. Ou seja, do desencantamento das imagens místico-metafísicas do mundo surgem as estruturas de consciência modernas. Surge então, para Habermas, uma questão importante: de que modo foram transformadas as estruturas do mundo da vida das sociedades tradicionais antes que a racionalização religiosa pudesse materializar-se no modo de vida da sociedade moderna? Weber teria desenvolvido uma teoria que envolve fatores tanto internos como externos, procurando entender como se reconstroem internamente as imagens do mundo e como funciona sua lógica interna nas esferas de valor diferenciadas culturalmente. Porém, Habermas diz que seria contrafático exigir este tipo de fundamentação de um sociólogo que trabalha empiricamente.

O autor de TAC concorda que, com isto, abrem-se possibilidades nos processos de aprendizagem fundados na própria lógica evolutiva das imagens do mundo, que não podem ser realizadas em terceira pessoa, mas através da atitude realizativa da argumentação.

Habermas entende que uma teoria da racionalização permite explicações contrafáticas, às quais não se pode ter acesso senão heuristicamente, ou seja, apoiando-se na efetiva evolução dos sistemas culturais de ação da ciência, direito, moral e arte. Sendo assim, a compreensão moderna de mundo funda-se na ampliação dos saberes cognitivo-instrumental, prático-moral e estético-expressivo, sob um ponto de vista lógico-evolutivo. Weber não

(25)

24

considera as possibilidades contrafáticas de um mundo de vida racionalizado, mas trata diretamente as formas dadas no racionalismo ocidental.

Uma compreensão moderna do mundo que permite entendê-lo como um horizonte de possibilidades aberto passa a ser o modelo da racionalidade social. A empresa capitalista, entendida funcionalmente como instituição empresarial com arrego a fins, tem importância transcendental para a sociedade moderna, mas também tem importância na orientação das ações que se referem à racionalidade com ajuste a fins. Por esse motivo, Habermas entende que Weber estreita o conceito de racionalidade por meio de uma teoria da ação.

Weber procura mostrar a ética protestante como uma doutrina que se materializa no mundo da vida e nas estruturas da personalidade. Habermas entende que isso necessita de uma análise mais detalhada, pois, apesar de Weber ter apontado para uma moralidade pós-tradicional, a evolução do capitalismo orientou-se por um padrão de racionalização cognitivo-instrumental. A economia e o Estado penetram em todos os âmbitos da vida, relegando a segundo plano a racionalidade prático-moral e a estética.

Para entender como a racionalidade materializa-se no âmbito da vida é necessário entender o que Weber compreende por sentido de racionalidade geral. A tese é de que as idéias, quando consideradas em si mesmas, geram esferas culturais de valor que, quando unidas a interesses, formam ordenações na vida que regulam a posse legítima de bens. Habermas explicita três aspectos: o sistema de ordenações da vida, a lógica interna e as estruturas de consciência modernas.

Habermas afirma que Weber não apresenta distinções entre o aspecto da tradição cultural, os sistemas de ações institucionalizados e a ordem da vida. Por esse motivo, a análise da ética religiosa é considerada um simbolismo cultural, ou seja, é entendida como lógica dentro das análises das imagens do mundo.

Sendo assim, Weber apresenta as esferas em que consistem os sistemas culturais de ação e a tradição cultural. A tradição cultural seria dividida respectivamente em três esferas culturais de valor: esfera cognitiva, esfera normativa e esfera estética. E os sistemas culturais de ação seriam divididos respectivamente em três esferas referentes à posse de bens ideais: organização social da ciência, comunidade religiosa e organização social do cultivo da arte.

A idéia é que a esfera da tradição cultural cognosciva regule as ações do sistema cultural de ação, ou da organização social da ciência. Consecutivamente, as esferas tradicionais cultural, normativa e estética regulariam as ações dos sistemas culturais correspondentes, a comunidade religiosa e a organização social do cultivo da arte.

(26)

25

Há uma distinção entre a posse de bens culturais e a posse dos bens materiais, porém ambas são classificadas entre ordinárias e extraordinárias. São cinco as ordenações: 1) o interesse pela posse de bens culturais seria ordinário quando o âmbito do saber realiza a organização social da ciência, e; 2) extraordinário, quando no âmbito da arte realiza a organização social do cultivo da arte. Quanto à posse de bens materiais são ordinários; 3) quando no âmbito da riqueza se a economia e; 4) quando no âmbito do poder esboça-se a política, e; 5) extraordinário quando no âmbito do amor esboça-esboça-se comportamento contracultural e hedonista.

A tensão que surge entre a cultura e o mundo é estudada em relação à influência da religião nas ações, ou seja, procura-se entender como a formação da consciência está relacionada à posse de bens ideais e materiais. Habermas interpreta que Weber não entende o aspecto externo (do interesse) como essencial para a formação da racionalização do âmbito da vida, mas o aspecto interno (a incompatibilidade das diversas estruturas).

Enquanto a ordenação da vida está fundida com os bens ideais e os interesses, a esfera de valor possui uma legalidade própria. Deste modo, Weber contrapõe as esferas da arte e da ciência à da ética. Nesta divisão reconhecem-se os componentes cognoscivo, normativo e expressivo, e cada um deles corresponde a uma pretensão universal de validade.

Através destas esferas culturais de valor revelar-se-iam as estruturas da consciência moderna que surgem com o processo de racionalização das imagens do mundo. Este processo produz os conceitos formais de mundo objetivo, social e subjetivo e as correspondentes atitudes básicas frente a um mundo externo, cognitivo ou moralmente objetivado e um mundo interno, subjetivo. E assim distinguem-se: a atitude objetivante em relação aos processos de natureza externa; a atitude de conformidade (ou crítica) em relação à ordenação normativa da sociedade; e a atitude expressiva em relação à natureza interna da subjetividade.

As estruturas de compreensão descentradas, cujos fundamentos são constitutivos da modernidade, caracterizam-se pelo fato de um sujeito agente ou cognoscente poder optar por diferentes atitudes básicas frente aos aspectos do mesmo mundo. Da combinação das atitudes básicas com os conceitos formais do mundo produzir-se-iam novas relações fundamentais, que mostrariam a racionalização das relações com as distintas esferas, denominadas pragmático-formais.

Habermas conclui que Weber não teria desenvolvido uma teoria da linguagem, submetendo-a aos pressupostos de uma teoria da ação que visa uma racionalidade com ajuste a fins. Weber não teria analisado a racionalidade através da institucionalização equilibrada nas ordens da vida moderna, e também não determinou a prática comunicativa cotidiana. Não

(27)

26

desenvolveu uma teoria do significado, mas uma teoria intencionalista da consciência. Habermas, porém, busca uma teoria da ação comunicativa que possibilite uma teoria pragmática da linguagem. Essas considerações são importantes para situar o pensamento de Habermas.

No capítulo sobre ‘A racionalidade em Habermas’, onde procura-se expressar a posição de ‘Verdade e Justificação’(adiante VJ), há uma explicitação do quadro de relações pragmático-formais, onde ficará mais claro como Habermas utilizar-se-á do conceito de racionalização (cognitivo, expressivo e normativo) desenvolvido por Weber. Será descrito também como George Herbert Mead, através de uma teoria proposicional, contribui para a compreensão da racionalidade.

De modo geral, a pragmática universal, desenvolvida a partir da década de sessenta (isso engloba a maior parte da produção de Habermas até VJ), deixou de lado questões semânticas e epistemológicas. No TAC, Habermas opera o conceito de pragmática universal coadunado com o de verdade, o que permite que os mundos possíveis sejam derivados dos enunciados verdadeiros possíveis. O discurso pragmático entre os falantes mostra os âmbitos de vida em que, por aprendizado e discussão, chega-se ao acordo. Os usos não comunicativos da linguagem ocupavam uma importância menor, pois o que se valoriza para o aprendizado são os discursos e o acordo. Aliás, no texto ‘A pragmática universal’ (desenvolvido na primeira parte), procura-se mostrar como Habermas realiza esta fundamentação em VJ. Nesta obra, Habermas amplia o valor dos usos não-comunicativos para a formação do processo de aprendizagem, considerando principalmente o caráter antepredicativo. O discurso passa a ter o caráter de correção, ao invés do de verdade. A pragmática universal apóia-se no conceito de entendimento, e opera com pretensões de validade e com pressuposições pragmático-formais, remetendo a compreensão dos atos de fala às condições de sua aceitabilidade racional.

Discussões mais minuciosas poderiam revelar as diferenças de posicionamento do autor entre TAC e VJ, mas levariam a questões que não pretendemos discutir, pois não afetam essencialmente a proposta do trabalho. Cabe agora entendermos brevemente como Habermas vai utilizar-se de Hegel no DFM para compor o seu conceito de inacabamento da modernidade.

Habermas afirma que a palavra “modernização” foi introduzida como termo técnico nos anos 50. Porém, os estudiosos desse conceito romperam com o vínculo interno que há entre a modernidade e o contexto histórico do racionalismo ocidental, fazendo com que “modernidade” se tornasse um conceito neutro no tempo e no espaço. Esta neutralização tinha o propósito de dar um acabamento ao conceito de ‘processo de modernização’, podendo assim

(28)

27

desvinculá-lo das origens do racionalismo ocidental, e neste momento poder-se-ia ter uma ininterrupta modernização social auto-suficiente, a qual se desviaria dos impulsos de uma modernidade que pareceria saturada. Criar-se-ia então a noção de uma modernidade social dinâmica desenfreada, cujo movimento a separaria da compreensão de modernidade aparentemente ultrapassada.

Habermas chama de neoconservadores os que acreditam nesta separação e rejeitam o conceito cultural de modernidade (racionalidade). No entanto, nem todos concordam que tenha ocorrido esse desacoplamento entre modernidade e racionalidade, e apostam em um novo conceito, o de pós-modernidade, cujo desenvolvimento leva a um posicionamento anarquista com relação à forma política. Assim como os neoconservadores, eles pregam o fim da tradição da razão, e posicionam-se na pós-história. Deste modo, negam a modernidade como um todo: “[...] a razão revela sua verdadeira face - é desmascarada como subjetividade subjugadora e, ao mesmo tempo, subjugada, como vontade de dominação instrumental” (HABERMAS, 1989, p. 7). É neste grupo de pensadores pós-modernos que Habermas enquadra Heidegger.

Habermas entende que ambas as posições pós-modernas apartam-se da discussão da racionalidade por tratá-la como um assunto de uma época passada. Por um lado, permanecem presos a uma posição transcendental, ligados aos pressupostos da autocompreensão da modernidade (avaliados por Hegel). Habermas acredita que estas posições pós-modernas, na intenção de se despedirem da modernidade, apenas decidem rebelar-se contra. Ao proporem um pós-esclarecimento, na verdade estariam filiando-se à tradição do contra-esclarecimento.

Antes de abordarmos a crítica de Habermas à proposta de superação da metafísica heideggeriana vamos esclarecer alguns de seus conceitos fundamentais.

1.2. O CONCEITO DE CONSENSO EM HABERMAS

“Linguagem e entendimento são conceitos co-originários, conceitos que se explicitam mutuamente” (HABERMAS, 1989a, p. 417). Habermas quer explorar o uso comunicativo da linguagem, sua força ilocucionária2. Sendo assim, a linguagem pode ser entendida pragmaticamente, isto é, através da ação comunicativa revelar-se-iam concomitantemente o

(29)

28

entendimento e a racionalidade. A ação comunicativa mostra também outra perspectiva: ela pode ser entendida como a realização de um acordo. “Todo ato de fala é inerente ao telos do acordo” (HABERMAS, 1987, p. 27). Portanto, com o uso da fala já estaria implícita a busca do entendimento. “Na conversação que, por assim dizer, é o cerne da linguagem, os participantes querem se compreender mutuamente e ao mesmo tempo se entender a respeito de alguma coisa, ou seja, alcançar se possível um acordo”. (HABERMAS, 2004, p. 65)3.

Habermas insere a noção de ‘atos de fala’ a partir das idéias de Austin4. A ação comunicativa realiza-se mediante critérios e pretensões que possibilitam o acordo. Esses critérios podem ser expostos. A antecipação formal que ocorre entre os falantes que buscam entendimento dá-se a priori, como condições inevitáveis e necessárias para a execução pragmática da linguagem ocorrida no nível comunicativo.

O uso comunicativo da linguagem encontra-se de certa forma entrelaçado com a função cognitiva da linguagem de ambas as partes (os falantes). No entanto, o diálogo não se pauta somente pelos pontos de vista dos argüidores (suas razões e motivos), mas também

3 Tanto a noção de uma filosofia da linguagem pragmática quanto a noção de acordo foram inspiradas no estudo

de Humboldt sobre a linguagem. Na ‘Teoria da Linguagem’ de Humboldt são explicitadas três funções da linguagem: uma função cognitiva (de produzir pensamentos e representar feitos), uma função expressiva (de exteriorizar sentimentos e suscitar emoções) e uma função comunicativa (de fazer saber algo, formular objeções e gerar acordo). Habermas afirma que é possível evidenciar dois modos de utilização dessas funções para o entendimento da linguagem. No modo semântico, ele se concentra nas ‘imagens lingüísticas do mundo’, obtendo uma função cognitiva da linguagem em relação aos aspectos expressivos da mentalidade e da forma de vida. E, no modo pragmático, remete à pragmática dos diálogos: a mesma função cognitiva, mas em relação aos discursos dos participantes mutuamente. Habermas entende que com essas abordagens da linguagem levar-se-ia a desenvolver futuramente uma tensão entre particularismo e universalismo, o que corresponde respectivamente a uma abordagem semântica (como, por exemplo, Heidegger desenvolve) e a uma abordagem pragmática da linguagem, que Habermas procurará reabilitar. Segundo Habermas, Humboldt teria investigado a função cognitiva da linguagem através de uma ‘pragmática formal dos diálogos’, e teria feito uma divisão de tarefas entre estas e as ‘semânticas das imagens do mundo’. “Cabe à pragmática o papel de realçar os aspectos universalistas do processo do entendimento mútuo. Por certo, a semântica descobre a linguagem como o órgão formador do pensamento: linguagem e realidade estão de tal modo entrelaçadas que qualquer acesso direto a uma realidade não-interpretada é negado aos sujeitos cognoscentes.” ( p.69)

Esta separação de tarefas tem, na verdade, o papel crucial de união, pois estabelece “a conexão interna entre compreensão (semântica: valorização das imagens do mundo) e entendimento mútuo (valorização da pragmática através do diálogo)”(Idem). Acordo é onde se realiza esta união. A fundamentação de um consenso pragmático mostra-se como alternativa ao particularismo. A pragmática é o ‘uso vivo da fala’, pois o diálogo é o ‘centro da linguagem’. No entanto, Habermas entende que a pragmática do acordo (como Humboldt a apresenta) carece de pesquisa, perante “o entrelaçamento pragmático da função cognitiva da linguagem segundo o fio condutor do discurso sobre as pretensões de verdade”. (p. 73) Esta é uma importante e crucial diferença entre esses autores, o que somente poderá ser justificado com a análise da tradição da filosofia da linguagem.

4 Habermas baseia-se na distinção entre atos constatativos (emissões que descrevem e refletem fatos, os quais

podem ser verdadeiros ou falsos) e atos perfomáticos (não são descritivos, mas prometem algo; neste caso os enunciados não são verdadeiros ou falsos, mas felizes ou infelizes). Outra distinção importante é mantida entre os atos locucionários (que possuem sentido e referência), atos ilocucionários (que observam a força da ação do proferimento) e atos perlocucionários (que são proferidos quando se quer fazer surtir efeito sobre alguém pelo fato de se dizer alguma coisa). Habermas entende que um ato de fala perfeito ocorre quando são cumpridos tanto o aspecto constatativo (que considera o caráter locucionário) como o aspecto performativo (que considera o caráter ilocucionário e perlocucionário).

Referências

Documentos relacionados

Nessa situação temos claramente a relação de tecnovívio apresentado por Dubatti (2012) operando, visto que nessa experiência ambos os atores tra- çam um diálogo que não se dá

6 Consideraremos que a narrativa de Lewis Carroll oscila ficcionalmente entre o maravilhoso e o fantástico, chegando mesmo a sugerir-se com aspectos do estranho,

Verificou-se a ocorrência de nove famílias e onze gêneros, todas pertencentes à ordem Filicales, sendo observadas as famílias Polypodiaceae e Pteridaceae, com dois gêneros cada, e

o transferência interna: poderá requerer transferência interna o aluno que esteja regularmente matriculado na Universidade no semestre em que solicitar a transferência e

Este trabalho buscou, através de pesquisa de campo, estudar o efeito de diferentes alternativas de adubações de cobertura, quanto ao tipo de adubo e época de

O município de São João da Barra, na região Norte do Estado do Rio de Janeiro, Brasil, passa atualmente por um processo de apropriação do seu espaço por um ator que, seja pelo

17 CORTE IDH. Caso Castañeda Gutman vs.. restrição ao lançamento de uma candidatura a cargo político pode demandar o enfrentamento de temas de ordem histórica, social e política

A espectrofotometria é uma técnica quantitativa e qualitativa, a qual se A espectrofotometria é uma técnica quantitativa e qualitativa, a qual se baseia no fato de que uma