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Veto à censura e silêncio camuflado: regulamentação da mídia pela diferenciação ante a censura

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Veto à censura e silêncio camuflado:

regulamentação da mídia pela

diferenciação ante a censura

Ivan Paganotti2

ipaganotti@usp.br

University of São Paulo, Brazil

I. Introdução: contraposição legal entre termos que se

repelem

Ao analisar a regulamentação do setor comunicativo, dificilmente poderíamos ignorar a avaliação da estrutura de controle estatal que é delimitada pelos textos legais. Como as entidades que con-trolam a mídia apresentam sua estrutura e mecanismos definidos em leis, decretos ou estatutos, é essencial reconhecer, em primeiro lugar, quais são suas propostas e os mecanismos previstos nos textos legais para sua atuação. Entretanto, como bem destacam Sousa, Trützschler, Fidalgo e Lameiras (2013: 6), é necessário ir além da simples descrição do arcabouço legal que mantém em pé a edificação que pretende regulamentar a expressão midiática, avaliando também como esses mecanismos acabam atuando na prática. Essa dicotomia entre o que está expresso na letra da lei e a força – ou a flexibilidade – com que esses princípios se traduzem na prática cotidiana abrem espaço para uma reflexão essencial no caso de países que ainda engatinham no caminho tortuo-so para superar as práticas autoritárias de governos ditatoriais relativamente recentes, como no caso particular do Brasil. Ao explicitamente negar a censura em seus preceitos constitucionais, como a legislação brasileira diferencia as práticas de controle comunicativo necessárias no novo ambiente democrático do Estado de Direito do simples cerceamento da liberdade de expressão? Essa questão se coloca com evidência em diversos casos recentes, que serão aborda-dos nas páginas a seguir, em que o Estado retomou o papel polêmico de determinar que certas práticas comunicativas não podem ser expressas – ou, por outro lado, limitou seu próprio papel de controle, evitando a censura.

2 Doutorando em Ciências da Comunicação pela Universidade de São Paulo (PPGCOM-USP) sob orientação da Profa. Dra. Mayra Rodrigues Gomes com bolsa CAPES, membro do “Observatório de Comunicação, Liberdade de Expressão e Censura” (OBCOM-USP) e do “Grupo de Estudos de Linguagem: Práticas Midiáticas” (Midiato/ECA-USP). E-mail: ipaga-notti@usp.br

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bastante simples: no Estado democrático de direito, não temos mais censura, visto que ela é negada no texto jurídico (Godoy, 2008: 99). Quando ocorrem casos excepcionais em que a liberdade de expressão precisa ser controlada, estaríamos frente a um caso de colisão de princípios – regras conflitantes em que uma deve ceder (Id., 2008: 59) – ou em uma necessária ponderação de valores – quando é possível aplicar matizes de diferentes normas que defendem tutelas distintas sobre os bens jurídicos colocados em questão no mesmo caso (Barroso, 2001: 31). Assim, um filme que desrespeita a imagem da infância ao simular a violência sexual contra um recém-nascido – caso do longa-metragem A

Ser-bian Film, analisado a seguir – não é censurado, visto que essa possibilidade é proibida

pela constituição, mas deve ser proibido, por tratar-se de um conflito entre a necessária preservação da imagem da infância, como determinado pelo artigo 17 da lei 8.069, de 13 de julho de 1990 – o Estatuto da Criança e do Adolescente (Bitelli, 2010: 213) – e a liberdade de expressão dos produtores do filme, que deve ceder, nesse caso, para a pre-servação do outro bem jurídico que se pretende proteger.

Entretanto, essa abordagem ignora o ponto central do argumento exposto no início des-se trabalho: a expressão textual dos princípios da regulamentação midiática não reflete completamente sua prática, quando outras interpretações – e inclusive outros princípios de regulamentação – podem incidir para influenciar na sua aplicação. Com isso, podemos encontrar casos de evidente censura da liberdade de expressão, convivendo com a sua negação nos textos legais. Nesse cenário, podemos ainda caracterizar como “censura” o que ocorre, ou seria mais adequado adotar outra nomenclatura, em consonância com o espírito do Estado democrático de direito que nega essa prática em seu arcabouço jurí-dico? Ou, por outro lado, é necessário reforçar que essa deve ser a nomenclatura correta a ser adotada – ou qualificada, como no caso dos autores que defendem a terminologia “censura togada” (Dines, 2010: 126) para os casos de proibição da liberdade de expres-são por meio de decisões jurídicas em períodos democráticos em que essa censura, teo-ricamente, não deveria ocorrer – até mesmo para evidenciar de que esse tipo de evento é anômalo e não pode ocorrer sem tensão com o Estado democrático de direito?

Talvez esse problema possa ser esclarecido com um paralelo com outras duas questões análogas à censura: a escravidão e a tortura. Essas três violações afrontam diretamente direitos básicos da personalidade (Bittar, 1989: 63) – respectivamente, a liberdade de expressão, a liberdade de locomoção e à integridade física.

Das três, a escravidão talvez encontre sua mais ampla e antiga proibição, ainda que tar-dia: depois de séculos de utilização incentivada pelo Estado – e de décadas de tolerância branda, em seus últimos momentos – desde 1888 ela é proibida em todo o Brasil. Ainda assim, a proibição legal não impediu que trabalhadores continuassem a ser escravizados em fazendas, indústrias e comércios em todo o Brasil, o que levou inclusive à necessi-dade de reconhecimento, em 1995, de que o governo federal deveria ser mais ativo no

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escravidão no Brasil – inclusive entre membros do poder executivo, legislativo (Ojeda, 2013) e judiciário (Hashizume, 2008), que supostamente deveriam salvaguardar essas mesmas leis que desrespeitam.

Da mesma forma, a tortura foi adotada como mecanismo de controle e investigação pelo aparato policial do Estado até ser finalmente banida no final da ditadura militar (Kehl, 2010: 124). Ainda assim, diversos casos recentes mostram a persistência dessa prática como meio de coagir suspeitos e/ou punição contra infratores (O Globo, 2013).

Por fim, a censura foi também durante séculos parte dos mecanismos de controle do Estado para evitar contestações indesejadas à ordem vigente, mas também foi nega-da de forma ampla e derradeira pela Constituição de 1988. Ainnega-da assim, continuamos a deparar-nos com casos de proibição de publicação de dados, expressões artísticas ou informações, como o recente caso do jornal diário O Estado de S. Paulo, que foi proibi-do de publicar, desde 2009, notícias sobre a operação Boi Barrica, da Polícia Federal, que investigava o empresário Fernando Sarney – filho do senador e ex-presidente da república José Sarney (Mayrink, 2010: 115). Apesar da desistência da ação por parte de Sarney, o diário paulistano pretende levar o processo até o julgamento de mérito pelo Supremo Tribunal Federal, e aguarda uma decisão4 que pode criar nova jurisprudência

para a publicação de informações pela imprensa que tramitavam com segredo de justi-ça – esclarecendo que o sigilo da justijusti-ça deve ser protegido pelos agentes jurídicos, e não pelos jornalistas que tenham acesso a eles, além de evidenciar que a censura não é desejada e não pode coexistir com o Estado democrático de direito.

Para além da origem análoga como violações dos direitos da personalidade, os três ca-sos apontam um infeliz paralelo na sua evolução no decorrer do tempo: depois de um pri-meiro momento em que o Estado faz uso dessas violações (como ator principal, como no caso da censura e da tortura, ou como beneficiado indireto, no caso da escravidão), elas são posteriormente proibidas pelo próprio Estado, mas encontram ainda continuidade nas margens da lei, devido à leniência do Estado que é incapaz de impedir seus próprios operativos (caso da tortura promovida por policiais e carcereiros) ou terceiros (caso da escravidão promovida também por empresários e produtores rurais) de continuar a co-meter essas violações. Também a censura continua uma porta aberta – ainda que pelos fundos do texto constitucional – ao propiciar aos juízes a oportunidade e os mecanismos legais para proibir as expressões que incomodem o Estado, indivíduos ou grupos de inte-resse que tenham acesso privilegiado à justiça.

3 ‘O trabalho escravo no Brasil’. Escravo Nem Pensar!. Disponível em: http://www.escravonempensar.org.br/sobre-o-projeto/o-trabalho-escravo-no-brasil

4 Até a conclusão desse artigo, o caso ainda aguardava decisão do STF. Ver: http://www.estadao.com.br/estadaodeho-je/20110731/not_imp752336,0.php

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Povo, proibido de publicar, sob pena de multa diária de R$ 10 mil, reportagens sobre o processo sigiloso que investiga o presidente do Tribunal de Justiça do Paraná, o juiz Clayton Camargo, em denúncia de tráfico de influência e venda de sentenças. É bastante revelador que o juiz conseguiu, no tribunal de justiça estadual que preside, reverter a decisão da primeira instância que havia recusado seu pedido de proibição do jornal, limi-tando a liberdade de expressão para proteger sua honra (Folha Online, 2013).

Essas três violações também mostram uma característica ontológica comum: como é pró-prio dos bens jurídicos que se pretende proteger, a liberdade de expressão, assim como o direito à mobilidade e à integridade corporal são definidos, em negativo, pelo limite de suas violações. Assim, a liberdade de expressão só pode ocorrer e ser compreendida pela ausência da censura; da mesma forma, a escravidão é a negação da liberdade de mobilida-de e a tortura, a violação da integridamobilida-de corporal. É justamente essa contraposição que será o foco desse trabalho, que procura avaliar como as estruturas legais atuais procuram diferenciar-se da censura no Estado de direito democrático – mesmo quando acabam por proibir a expressão alheia – recorrendo, inadvertidamente, aos argumentos empregados anteriormente na defesa da censura em períodos autoritários.

II. Delimitação constitucional entre censura e liberdade

de expressão

Como mencionado anteriormente, essa definição do direito por contraposição à sua viola-ção é particularmente interessante no caso da censura, visto que ela precede a própria li-berdade de expressão no Brasil: ao contrário de outras nações, a proibição feita pela corte portuguesa da publicação de qualquer texto na colônia brasileira antecede as tentativas de instalação de prelos no país (Reimão, 2011: 114). A permissão e o incentivo à expressão artística e jornalística aportam juntamente com a família real em sua fuga das tropas na-poleônicas ao Rio de Janeiro em 1808, mas a expressão no Brasil continuou, desde então, a ser acompanhada por novas estruturas de censura artística e midiática.

Após a independência, o inciso IV do artigo 179 da Constituição de 1824 do recente Im-pério do Brasil já apontava que “todos podem comunicar os seus pensamentos, por pa-lavras, escritos, e publicá-los pela Imprensa, sem dependência de censura; contanto que hajam de responder pelos abusos que cometerem no exercício deste Direito, nos casos e pela forma que a Lei determinar”. Porém, já no primeiro momento dessa nova estrutura aparentemente libertária da Constituição de 1824, que permitia a publicação “sem de-pendência de censura”, ainda era exigido o respeito aos limites legais que permitiram às autoridades cercear o que consideravam abusivo (Costella, 2007: 39). A República traz nova retração nesse caráter libertário, particularmente após o Estado Novo: o inciso IX

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do artigo 113 da Constituição de 1934 determina que “em qualquer assunto é livre a manifestação de pensamento, sem dependência de censura, salvo quanto a espetáculos e diversões públicas, respondendo cada um pelos abusos que cometer, nos casos e na forma que a lei determinar”, mas aponta que “não será, porém, tolerada propaganda, de guerra ou de processos violentos, para subverter a ordem política ou social”.

A contraposição em relação à censura chegou a encontrar defesa explícita das autorida-des da época, como o diretor do serviço de censura à imprensa no Distrito Federal, Celso Vieira (apud Souza, 2003: 99), que defendeu, em artigo publicado no Diário de S. Paulo de 11/02/1936 que “a censura não é um meio violento restritivo da liberdade”, pois o cerceamento promovido pela ditadura de Getúlio Vargas seria “um remédio profilático, preventivo, de que lança mão a autoridade pública, no legítimo exercício de sua defesa própria”. Após breve período democrático em meados dos anos 1950, a ditadura militar que controlou o país de 1964 até os anos 1980 reforçou as estruturas de censura que foram herdadas do período varguista – e usadas inclusive pelos governos do hiato demo-crático – para retomar o controle da expressão artística e midiática no país. Entretanto, o posicionamento em relação à censura não podia ser mais tão explícito quanto no perí-odo Vargas, levando os militares a proibir, por meio do decreto 165-B/71, de março de 1971, a “divulgação de notícias a respeito da existência de censura, salvo a de diversões públicas”. Kushnir (2004: 121) destaca que a ditadura enfrentava pressão internacional e interna no período, e precisava ocultar as marcas de tensão crítica, censurando a ex-pressão e também a própria denúncia de censura, como é exemplificado pela Nota da Polícia Federal à Imprensa em 26/6/1973, que determinava que “(...) de ordem superior fica proibido, até posterior liberação, qualquer crítica ao sistema de censura, seu funda-mento e sua legitimidade, bem como qualquer notícia, crítica ou referência escrita, fala-da e televisafala-da, direta ou indiretamente formulafala-da contra órgãos de censura, censores e legislação censória”.

É necessário fechar essa série de textos legais que contrapõem a censura à liberdade de expressão – negando genericamente a primeira e garantindo a segunda sempre com exceções bastante amplas – com a Constituição Federal de 1988, que encerrou também o período autoritário e permitiu o retorno brasileiro ao Estado democrático de direito: em seu artigo 5º, inciso IX, determina que “é livre a expressão da atividade intelectual, artística científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença”. Assim, definitivamente, garante-se que a censura não pode mais encontrar espaço na demo-cracia brasileira; sua persistência seria uma ameaça não só à liberdade de expressão, à qual se contrapõe e delimita, mas também a todo o texto constitucional, que a veta. En-tretanto, como mencionado na introdução desse trabalho, casos de censura continuam a existir no Brasil em anos recentes. Para avaliar como essas decisões judiciais pretendem contrapor-se à censura – recusando a identificação com ela – é necessário considerar como os processos jurídicos se inserem no debate democrático, justificando-se perante o público para dar conhecimento e fundamentação às suas determinações.

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III. Tematização da censura: justificativa obrigatória e

censura barrada

A partir da teoria do agir comunicativo de Habermas (1987), é possível avaliar como o deba-te público coloca em deba-tema processos de controle da expressão, ecoando, questionando ou criticando decisões, critérios e até a legitimidade de instâncias de controle. Para Habermas, todos nós acessamos um universo cultural compartilhado – o “mundo da vida” – que funciona como horizonte de sentidos que os agentes tomem como pano de fundo para o entendimento de forma intercompreensiva. Em outras palavras, são os pressupostos culturais, as represen-tações socialmente compartilhadas, os saberes considerados como não-problemáticos, to-mados como ponto de partida e medida em ações comunicativas que buscam entendimento. Dessa forma, somente parte desse “acervo de saber” é destacada do pano de fundo e trazida ao palco do debate – ou, nas palavras de Habermas (1987, vol. I: 145), é “temati-zada”: interpretações são colocadas sob prova da crítica alheia. Como “nenhum dos im-plicados tem o monopólio da interpretação da situação”, o dissenso entre os indivíduos sobre questões que não podem mais ser consideradas como unívocas coloca em ação um jogo linguístico em que visões subjetivas de cada ator são contrapostas socialmente e em face ao panorama do mundo objetivo de que tratam (Habermas, 1987, vol. I: 145). A censura é justamente uma situação-limite de crise enunciativa, em que a tematização é barrada por força externa, ou segregada a uma esfera específica: a do direito. Se falta consenso sobre a validade normativa da publicação de informações ou pontos de vista, a tematização compreensiva (com vistas ao entendimento) é abortada por ser proibida. Entretanto, a força do controle comunicativo no Estado democrático de direito não pode ser feito só pela imposição de normas, mas a partir da sua discussão pública e aceitação coletiva, visto que uma norma só pode ser considerada como legítima se os atores públi-cos puderem ver a si mesmos como coautores desse processo de decisão e entenderem os argumentos empregados em sua defesa.

Como os argumentos empregados pelos juristas que determinam quais expressões po-dem ser permitidas ou proibidas só popo-dem ser comprovados com essa abertura à crítica, a censura encontra-se em um caso bastante peculiar: ao mesmo tempo em que procura calar e ocultar a expressão alheia, precisa mostrar os argumentos que levaram a essa proibição, levando à luz as manifestações que justamente queria obscurecer.

Habermas chama esse mecanismo de justificativa coletiva das decisões jurídicas pela sua abertura à crítica de “busca cooperativa da verdade” (Habermas, 2010: 283). Assim, o julgamento do juiz funciona como um “nó” que, por um lado, une todo o público para le-gitimar a validade de medida apresentada para apreciação e, por outro, ata as condutas de cada um em relação ao que foi coletivamente acordado, criando assim a expectativa de seu cumprimento fático.

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A publicação das decisões legislativas não só é um pressuposto para a sua aceitação coletiva, visto que também evita o perigoso, exaustivo e hermético monólogo do juris-ta (Habermas, 2010: 278): é necessário dividir com a crítica pública o fardo da busca da melhor decisão – que será mais justa se vista como mais legítima pelo maior núme-ro de pessoas.

Entretanto, como essa tematização pode ocorrer quando o próprio mecanismo de que pretende tratar – a censura – é um tabu? Por ser negado pela estrutura constitucional, não é possível justificar publicamente essa prática, que persiste problematizada, mas sem encontrar canais para escoar a tensão social sobre a contestação de seu sentido ou validade. Para poder compreender como a censura precisa então transmutar-se, é neces-sário tensionar a tematização na teoria democrática habermasiana pela crítica de Agam-ben (2004) das normas em vigência sem legitimidade no Estado de exceção.

No estado de exceção, as leis vigentes foram suspensas, e novos decretos são colocados em prática e devem ser seguidos devido a sua pura força de imposição, mesmo que sem legitimidade. Visto que “força de lei” significa tanto a eficácia da obrigação legal quanto os dispositivos que agem como leis (como decretos) sem ser aprovadas democratica-mente como deveriam, estados de exceção agem paradoxaldemocratica-mente em um cenário em que as leis que ainda existem não são mais aplicadas (não tem “força”), e só são cumpridas as normas que agem com “força de lei”, sem sê-las; uma força de lei sem lei. Por isso Agam-ben (2004: 61) aponta que o “estado de exceção é um espaço anômico onde o que está em jogo é uma força de lei sem lei (que deveria, portanto, ser escrita: força de lei)”.

Mas o que dizer do Estado democrático de direito, categorização que pode incluir o Bra-sil desde sua abertura democrática no final dos anos 1980? Agamben relembra que o estado de exceção não é somente uma ditadura, “mas um espaço vazio de direito, uma zona de anomia em que todas as determinações jurídicas – e, antes de tudo, a própria distinção entre público e privado – estão desativadas” (Agamben, 2004: 78). Essa lacuna central e “essencial à ordem jurídica” (Id., ibid.: 79) pode encontrar um paralelo aos casos de controle midiático por meio de decisões jurídicas analisados anteriormente.

Assim como a “força de lei” que atua sem fundamentação e até contra os dispositivos aprovados anteriormente, a censura encontra-se não só sem amparo nas atuais normas jurídicas brasileiras – como visto na seção anterior, é explicitamente vetada no artigo 5º da Constituição Federal de 1988 – como não encontra instâncias próprias, como no passado autoritário, para seu funcionamento. Entretanto, a falta de um atual Serviço de Censura não impede que medidas de restrição sejam adotadas com a mesma eficácia – “força” de imposição – da censura anterior. O que ocorre é uma censura que não só atua sem fundamentação ao proibir a expressão alheia, mas que também veta ser assim iden-tificada. Em disputa, o sentido da “censura” é reposicionado com a abertura democrática, e o próprio termo torna-se tabu: uma censura que proíbe ser vista como tal; analogamen-te à analogamen-terminologia de Agamben, analogamen-temos uma “censura”. Ao também vetar ser identificado, a

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censura camufla-se como “proibição de abuso”, “colisão de direitos”, “regulação social”, “classificação indicativa” ou outros disfarces. O interdito, na atual censura, já começa e termina na sua própria identificação: o tabu mais uma vez cobre com o manto de ver-gonha tanto o que quer esconder quanto a sua própria representação, que tampouco deve ser vista.

IV. Uma censura enfim negada: Classificação Indicativa

e A Serbian Film

Como visto anteriormente, com o fim da censura oficial organizada pelo aparato estatal até os últimos anos da ditadura militar brasileira, foi necessário reestruturar as agên-cias governamentais que explicitamente exerciam o controle comunicativo e artístico, como a censura de livros, peças de teatro, programas de televisão e filmes, que passou a ser foco de um controle menos proibitivo e adotou um tom mais conciliador e educativo por meio da Classificação Indicativa de públicos que podem ter acesso a esses produtos culturais. Ainda que vete a prática de cortes por parte de agentes do Estado, a classifica-ção indicativa acaba por incentivar a autocensura por parte de produtores culturais que busquem ampliar os públicos potenciais, removendo cenas e temáticas que possam ser enquadradas como conteúdo inadequado para audiências mais jovens (Paganotti, 2013). A classificação indicativa brasileira se mostra um objeto privilegiado para a análise das recomposições da tensão entre liberdade de expressão e controle justamente por ser colocada em questão, atualmente, se trata ou não de censura. Com isso, a classificação indicativa passou a sofrer o mesmo escrutínio que impõe sobre as obras audiovisuais que pretende avaliar: não está bem definido se a classificação seria somente uma “indicação”, como sugere seu próprio nome, ou se a imposição de punições como multas poderia en-volver um retorno de práticas de censura travestidas sobre o manto do Estado de direito democrático. O mecanismo da classificação indicativa é bastante claro e transparente, e sobre ele não restaria dúvida (Ministério da Justiça, 2012) – trata-se de uma decupagem sistemática de toda a produção audiovisual para avaliar sua adequação a diferentes pú-blicos etários devido à presença de conteúdos considerados indevidos por tratarem de sexo, violência ou drogas. Porém, agora seus princípios são colocados em cheque ao se questionar a fundamentação jurídica para a imposição de punições como multas. O pro-blema principal emana do artigo 254 do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que impede emissoras de “transmitir, através de rádio ou televisão, espetáculo em horário di-verso do autorizado ou sem aviso de sua classificação”, o que pode levar a “multa de vinte a cem salários de referência”; em casos mais graves, seria possível inclusive “determinar a suspensão da programação da emissora por até dois dias”.

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5 Ver: “Suspenso julgamento sobre horário obrigatório para programas de rádio e TV”. Notícias STF. Disponível em:

http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=195122

6 O processo da ADI 2404 – incluindo o voto do relator, do ministro Dias Toffoli – está disponível em: http://www.stf. jus.br/portal/processo/verProcessoAndamento.asp?numero=2404&classe=ADI&codigoClasse=0&origem=JUR&recur so=0&tipoJulgamento=M

O suspense sobre a questão é mantido desde o final de novembro de 2011, quando o ministro Joaquim Barbosa interrompeu5 o julgamento da Ação Direta de

Inconstitucio-nalidade de número 2404 ao pedir vistas nesse processo que considerava a legalidade das punições do sistema de classificação indicativa a partir da fundamentação desse artigo do ECA6. O julgamento foi interrompido logo depois que três de seus colegas – os

ministros Luiz Fux, Cármen Lúcia Antunes Rocha e Ayres Britto – seguiram o voto do re-lator Dias Toffoli a favor da medida colocada em questão a pedido do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), acatando a tese de que as emissoras não podem ser punidas, pois a clas-sificação deve ter somente caráter “indicativo”, como diz seu próprio nome (Paganotti, 2012: 127).

(...) Há, sim, censura prévia, já revelada na necessidade de submissão da programação de rádio e de televisão à autoridade administrativa, a qual, por sua vez, não apenas exercerá a classificação indicativa, no sentido de informar a faixa etária e os horá-rios aos quais “não se recomend[a]” (conforme prevê a Constituição), mas de impor e condicionar, prima facie, a veiculação da programação no horário autorizado, sob pena de incorrer em ilícito administrativo.

O que se faz, nesse caso, não é classificação indicativa, mas restrição prévia à liber-dade de conformação das emissoras de rádio e de televisão, inclusive acompanha-da de elemento repressor, de punição. O que se diz é: “a programação ‘X’ não pode ser transmitida em horário diverso do autorizado pela autoridade administrativa, sob pena de pagamento de multa e até de suspensão temporária da programação da emissora no caso de reincidência”. O que seria isso senão ato de proibição, acompa-nhado, ainda, da reprimenda? (Toffoli, 2011: 30)

Enquanto esse trabalho é escrito, em agosto de 2013, é difícil imaginar ainda o desfecho da questão – entretanto, é tentador imaginar que aos quatro votos já apresentados po-derá se somar ao menos o voto do ministro Marco Aurélio, notório defensor da liberdade de expressão em outros casos de colisão de direitos (Pretzel, 2008). Ao se aproximar da metade dos votos dos juízes, a ADI 2404 pode colocar em xeque o instrumento coercitivo que impõe a classificação indicativa. Obviamente, a classificação indicativa pode con-tinuar mesmo sem a possibilidade de multar casos de descumprimento de suas “indica-ções”. Porém, a condenação simbólica do instrumento punitivo como “censura”, como tem sido classificada pelos ministros do STF no julgamento, pode enfraquecer a legitimidade desse processo ante os olhos do público.

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o Ministério da Justiça procurou agir em duas esferas para reconstruir a legitimidade das práticas da sua classificação indicativa: nas salas de reunião, promoveu ou participou de eventos com organizações que representam formal ou informalmente o público para cos-turar e difundir apoio e sustentação para a classificação indicativa; simultaneamente, nas tribunas da imprensa, nas salas de cinema e na sala de estar dos brasileiros difundiu artigos e campanhas publicitárias para defender a importância da classificação e diferenciá-la da censura. A página principal do site do Ministério da Justiça ainda traz notícias sobre audiên-cia pública que, metonimicamente, representaria o desejo da sociedade que “apoia multa por descumprimento de classificação indicativa”7.

Em artigos (Cardozo; Abrão, 2012) ou entrevistas à imprensa, José Eduardo Cardozo, o mi-nistro da Justiça, também procura reforçar sua interpretação sobre a constitucionalidade da classificação indicativa e sua diferença em relação às práticas de censura, eixo predo-minante na estratégia da campanha que o Ministério da Justiça (MJ) buscou orquestrar em resposta ao impasse no STF:

As pessoas, às vezes, confundem conceitos. Uma coisa é a censura. É quando se impede alguém de apresentar um pensamento, apresentar um conteúdo de comunicação. É quan-do se corta, é quanquan-do se mutila uma situação em que a pessoa quer se comunicar. Outra coisa muito diferente é permitir a comunicação apenas indicando exatamente aquela faixa etária. Hoje, vivemos tempos de liberdade e é nesse contexto que temos que anali-sar a chamada classificação indicativa. (Cadozo apud Lima, 2012)

Ao indiretamente criticar a confusão de “pessoas” – entre as quais se implicariam os qua-tro minisqua-tros do STF citados anteriormente – que não saberiam diferenciar a “censura” que “corta”, “mutila” ou que “impede alguém de apresentar um pensamento” da permissão “indicando” as faixas etárias adequadas, revela-se o cerne do caráter também “indicati-vo” da campanha promovida pelo MJ. Se o poder de sanção encontra-se nas mãos do STF – que pode proibir as punições em casos de desrespeito à classificação indicativa – o executivo esboça um recuo, para reorganizar seus reforços: não mais ameaçando com punições, mas fortalecendo seu caráter paternalista ao apontar não só o que é adequado para qual faixa etária, mas qual seria o sentido apropriado para termos como “censura” ou “classificação indicativa”.

Nessa disputa, diferentes instâncias (audiência, mídia, judiciário, executivo, ONGs) concor-rem para definir o sentido de práticas adequadas: quais públicos podem ter acesso a quais

7 “Sociedade apoia multa por descumprimento de classificação indicativa”. Disponível em: http://portal.

mj.gov.br/main.asp?View={7CBDB5BE-654D-4BA8-8A49-8FC8AA654ECE}&BrowserType=IE&LangID=pt- br&params=itemID%3D{99C92CC2-3F7D-4DF6-B3AC-B8D6E0B77257}%3B&UIPartUID={2218FAF9-5230-431C-A9E3-E780D3E67DFE}

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conteúdos? Quem pode determinar o que é ou não adequado? Quem pode definir as regras do jogo – e as punições quando elas são rompidas? Como convencer o público – ou impor ar-gumentos – em casos de divergência sobre quem pode decidir sobre a visibilidade de temas polêmicos?

Como a própria estrutura da classificação da indicativa é colocada em xeque, não surpreen-de que também algumas surpreen-decisões sobre filmes polêmicos tenham atraído atenção pública ao problematicamente se aproximar da antiga censura do período autoritário anterior. Si-multaneamente ao debate do STF em Brasília sobre a validade das punições da classificação indicativa e o questionamento se essa estrutural estatal poderia ainda ecoar práticas de censura, instâncias inferiores da justiça no Rio de Janeiro e em Minas Gerais mais uma vez trouxeram ao primeiro plano o debate sobre o controle da liberdade de expressão ao proibir a exibição do longa-metragem de terror sexual “A Serbian Film – terror sem limites”.

O filme chegou a ser exibido em festivais de terror no Brasil em 2011, porém o fato de ter sido proibido ou enfrentado cortes em diversos países europeus atraiu a atenção de gru-pos religiosos e conservadores, que demandaram na justiça o embargo desse filme devido às suas cenas chocantes que simulavam incesto, pedofilia, necrofilia, assassinatos durante atos sexuais e até mesmo o estupro de um bebê recém-nascido.

Durante o RioFan (Festival Fantástico do Rio de Janeiro), o filme seria exibido no dia 23 de julho de 2011, porém a Caixa Cultural – o órgão de promoção cultural do banco estatal Caixa Econômica Federal, que patrocinava o evento – retirou o filme de cartaz em resposta a recla-mações de seus clientes (Gomes; Paganotti, 2012: 285). Na mesma semana, a juíza Katerine Jatahy Nygaard, da 1ª Vara da Infância, da Juventude e do Idoso do Rio de Janeiro, aceitou uma ação do partido conservador DEM (Democratas), proibindo A Serbian Film em 22/07/2011. Sua decisão atraiu a atenção da mídia nacional por ter considerado que a expressão artística deveria ser restrita ao colidir com a defesa da imagem da criança: “Não se pode admitir que, em favor da liberdade de expressão, um pretenso manifesto político exponha de tal forma a degradação do ser humano, a ponto de violar sexualmente um recém-nascido”8 .

Poucas semanas depois, a proibição local do Rio de Janeiro se estendeu por todo o terri-tório nacional pela liminar concedida em 08/08/2011 pelo juiz Ricardo Machado Rabelo, da 3ª Vara Federal em Belo Horizonte (MG), em resposta à ação cautelar da Procuradoria da República em Minas Gerais:

Tratando-se de um filme que traz consigo a marca da polêmica, já deflagrada inclusive em outros países, sobretudo em razão da alegada cena na qual um recém-nascido é vio-lentado sexualmente, como afirmado na inicial, creio que a decisão da Administração (Ministério da Justiça) de classificar e liberar a exibição do filme, ainda que elegendo

8 ‘Após ação do DEM, juíza dá liminar proibindo exibição de filme sérvio’. Folha Online, 23/07/2011. Disponível em:

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um prazo de 30 dias para que os órgãos competentes verifiquem a possível ocorrência de crime, subverte a ordem natural e lógica do que é razoável [...]

A concessão da liminar não se configura, como pode parecer à primeira vista, indevida intromissão do Poder Judiciário no modo de agir da Administração, o que consistiria em abominável ato de censura. Não. De forma alguma é o que estou fazendo.9

Como visto, a decisão do juiz Rabelo precisou se diferenciar da censura, mostrando que uma leitura apressada poderia levar à interpretação de que a proibição do filme seria um “abominável ato de censura”, o que não era, “de forma alguma”, o que o juiz pretendia fa-zer. Entretanto, o próprio Ministério da Justiça já classificara a obra para maiores de 18 anos, negando-se a proibi-la. Depois de o diretor-geral da Polícia Federal destacar que o filme “não incorre em nenhuma modalidade criminal”, o mesmo juiz Ricardo Machado Rabelo, ainda na 3ª Vara Federal em Belo Horizonte (MG), liberou o filme um ano após sua proibição:

É realmente muito forte. Verdadeiramente impactante. O enredo é crudelíssimo [...] Se estivesse no cinema teria me levantado e ido embora. No entanto, como juiz, não posso ser o seu censor no território nacional, como me diz a Constituição Federal.10

Não surpreende o fato de que o juiz tenha usado a mesma linha de argumentação tanto para proibir quanto para liberar esse filme: em ambos os casos, a decisão é tomada e publicamente justificada no limite do que é permitido pela Constituição, contrapondo-se à censura. No primeiro momento, para o juiz, a proibição do filme não contrapondo-se tratava de censura, e por isso poderia ser realizada para proteger o público de cenas tão fortes e preservar a imagem da infância. Um ano depois, entretanto, o juiz reposiciona seu papel, restringindo-se ao juízo de valor individual: ele pode deixar a sala de cinema e não ver o filme, mas deve deixar que as salas de cinema o exibam, permitindo que os cidadãos escolham por si sós se querem ou não ver tais cenas, visto que o juiz não pode agir como o censor alheio. A mudança de posicionamento desse juiz não só revela a dificuldade em apontar critérios sólidos para a defesa ou o controle da liberdade de expressão e o pró-prio sentido do ato da censura: o caso também deixa claro como o controle da liberdade de expressão continua a ser exercido em contraposição com uma censura que agora é indesejada e que precisa constantemente ser negada.

9Peixoto, P. ‘Justiça em Minas proíbe exibição de “A Serbian Film” em todo o Brasil’. Folha Online, 09/08/2011. Disponível em: http:// www1.folha.uol.com.br/ilustrada/957089-justica-em-minas-proibe-exibicao-de-a-serbian-film-em-todo-o-brasil.shtml

10‘Justiça libera exibição do longa “A Serbian Film” no país’. Folha Online, 11/07/2012. Disponível em: http://www1.fo-lha.uol.com.br/ilustrada/1118002-justica-libera-exibicao-do-longa-a-serbian-film-no-pais.shtml

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5. Conclusão: conceitos indefinidos e oportunidade para

insegurança jurídica

O atual impasse no STF sobre a classificação indicativa e as dúvidas sobre a proibição de filmes pelas instâncias inferiores sugerem que a definição dos “limites sobre a limita-ção” (ou seja, sobre o controle das sanções, questionadas como antidemocráticas) revela o desconforto de uma democracia recente ao lidar com o clamor por controle, vigilância e punições. As instâncias superiores da justiça já se negaram a proibir filmes – como no caso de A Serbian Film – e o Supremo Tribunal Federal pode vir a acatar a tese do relator de que as multas tratam de “censura prévia” e “ato de proibição” (Toffoli, 2011: 30), como mencionado na sessão anterior. Ainda assim, as três sentenças conflitantes de instâncias inferiores analisadas evidenciam a dificuldade em garantir que o sentido da liberdade de expressão e da censura sejam termos claros, definidos e aceitáveis pela coletividade. Como os conceitos de censura e de liberdade de expressão contrapõem-se e delimitam-se mutuamente, delimitam-se persistirem dúvidas sobre o significado ou preponderância de cada um desses termos, a garantia legal da liberdade de expressão pode ser ameaçada pela expansão dos domínios de controle da censura – ou, paradoxalmente, pela sua retirada, camuflada sobre outros termos mais obscuros.

Como mencionado na introdução desse trabalho, a censura encontra desafios contempo-râneos análogos aos enfrentados por outras duas violações de direitos da personalidade: também a tortura e a escravidão são negadas pelas leis atuais, ainda que, infelizmente, per-sistam na prática. Assim como o reconhecimento da persistência de práticas de escravidão e tortura na atualidade foi necessário para permitir seu combate – evitando eufemismos e explicitando que essas práticas devem ser classificadas com a nomenclatura correta – tam-bém é necessário, atualmente, reconhecer as práticas de censura como ela realmente são, evitando escamoteá-las com subterfúgios para poder finalmente combater a persistência dessas práticas que não podem conviver com o Estado democrático de direito.

Além disso, a indefinição de termos tão cruciais quanto “censura” dificulta a ação de indivíduos que se expressam atualmente sem saber, com clareza, quais podem ser os limites impostos ao seu direito de manifestação. Como os critérios para a censura são incertos, movediços e variam de caso a caso – ou, como vimos, até no mesmo caso, pelo mesmo juiz – essa falta de clareza nubla as expectativas dos indivíduos que pretendem se expressar e, atualmente, encontram-se sempre fragilizados pela constante ameaça de sanções incertas pelo que pode ser considerado como inadequado em suas manifes-tações. Da mesma forma, é difícil acatar e reconhecer como legítimos os argumentos empregados na justificativa das decisões que bloqueiam a liberdade de expressão ar-tística ou midiática, visto que os critérios não estão claros e variam enormemente de acordo com as circunstâncias.

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Com isso, é possível apontar um caminho para a solução desse atual impasse: como é possível definir os limites da censura e da liberdade de expressão, sem cair nos riscos da tutela e do controle que extrapolam o que está delimitado pelos textos legais, a par-tir das expectativas socialmente compartilhadas? É necessário que a censura deixe de ser “alheia”, e passe a ser definida por “nós”. Primeiramente, é preciso deixar claro que a censura não pode ser mais definida somente por outros, com critérios que estão além do controle coletivo, sem necessidade de contato com a opinião pública – que ignora deci-sões, justificativas e até as estruturas do controle feito em seu nome. Em segundo lugar, será possível erigir uma censura que nos seja “apropriada” como nossa.

Para isso, é necessário lembrar ambos os sentidos do termo “apropriado”: é tanto o que considerado como “adequado” quanto o que é “tomado” como nosso. Assim, não basta (ainda que seja um condicionante necessário) que as decisões sejam publicamente aces-síveis – elas precisam também, como Habermas (2010) já apontava, ligar e unir a racio-nalidade do jurista ao público por meio de argumentos coletivamente aceitos. Somente quando estivermos atados nesses “nós” coletivos – para além dos “eus” individuais do juiz, do suplicante, do acusado e do público – que poderemos considerar que o controle comunicativo é realmente apropriado, delimitando as possibilidades da censura que é feita em nosso nome pela verdadeira defesa da liberdade de expressão.

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