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As Universidades Populares nas primeiras décadas do século XX. O exemplo da Academia de Estudos Livres

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AS UNIVERSIDADES POPULARES NAS PRIMEIRAS DÉCADAS DO SÉCULO XX EM PORTUGAL – O EXEMPLO DA ACADEMIA DE ESTUDOS LIVRES

Joaquim Pintassilgo

Centro de Investigação em Educação

Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa

1. A educação popular na transição do século XIX para o século XX

O ambiente cultural português do final do século XIX e primeiras décadas do século XX foi propício ao desenvolvimento das preocupações com a educação popular. A crença de raiz positivista no papel decisivo da educação e da cultura como fonte de progresso e regeneração social, o investimento político republicano, considerado inseparável do combate contra o analfabetismo, e o labor cultural de pendor iluminista da maçonaria foram algumas das condições que favoreceram a afirmação de um discurso que colocava o povo e a sua educação no centro do debate político e social. A educação e a cultura surgiam, assim, como peças chave da formação de um cidadão consciente e participativo e da construção de uma sociedade nova, sem lugar para a ignorância e para os preconceitos, crença esta que se tornou uma das grandes referências míticas desse momento histórico e cultural.

Subjacente a este debate estava, em primeiro lugar, a questão do analfabetismo. As estatísticas publicadas na segunda metade do século XIX conduzem à sua traumática descoberta pela minoria culta do país, ao mostrarem que a esmagadora maioria do povo português nunca havia frequentado a escola, não sabendo ler nem escrever. O discurso então difundido, em particular pelos republicanos, dramatiza ao limite esse problema e pressupõe um olhar acentuadamente desvalorizador sobre a figura do analfabeto, colocado na antecâmara da “civilização” e a quem é atribuída uma espécie de menoridade cívica. O analfabeto, pela sua incapacidade de aceder à cultura escrita, não estaria em condições de ser o cidadão-eleitor, consciente e participativo, almejado pela República. Assim se explica o investimento simbólico nesse combate e o desenvolvimento de múltiplas iniciativas no campo da alfabetização, tanto de crianças

O presente texto retoma um conjunto de ideias, resultantes de uma pesquisa sobre as universidades populares, desenvolvida no âmbito do projecto de cooperação internacional “História da escola em Portugal e no Brasil: circulação e apropriação de modelos culturais”, e publicadas em: Pintassilgo (2006a; 2006b; 2006c).

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como de adultos, cujo exemplo mais emblemático é constituído pelas Escolas Móveis pelo Método de João de Deus. Assim se explica, também, a estreita articulação então fomentada entre alfabetização e educação cívica, no âmbito de um projecto global de formação do cidadão. A aprendizagem de competências ao nível do ler, escrever e contar surgia em paralelo com as preocupações relativas à interiorização, por parte dos futuros cidadãos, dos novos valores laicos e patrióticos associados ao republicanismo, implicando, designadamente, a difusão de todo um conjunto de símbolos e rituais cívicos alternativos aos do catolicismo (Pintassilgo, 1998).

Conheceram, igualmente, a luz do dia várias outras experiências nos terrenos da educação popular, dinamizadas por sectores políticos e sociais muito diversificados - do Estado à iniciativa particular, do republicanismo e da maçonaria ao anarquismo, das associações operárias à intelectualidade - e assumindo formas muito diversas, como creches e asilos, escolas operárias, escolas de centros republicanos, etc. (Candeias, 1981; 1985; 1987a). Refiramos, a título de exemplo, duas dessas instituições, começando por uma das mais prestigiadas e bem sucedidas, a Voz do Operário, criada em 1883, já depois do início da publicação da revista com o mesmo nome, por iniciativa dos manipuladores de tabaco, que abriu a primeira escola em 1891 e, na década de 20, já tinha mais de 70.000 sócios e sustentava ou apoiava mais de sete dezenas de escolas de primeiras letras (Lopes, 1995; Mesquita, 1987; Tavares & Pimenta, 1987). No que diz respeito ao carácter inovador das suas opções pedagógicas, a mais emblemática das experiências então desenvolvidas foi a da Escola Oficina n.º 1, situada no bairro da Graça em Lisboa e criada em 1905 por uma associação maçónica. A partir do momento em que se passou a fazer sentir a influência de um grupo de professores libertários (em particular de Adolfo Lima) a escola tornou-se um ex libris da chamada Educação Nova em Portugal e lugar de experiências várias, designadamente no que diz respeito à autonomia dos alunos - através da criação de uma associação designada por «Solidária» -, à prática da coeducação, à concretização curricular de áreas como os trabalhos manuais educativos, a educação física, a educação artística e as excursões pedagógicas e à ausência de manuais, de exames, de prémios e de castigos (Candeias, 1987b; 1993; 1994).

No que diz respeito à educação permanente de adultos e à vulgarização científica e cultural, tema central do presente texto, difundiu-se no período um importante conjunto de instituições, vocacionadas para essa área, conhecidas por universidades livres ou universidades populares, as mais conhecidas das quais foram as universidades

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populares fundadas, a partir de 1912, pela Renascença Portuguesa (Porto, Coimbra, Vila Real e Póvoa do Varzim) e a Universidade Popular Portuguesa, criada em Lisboa em 1919 (Bandeira, 1994; Fernandes, 1993; 2001; Marques, 1999; Neves, 1997). Procuraremos, aqui, reflectir, em particular, sobre o projecto educativo de uma dessas instituições – a Academia de Estudos Livres – que surge como pioneira na assunção do papel de universidade popular, à semelhança do que acontecia, também em França, desde os últimos anos do século XIX. Analisaremos, previamente, o debate sobre as universidades populares na imprensa de educação e ensino, tomando como ponto de partida as reflexões de um dos intelectuais que mais contribuiu para a sua divulgação – Jaime Cortesão (Fernandes, 1986; Garcia, 1987; Nóvoa, 2003; Santos, 1986; Santos, 1993). Utilizaremos como fontes principais da pesquisa as duas publicações periódicas da Academia: os Anais da Academia de Estudos Livres - Universidade Popular (1912-1916), uma espécie de órgão da associação, e o periódico estudantil A Mocidade (1910-1911); encontramos, em ambos os casos, abundantes informações sobre as actividades desenvolvidas, para além da publicação de documentos internos (actas, relatórios, etc.). O período de vida da instituição aqui em análise é o delimitado pelas datas extremas das publicações em questão – 1910 e 1916 -, ou seja, a fase inicial e mais dinâmica de recém instaurada República portuguesa. Utilizaremos, complementarmente, a revista A Vida Portuguesa (1912-1915), dirigida pelo já referido Jaime Cortesão, uma das principais fontes de informação sobre o carácter e actividades das universidades populares.

2. O debate sobre as Universidades Populares. As reflexões de Jaime Cortesão em «A Vida Portuguesa»

A produção intelectual portuguesa da transição do século XIX para o século XX foi muito marcada, como já notámos, pela difusão das teses decadentistas e pela presença dos lugares-comuns da ideologia positivista. A proclamação, em 1910, do novel regime republicano foi acompanhada pela crença nas suas virtualidades regeneradoras. Para um conjunto de intelectuais do período, a mudança política era, no entanto, insuficiente. Tornava-se necessário, principalmente, fomentar o progresso por via da educação e da cultura e contribuir para a promoção cívica do povo (Pintassilgo, 1998).

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A Renascença Portuguesa, formada em 1911, tornou-se o mais importante dos movimentos culturais então criados e assumiu como principal finalidade a tarefa de elaboração e difusão da cultura considerada necessária para a almejada regeneração social. Dela fizeram parte alguns dos mais influentes intelectuais do período subsequente, como Jaime Cortesão, António Sérgio, Teixeira de Pascoais, Leonardo Coimbra, Raúl Proença, entre muitos outros. A revista literária e artística A Águia tornou-se, a partir de 1912, o órgão oficial do movimento (Samuel, 1990; Santos, 1990). A partir da iniciativa de Jaime Cortesão (e também propriedade do movimento) nasceu ainda, no mesmo ano de 1912, a revista A Vida Portuguesa de cujo programa fazia parte todo um esforço de reflexão sobre os problemas pedagógico, religioso, económico e social, na busca de soluções que conciliem “o espírito da pátria portuguesa” com “o espírito moderno”. É o problema pedagógico que vai estar, na verdade, aí em destaque, o que não deixa de ser expressão da crença, geralmente partilhada, na regeneração por via da educação (Nóvoa, 1993).

Um dos temas principais a ser tratado, de forma recorrente, nas páginas de A Vida Portuguesa, em particular por Jaime Cortesão, é o que se refere às Universidades Populares. Numa sequência de nove artigos o autor reflecte sobre a noção de Universidade Popular (nos contextos português e internacional), suas finalidades e especificidade relativamente a outras instituições, sobre os seus destinatários e, em geral, sobre a noção de povo, sobre as actividades a desenvolver de acordo com o seu espírito, etc. A revista veicula, ainda, informações acerca das universidades populares dinamizadas pela Renascença Portuguesa (Bandeira, 1994; Fernandes, 1993; Marques, 1999; Neves, 1997).

O primeiro artigo de Jaime Cortesão – num conjunto de nove – dedicado ao tema das Universidades Populares foi publicado no n.º 3 da revista, em Novembro de 1912, e intitulava-se: «As Universidades Populares. I – Sua missão e necessidade em Portugal». O autor reflecte, principalmente, sobre o público das referidas instituições. Se, em França, elas se dirigiam aos operários – ou seja, ao “Povo num sentido muito restrito” -, em Portugal “não pode, nem, deve ser assim”. Entre nós, defende, as Universidades Populares “têm de se dirigir ao povo num sentido muito lato e aliás mais verdadeiro”. Isto é assim porque, por um lado, a concepção de Povo perfilhada por Cortesão abarca “todos os portugueses a qualquer classe que pertençam” e, por outro, porque todo esse Povo está “falho de educação”, seja por ser “completamente ignorante” ou por ter tido “uma educação cheia de taras jesuíticas”. O primeiro grupo ainda preserva “algumas

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virtudes e qualidades essenciais”, o segundo – consubstanciado na figura do “bacharel” – é “o mais legítimo representante da nossa decadência intelectual e moral”. Quer uns quer outros, na opinião do autor, “desconhecem o conceito moderno de patriotismo – o patriotismo humanitário”. Combater este estado de coisas é a missão das Universidades Populares1.

As reflexões de Jaime Cortesão deixam bem claro, em primeiro lugar, ser esse um projecto de integração social e cultural e, de modo algum, apesar dos discursos que tomam o Povo como protagonista central, um projecto assente em critérios de classe. O que se pretende é congregar os esforços de todos à volta de “um ideal colectivo e nacional”, ainda que conciliável com uma perspectiva humanista. Em segundo lugar, encontramos um olhar sobre o Povo marcado por alguma ambivalência: não obstante a “ignorância” que o caracteriza, mantém algumas das virtudes da “raça”. O olhar sobre algumas elites é marcado pelo discurso sobre a decadência proveniente da Geração de 70. Assim se compreende o papel de regeneração intelectual e moral da vida portuguesa que a Renascença Portuguesa atribui a si própria.

No artigo «Universidades Livres, Extensões universitárias, Universidades Populares», Jaime Cortesão dedica-se, em particular, à tentativa de clarificar esses três conceitos, até porque já existiam nesse momento em Portugal instituições usando a primeira e a terceira das expressões, tendo a segunda já entrado, igualmente, no debate pedagógico. Segundo o autor, o nome Universidade Livre deve aplicar-se “a organizações [de iniciativa particular] que têm por fim o ensino superior, o que já demanda um público bem preparado”. As Extensões Universitárias são formadas, na sua opinião, “dentro de cada Universidade unicamente pelos seus professores, pagos pelo Estado; realizam cursos seguidos para todo e qualquer público”, onde se incluem “exercícios” e “exames”, bem como a outorga de “diplomas”. Finalmente, as Universidades Populares “pretendem realizar, mais que isso, uma obra de educação e acção social e nacional”. A conclusão é a de que, apesar da confusão de nomes, em Portugal “não houve ainda propriamente Universidades Livres. O que há e deve haver são Universidades Populares”2

. As anteriores categorização e caracterização são, sem dúvida, coerentes com a centralidade do projecto de educação popular no âmbito dos trabalhos da Renascença Portuguesa. O que se pretende, fundamentalmente, não é

1 Cortesão, J. (1912). As Universidades Populares. I – Sua missão e necessidade em Portugal. A Vida

Portuguesa..., 3, 19-20.

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Cortesão, J. (1912). Universidades Livres, Extensões Universitárias, Universidades Populares. II. A Vida

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educar (apenas) as elites, mas sim todo o povo, ainda que na acepção lata há pouco referenciada.

O terceiro artigo da série - «Como as Universidades Populares começaram em França» - faz o historial do desenvolvimento pioneiro daquelas instituições no referido país, destacando o papel do operário tipógrafo Georges Deherme, e apresenta o seu ambicioso programa e respectiva concretização (ainda que parcial). Apesar de considerar ser “diferente o estado do operariado francês e do nosso”, Jaime Cortesão encontra, mesmo assim, alguns defeitos comuns, como “a ignorância e a deseducação”, associadas a “desvairamento, violência e fanatismo”3

. Definitivamente, o Povo não surge idealizado sob o olhar de um intelectual – como é Jaime Cortesão –, apesar de sinceramente empenhado na educação popular.

Em «A Universidade Popular do Porto» o autor retoma o tema do público das Universidades Populares, para recriminar “o nosso operário”, por não acorrer “em grande número às lições da Universidade Popular”. Este texto é interessante por uma dupla razão. Em primeiro lugar, por dar conta de quem são os participantes nas actividades. O seu número terá sido avultado – e a documentação comprova-o -, mas principalmente de pessoas oriundas das “classes médias” – professores, estudantes, comerciantes, militares, empregados de comércio, etc. – segundo anota o próprio Cortesão. A razão, acrescenta, é que falta ao nosso operariado “uma preparação primária geral” que lhe permita tirar proveito das conferências e cursos da Universidade Popular do Porto. Esse facto não retira o “carácter popular” à instituição, pois esses grupos não só fazem parte do povo – ideia que, como já vimos, é assumida pelo autor -, como “necessitam de instrução e de educação”4

. Em segundo lugar, as anteriores reflexões testemunham sobre a dificuldade que os intelectuais da «Renascença Portuguesa» têm de atingir os sectores operários, através de uma estratégia de vulgarização científica e cultural, apesar de ser esse um dos seus objectivos.

No artigo «A Universidade Popular e o operariado» - o sétimo da série - Jaime Cortesão retoma o seu tema predilecto. Partindo do exemplo do único curso “que atraiu numa enorme afluência o público operário” – as lições de Cristiano de Carvalho sobre a Comuna de Paris (o que o autor acha compreensível, à luz do interesse que tem, para os operários, o conhecimento de “um dos mais interessantes capítulos da questão social”) -

3 Cortesão, J. (1912). Universidades Populares. III – Como as Universidades Populares começaram em

França. A Vida Portuguesa..., 5, 33-34.

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Cortesão, J. (1913). As Universidades Populares. IV – A Universidade Popular do Porto. A Vida

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o autor renova as críticas ao mesmo operariado por não ter dado a devida atenção às outras lições – como por exemplo as de biologia – e procura aprofundar as explicações anteriormente apresentadas.

Isto me leva a crer que uma parte do operariado não se tenha ainda convencido da extraordinária importância que a educação haja para a solução da questão económica, como para o seu progresso e valorização definitiva nas lutas do futuro. Isso me leva igualmente a reflectir sobre aquilo a que se poderá chamar o revolucionarismo providencialista... Em Portugal, em tempos de monarquia, havia quem atribuísse à revolução republicana a vir as virtudes providencialistas de reformar os costumes, baratear os géneros e, acho que até, endireitar a espinhela caída. Veio a Revolução e como os povos não se transformam aí do pé para a mão, vá de gritar traição, desenganos, desesperos e de cair agora no defeito contrário, negar agora a parte porque lhes não deram o todo. Creio também que haja quem revista a Revolução Social das mesmas virtudes omnipotentes e providencialistas, acreditando que nessa palavra ou nesse facto existam infinitos caudais de felicidade, sabedoria, liberdade e harmonia social, que só um profundo e ainda imenso labor educativo podem dar.5

Para além de uma subtil ironia, as anteriores reflexões são de uma enorme lucidez e expressam bem qual a alternativa que a Renascença Portuguesa procura apresentar em face da chamada “questão social”. O autor procura desmistificar as crenças ingénuas e messiânicas nas virtualidades transformadoras de uma qualquer revolução, seja ela a revolução republicana do 5 de Outubro de 1910 ou a revolução social desejada pelo movimento operário e pelos sectores anarco-sindicalistas nele predominantes à época. Fora essa, de resto, a atitude da Renascença Portuguesa em relação à República. O mais importante seria, após a mudança política, a transformação das consciências por via da acção educativa e cultural, que ela se propunha realizar.

Mais uma vez, como em anteriores referências, está subjacente a estas reflexões a ideia de que é aos intelectuais, erigindo-se ao papel de “consciência crítica” da sociedade, conduzir os operários e todo o povo no sentido da almejada regeneração moral e intelectual, regeneração essa – retomando, para concluir, os grandes ideais do movimento – fundamentada no “ideal de lusitanização”, na “revelação profunda desse espírito bem português” e, ao mesmo tempo, em “todo o movimento moderno”, ou seja - continuando a seguir as palavras do derradeiro artigo da série -, na “larga tendência

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moderna – a que leva as nacionalidades a definirem nitidamente a sua obra civilizadora, procurando fazer da sua acção actual um corpo vivo com raízes no passado”6

.

3. A Academia de Estudos Livres e a Escola Marquês de Pombal

A Academia de Estudos Livres foi fundada em 1889. A iniciativa pertenceu à Maçonaria, através da loja «Simpatia e União» de Lisboa. Os seus Estatutos originais foram aprovados por Alvará de 10 de Setembro de 1889. São aí assumidos como objectivos “desenvolver o gosto pelo estudo e pela ciência” e “proporcionar aos sócios o conhecimento das ciências”. Tendo em vista a sua consecução, são previstas as seguintes actividades:

A Academia promoverá conferências públicas sobre assuntos científicos e de interesse público; fará publicações, nomeadamente dessas conferências; manterá aulas, gabinete de leitura, biblioteca, gabinete de física, observatório, laboratório, museus; organizará uma oficina - escola que facilite aos investigadores os meios de trabalho mecânico e sirva também para a reparação dos instrumentos de estudo da Academia; facultará a quaisquer professores a abertura de cursos - livres e celebrará exposições.7

Em 1904, por via do Alvará de 24 de Junho, são aprovados novos Estatutos, os quais consignam a alteração da designação (através do acréscimo de um subtítulo) para Academia de Estudos Livres – Universidade Popular. Os objectivos e as actividades previstas mantêm-se, relativamente ao documento anterior8. Uma alteração importante, datada desse mesmo ano de 1904, é a integração na Academia da preexistente Escola Marquês de Pombal, que passa a ser considerada, pelo Regulamento Geral da mesma escola, uma “Secção da Academia de Estudos Livres”, situada então no Alto do Pina (um bairro popular lisboeta)9. Alguns anos após, em artigo de uma das publicações da instituição, clarifica-se a história da escola:

6

Cortesão, J. (1914). Universidades Populares. IX – Nacionalismo e cosmopolitismo. A Vida

Portuguesa..., 22, 9. Acerca do papel social dos professores como intelectuais nesse período da vida

portuguesa, podem consultar-se os seguintes textos: Boto (2003) e Pintassilgo (1999).

7 Estatutos da Academia de Estudos Livres. Aprovados por Alvará de 10 de Setembro de 1889. Lisboa,

Tipografia Castro Irmão, 1889, p.5.

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Academia de Estudos Livres - Universidade Popular. Novos Estatutos. Aprovados por Alvará de 24 de Março de 1904. Lisboa, Imprensa Comercial, 1904.

9 Regulamento Geral da Escola Marquês de Pombal – Sebastião José de Carvalho e Melo (Aulas

gratuitas para crianças pobres). Secção no Alto do Pina da Academia de Estudos Livres – Universidade Popular. Lisboa, Imprensa Comercial, 1904.

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Foi fundada em 1882 por um grupo de dedicados amigos da instrução, sócios da loja maçónica Razão Triunfante, que por essa forma quiseram concorrer para o derramamento da instrução popular e, ao mesmo tempo, prestar homenagem ao grande vulto da nossa história – o Marquês de Pombal... Inaugurou-se em 21 de Maio daquele ano na Portela de Sacavém, com o título de Escola Marquês de Pombal – Sebastião José de Carvalho e Melo.10

Não deixa de ser curioso o facto de ambas as entidades serem de iniciativa maçónica. Os propósitos enunciados – e, em particular, “o derramamento da instrução popular” - são, de resto, coerentes com o contexto doutrinário em que a escola se insere, sendo igualmente significativo o nome da loja maçónica de onde ela emana – “razão triunfante”. A assunção do Marquês de Pombal como seu patrono é bem sintomática da incorporação desse vulto do absolutismo reformista – por via da sua política anti-jesuítica - na memória da nação, tal como é reconstruída pelo republicanismo, que se vai tornando a ideologia dominante nas lojas.

A escola começa a funcionar na Portela de Sacavém (arredores de Lisboa) com 40 crianças pobres de ambos os sexos e uma professora, sendo transferida em 1899 para o já referido Alto do Pina. Em 1904, “quando se dissolveu o Grande Oriente de Portugal, em que estava filiada a loja maçónica Razão Triunfante, que ainda tinha a escola sob a sua protecção”11, desenvolveram-se, então, negociações entre os dirigentes de ambas as instituições que concluíram com a integração da escola na Academia, aprovada nas respectivas assembleias gerais (8 e 9 de Setembro). O Regulamento Geral, então aprovado, anexa igualmente ao título a expressão «Aulas gratuitas para crianças pobres», especificando que se pretende “ministrar nesta Secção o ensino primário (1º e 2º grau), gratuito para crianças pobres de ambos os sexos, dos 6 aos 12 anos de idade”, para além de promover “conferências e outros trabalhos educativos”. A instituição compromete-se, ainda, a distribuir “livros e outros auxílios a alunos órfãos e de pobreza manifestamente reconhecida”12. As preocupações com a educação popular e o filantropismo típico da maçonaria são uma presença visível.

O Regulamento Geral em apreciação define as aulas como “diurnas” e manifesta, ainda, a preocupação com a necessidade de uma definição clara do tempo

10 Escola Marquês de Pombal. Breves apontamentos para a sua história (1911). A Mocidade. Folha

quinzenal, 1 (19), 7.

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Idem., 8.

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escolar, tanto no que se refere ao calendário – fixado entre Outubro e Agosto – como ao horário quotidiano, entre as 9h e as 16h, entrecortado por intervalos de 10m ao fim de cada hora, “para descanso dos alunos”, e de uma paragem de 30m para uma refeição. As aulas funcionariam “em todos os dias não declarados feriados”, sendo “as disciplinas a ministrar... as dos programas primários oficiais”13. Fica claro que a educação popular a fomentar pelo movimento associativo de inspiração maçónica tem como referência o modelo escolar de educação então em fase de implementação, designadamente no que se refere às coordenadas espaciais e temporais do mesmo, já impregnadas de pressupostos de natureza pedagógica. Não é, por isso, de estranhar que se pretenda submeter os alunos a mecanismos de vigilância e de controlo disciplinar típicos do modelo escolar:

Os alunos só podem ser admitidos nas aulas, apresentando-se decentes e limpos; devem respeitar os professores, conservar as suas carteiras e artigos de estudo em estado de irrepreensível asseio, não danificar estes nem os móveis da Secção, não se ausentar sem licença dos professores, não cometer faltas, as quais em todo o caso deverão sempre justificar com bilhete ou carta dos pais ou tutores, frequentar com assiduidade as aulas nos dias e horas que lhes forem marcados, apresentar-se nas aulas munidos dos livros e de todos os artigos indicados pelos professores.14 É bem visível, neste articulado, a presença de um projecto de integração social e de moralização dos costumes das crianças pobres a que a escola se destina. A limpeza pessoal, o cuidado com os materiais escolares, o respeito pelos professores, a assiduidade, são comportamentos incentivados e o não cumprimento das regras – sob a forma de “mau comportamento, falta de assiduidade ou de aplicação” - penalizado.

O regulamento define, também, os principais rituais que deveriam pontuar a vida da instituição, em particular a sessão solene comemorativa do aniversário da fundação da escola (21 de Maio) e a “sessão solene de distribuição de prémios por ocasião da abertura das aulas”. Dos prémios farão ainda parte o “quadro de honra” e os “diplomas de mérito”, algo que será posteriormente alvo de contestação. Abre-se, finalmente, a possibilidade, em articulação com a Academia, da criação de “aulas nocturnas para adultos”, uma opção que marcará decisivamente a actividade de ambas as instituições, dentro do espírito de universidade popular que passa a caracterizar a Academia15.

13 Idem., 6. 14

Idem., 5.

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Em 1908 a escola é transferida para a nova sede da Academia na Rua da Paz (situada no bairro lisboeta de São Bento), passando a dispor de melhores condições de funcionamento e de um acompanhamento mais próximo por parte da direcção da mesma. De 40 crianças e uma professora naquele ano16, passou-se, no ano lectivo de 1910/1911, para 137 alunos matriculados (distribuídos por 4 classes) e 4 professoras, apoiadas ainda por um professor de ginástica e por um professor de música e canto, isto só na Escola Marquês de Pombal, porque a Academia de Estudos Livres possuía ainda 326 alunos nas aulas nocturnas, tanto ao nível da instrução primária, como nas disciplinas então oferecidas: português, francês, inglês, desenho, matemática elementar, matemática financeira, economia política, contabilidade, taquigrafia, rudimentos de música, piano, violino, harmonia e curso livre de música, para além de um curso de admissão à Escola Normal17.

Como vimos, o ano de 1904 ficou assinalado pela incorporação de uma escola do ensino primário particular – que passará a ter grande visibilidade no conjunto das suas actividades - e pela assunção do seu carácter de universidade popular – de que os cursos nocturnos são uma das suas marcas. Esta dicotomia enriquece-a, mas transporta também consigo alguma ambiguidade, como ulteriores discussões em assembleia geral, a que nos reportaremos, se encarregarão de demonstrar.

No cumprimento da sua vocação a Academia de Estudos Livres vai, então, desenvolver diversas actividades na área da vulgarização científica e cultural, as mais características das universidades populares, delas sendo exemplos a realização de cursos livres, conferências, visitas de estudo, etc. Em relação aos primeiros, surgem noticiados em A Mocidade, para o período 1910-1911, entre outros, os seguintes temas: «História Universal» (Agostinho Fortes), «História Social e Política da Península Ibérica» (José Augusto Coelho) e «Os Lusíadas» (Barbosa de Bettencourt). As conferências foram em grande número, destacando-se as seguintes: «Literatura portuguesa no século XIX» (Fidelino de Figueiredo), «A educação na futura democracia» (Fidelino de Figueiredo), «Porque precisamos saber Física» (Almeida Lima), «O que deve ser uma educação moderna» (Reis Santos), «O céu português – lições de astronomia» (Pedro José da Cunha) e «Unificação de Itália» (Agostinho Fortes). Para além da relevância dos temas ligados à História e à Literatura portuguesas, por razões que se prendem com formação cultural de cariz patriótico pretendida pelos sectores republicanos, sublinhe-se a

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Escola Marquês de Pombal. Breves apontamentos para a sua história (1911). A Mocidade..., 1 (19), 8.

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presença dos temas científicos, em conformidade com a ideia, muito presente nos meios ligados à educação popular, de que é possível levar esses conhecimentos até ao povo.

As visitas de estudo e excursões constituíam uma das actividades mais acarinhadas pela Academia. No já referido ano lectivo (1910-1911) foram visitados, entre outros, os locais a seguir indicados: a cidade de Tomar, o Mosteiro dos Jerónimos, o Museu Nacional de Belas Artes, o Museu Nacional dos Coches, o Aqueduto das Águas Livres, uma Fábrica de Chocolate, a Vila de Sintra (numa visita guiada por um arquitecto muito ligado às construções escolares - Adães Bermudes), a Torre de Belém, A Figueira da Foz e o Buçaco (neste caso uma excursão no Verão) e a Estação Elevatória de Água dos Barbadinhos. A Academia – como, de resto, todos as escolas da época que afirmam fazer “educação moderna” – é fortemente marcada pelo seu carácter excursionista. As saídas são muito frequentes e tanto têm como objectivo a visita a monumentos e museus – tendo em vista o aproveitamento das potencialidades educativos que lhe estão subjacentes -, a fábricas, para um contacto in loco com a realidade social, ao campo ou à praia, na procura dos benefícios decorrentes de uma relação mais próxima com a natureza e dos exercícios físicos a ela inerentes.

Foram, igualmente, realizados vários concertos de música clássica, para além de concertos com o Quarteto Silveira Pais, o professor de música na Academia. Encontramos aqui espelhada, de novo, a crença na possibilidade de popularizar uma arte e uma cultura consideradas, à partida, como de carácter erudito e dirigidas a um público mais elitista. O quotidiano da Academia e da sua escola era, ainda, pontuado pela realização de festividades diversas, de que são exemplo a festa de aniversário da escola, a festa evocativa do aniversário da morte de Camões (10 de Junho) ou a Festa da Árvore, para além de outros eventos comemorativos, como o relativo à unificação italiana ou o cortejo aos Jerónimos em homenagem a Alexandre Herculano.

4. O povo e a sua educação nas páginas de A Mocidade e dos Anais

A Mocidade inicia a sua publicação no dia 15 de Julho de 1910, apresentando-se como folha quinzenal, periodicidade que, em geral, vai conseguir manter, se exceptuarmos o período de férias lectivas. Originalmente surge como sendo propriedade de um Núcleo de Instrução da Academia de Estudos Livres. O primeiro Director é Abel Ôteda, então estudante da Academia. O derradeiro número – o n.º 20 - está datado de 8 de Julho de 1911 e com ele se afirma completar “a 2.ª série e o 1º ano de A

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Mocidade”18. Na verdade, não voltou a conhecer a luz do dia. A publicação cobre praticamente um ano, coincidindo, em boa medida, com as actividades relativas ao ano lectivo de 1910/1911 (Nóvoa, 1993). Esse é, inquestionavelmente, um ano de enorme riqueza do ponto de vista do contexto político. A fase inicial de publicação de A Mocidade acompanha os três últimos meses de vida da monarquia constitucional portuguesa. O n.º 4 do jornal – que se segue à uma paragem de quase dois meses, parcialmente coincidente com as férias escolares – tem a data de 10 de Outubro de 1910, ou seja, cinco dias após a revolução republicana do 5 de Outubro. Esse e, particularmente, o número seguinte contêm, de resto, amplas referências à República, efusivamente saudada, o que dá conta do ambiente político que se vivia no interior da Academia. Todo o restante período de publicação acompanha a fase inicial – uma fase de grande vitalidade – do novo regime.

A Mocidade é, na realidade, “um jornal de estudantes” (como se apresenta no número inicial) e é isso mesmo que então apregoa - “A Mocidade vai falar: têm a palavra os alunos da Academia de Estudos Livres”. Conta, no entanto, com a visível cumplicidade da direcção da mesma, dentro do espírito do self-government (ou «autonomia dos escolares», como preferia Adolfo Lima) que então começa a difundir-se nos sectores pedagógicos ligados à Educação Nova. Isso é reconhecido pelos seus responsáveis: “A Mocidade tem condições de longa vida, porque a protege a direcção desta casa”19

. Passa a ser distribuído a todos os sócios e subscritores da Academia e compromete-se a publicar “por acordo com a direcção, todos os avisos oficiais das excursões, visitas, conferências e outros trabalhos da Academia, assim como dará nota do movimento das aulas, biblioteca, etc.”20

. Essas informações relativas ao quotidiano da instituição vão preencher, de facto, uma parte substancial do conteúdo do jornal, o que o torna (a par de uma periodicidade que se mantém regular) uma fonte inestimável para o conhecimento da sua actividade. O facto de ser produzido pelos estudantes da Academia acrescenta-lhe um tom de irreverência juvenil, sem nunca assumir a forma de crítica às opções da direcção. Muito pelo contrário, aquela “casa” (como é referida a certa altura) e os seus directores são sempre tratados com algum carinho, que dá conta da assunção dos valores subjacentes à identidade institucional.

18 Comemorando (1911). A Mocidade..., 1 (20), 1. 19

A nossa política (1910). A Mocidade..., 1 (1), 1.

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No n.º 12 de A Mocidade insere-se uma Circular da Direcção da Academia, subscrita pelos seus membros de então – entre eles, Sá Oliveira e Cardoso Gonçalves – apelando à sua assinatura e dando conta de uma ligeira alteração do estatuto da publicação, ao afirmar-se que a “sua propriedade pertence a esta associação”. A Mocidade acaba por assumir, em termos práticos, o papel de órgão da Academia e da sua escola, papel esse que, mais tarde, passará a ser desempenhado pelos Anais da Academia de Estudos Livres (1912-1916), a que adiante nos referiremos. A finalidade pretendida por via da cumplicidade que directores e professores mantêm face à publicação é claramente assumida: “O fim que visamos é proporcionar aos alunos da Academia, que são os redactores do pequeno jornal, um meio prático de se educarem e de estudarem... Consideramo-lo, repetimos, do mais alto alcance educativo”21. O discurso dos estudantes afina pelo mesmo diapasão: “nós, os que fazemos este pequeno jornal, levamos em mira, trabalhando nele, a nossa própria educação... Todos temos, entrando nesta casa, um desejo único: instruirmo-nos, educarmo-nos”22.

Para além desse propósito de auto-formação, diríamos hoje, a grande finalidade que está subjacente à publicação – e à actividade da Academia em geral – é a da “educação do povo”. Esse desiderato é proclamado de forma veemente:

A cidade já está capaz de compreender os seus deveres cívicos? Pois bem! Abalemos para essas aldeias e para essas serras a espalhar a boa nova. Demos aos camponeses a instrução de que tanto precisam. Vamos, aos domingos, até os mais ínfimos lugarejos e assentemos arraiais nos adros das suas igrejas... Ali, perante o numeroso auditório atraído pela curiosidade, ensinemos as mais singelas verdades da ciência e as suas aplicações vulgares. No Inverno, pelas noites tempestuosas, reunamos essa rude gente em qualquer celeiro e, com uma simples lanterna de projecções, recreemos-lhes o espírito, educando-lhe o cérebro... Estas missões científicas e patrióticas... trariam sempre palavras de paz e falariam de coisas úteis, de verdades conquistadas pelos verdadeiros amigos do povo, os sábios... Trabalhemos pela educação do povo!23 A anterior citação é particularmente interessante em vários sentidos, a começar pelo proselitismo que a caracteriza. Aquilo a que os jovens redactores de A Mocidade se propõem é uma verdadeira ida ao povo. Este surge como “rude gente”, carente de formação cívica. A difusão da instrução e da educação, na terminologia da época, é “a boa nova” que importa espalhar por todo o lado. Assumindo-se como detentores do

21 Expediente (1911). A Mocidade..., 1 (12), 2. 22

Sociedade de Estudos Pedagógicos (1910). A Mocidade..., 1 (3), 1.

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saber – qual vanguarda esclarecida -, aos estudantes competia “dar” ao povo a instrução que eles estariam necessitados. As “verdades da ciência” são claramente sacralizadas, acreditando-se na possibilidade da sua vulgarização, bem como os seus cultores, os “sábios”, considerados os “verdadeiros amigos do povo”. Esta é, sem dúvida, uma concepção que atribui aos intelectuais o protagonismo maior no processo de educação popular – concepção esta que está, em geral, subjacente ao projecto das universidades populares – e que acredita nas virtualidades formativas da ciência e da cultura letrada e na possibilidade da sua popularização (Pita, 1989; Ribeiro, 2003). É nessa linha que se pode compreender a importância de estratégias como a organização de conferências eruditas sobre história e literatura ou a realização de concertos de música clássica. O apelo final a essa elite esclarecida é mobilizador: “Trabalhemos pela educação do povo”!

A concepção atrás referenciada surge também de forma clara num contexto em que um grupo de alunos da Academia – a partir da iniciativa dos responsáveis pelo jornal – decidem convidar os professores ligados à Sociedade de Estudos Pedagógicos -que se reúnem habitualmente nas próprias instalações da Academia – para realizarem um conjunto de conferências e cursos livres sobre assuntos de ciência e de arte, “imitando nisso o que fazem os professores franceses nas Universidades Populares de Paris”. Esta referência é sintomática do facto de serem as universidades populares francesas que servem de referência à tentativa de aproximação da Academia de Estudos Livres em relação a esse paradigma. A justificação dessa proposta – tendo por base “a indispensável aproximação de intelectuais e trabalhadores” - é, ainda, mais esclarecedora sobre os pressupostos que lhe estão subjacentes: “É preciso arrancar ao seu isolamento os cultores da Ciência e da Arte. Venham até ao povo e iniciem-no nos estudos, que há séculos eram feudo das classes privilegiadas. Pela Ciência e pela Arte! É a divisa da Academia de Estudos Livres”24

.

No entanto, curiosamente, as referências a essa entidade mítica que é o povo caracterizam-se por alguma ambivalência. Por um lado, o povo é valorizado, idealizado mesmo, como quando se elogia a “inquebrantável ordem” manifestada nos “grandes cortejos apoteóticos”, que seria uma clara “manifestação de qualidades, de tendências fundamentais, que distinguem o povo português como uma verdadeira raça”. O novo contexto republicano terá, até, despoletado, segundo o autor do artigo «O Povo»:

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[uma] fase interessante da vida da nossa gente, dando ao mundo civilizado tantas admiráveis lições de civismo, aceitando todas as indicações dos dirigentes, praticando até sem resistência e sem má vontade – caso raro em gente ignorante! – as regras de higiene aconselhadas pelos médicos – como se deu há poucos dias nesse infecto bairro de Alfama, aquando da epidemia pestífera. Qualidades positivas são estas, que caracterizam um grande povo, uma inconfundível raça.25 Esta citação é particularmente curiosa por conter em si, simultaneamente, os elementos de valorização e desvalorização do povo, que dá “admiráveis lições de civismo” ao “mundo civilizado” – ainda que a partir das indicações dos dirigentes, acolhidas sem “resistência” nem “má vontade” -, mas, por outro lado, é retratado como “gente ignorante” (ou “rude gente”) que habita um “infecto bairro”. O paradoxo relativamente ao “grande povo” e à “inconfundível raça” da retórica final – bem típica duma época que sacraliza, no âmbito do discurso patriótico, a entidade raça - é por demais evidente. Mas outros “vícios” – a par das reclamadas virtudes - são apontados ao povo português. “Uma das suas péssimas tendências é - o pedir... Pedir? Mendigar? Degradante situação para um Homem”. A interpretação desse defeito vem bem na linha do discurso produzido sobre as chamadas causas da decadência dos povos peninsulares a partir da Geração de 70 (e, em particular, de Antero): “Junte-se o bom freire, o torvo [sic] inquisidor e o jesuíta manhoso – e ter-se-á encontrado a razão porque Portugal se abandalhou – perdida a integridade do carácter”. A solução é, igualmente, coerente com o optimismo pedagógico que caracteriza o período: “A tamanho mal encontramos só um remédio – educar o povo até à compreensão da dignidade do trabalho”26.

É bem um projecto global de moralização dos costumes e de mudança de mentalidades que está subjacente aos discursos impressos em A Mocidade e que tem em vista a construção do “homem novo”, preparado para a vida na recém instaurada República. Para isso é necessário vencer, primeiro que tudo, “o monstro – a ignorância popular”27

.

Passando agora aos Anais da Academia de Estudos Livres - Universidade Popular, o primeiro número está datado de Novembro e Dezembro de 1912. A sua publicação manterá um carácter irregular, tendo cessado, com o n.º 2 da 3ª série, em 1916. Atravessava-se, então, o complexo contexto nacional e internacional marcado

25 O Povo (1910). A Mocidade..., 1, (7), 1. 26

Idem.

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pela entrada de Portugal na Grande Guerra e que encerra a primeira fase de vida da República portuguesa. Ao contrário de A Mocidade, e apesar de vir preencher o espaço por ela anteriormente ocupado, os Anais apresentam-se, logo de início, como propriedade da Academia. A revista contém artigos sobre temáticas e práticas educativas então consideradas relevantes ou inovadoras, tais como o combate ao analfabetismo, a educação moral, a higiene escolar, a educação física, a educação pela arte, as festas escolares e a formação de professores; contém, ainda, informações sobre as actividades desenvolvidas pela Academia e informações bibliográficas (Nóvoa, 1993).

No artigo de apresentação da revista – «Ao público» – os responsáveis da mesma afirmam taxativamente: “O alvo é - a educação do povo”28

. No texto de divulgação duma conferência de Pedro José da Cunha sobre um tema científico - «A lua» - assume-se o “benemérito empenho de fazer progredir a educação popular”29. No anúncio de um curso sobre «História universal», orientado por Agostinho Fortes, dá-se conta da intenção de publicar na revista “extractos das lições, a fim de que fiquem devidamente arquivados tão excelentes trabalhos de vulgarização científica”. E conclui-se: “Reputamos os conhecimentos históricos indispensáveis para a educação do povo”30

. Ao relatar – numa secção sobre a história da Academia - uma sessão literária dedicada a Gil Vicente, a qual teve como conferente Teófilo Braga e que incluiu, ainda, a leitura de textos da Farsa de Inês Pereira por alunos do então Liceu da Lapa, considera-se ter sido aquela “a primeira vez que em Portugal se tentou a leitura duma obra prima da nossa literatura como meio de propaganda educativa do gosto público”31

. Em artigo da autoria de Joaquim Cardoso Gonçalves, que relata uma visita ao Museu das Janelas Verdes (actual Museu de Arte Antiga), afirma-se: “um museu é sempre precioso elemento de educação popular”32

. Finalmente, os Estatutos da Academia, reformulados em 1904 – a partir de uma primeira versão de 1889 –, consideram que a mesma se destina “em geral, a desenvolver o gosto pelo estudo, pela ciência e pela arte” e “em especial, a proporcionar aos sócios o conhecimento das ciências e das artes”33

.

28 Ao público (1912). Anais da Academia de Estudos Livres – Universidade Popular, 1-2, 1. 29 Conferências e palestras – A lua (1912). Anais..., 1-2, 22

30

Excursões e visitas – A evolução da estatuária decorativa portuguesa (1912). Anais..., 1-2, 48.

31 Uma sessão literária (1912). Anais..., 1-2, 52.

32 Gonçalves, J. Cardoso (1913). Notas de arte – Um museu. Anais..., 4-5, 122. 33

Academia de Estudos Livres – Universidade Popular. Novos Estatutos (1904). Lisboa: Imprensa Comercial.

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Como nota Rogério Fernandes (1993), vemos, deste modo, “desenhar-se uma concepção enriquecedora da educação popular” e “o contorno de uma «pedagogia» diferenciada para os adultos”, ao mesmo tempo que se regista “uma afirmação vigorosa do valor social da ciência e da sua difusão” (p.11). Tendo como referência o projecto de educação popular, Marlène Neves (1997) pergunta: Trata-se de “educação do Povo, para o Povo, ou de qualquer modalidade de domesticação” (p.2). Esta interrogação remete-nos simultaneamente para a complexidade e para a ambiguidade, já sublinhadas, quer da noção de povo quer da expressão educação popular. No caso em estudo fica claro que se trata de uma criação de intelectuais de raiz iluminista que, entre o final da monarquia e a república, investem na promoção cultural e cívica dessa entidade vaga e transversal a que chamam povo, elevando-o “ao nível dos povos cultos”34. Essa promoção passava pelo acesso à cultura letrada, até aí privilégio das elites, mas que se procurava tornar acessível a todos. De acordo com Cardoso Gonçalves, pretende-se “chegar até o povo que já não pode frequentar as aulas, pela extensão universitária e pelas universidades populares, por outros muitos processos de cultura”35. Daí as conferências sobre temas literários e científicos, as visitas a monumentos e museus, os concertos, etc. A expressão “vulgarização científica” é, a esse respeito, esclarecedora. Acredita-se, genuinamente, que é possível ensinar tudo a todos, como se acredita na possibilidade de modelar o “gosto público”.

5. O carácter de Universidade Popular da Academia de Estudos Livres

No relatório da direcção relativo ao período 1912-1913 afiança-se que “a Academia de Estudos Livres tem tido sempre em mente realizar a sua missão de Universidade Popular”36

. Como já vimos, pelos Estatutos de 1904 essa expressão é mesmo acrescentada à sua denominação. É o referido relatório, não obstante, que dá conta do carácter ambivalente da instituição, decorrente da incorporação da Escola Marquês de Pombal, considerada, a partir do mesmo ano, uma Secção da Academia de Estudos Livres. Aí se afirma ser a essa componente “que [a Academia] dedica, neste momento, quase exclusivamente, todas as suas atenções”. E acrescenta-se:

34 O ensino post escolar (1912). Anais..., 1-2, 10. 35

Gonçalves, J. Cardoso (1916). A questão moral (conclusão). Anais..., 2, 201.

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Esta parte do programa é a que mais colide com o papel de universidade popular que a Academia deseja ter. Se atendessemos aos princípios não deveríamos preocupar-nos com as aulas da índole das que estabelecemos. Isto é bem sabido de todos. Mas a verdade é que para tal caminho fomos impelidos pelas circunstâncias. E a verdade é que a Academia tem prestado relevantes serviços com a prática dessas aulas. Parece, pois, que, por enquanto, devemos continuar. Mais tarde, em melhor casa e melhor sítio, remodelaremos os serviços conforme indicámos no capítulo anterior, ficando a secção de aulas completamente separada da secção que constituiria propriamente a UNIVERSIDADE POPULAR.37

O Parecer do Conselho Fiscal vai no mesmo sentido da assumida pela Direcção. Aí se considera que “a Escola Marquês de Pombal foi uma pesada herança para as condições financeiras da Academia”. No entanto, o Conselho considera que “dentro do espírito educativo da Academia estava a missão de fornecer conhecimentos regulares de escola aos alunos que dela carecessem e suas famílias”. Por isso, a solução terá de passar pela aquisição de “uma casa mais ampla” e pela “separação das funções da Academia entre aulas profissionais e cursos, e conferências de vulgarização, constituindo propriamente a Universidade Popular”38. Numa e noutra das vertentes, a avaliação é muito positiva:

Realizou 12 conferências, 6 visitas de estudo, 2 sessões solenes, uma sessão de propaganda e outra de arte, 1 concerto musical, 2 festas da árvore, 1 festa escolar e 1 passeio fluvial...

A importância dessas matrículas para 12 disciplinas em aulas nocturnas, avalia-se pelo número de 522 com uma frequência de 341 alunos, dos quais 256 do sexo masculino e 85 do sexo feminino, exercendo diversas profissões em número de 29. Além disso, a aula diurna de instrução primária tem 114 matrículas”.39

As reflexões e informações anteriormente apresentadas mostram que os dirigentes da Academia estavam bem cientes de qual o papel a desempenhar pelas Universidades Populares e qual a sua especificidade. Estas tinham em vista a educação permanente dos adultos, não a sua alfabetização nem a educação escolar dos jovens. Os seus meios de acção eram, preferencialmente, as conferências, os cursos livres, as visitas de estudo e a biblioteca, ou seja, a vulgarização científica e cultural, não as aulas tradicionais. As condições do país – com uma população jovem maioritariamente não escolarizada - forçavam, no entanto, a Academia a “concorrer para o melhoramento dos

37 Relatório da Direcção (1914). Anais..., 9-10, 300. 38

Parecer do Conselho Fiscal (1914). Anais..., 9-10, 319.

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costumes [também] por meio do ensino, ainda aplicado à primeira infância pelos processos modernos”40

. No caso português, como nota Marlène Neves (1997), nem sequer há uma clara distinção conceptual entre as Universidades Livres e as Universidades Populares.

6. As concepções pedagógicas inovadoras na óptica da Academia de Estudos Livres

Nas palavras de um dos articulistas dos Anais – o médico Francisco Morais Manchengo – “a escola moderna tem um papel social incomparavelmente mais largo que a escola do passado: hoje exige-se-lhe que, não só instrua os seus discípulos, como os prepare completamente para a vida moderna”41

. O que aqui nos importa sublinhar é que este tipo de dicotomias – no caso, “escola moderna” versus “escola do passado” – marca alguma presença nos discursos presentes na revista, como presentes estão, igualmente, abundantes referências a lugares-comuns e slogans do movimento de renovação pedagógica então em fase de afirmação.

Exemplar, a esse respeito, é o relatório apresentado por Albertina dos Santos Cordeiro, responsável pela direcção da Escola Maternal anexa à Academia de Estudos Livres, e relativo ao ano lectivo de 1912-1913, relatório esse publicado na revista. Sobre a organização do horário escolar afirma a autora:

O horário que organizei não se afasta do que é geralmente adoptado nos estabelecimentos similares estrangeiros, o qual, obedecendo às mais rigorosas prescrições higiénicas, como é confirmado pela opinião de muitos médicos escolares, não deixa de satisfazer aos princípios duma educação integral.42

A anterior citação não só dá conta da vontade de ter em conta as experiências estrangeiras consideradas exemplares, mas é igualmente expressão da presença, no discurso pedagógico, de uma fonte de legitimação médica, a par das preocupações de tipo higienista. Para além disso, destaque-se a referência ao paradigma da educação integral, uma presença constante no pensamento pedagógico renovador. Daí decorrem, segundo a autora, períodos curtos de trabalho, para as disciplinas que obrigam a um maior esforço intelectual, separados por intervalos regulares. Além disso, há uma

40 Parecer do Conselho Fiscal (1914). Anais..., 9-10, 319. 41

Manchengo, F. Morais (1912). Questões pedagógicas – Inspecção médica escolar. Anais..., 1-2, 7.

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concentração dos “exercícios que pedem mais atenção” na parte da manhã, sendo a parte da tarde dedicada a outras actividades, tais como os trabalhos manuais, que não representam realmente trabalho, mas antes divertimento, já que deve ser esta “a sua principal preocupação”; o canto coral – a “vida” e a “alegria da escola”; os jogos livres e dirigidos, no sentido de “aperfeiçoar os sentidos, desenvolver os músculos e fazer despertar o espírito de lealdade, gratidão e amor”. Do currículo fazem ainda parte uma iniciação à leitura, à escrita e à geografia, para além das chamadas “lições de coisas” – expressão ambivalente que recobre um dos procedimentos mais em voga no seio das correntes renovadoras -, a partir dos “diversos objectos que as rodeiam” e tomando assuntos das áreas da botânica, da zoologia e da agricultura. A autora considera-as “um dos mais interessantes ensinos das escolas maternais”43

.

Albertina Cordeiro mostra-se, ainda, em consonância com os esforços no sentido, por um lado, da profissionalização da actividade docente e, por outro, da valorização da educação de infância, tendências estas que caracterizam o período. Segundo diz, cada classe está entregue a uma professora, e não a uma “servente” – usando a terminologia de então -, pois isso seria, na sua opinião, “falsear o princípio fundamental da escola maternal, que é a educação”. Ainda que essas funcionárias possuam “belas qualidades pessoais, não podem, por falta da devida preparação, ser o que nós consideramos uma educadora”. Ou seja: só pode ser boa “educadora” quem teve uma formação especializada para desempenhar tal função, mesmo quando, no caso da “escola maternal”, as qualidades que a definem são, segundo a autora, “a mãe boa, terna e inteligente”, o que não deixa de nos remeter para a permanente interpenetração entre as dimensões pessoal e profissional no que se refere à actividade docente, ainda mais visíveis neste nível de ensino44.

A coeducação, outra das marcas distintivas das experiências inovadoras do período, é praticada na “escola maternal” da Academia de Estudos Livres, o que contrasta com a timidez dos passos dados para a sua generalização, mesmo no contexto do Portugal republicano. Segundo a directora, “a nossa escola é mista no mais amplo sentido da palavra”, uma vez que não há separação de géneros em nenhum dos lugares da escola nem se pretende impor às crianças qualquer concepção sobre esse tipo de

43

Cordeiro, A. S. (1913). Relatório. Anais..., 7-8, 198-200.

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diferenciação. De acordo com o que se afirma, “não há rapazes nem raparigas – há crianças”45

.

A consciência das finalidades integradoras e normalizadoras da educação infantil está bem presente no discurso de Albertina Cordeiro:

Conquanto pareça fastidioso dizer e redizer que a escola maternal é o conjunto de bons hábitos, é indispensável convencermo-nos de que a criança não vai para ali para ser um pequenino e ridículo sábio – vai para se tornar vigoroso, pela prática dos bons preceitos higiénicos, vai para adquirir hábitos de ordem, para se disciplinar com a prática repetida de bons hábitos materiais, para conquistar o amor ao trabalho, para saber viver com os seus colegas, respeitar e amar seus pais e professores, para se interessar pelas felicidades das pessoas com quem vive, tomar parte nos seus desgostos, para auxiliar os seus semelhantes em tudo quanto possa, para se acostumar a amar o bem e ter horror ao mal, enfim, para se tornar forte, inteligente, bom e belo. Eis os fins essenciais da escola maternal.46

A enfatização daquilo a que a autora chama “bons hábitos” dá bem conta da dimensão moral dum projecto que aspira à “regeneração das crianças” pela via da educação infantil47. Os referidos “bons hábitos”, onde se incluem a ordem, a disciplina e o amor ao trabalho, confirmam a sua perfeita adequação aos valores liberais do republicanismo, mas também a sua funcionalidade no âmbito de um projecto global de governo dos indivíduos através da construção (logo a partir do jardim de infância) da sua subjectividade. Algumas das referências finais do texto não deixam de poder ser articuladas com a noção de solidariedade, valor central no quadro do projecto de construção de uma moral laica alternativa à do catolicismo. A crítica, de inspiração “rousseauniana”, à figura do “pequenino e ridículo sábio”, remete não só para o ideal de educação integral - tornar o jovem “forte, inteligente, bom e belo” -, mas também para o relativo anti-intelectualismo das correntes renovadoras.

Na conclusão do seu texto, Albertina Cordeiro sublinha o carácter inovador da experiência que dirige, ao considerar que ela evoluiu “a par das dos países que caminham na vanguarda do ensino” e, apesar de reconhecer a influência froebeliana, reafirma a sua originalidade e especificidade nacional, aqui em consonância com a

45 Cordeiro, A. S. (1913). Relatório. Anais..., 7-8, 197. 46

Cordeiro, A. S. (1913). Relatório. Anais..., 7-8, 198.

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retórica patriótica que é uma das imagens de marca do discurso pedagógico republicano48.

A referência, nas páginas dos Anais, a outras instituições escolares prende-se com a crença na possibilidade de generalizar as inovações através da divulgação de exemplos modelares (tanto de escolas como de práticas), em contraponto à crítica das práticas consideradas negativas. Um exemplo é a sequência de dois artigos, assinados por António Alfredo Alves, militar e professor do Instituto Feminino de Educação e Trabalho (Odivelas), dedicada ao tema dos asilos femininos em Portugal e escrita após visitas do autor a diversas dessas instituições. Num balanço geral, Alfredo Alves afirma o seguinte:

A impressão que me ficou das visitas que fiz a estas casas foi a de que as respectivas direcções pensam muito a sério em resolver o problema da educação da mulher do povo, preparando a criança desvalida para as lutas da vida, a fim de que no meio em que mais tarde tem de viver possa ser um elemento de valor social e não um elemento perturbador e inútil... Era dever de todos fazermos um pouco mais de justiça às pessoas que dirigem estes estabelecimentos que, pelo seu carácter, pelo seu amor às crianças desvalidas e pelo seu saber procuram por todos os modos dar pão e abrigo à pobrezinhas bem como uma educação harmónica com o meio em que são destinadas a viver, além de amparo e protecção à saída da casa em que se tornaram mulheres.49

Um aspecto a sublinhar é o claro entendimento dos asilos como tendo por função a “educação da mulher do povo” Uma dessas instituições – o Asilo do Lumiar – é exactamente criticado por ser “antes um albergue de crianças pobres do que uma escola”50

. Em relação ao Recolhimento de S. Pedro de Alcântara sugere-se que a reformulação, “harmonizando-o com as indicações de uma boa e sólida educação” comece pelo próprio nome – “recolhimento”51.

É visível, no entanto, que a promoção social para que essa educação deve apontar é muito relativa. Ela deve ser adequada ao meio social em que as asiladas “são destinadas a viver”. Numa das instituições – o Asilo de Nossa Senhora da Conceição para Crianças Abandonadas – o plano de estudos e trabalhos – considerado “moderno” - é elogiado por ter por finalidade “preparar as pobres crianças para uma vida de trabalho e de honestidade” e por estar em “harmonia com o lugar que as alunas naturalmente

48 Cordeiro, A. S. (1913). Relatório. Anais..., 7-8, 201.

49 Alves, A. Alfredo (1913). Asilos femininos. Anais..., 4-5, 143-144. 50

Alves, A. Alfredo (1913). Asilos femininos. Anais..., 4-5, 145.

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virão a ocupar na sociedade: boas criadas e operárias instruídas”52

. Além disso, a finalidade de controlo social que, por essa via, se pretende atingir é uma das suas principais motivações. A educação proporcionada pretende evitar que essas jovens se transformem num “elemento perturbador e inútil”.

Um dos aspectos que é elogiado em algumas instituições é a qualidade dos edifícios e dos espaços envolventes e sua adequação à função que exercem. Do Asilo D. Pedro V diz o autor ter sido “construído expressamente para este fim, com amplas janelas por onde a luz e o ar entram livremente”, para além de estar localizado numa zona verde e de possuir horta e jardim53. As preocupações, de natureza higiénica, com a iluminação e a circulação do ar estão bem presentes, bem como o pressuposto – típico da Educação Nova – da necessidade de contacto com a natureza, encarada como fonte de regeneração. Encontramos ainda uma chamada de atenção para espaços – como a horta – encarados como imprescindíveis para a prática de trabalhos manuais e para uma aproximação maior ao ideal da educação integral. No já referido Asilo de Nossa Senhora da Conceição, refere-se que “as alunas aprendem no jardim a observar e a cultivar as flores, tratam de horticultura, arboricultura, criação e tratamento de animais domésticos”54

.

O papel educativo do trabalho é bastas vezes realçado. Relativamente ao Asilo do Lumiar, Alfredo Alves afirma, em tom crítico, que “não há propriamente ensino doméstico” e que “não se pode dizer que haja ensino profissional”55

. Em contraponto, no Asilo de Santo António, considerado “uma das mais belas obras educativas que nos tempos modernos Lisboa deve à iniciativa benfazeja dos amigos das crianças pobres”, “as alunas fazem todo o serviço da casa, tanto da cozinha como da limpeza do edifício, refeitório, camaratas, etc.”, nenhuma saindo do estabelecimento “sem que tenha, praticamente, conhecimento de todos os serviços domésticos”56

.

Mas, segundo o autor, o que torna este estabelecimento “modelar” e “notável” são as suas “alegres oficinas”, que incluem o trabalho da prata e da madeira, a cartonagem, o corte e confecção de vestidos, bordados, etc.57. É que, para além dos trabalhos educativos, a maioria destes asilos estão vocacionados para uma formação profissional. No mesmo asilo existe, por exemplo, um curso de escrituração comercial.

52 Alves, A. Alfredo (1913). Asilos femininos. II. Anais..., 7-8, 242. 53

Alves, A. Alfredo (1913). Asilos femininos. Anais..., 4-5, 144.

54 Alves, A. Alfredo (1913). Asilos femininos. II. Anais..., 7-8, 242. 55 Alves, A. Alfredo (1913). Asilos femininos. Anais..., 4-5, 146. 56

Alves, A. Alfredo (1913). Asilos femininos. Anais..., 4-5, 146-147.

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No Asilo de Nossa Senhora da Conceição existem cursos de contabilidade, culinária e, curiosamente, de professoras em várias áreas (educação infantil, rendas e bordados, dactilografia, ginástica sueca, etc.). Esta não é uma excepção, já que no Asilo da Ajuda as alunas mais distintas são enviadas a “frequentar a Escola Normal de Lisboa”58

. Na Casa-Mãe de Benfica, fundada por Francisco Grandela, as educandas aprendem a trabalhar, como modistas, na fábrica do próprio fundador. Mas é a chamada “educação doméstica” a principal área de formação da maioria destas casas. É o caso do Asilo da Ajuda, considerado “um verdadeiro modelo em tudo que se refere ao ensino das donas de casa”, onde tudo “está a cargo das pequenas donas de casa”. Alfredo Alves acrescenta a seguinte curiosidade à anterior constatação no sentido de reforçar o seu veredicto:

Um dos directores é o general Sr. Bandeira de Melo, uma alta competência no assunto; os seus livros de cozinha e de corte publicados com o pseudónimo de Carlos Bento da Maia dão-lhe um lugar de destaque entre as pessoas que se têm dedicado ao ensino doméstico. Não é porém o saber a única qualidade deste ilustre oficial, avulta nele a paixão pela vulgarização dos conhecimentos de utilização imediata, tornando-o assim um verdadeiro apóstolo da educação da mulher do povo.59

O papel assumido pela educação doméstica na agenda pedagógica renovadora não deixa de ser interessante. Por um lado, há um elemento de valorização da educação feminina, designadamente no que se refere à “mulher do povo”; por outro, é inquestionável a reprodução de uma divisão de trabalho que remete a mulher para as tarefas domésticas. Para além disso, encontramos aqui um general produtor de obras da especialidade, consideradas de “vulgarização dos conhecimentos de utilização imediata”. Esta é, seguramente, uma das mais importantes acepções atribuídas à “educação popular” pela elite esclarecida de então e com preocupações de natureza filantrópica e educativa.

Num artigo inserido na secção «bibliografia» e dedicado à análise da revista Educação da Sociedade Promotora de Escolas – fundadora da emblemática Escola-Oficina n.º 1 – critica-se, exactamente, o “fazer bem” entendido como “virtude religiosa”, considerado prevalecente no panorama nacional, em contraponto com o “sentimento da solidariedade humana” interpretado como um “dever cívico”. É esta última, segundo o articulista, a atitude subjacente às actividades daquela sociedade e

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Alves, A. Alfredo (1913). Asilos femininos. II. Anais..., 7-8, 247.

Referências

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