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S. Vicente de Lisboa e seus milagres medievais

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Academic year: 2021

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S. Vicente de Lisboa

e seus milagres medievais

Nota Prévia

A descoberta d e u m a n o v a colecção de m i l a g r e s d o m á r t i r S. Vicente na Biblioteca N a c i o n a l d e Lisboa está na o r i g e m d o t r a b a l h o q u e s e g u i d a m e n t e d a m o s a p ú b l i c o .

H a v i a n ã o apenas q u e fixar u m t e x t o q u e nos aparecia e m t e s t e m u n h o ú n i c o e isolado, mas t a m b é m situá-lo t a n t o p o r relação c o m o a r q u é t i p o p e r d i d o , e d o qual dista p e l o m e n o s u m século, c o m o r e l a t i v a m e n t e à o u t r a colectânea d e milagres q u e , sob o n o m e d e M e s t r e Estêvão, c h a n t r e da catedral d e Lisboa, havia sido i n t e g r a d a n u m dos v o l u m e s d o L e g e n d á r i o Alcobacense e m inícios d o séc. x n i e D . R o d r i g o da C u n h a e D . A n t ó n i o B r a n d ã o h a v i a m ainda c o n h e c i d o n u m o u t r o t e s t e m u n h o da Sé d e Lisboa.

Associar os dois t e x t o s implicava, antes d e mais, ter de descobrir a sua inter-relação e, a p a r t i r dela, a sua f u n c i o n a l i d a d e , q u e o m e s m o é dizer a i n t e n c i o n a l i d a d e o r i g i n á r i a e a r e c e p ç ã o subsequente.

N e m t o d a s as questões ficarão aqui i n d u b i t a v e l m e n t e resolvidas n e m sequer e x p l i c i t a m e n t e enunciadas, a c o m e ç a r p e l o significado global d e u m a q u a l q u e r colectânea d e milagres, j á q u e apenas se a p o n t a r á p a r a o seu carácter d e l i v r o / registo a b e r t o e o f a c t o de, n o caso e m apreço, estarmos p e r a n t e redacções unitárias i n d e p e n d e n t e s c o m transferência d o t e x t o da i n t r o d u ç ã o d e u m a p a r a o u t r a e a associação à s e g u n d a d e u m t e x t o h a g i o g r á f i c o tradicional c o m adaptações q u e o b r i g a m a questionar, u m a v e z mais, a intencionalidade p r i m i t i v a .

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74 DIDA5KALIA

T a m b é m n ã o nos p r e o c u p o u o a l a r g a m e n t o d o h o r i z o n t e para a r t i c u l a r m o s os nossos t e x t o s c o m o p a n o r a m a c o n c r e t o e mais o u m e n o s l a r g o das «Peregrinações e Livros d e Milagres na nossa Idade Média», j á q u e tal p e r c u r s o está feito, c o m c o n h e c i m e n t o de causa c mestria de estilista, p o r M á r i o M a r t i n s , S. J., a q u e m a q u i p r e t e n d e m o s prestar a nossa h o m e n a g e m .

F i x a r - n o s - e m o s nos textos, o n d e a p o l a r i d a d e principal é dada pela i n t r o d u ç ã o q u e f i x a o m á r t i r S. V i c e n t e c o m o o santo q u e Lisboa, saída da R e c o n q u i s t a , elege p a r a p a t r o n o .

I n d e p e n d e n t e m e n t e d e u m a i n v o c a ç ã o anterior p o d e r explicar a escolha feita e m relação ao m o s t e i r o l e v a n t a d o na colina oriental, c m f r e n t e da cidade, tal gesto manifesta u m a adesão colectiva. I n o v a d o r a e sem d ú v i d a necessária.

As nossas colectâneas, através de u m a i n t r o d u ç ã o c o m u m , r e g i s t a m - n a p o r igual; se n ã o de i m e d i a t o , p e l o m e n o s de p e r t o , ficando apenas d e p e r m e i o a distância necessária para a m e m ó r i a sc t o r n a r celebração.

A c o m p a n h a m t a m b é m a d i f u s ã o de u m c u l t o q u e se e x p a n d e e extravasa para f o r a d o santuário veiculado p o r símbolos falantes q u e p r o l o n g a m o sentido d o gesto inicial e r e c u p e r a m h a r m o n i c a m e n t e m o t i v o s da t r a d i ç ã o legendária e d e cultos localizados c m p o n t o s g e o g r a f i c a m e n t e distantes, mas s i m b o l i c a m e n t e influentes.

R e g i s t a m elas i g u a l m e n t e , c m m o v i m e n t o inverso, c através de gestos repetidos d e p e r e g r i n a ç ã o e d e a c o l h i m e n t o ao p a t r o c í n i o d o santo, a r e i n t e g r a ç ã o na vida colectiva d e pessoas e m dificuldade, privadas d e saúde p o r q u a l q u e r d o e n ç a o u atingidas p o r q u a l q u e r adversidade. A exteriorização da festa q u e dsí deriva n ã o m e r e c e aqui a censura que, mais tarde, figurará n o cap. 32 das Constituições d e D . J o ã o Esteves d e A z a m b u j a (1402-1414), o n d e se estabelece «que 11011 cantassem n e m dançassem n e m balhassem n e m trebelhassem nos mosteiros e egrejas cantos, danças c trebelhos desonestos n e m e m a festa d e sam Vicente». C o m os nossos t e x t o s estamos e f e c t i v a m e n t e nos p r i m ó r d i o s e apenas p o r excepção v i s l u m b r a m o s traços de transgressão q u e precisem d c r e g u l a m e n t a ç ã o proibitiva.

E n a r e c u p e r a ç ã o deste s e n t i d o o r i g i n á r i o q u e p r o p o m o s a sua leitura e m edição q u e r e t o m a e m revisão o t e x t o p u b l i c a d o nos P M H o u interpreta, pela p r i m e i r a v e z e m f o r m a impressa, o t e s t e m u n h o i n é d i t o e lhes acrescenta a respectiva t r a d u ç ã o , c o m os c o m e n t á r i o s anexos na i n t r o d u ç ã o e nas notas c o m p l e m e n t a r e s .

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5. VICENTE DE LISBOA E OS SEUS MILAGRES 75

P r e p a r a d a 110 â m b i t o d o S e m i n á r i o de Filologia Latina M e d i e v a l , d e q u e o p r i m e i r o s i g n a t á r i o é responsável n a F a c u l d a d e d e Letras d e Lisboa, esta edição q u e r ser t a m b é m u m a a f i r m a ç ã o d o q u e , c r e m o s , é possível oferecer c o m o serviço p a r a u m a descoberta mais alargada das várias expressões da m e m ó r i a colectiva e m q u e nos inserimos. D e s -necessário explicitar o q u e p e r t e n c e mais a u m o u a o u t r o p o r q u e , se ela pressupõe u m a o r i e n t a ç ã o , resulta finalmente de u m esforço c o m u m e de u m a colaboração q u e s o b r e t u d o q u e r e m o s sublinhar.

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I N T R O D U Ç Ã O

A cidade e os seus santos

L i s b o a depois d e 1147. U m a realidade n o v a : a vitória dos cristãos d o N o r t e sobre o Islão. D i s t a n t e fica a a p a g a d a presença g r e c o -- r o m a n a , t r a n s f o r m a d a , n o t e m p o , pela p e r m a n ê n c i a visogodo--cristã c, l o g o após, pela i n t e r v e n ç ã o m u ç u l m a n a .

Será desnecessário d e s e n v o l v e r a q u i t o d o esse passado para nos fixarmos especificamente na cidade undecentista q u e u n i c a m e n t e nos i n t e r e s s a1. Espaço de circulação c o m e r c i a l e d e riqueza, d o m i n a n d o u m a p o d e r o s a v i a fluvial, r e c e p t á c u l o de p r o d u t o s de l u x o trazidos dos c o n f i n s m e d i t e r r â n i c o s , cia é t a m b é m u m local de tolerância e n t r e d o m i n a d o s e v e n c e d o r e s . A i n d a q u e à sua v o l t a se estenda u m espaço r u r a l d o m i n a n t e , ela c o n c e n t r a e m si, n o seu p e r í m e t r o u r b a n o , u m a realidade social assente n a m e m ó r i a histórico-cultural dos seus grupos, p a r t i c u l a r m e n t e m a r c a n t e nas suas expressões r e l i g i o s a s2.

E s o b r e t u d o o g r u p o dos cristãos m o ç á r a b e s aquele q u e m e l h o r t r a d u z a sua i d e n t i d a d e cultural d e t i p o religioso q u e se e x p r i m e e m rituais litúrgicos específicos e m a n t é m viva u m a m e m ó r i a d e largos referenciais, f o r m a d o s p o r costumes e instituições o u personagens, santos e mártires, q u e d ã o s e n t i d o a o p r ó p r i o q u o t i d i a n o citadino. E neste clima q u e a c i d a d e festeja a r e c u p e r a ç ã o de u m a entidade s i m b ó l i c a c o m o o e r a m as relíquias d e S. Vicente, santo ao qual s e m p r e os m o ç á r a b e s h a v i a m a t r i b u í d o especial atenção 3. O a c o n t e c i m e n t o

1 Baste-nos remeter para GERARD PRADALIÉ, Lisboa, da reconquista ao fim do século XIII, Lisboa, 1975.

2 O panorama não difere do traçado por JACQUF.S LE G o r r na introdução a Histoire de la

France urbaine— La ville médiévale, (dir. Georges Duby), Paris, 1980 pp. 11-25; cf. igualmente

do mesmo autor Os intelectuais tia Idade Médio, Lisboa, 1983, pp. 11-13.

3 Sobre o caso específico de S. Vicente e Lisboa, cf. CARMEN GARCIA RODRIGUEZ, El culto

de los santos en la Espana romana e visigoda Madrid, 1966, pp. 257-278; MÁRIO MARTINS, Peregrinações e Livros de Milagres na nossa Idade Média, Lisboa, 1957, cap. II, «Peregrinações a S .

Vicente do Cabo» pp. 41-52; IRISALVA MOITA in Catálogo da Exposição iconográfica e bibliográfica

comemorativa do VIII centenário da chegada das relíquias de São Vicente a Lisboa, Lisboa, 1973, pp.

15-109; C o n . JOSÉ FALCÃO, O mártir S. Vicente e a sua liturgia, Lisboa, 1974, pp. 5-18; L. KRUS, «A representação do mundo», in Catálogo da XVII Exposição F.iiropein de Arte, Ciência e

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5. V I C E N T E D E L I S B O A E OS SEUS MILAGRES 77

concretiza-se n a busca dos restos d o seu c o r p o realizada, ao q u e e n c o n t r a m o s r e f e r i d o , p o r 1173, e o seu i m p a c t o é de tal m a n e i r a efectivo q u e c o r r e o risco d e d i v i d i r o s d e v o t o s e d e g e n e r a r e m violências q u a n d o se p õ e e m causa a escolha da i g r e j a à q u a l d e v e r i a m esses restos r e c o l h e r 4.

N o e n t a n t o , Lisboa era u m a c i d a d e copiosa e m relíquias d e santos e centros de d e v o ç ã o . V e n e r a v a m - s e na cidade, nesse séc. x n , santos aí fixados d e h á m u i t o : Sta. Justa, S. Gens, Sto. Anastásio, S. Plácido, S. M a n ç o s (na Sé e n o u t r o s t e m p l o s ) , S. V e r í s s i m o , Sta. M á x i m a e Sta. J ú l i a (no m o s t e i r o de Santos), S. Félix, Sto. A d r i ã o e Sta. N a t á l i a (no m o s t e i r o de Cheias), e n t r e o u t r o s . U n e - o s a t o d o s o f a c t o de s e r e m m á r t i r e s da t r a d i ç ã o hispânica, r e m o n t a n d o e m b o a p a r t e a o séc. iv, e alguns deles ligados à c i d a d e p e l o m a r t í r i o e pela s e p u l t u r a5. Apesar disso, Lisboa vai eleger p a r a p a d r o e i r o u m santo d o Sul h i s p â n i c o . Q u e razões p o d e r ã o explicar essa a t i t u d e? Factores e x ó g e n o s ?

S. Vicente era u m santo n ã o só t r a d i c i o n a l , m a s q u e j u n t a v a a essa particularidade a d e revivescência d o seu c u l t o j u n t o das elites d o p o d e r , das cortes cristãs, p a r t i c u l a r m e n t e d a f r a n c e s a6 e passará a sê- l o t a m b é m das hispânicas, m o r m e n t e da p o r t u g e s a . Nisso p o d e r á servir de t e s t e m u n h o o v e n e r á v e l Missal d e M a t e u s , t r a z i d o de Moissac para B r a g a e m inícios d o séc. x n , o qual o inclui n o seu santoral, o n d e l h e é dispensado r e l e v o p a r t i c u l a r7. Esse f a c t o n ã o p o d e r á dissociar-se t a m b é m da e m i g r a ç ã o f r a n c a p a r a o o c i d e n t e p e n i n s u l a r8, a q u a l incide s o b r e t u d o nos q u a d r o s culturais. P o r o u t r a s palavras, a preferência p o r

4 C f . textos q u e adiante se p u b l i c a m .

5 D. RODRIGO DA CUNHA, Historia ecclesiastica da Igreja de Lisboa. Vida e acçoetis de seus

prelados e varões eminentes em santidade, que nella fiorecerão. Offerecida ao duque de Aveiro Dom Raymundo de Lencastro, Lisboa, 1642, 1 parte, Ï vol., caps. XII-X1V, XVII1-X1X; II parte

cap. X X X V I I . Reconheça-se que n e m todas as informações de D . R o d r i g o da C u n h a estão isentas de contestação crítica; cf. P. MIGUEL DE OLIVEIRA, Lenda e História —Estudos Hagiográjieos, Lisboa, 1964, p p . 107 ss. (S. Manços); p. 116 (S. Gens); p . 136 (S.ta Zita); p p . 149 ss. (S.tos Veríssimo, M á x i m a e Júlia); p. 169 (S. Narciso); p p . 170 ss. (S. Félix); p p . 174 ss. (S.to Adrião e

S . t a N a t á l i a ) . C f . I g u a l m e n t e CARMEN GARCIA RODRIGUEZ, Op. cit. p p . 1 9 9 - 2 0 1 e 3 0 4 - 3 1 2 ( S .

Félix, S.to Adrião c S.ta Natália); pp. 279-281 (S. Manços, S.tos Veríssimo, M á x i m a e Júlia S.ta Iri)a.

6 É conhecida a viagem e m p r e e n d i d a p o r U s u a r d o e m 858 para o b t e r as relíquias d o santo, sem q u e o tenha conseguido. P o u c o t e m p o depois da reconquista de Saragoça, e m 1118, o bispo B a r t o l o m e u de Laon propõe-se, de n o v o , tal objectivo; mas os dois m o n g e s de Valência q u e encontra naquela cidade apenas se p e r m i t e m confiar-lhe q u e o seu mosteiro acaba de ser t o t a l m e n t e saqueado e destruído, sem lhe d a r e m q u a l q u e r indicação d o paradeiro das relíquias. C f . BAUDOUIN DE GAIFFIER «Relations religieuses de l'Espagne avec le N o r d d e la France —• Transferts de reliques (vin.e-xil.e siècles)», in Recherches d'Hagiographie latine, Bruxelas, 1971, pp. 7-29 (particularmente, p p . 13-16).

7 JOAQUIM O . BRAGANÇA (ed.), Missal de Mateus, Lisboa, p p . 102 ss..

8 C f . JOSÉ MATTOSO, «A cultura monástica e m P o r t u g a l (875-1200)», in Religião e Cultura

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7 8 D1DASKALIA

S. Vicente, ainda q u e f o r a da tradição local, p o d e r á derivar da alteração d o m e i o d i r i g e n t e , a p a r t i r da c o r t e e da h i e r a r q u i a eclesiástica l o g o após a conquista da cidade. D e resto, tal conquista é de i m e d i a t o posta e m relação c o m o m á r t i r através da edificação d o m o s t e i r o d e S. V i c e n t e9, a qual t e m de ser e n t e n d i d a na sua d i m e n s ã o simbólica d e n t r o d o i m a g i n á r i o da é p o c a .

A explicação t e m c e r t a m e n t e de levar e m c o n t a o i n c r e m e n t o da d e v o ç ã o p e l o santo n u m a p a r t e significativa da Península r e c o n -quistada n o ú l t i m o t e r ç o d o séc. x n9 a. O interesse d e D . A f o n s o H e n r i q u e s pelas relíquias d o santo, e m 1173, p o d e e v e n t u a l m e n t e estar r e l a c i o n a d o c o m tal facto c o b e d e c e r a u m p r o j e c t o de e n o b r e -c i m e n t o d e Lisboa -c o m o n o v a -capital.

N ã o p o d e m o s , todavia, deixar d e a t e n d e r ao t e s t e m u n h o c o n -t e m p o r â n e o , r e p r e s e n -t a d o pela descrição de M e s -t r e Es-têvão, chan-tre da Sé de Lisboa, q u a n d o refere q u e é sob i n t e r v e n ç ã o dos cónegos regulares d e S. V i c e n t e de Fora j u n t o d o rei q u e este se decide a m a n d a r p r o c u r a r e m S. V i c e n t e d o C a b o os restos d o c o r p o d o santo esquecidos p o r descuido n u m a p r i m e i r a v i a g e m de p r o s p e c ç ã o1 0.

Q u a i s q u e r q u e sejam os p r o p ó s i t o s da n a r r a t i v a , há a reter q u e são necessárias duas expedições p a r a recolha das relíquias d o m á r t i r . P o r -m e n o r p o u c o claro, p o r q u a n t o o u o rei pôs p o u c o c u i d a d o na p r e p a r a ç ã o da p r i m e i r a v i a g e m , n ã o escolhendo para ela as pessoas mais indicadas, c o m o fará n a s e g u n d a1 1, o u ela t i n h a fins diferentes daqueles q u e a c a b o u p o r p r o d u z i r . D e q u a l q u e r f o r m a , é o rei c o m os religiosos de S. V i c e n t e q u e m , cerca de 1173, aparece c o m o o principal d i n a m i z a d o r d o e m p r e e n d i m e n t o . O p o v o , p o r seu lado, n ã o deixa de se associar e d e t o m a r p a r t i d o , e m b o r a s e m p ô r e m causa as decisões cimeiras da h i e r a r q u i a civil e eclesiástica.

Apesar da b r e v i d a d e d a n a r r a t i v a h a g i o g r á f i c a (e sem esquecer u m a n t a g o n i s m o mais q u e latente e n t r e o cabido da Sé e os c ó n e g o s d e

9 C f . Indicuium fundatianis monasterii S. Vincentii,in PMH-Ss, pp. 91-93; D . RODRIGO DA CUNHA, Op. cit., II parte, cap. III; A. DORNELAS «Crónicas da f u n d a ç ã o do mosteiro de S.Vicente de Fora», Anais da Academia Portuguesa de História, Lisboa, 1940, vol. II, p p . 147-196. 9' E m 1167, regista-se u m a doação feita p o r Afonso VIII de Castela ao t ú m u l o do santo, e m Valência; e m 1172, o rei m o u r o de Valência cede o local d o t ú m u l o ao rei Afonso II de Aragão; e m 1179, é a vez deste rei transferir a propriedade d o t ú m u l o para o mosteiro beneditino de S. J u a n de la Peíía. C f . ANTONIO LINAGE CONDE, «Algunas particularidades de la implantación mendicante en la Península Ibérica», Arquivo Histórico

Dominicano Português, III, 2, P o r t o , 1986, p. 14 da separata ( = Actas do II E n c o n t r o sobre

História Dominicana).

1 0 C f . o prefácio do t e x t o que adiante se publica. 1 1 Veja-se esse m e s m o texto.

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5. V I C E N T E DE LISBOA E OS SEUS MILAGRES

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S. Viccntc), parece ser possível c legítimo e n t e n d e r q u e o n o v o c u l t o c o n v é m e r e s p o n d e aos interesses de c o n v í v i o da n o v a realidade citadina saída da reconquista c e x p r i m e m e l h o r q u e os o u t r o s j á a n t e r i o r -m e n t e i -m p l a n t a d o s a i d e n t i d a d e da n o v a c o -m u n i d a d e . A trasladação das relíquias t r a n s f o r m a - s e n u m acto da m a i o r relevância política c o m a i n t e r v e n ç ã o das diferentes esferas d o p o d e r , desde o c a b i d o da Sé, os regrantes, o f r o n t e i r o da E s t r e m a d u r a , até a o p r ó p r i o rei. Final-m e n t e a decisão régia t u d o decide e Final-m f a v o r da Sé, o c e n t r o religioso da cidade.

R e p e t e - s e e m t u d o isto o e s q u e m a b e m c o n h e c i d o da entronização c o r r e s p o n d e n t e ao clássico r i t o de passagem c o m as suas diversas fases d e separação, m a r g i n a l i d a d e e integração, c o m o m o m e n t o d e passagem situado d u r a n t e a n o i t e e a c u l m i n â n c i a n u m c o r t e j o q u e p a r t e de u m p o n t o n ã o m u i t o distante p a r a o l u g a r central e definitivo. Transferência espacial, s e m d ú v i d a , d o C a b o até à igreja de Santa Justa c desta até à C a t e d r a l . Transferência hierárquica, i g u a l m e n t e . D o e s q u e c i m e n t o , d o p e r i g o , para u m l u g a r h o n o r í f i c o e de d e v o ç ã o . T r a n s f e r ê n c i a de periferia para o c e n t r o de i m p o r t â n c i a social c o m o p a t r o n o de u m a c o m u n i d a d e, 2.

As m o t i v a ç õ e s reais n e m s e m p r e serão as confessadas d i r e c t a -m e n t e . T o d a v i a , a l g o p a r e c e claro: V i c e n t e n ã o é u -m santo de cruzada, c o m o e v e n t u a l m e n t e p o d e r i a sê-lo Pelágio, v í t i m a dos m u ç u l m a n o s . Era, antes, a recuperação c o m o consagração final das lutas e m p r e e n d i d a s e dos esforços levados a cabo p e l o rei. E r a i g u a l m e n t e a segurança de u m p a t r o c í n i o celestial r e q u e r i d o pela c i d a d e1 3. A loca-lização d o seu culto teria de ser b e m n o centro, i n d e p e n d e n t e m e n t e d e interesses particulares, c o m o os dos c ó n e g o s regrantes de S. V i c e n t e .

A afirmação oficial de S. Vicente

E n t r e a simbólica associada a S. Vicente há a destacar dois elementos basilares: o p r i m e i r o c o n s t i t u í d o p e l o c o r v o , o u ave negra, mais h a b i t u a l m e n t e e m n ú m e r o par, e o s e g u n d o f o r m a d o pela barca. São ícones q u e c o m e ç a m a surgir, n o caso da sigilografia olissiponense, j á e m 1190, n u m selo d o m o s t e i r o d e S. Vicente, e m b o r a apenas c o m

1 2 R e p o r t a m o - n o s aqui à síntese paradigmática oferecida por PATRICK J. GEABY, Furta

sacra — Thefts of Relics in the central Middle Ages, Princeton, 1978, pp. 154-156.

1 3 Nessa mesma procura se inscrevia o saque dos venezianos a Constantinopla em 1240.

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u m c o r v o n o c a m p o d o s e l o1 4. M a i s t a r d e , neste m e s m o m o s t e i r o , ser-- l h e ser-- á acrescentado u m b a r c o e a f i g u r a ç ã o d o c o r p o d o m á r t i r '5.

E m selo de 1233, a g o r a para o c o n c e l h o de Lisboa, a p a r e c e m dois c o r v o s n u m a barca, m a s s e m o c o r p o d o santo r e p r e s e n t a d o1 6.

P o r seu t u r n o , o c a b i d o da Sé usará u m selo o n d e inclui a figuração d e Sta. M a r i a e, p o r b a i x o , u m barco 1 7.

A t o d o s eles se associa o s í m b o l o das águas; a dois deles o dos c o r v o s .

O r a , se n ã o r e c u s a r m o s aos selos destas instituições u m a d i m e n s ã o simbólica c o m u m a a f i r m a ç ã o p ú b l i c a d e m e n s a g e m relacionada c o m u m p a t r o n o ( n o m í n i m o , u m a relação religiosa e n t r e a C i d a d e e o A l é m ) , t e r e m o s d e a d m i t i r q u e o c u l t o d o santo g a n h a desde o ú l t i m o quartel d o séc. x n , o u c o m e ç o s d o século i m e d i a t o , u m carácter d e representatividade e identificação. T a l identificação consubstancia-se n u m s í m b o l o falante q u e r e m e t e p a r a a a f i r m a ç ã o de u m p o d e r c o m e r c i a l (as águas d o o c e a n o c o m o m e i o d e c o m u n i c a ç ã o c o m o exterior) e d o r e c o n h e c i m e n t o d o p a t r o c í n i o d i v i n o (representado nas relíquias d o santo).

As relíquias d e V i c e n t e são g a r a n t i a n ã o só d e superação das tensões urbanas, m a s t a m b é m d e u m a p r o s p e r i d a d e colectiva. T a l d i m e n s ã o n ã o escapa à p e r c e p ç ã o de M e s t r e Estêvão e a sua n a r r a t i v a t r a d u - l a e x e m p l a r m e n t e na interferência dos cónegos regulares j u n t o d o rei.

O m o t i v o dos c o r v o s é m e n o s específico, p o r mais generalizado. A sua figuração é f r e q u e n t e nos escudos das vilas p o r t u g u e s a s medievais, s o b r e t u d o e s t r e m e n h a s1 8. Nelas o c o r v o será a ave d e a p o i o q u e s u r g e a e x p l o r a r o espaço i n i m i g o e a a j u d a r o cristão a c o n -quistá-lo, c o m o aliado e m e n s a g e i r o d e b o m a u g ú r i o1 9. S i n t o m a

-1 4 C f . Catálogo da exposição iconográfica e bibliográfica (...) de S. Vicente, n . ° 153. 1 5 J!).,n.°155.

1 6 Ib., n. ° 158. 1 7 lb., n .01 4 7 .

1 8 P o r ex., Leiria e P o r t o de Mós, se b e m que esteja t a m b é m em T o r r e de M o n c o r v o . 1 9 E m princípio, pela sua cor negra, ou por se alimentar de animais mortos, o corvo é u m a ave de m a u agoiro. Todavia, o corvo é t a m b é m conhecido c o m o símbolo de perspicácia nas situações adversas; assim é representado n o Génesis, 8,7: «ao fim de quarenta dias de dilúvio N o é abriu a janela que havia feito na arca e largou o corvo, o qual foi e veio até as águas terem secado sobre a terra». A esta tradição bíblica c o m u m c o m outras culturas haverá que acrescentar u m outro traço: o isolamento, bem e m consonância com o retiro claustral. A realçar ainda que n o contexto árabe, e naturalmente moçárabe, o corvo não é necessariamente de mau presságio. C f . J . CHEVALIER-A. GHEERBRANT, Dictionnaire des symboles. Paris, 1973, s. u., «corbeau». Refira-se t a m b é m u m passo da Historia Albigensimn de PIERRE DES VAUX DE CERNAY ed. Bouquet, t. X I X ,p. 43, n. 47, relativo ao conde de Toulouse, do ano de 1212: «Viderat enim

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S. VICENTE D E LISBOA E SEUS MILAGRES 81

ticamente, o t e x t o dos milagres d e i x a d o p o r M e s t r e E s t ê v ã o d á - n o s conta da n e g a t i v i d a d e original d o s í m b o l o e da r e c u p e r a ç ã o possível para u m a f u n c i o n a l i d a d e positiva. Se n o s é lícito p r o c e d e r a u m a interpretação, o c h a n t r e da catedral sente necessidade d e r e c u p e r a r p a r a si e para o u t r o s u m signo n e g a t i v o , p o n d o - o e m c o n e x ã o c o m u m a intervenção c e l e s t i a l2 0. A sua insistência n a estranheza talvez d e n u n c i e a l g u é m m e n o s a c o s t u m a d o a e x p l o r a r j u s t a m e n t e a carga positiva d e u m m o t i v o l i g a d o a a m b i e n t e s m e d i t e r r â n i c o s .

N o c o n j u n t o , talvez t a m b é m a j u n ç ã o d e s í m b o l o s i c o n o g r á f i c o s diferentes deva ser e n t e n d i d a c o m o i n t e r p e n e t r a ç ã o d e g r u p o s culturais diversos. Lisboa é a g o r a o l u g a r d e reconciliação; a p r ó p r i a e m b l e m á t i c a o assume c o m o realidade j á transferida p a r a a i c o n o g r a f i a , o u a o m e n o s c o m o desejo e p r o p o s t a de t r a n s f o r m a ç ã o .

N ã o p o d e assim deixar d e ser t o m a d o c o m o significativo q u e n o c o n j u n t o da i c o n o g r a f i a vicentina o m o t i v o d a barca e dos c o r v o s seja quase exclusiva das representações p o r t u g u e s a s 2 1.

N ã o é d e estranhar i g u a l m e n t e q u e n o s í n o d o d e Lisboa d e 1240 os bispos d i s p o n h a m q u e os p á r o c o s o r i e n t e m os seus fiéis p a r a a o m e n o s u m a vez p o r a n o v i s i t a r e m a cidade d e Lisboa e m h o n r a d o m á r t i r S. V i c e n t e2 2.

quandam avem quam indigenae vocant avem sancti Martini, ad sinistram volantem et perterritus est valde. Ipse enim, m o r e Sarracenorum, in volatu et cantu avium et ceteris auguriis spem habebat»; cit. ap. H . DELEHAYE, Les légendes hagiographiques, Bruxelas, 1973, p. 150. Para os testemunhos arabes dos corvos associados ao culto de S. Vicente e sua recepção na tradição

l i t e r á r i a p o r t u g u e s a , c f . MÁRIO MARTINS, Loc. cit..

2 0 C f . milagre 1.8: «At ego quidem illud estimo m u l t o fuisse incredibilius, sane incredibilius quia mirabilius, et tarnen uerissimum est q u o d inexplete auis edacitatis et guie dedita nature oblita uoracis potuit carnem sanctissimi martiris...». A marca de intervenção celestial era dada pelo Passionário Hispânico de f o r m a diferente. Contrastava igualmente quanto aos predicados do corvo que guardara o corpo d o mártir. Lê-se efectivamente n o Passionário Hispânico: «Corvus haud proeul residens, avis lenta et pigerrima, cute tetra, specie decolor, p u t o ut f u n e b r e m h a b i t u m vel lamento quasi lugentis ostenderet, q u u m abigeret aliquas aves magnificas pinnisque pernicies, adveniente subito l u p u m in curribus suis, terrens, eregit e corpore, q u u m ille, reflexa cervice, n o n quod corvi illius impetu terreretur, sed in aspectu corporis stupefactus hereret, credo, aliquam custodiam mirabatur angelicam. R e d d i t a est antiquitatis storia, per avem similem, ut, que ante ad Elie plenos messorum portaverat cibos, nunc sancto Vincentio martyri iussa obsequia ministraret». Pasionario Hispânico, ed. A . Fabrega Grau, Madrid-Barcelona, II, 1955, p. 154.

É este elemento do Passionário que a iconografia aproveitará, sobretudo e m Portugal; cf.

MARIA DB LOS DOLORES M A T E U IBARS, Iconografia de San Vicente Mártir — I , P i n t u r a , V a l ê n c i a .

1980, p. 21. Todavia, a oposição homem-carrasco impiedoso de Vicente / animal selvagem--agente de defesa d o corpo martirizado não é explorada por Mestre Estêvão, ficando apenas o sinal de uma intervenção divina permanente, ainda que não previsível (o v ô o rápido) e ainda que expressa ein formas menos próximas da sensibilidade h u m a n a .

2 1 C f . MARIA DE LOS DOLORES M A T E U IBARS, Op, cit., o n d e se e n c o n t r a r á d o c u m e n t a ç ã o

abundante, ainda que posterior ao período que nos ocupa.

2 2 Diz o texto d o sínodo: «Item moneant presbiteri parrochianos suos tarn in confessionibus suis q u a m in praedicationibus s i v e ( . . . ) u t saltem semel in anno peregre uisitent

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82 B I D A S K A U A

O culto do santo

P a r t i n d o das colecções d e m i l a g r e s q u e aqui r e c o l h e m o s serão p e r t i n e n t e s a l g u m a s considerações respeitantes à difusão d o c u l t o d o s a n t o e suas expressões.

N u m a perspectiva social, p o d e m o s r e c o n h e c e r dois g r u p o s principais. O p r i m e i r o c o m p r e e n d e a n o b r e z a , c o m o rei à f r e n t e , e figuras c o m o as d e G u a l d i m Pais e d e G o n ç a l o Egas de L a n h o s o 2 3. O s e g u n d o , b a s t a n t e m a i s vasto, i n t e g r a as c a m a d a s p o p u l a r e s u r b a n a s e p e r e g r i n a s , a l g u m a s destas vindas d e l o n g e .

O s m o t i v o s d a i n v o c a ç ã o d o s a n t o são os mais diversos: p o r d o e n ç a (paralisias, casos n e u r o l ó g i c o s , t r a u m a t i s m o s . . . ) , para r e c u p e r a r bens p e r d i d o s o u r o u b a d o s . S e m p r e c o m êxito, n a t u r a l m e n t e .

As curas são celebradas c o m estrépito, p o r aclamação j u b i l o s a : os sinos d o b r a m , t r a n s p o n d o p a r a o e x t e r i o r , c o m a a p r o v a ç ã o das a u t o r i d a d e s c o m p e t e n t e s , o a l v o r o ç o das p r i m e i r a s testemunhas; e m resposta, t o d a u m a m u l t i d ã o a c o r r e à Sé. D e resto, os suplicantes n u n c a s u r g e m isolados, ainda q u e p o s s a m ser a n ó n i m o s ; à sua v o l t a há s e m p r e g e n t e e m m o v i m e n t o , d e olhar p r e s c r u t a d o r e a t e n t o ao e v o l u i r da situação. Interessada, m u i t a s vezes, p a r t i c i p a n t e s e m p r e . R a p i d a m e n t e a f a m a t a u m a t ú r g i c a d o santo a t i n g e lugares distantes, p a r t i c u l a r m e n t e p a r a o N o r t e . E o caso d e Guimarães, na recolha d e M e s t r e E s t ê v ã o , e d e L u g o na c o m p i l a ç ã o p o s t e r i o r . N o c o n j u n t o , n o e n t a n t o , d i z e m respeito à cidade. V i c e n t e é, efecti-v a m e n t e , u m s a n t o da u r b e . S o c o r r e pescadores e m a r i n h e i r o s e m p e r i g o , cura doenças q u e m é d i c o s e cirurgiões n ã o c o n s e g u i r a m debelar, p r o t e g e pessoas e haveres. F u n c i o n a c o m o p a d r o e i r o eficaz d e Lisboa, o n d e c o n f l u e m g e n t e s das m a i s diversas procedências.

N e m é d e a d m i r a r q u e os p e r e g r i n o s a c o r r a m d o N o r t e . V ê m ao e n c o n t r o da n o v i d a d e . M a s n e m p o r isso o Sul e o L e v a n t e estão ausentes. O m i l a g r e d o m o n g e S a n c h o é elucidativo sob m ú l t i p l o s aspectos: v i n d o d e Valência, p o r Sevilha, o cisterciense d e P a l m a chega a Lisboa e d a q u i regressa à sua p á t r i a sem p r o c u r a r o u t r o s contactos e n t r e os p r ó p r i o s c o n f r a d e s ; v i n d o d e Valência assegura u m c o n t a c t o c o m a o r i g e m d o m á r t i r e prestigia a igreja q u e se p r o c l a m a d e t e n t o r a

ecclesiam Vlixbonensem i n h o n o r e m gloriosissimi martiris beati Vincentii». Cf. ANTONIO GARCIA Y GARCIA (ed.), Synodicon Hispanicum, II — Portugal, Madrid, B . A . C . , 1982, p. 293. 2 3 C f . milagre 1.20; para outros dados, cf. JOSÉ MATTOSO, Rkos-homens, infanções e

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5. VICENTE DE LISBOA E OS SEUS MILAGRES

85

d o c o r p o d o santo; a ritualização d o m i l a g r e a b r e a possibilidade d e entregar a sua d i v u l g a ç ã o aos n o v o s p r e g a d o r e s d o m o m e n t o , os Frades M e n o r e s .

Os milagres vicentinos

R e d u z i d o s a q u a d r o , os m i l a g r e s d e V i c e n t e p o d e m apresentar-se da seguinte m a n e i r a :

Relato de Mestre Estêvão

O r i g e m d o miraculado Idade Sexo Doença

Lisboa puella F paralisia

» puerulus M » » puella F » » adolescens F » » iuuenis M » » puellula F neurológica » puellula F » » uir M » » iuuenis M »

» uir M febres infecciosas

Guimarães iuuenis M

Torres (Vedras) uir M »

Lisboa uir M cegueira

» uir M »

» mulier F hemorragia

» uir M feridas

» uir M

Totais 17

Lisboa 15 Outras localidades 2

Jovens 9 Adultos 8

M 13 F 4

R e l a t o a n ó n i m o

O r i g e m d o miraculado Idade Sexo Doença

Lisboa p u e r M paralisia

» puer M »

» h o m o M »

» h o m o M cegueira

Lafões mulier F »

Vila Franca de Valcarcer mulier F surdez

S. Pedro de Frendeiros h o m o M múltiplas

Totais 7

Lisboa 4 Outras localidades 3 Jovens 2 Adultos 5

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84 D I D A S K A L 1 A

D o t e x t o de M e s t r e E s t ê v ã o ressalta u m a o r i g e m d e d e v o t o s m a i o r i t a r i a m e n t e localizada e m Lisboa. A t i n g e m m a i o r n ú m e r o d e ocorrências as paralisias e m j o v e n s e as doenças neurológicas. Q u e s t ã o p e r t i n e n t e seria d e saber se estes casos t r a d u z e m preferência de n a r r a d o r o u t e n d ê n c i a generalizada. A v e r d a d e é q u e o p a n o r a m a n ã o m u d a substancialmente c o m o s e g u n d o q u a d r o n e m para o p o n t o d e o r i g e m n e m p a r a o t i p o d e cura; só h a v e r á q u e sublinhar o a l a r g a m e n t o d o c u l t o d o santo a regiões m a i s distantes (Galiza, Leão, C a t a l u n h a ) . C o n t u d o , Lisboa c o n t i n u a a ser o l u g a r p r i v i l e g i a d o .

Rituais e comportamentos junto do túmulo

R a r a s são as n a r r a t i v a s e m q u e o r e d a c t o r se limita a enunciar u m f a c t o . O m i l a g r e é u m p r e t e x t o d e celebração cuja finalidade a p o n t a p a r a o l o u v o r d o s a n t o e p a r a o c u l t o a D e u s . O beneficiário integra-sc nesse m o v i m e n t o d e acção d e graças e d e l o u v o r , salvo q u a n d o na o r i g e m d o seu c o m p o r t a m e n t o está u m a c t o r e p r o v a d o q u e ele deve refazer, c o m o é, especificamente, o f u r t o d e relíquias d o santo c m seu p r ó p r i o i n t e r e s s e2 4. T a l m o v i m e n t o é essencialmente c o m u n i t á r i o , é a n t e r i o r à chegada d o suplicante, e este, n a quase t o t a l i d a d e dos casos, associa-se ao r i t u a l o r g a n i z a d o n a catedral, p a r t i c u l a r m e n t e através da p a r t i c i p a ç ã o nas vigílias n o c t u r n a s 2 5.

E s t a m o s assim l o n g e d e u m a prática d e i n c u b a ç ã o n u m s a n t u á r i o2 6. M a s a e n t r a d a d o d o e n t e na c o m u n i d a d e o r a n t e faz-se h a b i t u a l m e n t e através d e u m a certa encenação teatral e m o v i m e n t a ç ã o d r a m á t i c a q u e e n v o l v e a p a r t i c i p a ç ã o d o p r ó p r i o interessado. M e s m o e m casos de paralisias infantis p r o f u n d a s , anota-se q u e a criança se expressa 'gestu p e r d i t i c o r p o r i s et g u t t u r i s i m p e d i t o m u r m u r e grauis' (cf. 1.4), a r e c l a m a r q u e a c o l o q u e m j u n t o das relíquias d o santo, e n q u a n t o os familiares se o c u p a m e m explicar a o p o v o , q u e i m e d i a t a m e n t e acorre, as circunstâncias da d o e n ç a . Gesto necessário este p a r a g a r a n t i r a o r a ç ã o c o m u n i t á r i a (a p o p u l o circunstante piis lacrimis et c o m m u n i b u s u o t i s o r a t u r ) , ele p r e p a r a t a m b é m o anúncio da cura e o e x t r a v a s a m e n t o j u b i l o s o p a r a a cidade inteira.

Passado este t e m p o de j ú b i l o , o b e n e f i c i a d o v o l t a r á às actividades d o q u o t i d i a n o , r e i n t e g r a n d o - s e n a v i d a n o r m a l , r e s t a n d o - l h e r e c o r d a r

2 4 C f . milagre 1.1 e 2.2.

2 5 C f . milagres 1.5, 8 , 1 0 , 1 4 , 1 5 , 1 8 , 2 0 , 22; 2.1, 3, 9.

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5. V I C E N T E D E LISBOA E OS SEUS MILAGRES 85

o b e n e f í c i o r e c e b i d o o u , h i p o t e t i c a m e n t e , vincular-se a u m a p r o m e s s a o u v o t o e m i t i d o , c o m o o da situação d e o b l a t o . U m a v e z m a i s é a relação e n t r e o p a t r o n o c a c o m u n i d a d e q u e conta, n ã o o b s t a n t e a identificação das p e r s o n a g e n s b e m m a r c a d a na s e g u n d a colectânea d e milagres. T a l identificação n ã o parece assim ter o u t r a finalidade senão a de certificar u m a c o n t e c i m e n t o . M a i s especificamente, circunscrever a i n t e r v e n ç ã o s o b r e n a t u r a l nas mais diversas circunstâncias calamitosas da vida e a f i r m a r a garantia d e tal p a t r o c í n i o , s o b r e t u d o aos m a i s desfavorecidos.

H á , n o e n t a n t o , p o r p a r t e d o n a r r a d o r , e c e r t a m e n t e e n q u a n t o c o m p o n e n t e d e u m ritual c o n h e c i d o e r e q u e r i d o , u m a particular atenção aos gestos c m o v i m e n t o s d o suplicante c o m o f o r m a d e c o m u n i c a ç ã o c o m o s o b r e n a t u r a l c m e d i a ç ã o necessária n a o b t e n ç ã o da graça p r e t e n d i d a . U m dos gestos r e q u e r i d o s é p o r vezes o d o t o q u e c o m as m ã o s n o s a r c ó f a g o d o santo, c o m o a c o n t e c e n o caso presenciado p o r D . G u a l d i m Pais. T a m b é m a p a l a v r a d e súplica se t o r n a h a b i t u a l m e n t e indispensável. O santo, p o r seu lado, exerce a sua acção ora i m p e r c e p t i v e l m e n t e ora p o r i n t e r v e n ç ã o m a r c a d a p o r aparição c f e n ó m e n o s secundários d e o r d e n s a c u m p r i r e d e c o n t a c t o d i r e c t o c o m o e n f e r m o (1.4,9; 2.8).

E m c o n t r a p a r t i d a , a p r á t i c a d e o f e r e n d a s e de e x - v o t o s , o u m e s m o de entrega de velas, quase n ã o é referida. Pressupôs-se antes a alteração de c o m p o r t a m e n t o s ao ser castigada a i n o b s e r v â n c i a das r e c o m e n -dações feitas pela a u t o r i d a d e eclesiástica (1.12) o u a o a d m i t i r - s e o v o t o de oblato p a r a a vida inteira (1.6). E o a g r a d e c i m e n t o e x p r i m e - s e r i t u a l m e n t e pela participação n o c u l t o estabelecido, nos sermões l a u d a t ó r i o s o r g a n i z a d o s p a r a a p r o c l a m a ç ã o solene d o m i l a g r e (2.6), pela d i v u l g a ç ã o festiva d o f a v o r r e c e b i d o .

Fácil é r e c o n h e c e r nestas expressões u m a f o r m a e l a b o r a d a p o r p a r t e da a u t o r i d a d e q u e assume a c o n d u ç ã o d o c u l t o 2 7 e p o u c o d e i x a à e s p o n t a n e i d a d e d o m o m e n t o o u d o i n d i v í d u o . O p o v o , esse está e m t o d a aquela m u l t i d ã o d e d e v o t o s q u e cerca o santo e a c o m p a n h a interessada a p r o c i s s ã o dos necessitados q u e a c o d e m a p e d i r auxílio o u v ê m t e s t e m u n h a r a assistência recebida e m situações aflitivas, q u e r e m terra q u e r n o m a r . T a m b é m aqui, tal c o m o n o u t r o s c o n t e x t o s , «o m i l a g r e é a flor i n e v i t á v e l da necessidade»2 8 s e m d e i x a r d e ser

2 7 Ela estará, de resto, t a m b é m presente, n o u t r o contexto, quando se der a adaptação dos

t e x t o s l e g e n d á r i o s à l i t u r g i a ; c f . C o n . JOSÉ FALCÃO, Op. cit., p . 4 6 .

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86 D I D A S K A L 1 A

i g u a l m e n t e o sinal visível d a presença d o d i v i n o , n a sua d u p l a d i m e n s ã o : i n i b i t ó r i a , s e m d ú v i d a (1.1,12), m a s s o b r e t u d o benéfica e t r a n s f o r m a d o r a na m a i o r p a r t e d o s casos.

O corpus de milagres

1. A tradição textual O c o r p u s m e d i e v a l dos m i l a g r e s d e S. V i c e n t e c h e g a d o a o nosso c o n h e c i m e n t o r e d u z - s e a d u a s colectâneas, u m a inserta n u m L e g e n d á r i o alcobacense (Lisboa, B . N . , Ale. 420) e p u b l i c a d a p o r F r . A n t ó n i o B r a n d ã o2 9 e p e l o e d i t o r dos P o r t u g a l i a e M o n u m e n t a H i s t ó r i c a3 0, n a esteira d a q u e l e , o u t r a d e s c o b e r t a r e c e n t e m e n t e3 1, e m c a d e r n o isolado, n a Biblioteca N a c i o n a l d e Lisboa ( C x 2 1 / X - 3 - 1 4 , n . ° 21), e até a g o r a inédita. D e o u t r o t e s t e m u n h o d a t r a d i ç ã o t e x t u a l relativa à p r i m e i r a c o l e c t â n e a d á - n o s i n f o r m a ç õ e s Fr. A n t ó n i o B r a n d ã o e a História eclesiástica da arquidiocese de Lisboa d e D . R o d r i g o d a C u n h a3 2, o n d e a p a r e c e e m t r a d u ç ã o ; tratava-se d e u m m a n u s c r i t o g u a r d a d o a o t e m p o n a Sé d e Lisboa e d e s a p a r e c i d o p r e s u m i v e l m e n t e n o t e r r a m o t o d e 1755.

1. O c o n t e ú d o d o Ale. 420 f o i r e c e n t e m e n t e o b j e c t o d e estudo m i n u c i o s o e p e r t i n e n t e p o r p a r t e d e François D o l b e a u3 3 e t u d o q u a n t o p o s s a m o s a q u i acrescentar t e r á apenas a v e r c o m u m a análise c o d i c o l ó g i c a r e s u l t a n t e d a o b s e r v a ç ã o d i r e c t a d o códice e m q u e se e n c o n t r a a p r i m e i r a colectânea d e m i l a g r e s d e q u e n o s o c u p a m o s3 4. O códice n ã o é t o t a l m e n t e h o m o g é n e o , e m b o r a se d e v a c o n s i d e r a r u n i t á r i o d e s d e a sua o r i g e m e q u a l q u e r q u e t e n h a sido a p r o v e n i ê n c i a d o s materiais.

2 9 Fr. ANTÓNIO BRANDÃO, Monarquia Lusitana, 3.* parte, Lisboa, 1632, fls. 296-300. 3 0 N e m sempre a leitura dos P M H é mais c o n f o r m e com o manuscrito.

3 1 Foi-nos comunicado pelo D r . Francisco José Correia, quando procedia ao levantamento e descrição de espécies manuscritas na Biblioteca Nacional de Lisboa. Encontra-se n u m a caixa com diversos materiais avulsos.

3 2 D . R O D R I G O DA C U N H A , Op. cit., fls 7 9 v - 8 6 v .

3 3 FRANÇOIS DOLBEAU «Le Légendier d'Alcobaça» Aualecta Bollandiana, 102, 1984,

2 6 3 - 2 9 6 .

3 4 A m á qualidade do microfilme transmitido àquele investigador e sobretudo as manipulações da microfilmagem (com atribuição de foliação errónea ao códice) estão na origem de pequenas incorrecções que felizmente não afectam o valor fundamental do estudo realizado.

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5. V I C E N T E D E LISBOA E OS SEUS MILAGRES 87

N ã o é t o t a l m e n t e h o m o g é n e o , p o i s é fácil r e c o n h e c e r a diversidade de m ã o s e a d i f e r e n ç a d e cores e estilo d e o r n a m e n t a ç ã o ( n e m s e m p r e d e d e s e n h o , sublinhe-se) e n t r e o c o r p o principal (fls. 1-164) e o a p ê n d i c e final q u e l h e f o i a c r e s c e n t a d o3 5. D e v e r - s e - á , todavia, considerar u n i t á r i o , o u seja, i n t e g r a d o n u m m e s m o p r o j e c t o c o d i c o l ó g i c o inicial, se t i v e r m o s e m a t e n ç ã o as referências constituídas t a n t o n o i n t e r i o r deste c ó d i c e c o m o e m o u t r o d o c o n j u n t o e m q u e ele se i n t e g r a c o m o p a r t e q u e é de u m L e g e n d á r i o p e r c i r c u l u m anni.

E f e c t i v a m e n t e , n o final d a t á b u a inicial, u m a m ã o d i f e r e n t e da p r i m e i r a , mas c o n t e m p o r â n e a , escreveu, a n e g r o c a r r e g a d o ( e m c o n t r a p o s i ç ã o ao n e g r o esbatido) o registo d e «Passio Sancte C a t h e r i n e uirginis et martiris», q u e r e m e t e p a r a o p r i m e i r o t e x t o d o apêndice. M ã o d i f e r e n t e t a m b é m , m a s ainda c o n t e m p o r â n e a , p e l o l a d o i n t e r n o da coluna da t á b u a , e n t r e «Vita Sti. Alexii» e «Passio S. M a r g a r i t e uirginis», inseriu i g u a l m e n t e , a v e r m e l h o , «Item Passio Sancte M a r i n e uirginis et martiris». O r a esta Passio e n c o n t r a - s e j u s t a m e n t e após os

Miracula Sancti Vincentii Martiris q u e apenas são pressupostos p o r u m

a d i t a m e n t o t a r d i o f e i t o na m a r g e m s u p e r i o r direita da tábua, e m letra p r o v a v e l m e n t e d o séc. x i v , q u e d á c o n t a p r e c i s a m e n t e d o elenco d o apêndice: Incipiunt miracula Sancti Vincentii martiris / Item Passio Sancte

Marine uirginis et martiris / Item hystoria Titi et Vespasiany de uindicacione Domini nostri Ihesu Christi / Item Vita Sancti Antonii Ulixbonensis et eius miracula.

Este apêndice t e m c o m o característica c o d i c o l ó g i c a o f a c t o d e c a d a u m a das Passiones f o r m a r u m a u n i d a d e m a t e r i a l m e n t e distinta. O c o r p o p r i n c i p a l d o códice t e r m i n a r a e m t e r n o i n c o m p l e t o , d e o n d e h a v i a m sido e l i m i n a d o s os dois fólios iniciais 3 6. O t e x t o c o m a Passio

SS. Abdon et Sennes t e r m i n a a dez linhas d a a l t u r a d a s e g u n d a c o l u n a d o

recto d o fl. 164. A Passio Ste. Catherine uirginis et martiris inicia-se e m n o v o c a d e r n o ( u m q u a t e r n o ) e p r o l o n g a - s e p o r m a i s u m t e r n o i n c o m p l e t o (falta o f ó l i o final). S e g u e m - s e os Miracula Sancti Vincentii q u e o c u p a m 1 q u a t e r n o c o m p l e t o -J- 1 q u a t e r n o t r u n c a d o dos fólios da s e g u n d a parte. A Passio Ste. Marine c o m a Hystoria Titi et Vespasiany p r e e n c h e m o q u a t e r n o seguinte. F i n a l m e n t e , a Vita Sti. Antonii c o m os

Miracula o c u p a m dois q u a t e r n o s c o m p l e t o s .

3 5 A sua ornamentação é abrangida t a m b é m pelo estudo de MARIA ADELAIDE MIRANDA.

A inicial iluminada românica nos manuscritos alcobacenses, Lisboa, 1984 (diss. de Mestrado na F . C . S . H . ) .

3 6 Realmente, na sua f o r m a actual, o que se observa é u m bifólio seguido de dois fólios cosidos àquele pelas pestanas respectivas; consideramos que esta solução pertencerá ao trabalho da reencadernação, que é tardia.

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88 D I D A S K A L 1 A

São n o t ó r i a s n ã o apenas as diferenças d e m ã o mas t a m b é m d e d e c o r a ç ã o . M e s m o n o C d e inicial d e Catherine, e m b o r a se m a n t e n h a o estilo d e d e c o r a ç ã o c o m a f o l h a d e acanto, salta à vista a m u d a n ç a de c o l o r i d o : o azul t u r q u e z a substitui o anilado; o v e r m e l h o v i v o passa a v e r m e l h o b a r r o ; o o c r e acastanhado t o m a a v e z das tonalidades d e a m a r e l o ; o v e r d e d e s b o t a d o está p e l o v e r d e v i v o . M u l t i p l i c a m - s e t a m b é m p e q u e n a s capitulares c o m u m d e s e n h o e u m c o l o r i d o q u e n o s r e m e t e m p a r a a d e c o r a ç ã o d e o u t r o s códices alcobacenses, c o m o , p o r ex., o Ale. 149.

A inicial dos Miracula S. Vincentii sai f o r a dos m o l d e s c o m u n s d o c ó d i c e e d o s p r ó p r i o s p r e c e i t o s cistercienses, p e l o e m p r e g o d o o u r o . A sucessão das cores vai d o f u n d o a v e r m e l h o e a o u r o (no i n t e r i o r da letra) a o azul e a o n e g r o dos c o n t o r n o s . E n o t ó r i a i g u a l m e n t e a alteração d a q u a l i d a d e d o p e r g a m i n h o q u e aqui apresenta m a i o r aspereza e g r o s s u r a .

O s f o r m a t o s , n o e n t a n t o , c o r r e s p o n d e m - s e b e m c o m a distribuição e m duas colunas, m u i t o e m b o r a h a j a diferença n o n ú m e r o d e linhas (25 linhas n o s fls. 1 - 1 6 4 e fls. 1 - 1 3 d o s u p l e m e n t o ; 31 /32 linhas, n o resto).

N e s t a s condições, estamos e m crer q u e a elaboração d o Ale. 420, f e i t a a p a r t i r d e u m m o d e l o f o r n e c i d o c e r t a m e n t e p o r C l a r a v a l3 7 f o i a c o m p a n h a d a p e l a e x e c u ç ã o d e u m s u p l e m e n t o . E m p r i m e i r o l u g a r , h o u v e q u e acrescentar a Passio S. Catherine, talvez p a r a o c o r r e r a o facto d e a festa desta santa t e r sido e n t r e t a n t o , e m 1207, a d m i t i d a n o calendário c i s t e r c i e n s e3 8. L o g o d e seguida, i n t r o d u z e m - s e o u t r o s materiais c o r r e s p o n d e n t e s a festividades locais.

Isso a c o n t e c e c e r t a m e n t e c o m a Passio S. Marine39 incluída, a v e r m e l h o , n a t á b u a inicial (por m ã o diferente, m a s c o n t e m p o r â n e a ) e n t r e a Vita Sti. Alexii conf. e a Passio S. Margarite uirginis. C o m ela e n t r o u t a m b é m a Hystoria Titi et Vespasiany q u e f a z p a r t e da m e s m a u n i d a d e c o d i c o l ó g i c a e c u j a presença é pressuposta p o r u m a remissão feita n o Ale. 419, fl. 188 (Historiam Titi et Vespasiani quere in tertia parte

3 7 Vejam-se os elementos aduzidos por FRANÇOIS DOLBEAU, loc. cit.. O empréstimo a l o n g o prazo tornava-se possível a partir de 1170 data e m que u m n o v o Leccionário entrava e m Claraval. A data mais provável para a utilização e m Alcobaça parece, n o entanto, ser a de começos d o séc. XIII e m que justamente se verifica u m surto de produção n o seu scriptorium (e admitindo c o m o real a quase extinção da comunidade por fins do séc. x i i com a investida muçulmana).

3 8 Assim se explicaria a sua inclusão a negro na linha final da tábua do início.

3 9 Reconheça-se que o culto desta santa é tradicional na região. Cf. C. GARCIA RODRIGUEZ, Op. cit., p. 198; P. MIGUEL DE OLIVEIRA, Lenda e História — Estudos hagiográjicos, Lisboa, 1964, pp. 133 e 137.

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5. V I C E N T E D E LISBOA E OS SEUS MILAGRES 89

Passionum ante finem libri). A i n t e g r a ç ã o dos Miracula S. Vincentii

t e m de ser atribuída a essa fase p r i m i t i v a e d e n t r o da o r d e m q u e ainda c o n s e r v a m , se q u i s e r m o s salvaguardar a a n t i g u i d a d e da a n o t a -ção acrescentada na t á b u a inicial. Tratar-se-ia d e materiais avulsos, e v e n t u a l m e n t e e n c o m e n d a d o s o u recolhidos a seu t e m p o , de o u t r o s scriptoria, n o m e a d a m e n t e o da Sé catedral de Lisboa, p a r a estes dois casos. Q u e n ã o p r o c e d i a d e cópia e v e n t u a l m e n t e e x e c u t a d a p o r u m i n d i v í d u o isolado percebe-se f a c i l m e n t e pela m u d a n ç a d e m ã o e alternâncias e n t r e elas, ainda q u e s e m r e g u l a r i d a d e , j u s t a m e n t e n o t e x t o dos Miracula Vincentii.

I n f e l i z m e n t e , n ã o se conserva a e n c a d e r n a ç ã o p r i m i t i v a , m a s ela não deveria ser d i f e r e n t e d a q u e ainda c o n s e r v a m dois dos códices d o g r u p o q u e f o r m a m o L e g e n d á r i o , os Ale. 418 e 421, c u j a articulação dos n e r v o s c o m a t á b u a se i n t e g r a n o sistema q u e , e m análise realizada sobre materiais d o F u n d o Alcobacense 4 0 d e n o m i n á m o s p o r «sigmático B» e q u e reflecte b e m as c o n t a m i n a ç õ e s ocorridas n u m s c r i p t o r i u m c o m o o d e A l c o b a ç a n o s séculos x n e XIII41.

Parece-nos assim p o d e r concluir q u e a i n t e g r a ç ã o dos Miracula

Sancti Vincentii n o códice é p r i m i t i v a e c o r r e s p o n d e a exigências de

carácter local. T a l d a d o n ã o é d e s o m e n o s i m p o r t â n c i a q u a n d o se p r e t e n d e ajuizar da d i f u s ã o c da n a t u r e z a d o c u l t o d e S. Vicente, pois a anexação dos Miracula a u m L e g e n d á r i o m o n á s t i c o j á c o n s t i t u í d o terá d e ser e n t e n d i d a c o m o acto signifieptivo.

P a r a a história d o t e x t o interessará sublinhar q u e isso implicava o b v i a m e n t e ter ele sido j á aceite e i n t r o d u z i d o e m actos colectivos, o q u e r e m e t e a sua r e d a c ç ã o p a r a o ú l t i m o q u a r t e l d o séc. x n , p r o v a v e l m e n t e n ã o m u i t o l o n g e da data e m q u e n o t e x t o se a p o n t a a transladação das relíquias d o santo m á r t i r : 1 1 7 34 2.

P o r é m , teria a p r i m i t i v a colectânea escrita p e l o c h a n t r e Estêvão c o r r e s p o n d ê n c i a exacta c o m aquela q u e nos dá o Ale. 420? T r a ç o s c o m o a disjunção d e m e m b r o s d e frase o u a existência d e u m a planificação e x p l i c i t a m e n t e declarada d a n a r r a t i v a r e p e t e m - s e a o l o n g o d o t e x t o e a p o n t a m p a r a u m a u n i d a d e d e a u t o r . T o d a v i a , terá d e ser

4 0 R e m e t e m o s p a r a AIRES A . NASCIMENTO & A . D I A S D I O G O , Encadernação Portuguesa Medieval — Alcobaça, Lisboa 1984, onde desenvolvemos esta matéria.

4 1 A encadernação actual é tardia e apresenta os planos de cartão recobertos a pele tanada de negro. Aquando da reencadernação foi utilizado para guarda inicial u m bifólio saído de u m códice com as Collationes de Cassiano (bifólio exterior do c. III, c o m o se reconhece imediatamente pela assinatura e pelo título corrente); anote-se, de resto, que tal bifólio foi colocado invertido 110 sentido da altura.

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90 DIDASKAL1A

suposta u m a o u t r a o r d e m na p r i m i t i v a sequência d a milagres. E f e c t i -v a m e n t e , a cura d o filho d o m e s t r e d e obras da catedral (1.6) aparece antes d o m i l a g r e o c o r r i d o e m f a v o r deste (1.10) e a remissão i n t e r n a pressupõe o u t r a o r d e m . A alteração, c o n t u d o , terá o c o r r i d o bastante cedo, p o i s a t r a d u ç ã o d e D . R o d r i g o da C u n h a feita sobre o e x e m p l a r da Se de Lisboa apresenta a m e s m a o r d e m q u e o alcobacense.

2. O s e g u n d o c o n j u n t o de milagres, t r a n s m i t i d o p e l o c a d e r n o avulso da Biblioteca N a c i o n a l d e Lisboa, t e m d e c o m u m c o m a c o m p i l a ç ã o d o c h a n t r e E s t ê v ã o u m a i n t r o d u ç ã o . N ã o se c o n s e r v a , p o r é m , neste t e s t e m u n h o , mais q u e a p a r t e final d e tal i n t r o d u ç ã o , e m e s m o essa ainda a m p u t a d a d e u m p a r á g r a f o e c o m alteração d e o u t r o e m q u e se s u p r i m e a c r o n o l o g i a d a transladação das relíquias.

O carácter f r a g m e n t á r i o da i n t r o d u ç ã o n ã o nos i m p e d e d e c o n j e c t u r a r a e s t r u t u r a c o d i c o l ó g i c a p r i m i t i v a deste c a d e r n o e de p r e s s u p o r a difusão d e tal c a d e r n o c o m o colectânea avulsa d e milagres.

A c t u a l m e n t e estamos p e r a n t e u m t e r n o p r e e n c h i d o c o m t e x t o até a o fim d a p r i m e i r a c o l u n a d o r e c t o d o ú l t i m o f ó l i o . A i n t r o d u ç ã o c o m p l e t a o b r i g a v a a mais u m f ó l i o n o início. T e r í a m o s , pois, na o r i g e m , u m q u a t e r n o . D i v u l g a d o talvez e m f o r m a avulsa, ou, n o u t r a hipótese, d e s m e m b r a d o d e a l g u m c o n j u n t o o n d e e v e n t u a l m e n t e teria sido a m p u t a d o o f ó l i o final q u e ficara e m b r a n c o4 3, o d e s m e m -b r a m e n t o terá o c a s i o n a d o o d e s a p a r e c i m e n t o d o -b i f ó l i o e x t e r i o r . A supressão d e u m p a r á g r a f o mais n ã o t r a d u z c e r t a m e n t e q u e a reacção d o s e g u n d o c o m p i l a d o r e r e d a c t o r , m e n o s d a d o q u e M e s t r e E s t ê v ã o a e m p o l a m e n t o s r e t ó r i c o s . M e n o s razões e n c o n t r a m o s p a r a a alteração d o p a r á g r a f o d e datação, a n ã o ser p o r q u e as p r ó p r i a s f o r m a s g r a m a t i c a i s d o m o d e l o , c o r r e s p o n d e n d o a u m p r o p ó s i t o c e l e b r a t i v o n ã o se a d e q u a v a aos seus p r o p ó s i t o s n a r r a t i v o s 4 4. E m c o n t r a p a r t i d a , acrescenta-se u m a p e q u e n a d o x o l o g i a , a p r i m e i r a de três q u e e s c a n d e m o t e x t o n o final d e cada u m a das suas p a r t e s 4 5. A a p r o p r i a ç ã o d e u m a i n t r o d u ç ã o terá aqui a v e r c o m o e n t e n d i m e n t o d e u m l i v r o d e m i l a g r e s c o m o u n i d a d e a b e r t a e m q u e v ã o s e n d o lançadas n o v a s ocorrências à m e d i d a q u e elas são

4 3 O mesmo há que reconhecer relativamente aos fólios da segunda parte do 2. ° caderno dos Miracula Sancti Vincentii do Ale. 420.

4 4 As hesitações nos tempos verbais e respectivas correcções poderão não ser próprias do nosso apógrafo.

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5. VICENTE D E LISBOA E OS SEUS MILAGRES 91

conhecidas, se v ã o f i x a n d o n a m e m ó r i a colectiva o u a l g u é m se dispõe a deixá-las p o r escrito.

Q u a n t o à data d e redacção esta s e g u n d a colectânea é sem d ú v i d a p o s t e r i o r e m cerca de m e i o século à d e m e s t r e E s t ê v ã o . O t e s t e m u n h o a n ó n i m o , a n e p í g r a f o e f r a g m e n t á r i o , q u e c h e g o u até n ó s distancia-se d o a u t o r d o t e x t o p r o v a v e l m e n t e u m século, escrito c o m o está e m g ó t i c a librária. O a r q u é t i p o , c o n t u d o , r e m o n t a v a c e r t a m e n t e à p r i -m e i r a -m e t a d e d o séc. XIII, c o -m o está pressuposto p e l o c o n t e ú d o dos milagres, n o m e a d a m e n t e d o m i l a g r e sexto, p a r a o q u a l t e m o s de a d m i tir c o m o limites c r o n o l ó g i c o s , de u m lado, o a n o d e 1236, data da f u n -dação cisterciense d e La R e a l , e m P a l m a d e M a i o r c a , m o s t e i r o a q u e pertencia o p r o t a g o n i s t a d o m i l a g r e , e, d o o u t r o l a d o , a conquista d e Sevilha p o r S. F e r n a n d o e m 1248, j á q u e se d e p r e e n d e d o t e x t o q u e a o t e m p o d o m i l a g r e , e da sua redacção, essa c i d a d e se e n c o n t r a v a ainda e m p o d e r dos m u ç u l m a n o s4 6.

Apesar das deficiências d e transmissão, h á q u e r e c o n h e c e r u m a acribia particular d o a u t o r e m registar n o m e s d e terras m e s m o distantes, as quais, na sua m a i o r p a r t e , p o d e m ser identificadas, b e m c o m o u m a p r e o c u p a ç ã o p a r a t a m b é m fixar os n o m e s dos beneficiários dos milagres. C u i d a d o pessoal o u a p r o v e i t a m e n t o d e registos g u a r d a d o s p o r o u t r o s ? E m b o r a n ã o o d ê a e n t e n d e r , e o seu relato seja e m terceira pessoa, estaremos c m crer q u e o r e d a c t o r é t e s t e m u n h a mais o u m e n o s directa dos factos.

N o q u e t e m d e c o m u m c o m o Alcobacense, este t e s t e m u n h o a n ó n i m o apresenta p e l o m e n o s duas lições q u e h a v e m o s d e considerar m e l h o r e s q u e as daquele: « M u n i o n e m rectorem» e «gloriosi»; a p r i m e i r a , p o r c o r r i g i r u m e r r o evidente, a s e g u n d a p o r c o r r e s p o n d e r ao e p í t e t o bastas vezes r e p e t i d o ao l o n g o d o t e x t o para o m á r t i r S. V i c e n t e . O u t r a s vezes, n o e n t a n t o , n ã o r e s o l v e j á as dúvidas e dificuldades q u e o Alcobacense nos apresenta. N o m í n i m o , q u e r isto c e r t a m e n t e significar que, p o r u m lado, n ã o p o d e m o s s u p o r u m a d e p e n -dência directa d o m a n u s c r i t o a n ó n i m o r e l a t i v a m e n t e ao Alcobacense, p o r o u t r o lado, t e m o s d e r e c o n h e c e r q u e a i n t r o d u ç ã o circulava iso-lada, e, p o r o u t r o l a d o ainda, h a v e r á q u e a d m i t i r a d i f u s ã o , e m escala

q u e n ã o p o d e m o s circunscrever, das colectâneas d e milagres vicentinos.

4 6 Anote-se que o t e r m o carraca para embarcação de comércio e transporte que aí aparece empregado não é elemento útil para datação. Efectivamente, mesmo que o t e r m o tenha entrado nas línguas da Península p o r influência árabe, e muito embora ele esteja registado tardiamente, era conhecido dos genoveses que justamente são intervenientes mencionados na narrativa d o milagre e as suas fontes registam-no desde 1157. Cf. Corominas, s. »..

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92 D I D A S K A L 1 A

Esta ú l t i m a perspectiva está i m p l í c i t a , de resto, na v i n d a d e r o m e i r o s dos diversos p o n t o s hispânicos até ao t ú m u l o de S. V i c e n t e e m Lisboa. 3. Associada a esta s e g u n d a colectânea de m i l a g r e s vicentinos realizados n a Sé de Lisboa, encontra-se n o m a n u s c r i t o da Biblioteca N a c i o n a l u m a versão a b r e v i a d a da Passio Vincentii, Sahine et Cristete, c o n s t r u í d a sobre o t e x t o d o Passionário Hispânico, e d e n t r o da tradição d o m a n u s c r i t o d e San M i l l a n 4 7.

N ã o será fácil p e r c e b e r q u e razões t e r ã o p r e s i d i d o a esta adição. Se é u m f a c t o q u e u m a p a r t e d o r e l a t o , n o q u e diz respeito a o m a r t í r i o e p r o t e c ç ã o miraculosa dos c o r p o s p o r u m a serpente, d e p e n d e e s t r e i t a m e n t e da Passio d e S. V i c e n t e 4 8, n ã o é v e r o s í m i l q u e o redactor se desse c o n t a disso e n ã o p a r e c e n a t u r a l a c o n f u s ã o d o t o d o pela p a r t e e m q u e m e x p l i c i t a m e n t e r e c o n h e c e n o m i l a g r e sexto da colectânea a n t e r i o r q u e o local d e m a r t í r i o d e V i c e n t e é e m Valência e aqui transcreve q u e os três i r m ã o s são e x e c u t a d o s e m «Abula... Hispanie ciuitas». T a m b é m a f i g u r a d o j u d e u 4 9 n ã o parece constituir p o l a r i d a d e suficiente p a r a u m a explicação a d e q u a d a , j á q u e nada a fazia p r e v e r nas narrativas anteriores n e m se v i s l u m b r a u m a intencionalidade para ela5 0. P o r exclusão d e partes, talvez t e n h a m o s d e e n t e n d e r a presença deste t e x t o aqui i n t e g r a d a n u m a perspectiva d e esclarecimento sobre a i d e n t i d a d e dos dois m á r t i r e s h o m ó n i m o s . Q u a n d o o r e d a c t o r insere n o t e x t o tradicional o p a r á g r a f o i n t r o d u t ó r i o e m q u e esquematiza o d e s e n v o l v i m e n t o q u e vai fazer está, ainda q u e o n ã o diga, a criar u m a distinção p e r t i n e n t e e talvez necessária para o seu m e i o e para os seus destinatários.

2. Autores

1. O a u t o r da p r i m e i r a colectânea apresenta-se c o m o tes-t e m u n h a dos factes-tos c c o m o m e m b r o d o c a b i d o da Sé de Lisboa, a q u e m interessa d e f e n d e r a posse das relíquias c o n t r a as pretensões dos c ó n e g o s regulares d e S. V i c e n t e .

47 Pasionario Hispânico, ed. laud., pp. 358-363. 4 8 CARMEN GARCIA R O D R I G U E Z , O p . cit., p . 2 8 2 .

4 9 D e resto, t a m b é m ela t o m a d a da Passio de Santa Eulália de Mérida. Cf. C . GARCIA

R O D R I G U E Z , /!>..

5 0 N ã o vemos assim articulação com qualquer actuação da hierarquia eclesiástica ou sinal algum de movimentação contra a comunidade judaica, ainda que, para o período em causa, se possam apontar tensões c o m o as que estão subentendidas nas diligências feitas em 1231 por D . Soeiro Viegas j u n t o d o Papa Gregório IX. C f . D . RODRIGO DA CUNHA, Op. cit., parte II, FL. 121;

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S. V I C E N T E D E LISBOA £ SEUS MILAGRES 93

Sc v e i o a ser investido na d i g n i d a d e de c h a n t r e ( c o m o declara o incipit e c o m o é plausível pelas qualidades q u e o p r ó p r i o t e x t o revela) à data da redacção p r o v a v e l m e n t e q u e m o c u p a v a essa d i g n i d a d e era ainda M e s t r e B e n t o , r e f e r i d o c o m o tal n o t e x t o e d o c u m e n t a d o nessa qualidade desde o a n o d e 1168 5 1. A sua a c t i v i d a d e dever-se-á talvez situar e n t r e a transladação das relíquias e m 1173 e u m a data a n t e r i o r a 1195, a n o e m q u e j á nos a p a r e c e u m o u t r o nas f u n ç õ e s d e c h a n t r e , Mestre D . G o n ç a l o5 2. D . R o d r i g o da C u n h a i d e n t i f i c a - o c o m o mestre-escola Estêvão q u e aparece c o m o t e s t e m u n h a n u m d o c u m e n t o de 1 1 6 85 3. C o m o tal, é c o n t e m p o r â n e o de R o b e r t o , d e ã o da Sé de Lisboa p r e c i s a m e n t e nessa d a t a5 4.

Se t o m a r m o s t a m b é m c o m o e l e m e n t o útil as referências a o rei D . A f o n s o H e n r i q u e s e a seu filho D . Sancho I, associado a o t r o n o nos últimos anos d o r e i n a d o d e seu pai, t e r e m o s de a d m i t i r q u e o t e x t o foi r e d i g i d o t a m b é m antes d e 1185.

E bastante aleatório fixarmo-nos nas referências a figuras da n o b r e z a c o m o G o n ç a l o E g a s L a n h o s o5 5 e G u a l d i m P a i s5 6, j á q u e os t e m p o s gramaticais n ã o d e l i m i t a m datas precisas n e m o carácter elogioso de tais referências t e m q u e s u p o r o f a l e c i m e n t o de tais personagens, o c o r r i d o e m 1195.

A ligação de M e s t r e E s t ê v ã o c o m o m e i o cortesão, c o m o rei e c o m o exercício d o p o d e r , e m geral, explicará, sem d ú v i d a , o p r ó l o g o que escreve p a r a a sua colectânea de milagres e q u e , a j u l g a r pela segunda colectânea, f o i c o n s i d e r a d o c o m o i n t r o d u ç ã o fixa p a r a recolhas posteriores.

Rcgiste-se o f u n d o agostiniano desse p r ó l o g o , c o m o se d e p r e e n d e , l o g o de entrada, pela utilização da Cidade de Deus, e p o r u m a interpretação providencialista da história q u e l h e p e r m i t e enaltecer a gesta grandiosa d o p r i m e i r o rei e r e c u p e r a r nesse sentido a c h e g a d a das relíquias d e S. V i c e n t e à cidade de Lisboa.

O g r a u da sua c u l t u r a h á - d e deduzir-se n ã o apenas d a q u i , m a s i g u a l m e n t e d o seu m a n e j o de língua latina b e m p a t e n t e na riqueza de vocabulário, n o a g e n c i a m e n t o d a o r d e m das palavras n a frase, n o a l a r g a m e n t o e d o m í n i o d o p e r í o d o , n o p l a n e a m e n t o e s t r u t u r a d o da narrativa. 5 1 D . R O D R I G O DA C U N H A , Op. cit., p . 7 8 . 5 2 Id., Ib., pp. 78 e 101. « I d . , / 6 . , p. 78. 5 4 Id., Ib.,

5 5 C f . JOSÉ MATTOSO, Ricos-homens..., p p . 2 3 2 - 2 3 5 .

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94 DIDASKAL1A

N ã o será c e r t a m e n t e m e n o s significativa neste p l a n o a i d e n t i -ficação feita e x p l i c i t a m e n t e e n t r e o a n t i g o t e r r i t ó r i o da Lusitânia c o m p a r t e das terras conquistadas p e l o r e i p o r t u g u ê s . Significativa, sem d ú v i d a , n ã o t a n t o p e l o i s o l a m e n t o q u e se pudesse supor, mas b e m mais p e l o q u e constitui d e i n t e g r a ç ã o n u m a m b i e n t e cultural t a m b é m representado, q u a n t o aos d a d o s referidos, e m textos mais o u m e n o s c o n t e m p o r â n e o s , c o m o a c o n t e c e c o m a Vita Sti. Theotonii, d e Santa C r u z d e C o i m b r a5 7.

2. Impossível, p e r a n t e a escassez de dados, saber a a u t o r i a da s e g u n d a colectânea d e milagres o u situá-la c o m a l g u m a credibilidade n u m g r u p o d e t e r m i n a d o .

U m a n o t a a p a r e n t e m e n t e n e g a t i v a : o a u t o r n ã o se apresenta c o m o t e s t e m u n h a dos factos. T o d a v i a , t a m b é m n ã o exclui essa quali-d a quali-d e . Parece até p r e o c u p a quali-d o e m a v e r i g u a r a v e r a c i quali-d a quali-d e quali-da situação quali-de d o e n ç a a n t e r i o r ao m i l a g r e : «sicut a q u i b u s d a m p l u r i b u s uiris et m u l i e r i b u s fide dignis a u d i u i m u s q u i super h o c t e s t i m o n i u m p e r i b e b a n t » (2.5).

O s factos q u e r e c o l h e terão, p o r o u t r o lado, de ser situados e n t r e cerca d e 1203 (trinta anos após o d e p ó s i t o das relíquias na igreja d e Santa Justa) e 1248, data e m q u e a c i d a d e de Sevilha f o i d e f i n i t i v a m e n t e c o n q u i s t a d a aos m o u r o s e tal a c o n t e c i m e n t o parece n ã o se ter ainda v e r i f i c a d o (cf. 2.6).

O s seus t e s t e m u n h o s d o c u l t o d e S. V i c e n t e na cidade de Lisboa são p o i s d e u m a g e r a ç ã o p o s t e r i o r aos d o c h a n t r e Estêvão.

A sua n a r r a t i v a é t a m b é m mais d e n o t a t i v a q u e a daquele, sem as suas amplificações retóricas e apenas c o m u m o u o u t r o rasgo d e e m o t i v i d a d e . Isso explicará talvez a omissão d e u m p a r á g r a f o de a m p l i f i c a ç ã o q u e e n c o n t r a v a n o t e x t o de M e s t r e E s t ê v ã o .

5 7 C f . Vita Sancti Theotonii, in P M H , Ss.. Para o n o m e de Lusitânia, 11: «Infans A. (...) qui tunc infans d u x Portugalis erat, sed processu temporis et diuini muneris largitate, post tocius pene Lusitanie et ex parte Gallecie rex est effectus illustris». Para a concepção do poder régio, 26: «Et ideo (...) amonebat ut e u m per q u e m reges regnant et in cuius potestate sunt omnia iura r e g n o r u m ceterarumue potestatem timeret et mandata eius obseruaret quia propter hoc est omnis homo».

Retenha-se que os Annales D. Alphonsi Portugallensium regis apresentam t a m b é m o termo «Lusitania» para designar a região a sul d o D o u r o : «Era 1222, anno regni sui regis Portugallis D . Alphonsi, Jucef Abojacob E m i r E l m u n i n o 2. imperator Sarracenorum (...) cogitauit venire in Hispaniam et comprehe(nde)re civitates et castella quae aliquando fuerant a sarracenis possessa, videlicet U l i x b o n a m , Sintriam, Sanctarem, Elboram, Alcácer et omnia alia castella, vel venire Colimbriam et sic denique subiugata sibi tota Lusitania usque D o r i u m (...); cf. MÓNICA BLOECKER-WALTER, Alfons I von Portugal, Zurique, 1966, p. 159. Para u m a interpretação da ocorrência d o t e r m o c o m o indício de u m a cultura tradicional mantida entre os moçárabes, veja-se JOSÉ MATTOSO, Identificação de um país, I, Lisboa, 1985, pp. 314-316.

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