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Nervos e nervosas na Ilha de Santa Catarina /

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Academic year: 2021

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NERVOS E NERVOSAS NA ILHA DE SANTA CATARINA

Dissertação apresentada como requisito parcial à obtenção do grau de Mestre. Curso de Pós-

Graduação em Antropologia Social,

Universidade Federal de Santa Catarina. Orientadora: Profa . Dra. Esther Jean Langdon.

FLORIANÓPOLIS, ILHA DE SANTA CATARINA

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NERVOS E NERVOSAS NA ILHA DE SANTA CATARINA

Dissertação apresentada como requisito parcial à obtenção do grau de Mestre. Curso de Pós-

Graduação em Antropologia Social,

Universidade Federal de Santa Catarina. Orientadora: Profa . Dra. Esther Jean Langdon.

FLORIANÓPOLIS, ILHA D E SANTA CATARINA

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Agradecimentos se propõe sempre a mostrar que não somos injustos nem ingratos,

mas, infelizmente, ao agradecer nosso maior risco é justamente esse: olvidar

involuntariamente quem tenha, de alguma forma contribuído para que nossa trajetória chegasse até aqui. Temendo que tal ocorra, registro minhas escusas prévias àqueles, cujos nomes indiscutivelmente deveriam figurar aqui. Entretanto deixo de apresentar o rol de praxe, entendendo que muitos têm sido os colaboradores solidários nesta jornada, que ora passa pelo Mestrado.

A todos quantos sou devedora de uma ou outra forma, consigno, simbolicamente, bem ao gosto dos Antropólogos, meu agradecimento; faço apenas breve registro das pessoas que estiveram envolvidas mais diretamente com a presente produção.

O caminho para a Antropologia se abriu para mim, a partir de suas inspirações cujos artífices cometeram a cruel e involuntária traição de morrer e me abandonar sem que o produto de seu estímulo houvesse chegado; deixaram no lugar dà profícua conversa a saudade inesgotável. A primeira inspiração foi dada pelo companheiro inesquecível, Geraldo Magella Soares Vermelho, fotógrafo/poeta co’a luz, aprendiz da e na vida, que me ensinou a ver além daquilo que se enxerga e cuja morte frustou a promessa do primeiro encontro que se renovava na convivência rica e amorosa com um espírito lúcido. A segunda, Paulo Michaliszyn, que compartilhava comigo a sua ambigüidade médico/antropólogo, cuja amizade me permitia desfrutar da sabedoria de um mestre exigente mas que, ao mesmo tempo, sabia amainar as agruras do caminho que ele próprio me levara a escolher. Ambos me

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Aos meus colegas do Departamento de Saúde Comunitária da UFPR, em especial ao Prof. Ipojucan Calixto Fraiz, amigo cuja solidariedade nunca experimentou qualquer vacilo.

Aos meus colegas do Mestrado, personagens novos de sentimentos antigos, em especial aos da República do Campeche: Flávio (que me brindou com suas poesias que são tanto do que eu queria dizer), Margarete, Ledson, Cristina e Carmen aos quais devo, além do apoio nas horas críticas (até da falta de bolsa), as discussões inspiradoras, o carinho e amizade.

A comunidade do Campeche {Seu Serapião e Jandira e Ana Carla; Edna, Nido e seus maravilhosos filhos; Regina, Oscar e Jean; Ceei e Maria do posto telefônico; Vera Rocha e filhos; Saul, Rita e filhos.... Olinda Evangelista, que também é nossa colega professora da UFSC; o pessoal da Escola Engenho, tão carinhoso e solidário....) onde eu e minhas filhas fomos acolhidas com simpatia e carinho, onde fiz algumas das amizades mais marcantes de minha vida; que se abriu colaborativa à pesquisa (e da qual ousei revelar alguns segredos) a minha gratidão pessoal e profissional.

Aos professores e funcionários do PPGAS YUFSC pelo apoio e amizade.

As funcionárias do COMUT, especialmente à Marli Silveira, cuja colaboração e paciência foram vitais para minha pesquisa bibliográfica.

A Prof.a Jean, orientadora dedicada e atenta, a quem devo a inspiração do tema e a compreensão das minhas limitações, mas também o esforço para me ajudar a superá-las.

A pesquisa de campo só foi possível graças a bolsa de pesquisa fornecida pela Funpesq e o curso de mestrado viabilizou-se graças a uma bolsa do Cnpq.

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desventuras; espero que eu tenha o mérito de ser ouvida pelo pessoal dos serviços de saúde e que este meu agradecimento lhes chegue através de melhorias no seu atendimento.

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Nervos é um conjunto variado e instável de sintomas psicológicos e/ou somáticos,

mediadores entre o sujeito sofredor e seu meio; constituí uma expressão de distresse ou

estresse social. Sua sintomatologia é tosca, polimorfa e imprevisível, suscetível de comprometer quase todo o corpo e funções orgânicas inclusive as mentais, indo desde a ansiedade ou um mal-estar indefinido até crises convulsivas, catatonia ou a cataplexia, passando ainda por formas variadas de agressividade ou apatia; coincide muitas vezes com a

descrição clássica da histeria ou<X)m o que os médicos reconhecem como pi ti ou psico... É

um fenômeno polissêmico,. uma explicação, tanto quanto uma forma de expressão para cansaço, fraqueza, irritabilidade, tremores, conflitos conjugais e sociais, cefaléias, ira e ressentimentos, infeccão parasitária, aflições, privações afetivas ou materiais, fome... Sua etiologia liga-se principalmente a fatores sócio-relacionais, porém a experiência do paciente é física. Nervos fala não só de sentimentos pessoais mas de diversos aspectos da vida, de conflitos sociais, de papéis relacionados ao gênero, de desviantes, da ideologia e da prática médica, entre outros. Não tem na Biomedicina, uma abordagem específica pelo contrário, a consulta médica o despoja de seus significados e conteúdos sociais e a consulta médica, em geral, esvazia, desmerece o.sofrimento do doente: isso é só um Nervoso.\Propõe-se, portanto, uma abordagem antropológica que leve em conta esses fatores. Dela nasce uma interpretação para o caso das nervos no Campeche (Florianópolis, S.C.) que pode ser resumida em três pontos: 1) Naquela comunidade, nervos é um problema das mulheres; 2) Constitui para elas uma linguagem social; 3) Pode representar uma forma dissimulada de exercer violência sobre os circunstantes.

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que afectan a la womanidad antes se llamaba et stress y antes strasss

o Strauss

es como un vais trastabillado por la mujer sin sombra

no hay drama

está borracha la puerca

el struss “

(Susana Thénon)1

1 Poema citado em: M C GUIRK, Bemard. De volta à sutura: o discurso patriarcal e a Ova Completa de Susana Thénon. Revista USP. set. out. nov. 94. n. 23. 140-151. Por se tratar de poema preferi manter no original, evitando a tradução.

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SUMÁRIO... 1

INTRODUÇÃO... 4

O INDIVÍDUO FRENTE A SEU SOFRER... 11

POR QUE ESSE OLHAR ANTROPOLÓGICO SOBRE UMA QUESTÃO DE SAÚDE?... 14

NERVOS NA LITERATURA ANTROPOLÓGICA...20

A PESQUISA DE CAMPO... 27

PERIPÉCIAS DE UMA MÉDICA (PRETENDENTE A) ANTROPÓLOGA EM CAMPO, OU A SUBJETIVIDADE DA A UTORA NA PESQUISA...27

O ESPAÇO DA PESQUISA: A ILHA DA MAGIA...34

O CAMPECHE... ... ... 35

V AVANÇOS E RECUOS: ESTRATÉGIAS EM CAMPO... ... 42

A NARRATIVA COMO INSTRUMENTO DE COLETA DE INFORMAÇÕES... 50

AS NERVOSAS DÓ CAMPECHE E SUÀS QUEIXAS... ... .— 53

A ETIOLOGIA EXPLICADA PELAS PACIENTES...63

CALMANTES E OUTRAS MEZINHAS... ...68

NERVOS E NERVOSOS NA BIOMEDICINA... 72

DA SUFOCAÇÃO AOS NERVOS: A CONSTRUÇÃO DA REPRESENTAÇÃO MÉDICA DE UM SOFRIMENTO... 72

O ESTRESSE... ... 102

OS MÉDICOS FRENTE AOS NERVOSOS HOJE...108

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BUSCANDO UMA COMPREENSÃO PARA OS NERVOS DAS MULHERES... 123

GÊNERO E SAÚDE

...

123

GÊNERO E IN IQ Ü ID A D E SN A SA ÚD E

...

125

N ERVO S COMO UM PROBLEMA D A S M U LH ERES

...

127

M ESM O QUANDO O NERVO CALA

,

E L E FALA M A IS ALTO : O NERVOSO COMO U N G U A G E M SO C IA L

...

130

NERVOS COMO CENA N U M DRAMA RELACIONAL

...

132

N E R V O SE VIOLÊNCIA

...

134

COMENTÁRIOS (MÉDICOS) A RESPEITO DA EXPERIÊNCIA ANTROPOLÓGICA EM CAMPO E COM O TEMA DOS N E R V O S.

...

137

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS...142

ANEXO 01... ... 154

ROL DE SINTOMAS DO NERVOSO

... ...

154

ANEXO 02... 156

Textoescritopo rumapacientearespeitod en ervos.

...

156

ANEXO 03... ...161

CRITÉRIOS DE OQUENDO, HORWATH E MARTINEZ PARA A SÍNDROME CULTURALMENTE ESPECÍFICA DE NERVOS

...

161

ANEXO 04... 163

Documentáriofotográficodo Campeche: alg u nsaspec to spaisagísticoseh u m a n o s.. 163

ANEXO 05... 169

formulárioparaaenq u etesobremedicam entos.

...

169

ANEXO 06... 172

Diáriod ecampo: dezembro 1996

...

172

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ENREDO DA ESCOLA DE SAMBA COLONINHA, FLORIANÓPOLIS, 1 9 9 5 ...175

ANEXO 08...177

VIRANDO UMA DOUTORA: FRAGMENTOS DO DIÁRIO DA ALUNA DE MEDICINA... 1 7 7 I. Aulas de Ginecologia... 177

II. Das aulas de Medicina Legal...179

III. Lições do PA do HC... 180

ANEXO 9...182

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INTRODUÇÃO

Nervo é um pensamento triste dentro da gente. É uma carência.... Médico, . psiquiatra, psicólogo só escutam, escutam, não dão resposta e a gente está procurando resposta.-Dizem: é nervo! como se não fosse nada, mas é tudo, nervo é o equilíbrio da gente, né? (paciente).

Desde que Hipócrates, contrariando suas outras proposições racionalizadoras para o pensamento médico1, assumiu as voluntariosas manifestações da alma animal2, a Medicina Ocidental, dita científica, se viu às voltas com fenômenos cuja natureza rebelde não se deixou prender pelos seus cânones ou dogmas. O desafio contínuo de um deles, o que hoje ainda conhecemos por nervos, nervoso, ou como muitos dizem na Ilha de Santa Catarina, nelvos, é ilustrado, historicamente, pelas denominações (que obviamente indicam esquemas conceituais correlatos) recebidas em diferentes períodos: sufocação, vapores, tarantismo, histeria e, na tendência atual, estresse3.

Nerves para os de língua inglês, nervios entre os hispânicos, nevra entre gregos, são

algumas das denominações sob as quais é encontrado, pois tem sido observado em vários contextos socioculturais no mundo; a especificidade de sua apresentação e de seus

IA Hipócrates, médico grego que viveu em 330 a.C., é atribuída a paternidade da medicina ocidental dita cientifica, porque teria sido ele o responsável pela sistematização do conhecimento médico da época e por uma teoria que considerava como causa da doença, a Alteração dos humores orgânicos. Teria também livrado a Medicina das crenças religiosas e mágicas, remetendo-as para o campo da religião. Porém, nesse seu afã não propôs explicação para o quadro, mais tarde chamado de histeria, que não fosse a rendição à misteriosa alma animal, habitante do baixo-ventre e poderosa propulsora de comportamentos bizarros.

2 Tal como Darci Ribeiro, fico incomodada com aspas e prefiro fazer os destaques no texto com caracteres em itálico e negrito (cf. Darci Ribeiro, Ensaios Insólitos, 1979, p.63).

3 Mais adiante mostro uma breve revisão histórica do assunto; no mesmo capítulo se verá mais que estresse é um termo de significado muito vago, aplicado hoje a um sem número de situações, médicas ou não, entre elas aos nervos.

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significados são modulados pela cultura4, conferindo-lhe o caráter de sintomas interpretados

culturalmente, mencionados por Low, discutidos também por Davis e Guamaccia (Low,

1994 p. 140; Davis e Guamaccia, 1989, p.7).

c _ . . . c

jNervos é um conjunto variado e instável de sintomas psicológicos e/ou somáticos ,

mediadores entre o sujeito sofredor e o seu meio, constituindo uma das expressões de distresse ou estresse social7. Essa sintomatologia tosca, polimorfa e imprevisível é suscetível de comprometer quase todo o corpo e as íunções orgânicas, inclusive as mentais, indo desde a

* 8 9

ansiedade , ou um mal-estar indefinido até crises convulsivas, à catatonia ou à catalepsia , passando ainda por formas variadas de agressividade ou apatia. (

E um fenômeno-polissêmico, -uma -explicação, íanto ^uanio Aima Jenna de expressão, para cansaço, fraqueza, irritabilidade, tremores, conflitos conjugais e sociais, cefaléias, ira e ressentimentos, infeccão parasitária^ aflições, privações afetivas ou materiais, fome, cuja \etiologia liga-se principalmente a fatores sociorrelacionais?)Porém, a experiência do paciente é física, porque* tal-como assinala Costa; [o pacientej^da experiênciade-vida^guarda .<xhabito

4Entendo cultura como uma dimensão-socialr não-natura^ decorrente de TmvpFoeesso4ústórico-e,por isso, dinâmica; que diz respeito a um produto coletivo que reflete a realidade social de um grupo, a maneira como ele concebe e organiza a vida social, os conhecimentos* as idéias e as crenças que acumula. Essa forma de conceituar a cultura inclui, portanto, o campo simbólico, e comporta a noção de culturas nacionais e a de culturas dentro de uma cultura.

5 Duarte (1993, p.51) refere-se a eles como perturbaçãa e propõe que a hipótese de uma correlação real entre o sistema nervoso, o acervo vastíssimo das expressões físico-morais da "perturbação" humana [...] e uma doença ou conjunto de doenças permite que se chegue a operar com a hipótese da universalidade do fenômeno, ainda que seja para negá-la ou infirmá-la paulatinamente. Correlaciona essa afirmação à postura da Antropologia Médica norte-americana em relação aos nervos^ de aceitar a relativização feita pela ideologia médica através da aceitação do caráter de determinação social ou cultural de suas manifestações, e não pelo caráter originalmente arbitrário de sua existência mesmo.

6 No ANEXO 01 apresento um rol de sinais e sintomas comumente referidos para os nervos; essa relação resulta de minha experiência clínica e dos relatos das pacientes entrevistadas para este trabalho.

7 i Distresse é um estado desagradável provocado por eventos da vida, evidenciado por mudanças fisiológicas ou psicológicas, como, por. exemplo, vertigens, desânimo, tremores ou sudorese das mãos, problemas de sono|(cf. Thoits, 1983, p.34).

íEstresse é o conjunto de reações do organismo a agressões de ordem física, psíquica, infecciosa e outras, capazes de perturbar-lhe a homeostase (Ferreira, 1995, p.279).

8Ansiedade: estado psíquico acompanhado de grande excitação ou de inibição, que comporta uma sensação de constrição da garganta ( Koogan-Larousse-Seleções, 1982, p.62).

9 Catatonia : estado temporário de-paralisia-meter% de natureza-emocional.

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de oferecer, em primeiro plano, o corpo como instrumento privilegiado de comunicação de conflitos de seu mundo afetivo. Mas, também é mental, e sua expectativa é a dç ser

reconhecido e seu sofrimento tratado, tanto como um problema físico quanto afetivo (COSTA-, 1983-^.14).

i

Para fala? da-pesquisa de-campa sobre- «emas-e- mulberes que- realizei no Campeche, localidade ao sul da Ilha de Santa Catarina, em final de 1995 e verão de 1996, parafraseando Albertina- Costa,10, é preciso que- antes- eu, me apresente- e diga de onde fala: ou seja-, do lugar

da médica ora inicianda na Antropologia Social. Colocando-me na intercessão entre essas

disciplinas^ situo-me n a ponto, virtual- talvez, em- que duas disciplinas oriundas de - matrizes teóricas, tão diversas, se cruzam.

Ar Biomedicina11, tenda abandonado- a. Filosofia- e se distanciado- das outras- ciências humanas e de sua própria história, permaneceu fortemente ancorada nas ciências naturais das quais-herdou-o-vfés-meGanicistaj a ênfase-nasavaUações-quase exclusivamente quantitativas e na sofisticação tecnológica12. Já a. Antropologia nasce -entre as ciências ~mais ligadas ao espírito-e à cultura, privilegiando a linguagem e o significado. Situando-me entre esses dois pólos, tento, a exemplo de Guamaccia et cols. (1981, p.51), estabelecer uma tensão criativa, entre a abordagem clínica e a antropológica, que propicie uma compreensão mais profunda sobre nervos,' desenvolvendo uma discussão permanente entre a contribuição de uma e a de outra, pela comparação-ou-contraposição entre, elas .

Cátapiexia: fraqueza muscular intensa, passageira, de natureza psicológica.

10 Refiro-me à apresentação verbal feita por ela na avaliação de Fazendo Gênero na TIFSC, um encontro interdisciplinar, Florianópolis, maio de 1996. ,

11 Biomedicina, medicina ocidental, científica, alopatia, são alguns dos termos com que se tem denominado a prática médica hegemônica em nosso meio. Prefiro biomedicina, concordando com a proposição de Kleinman (1983. p.306 ), que leva em conta o foco primário de atenção desta medicina na biologia humana, mais especificamente, como ele próprio enfatiza, na fisiologia e na patofisiologia.

12 Não desconsidera, entretanto, os esforços holísticos, mais recentes, de (re)promover a união çoipo/meiité, cujo divórcio a medicina tanto insistiu em manter e mesmo ampliar, desde que Descartes formulou sua famosa proposição da dicotomia entre esses campos.

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Isto posto, fica claro que é na ambigüidade que o trabalho se desenvolveu. Mas essa não é a única, é apenas a primeira das janfibologiasja assinalar, por ser a que marca mais fortemente o campo: ora fui a médica ora a antropóloga. Se, por um lado, foi a médica a detentora da credencial que autorizou a falar de doenças, foi a antropóloga, por outro, a que estava, nesse momento e para os propósitos perseguidos, melhor equipada: seu^ referencial teórico trazia mesmo ferramentas para a crítica à primeira, com a qual pretende dialogar e colaborar, e não concorrer, como levianamente se poderia supor. Porém, houve horas em que fui nada mais do que uma mulher, amiga de outras mulheres e com as quais simplesmente conversei com simpatia.

Numa incursão que, por manter o horizonte clínico enquanto considera os papéis sociais, poderia ser chamada de sociomédica ou, com mais propriedade, antropomédica. A pesquisa em si constituiu um estudo transversal, uma intervenção curta e dirigida ao fim imediato, situado no campo diagnóstico, e este no domínio emico13, para identificar e estudar14 os casos de nervos no Campeche.

Não se pretendeu desvendar aqui os mecanismos individuais15, psicológicos e idiossincráticos que caracterizam a resposta, o fator particular que articula um agente estressante, a percepção e os mecanismos psíquicos individuais e a doença como resposta, mas sim trabalhar com a dimensão sociocultural, com o plano relacionai, ligado à gênese do quadro clínico de nervos. Por isso, embora ao falar de nervos seja possível falar de sentimentos, falar-se-á aqui de várias coisas: de relações sociais, de conflitos e pobreza nos

13 Êmico= perspectiva interna, de dentro do grupo estudado (Cf. -Scrimshaw e Hurtado, mimeo, s.d. p.8). 14 Não havia intenção de atuar no plano terapêutico, porém, vez ou outra foi necessário agir no mesmo, pois para uma médica é .difícil deixande intervir, uma_vez que a profissão é, por definição, intervencionista, e o fato de estar fazendo uma pesquisa de campo não excluía essa característica, especialmente na perspectiva 'das pacientes.

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relacionamentos, especialmente o conjugal, de pobreza material, de conflitos de geração e de várias outras dificuldades da vida diária, entre elas algumas situações ligadas a questões de

gênero. ■ Outra relação que abordei foi a de médico/paciente, cuja fragilidade é bem

demonstrada pelo caso dos nervos.

Exceto no que diz respeito à minha própria experiência e a umas poucas referências a textos da imprensa médica, a assistência médica foi abordada do ponto de vista das sofredoras dos nervos16 e daqueles que as cercam. |Tal postura foi adotada para atender ao propósito de esmiuçar a apreciação do serviço e a avaliação da relação médico/paciente a partir da percepção daquele que sofre com a doença e, muitas vezes, também com a intervenção sobre ela, uma vez que os procedimentos diagnósticos médicos não só identificam doenças e prescrevem condutas, como podem conferir outransmutar identidades e atribuir rótulos como doente crônico, estigmatizante no caso dos nervos. Pretendia, com isso, extrair algum conhecimento utilizável pelos médicosna-dínica geral, entendendo que a reflexão sobre esses pontos, enriquecida pela Antropologia, pode contribuir para esses fins. 1

Ver pela ótica das pacientes me colocou no lugar do outro em relação à prática médica, facilitando o olhar distanciado do observador, não o observador estranho mas o estranhado, que dialogou com a médica e criticou ou orientou, a pesquisadora durante todo o trabalho de campo.

Reafirmo, jporém, que ao utilizar recursos metodológicos próprios das Ciências Sociais para estudar nervos não pretendi fugir da Biomedicina, ao contrário, quis aportar-lhe uma compreensão ampliada, via Antropologia! Promover uma adição de conhecimentos que possam contribuir para o rompimento da parcialidade do discurso e da prática médica.

15 Individual, neste trabalho, será tomado tal como no âmbito da Medicina, para designar fatos relativos a um único sujeito, em contraposição ao plano coletivo, que, via de regra, se refere apenas à somatoria, ao

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Considerada esta finalidade, o trabalho pode ser enquadrado como pertencente à Antropologia Aplicada. Por fim, é preciso esclarecer que, contrariando os costumes acadêmicos para o alvo de uma dissertação na área de Antropologia, escrevi não apenas para os antropólogos-, mas ansiando por um hipotético leitor médico.

Da confortável posição de moradora há quase dois anos no Campeche, colhi informações profissionais bem como observei a vida cotidiana da localidade, direcionando minha atenção para o fenômeno dos nervos, por ter visto casos e a sua relevância, especialmente entre as mulheres daqui, o que me motivou para desenvolver a pesquisa, cujos resultados serviram de mote para a discussão ora apresentada. É um problema importante para elas, ligado principalmente à conjugalidade. Embora seja um problema comum a ambos os sexos, nos homens essa correlação parece não ter tanta evidência, já que eles, com freqüência, são nervosos mas não sofrem dos nervos, como acentuam os nativos: nervoso, esse qualquer

um pode ter, tanto fa z se é homem ou mulher, e por qualquer coisa que não vá bem... já sofrer mesmo dos nervos, felizmente são poucos os que sofrem...; ou, como diz uma paciente:

As vezes estou nervosa, mas não me dá nervos. Nervoso todo mundo fica, assim todo dia, você pode ficar nervosa porque falta alguma coisa, ou outra não dá certo como você quer, mas quem tem o nervo, vem de dentro, ataca pelos nervos da pessoa; então atrapalha demais (texto de uma paciente17).

Ou então, os homens são apontados pela comunidade como doentes dos nervos por serem, quase sempre, pacientes psiquiátricos propriamente ditos18.

Entendendo que nervos fala não só de sentimentos pessoais mas de diversos aspectos da vida, de conflitos sociais, de papéis relacionados ao gênero, de desviantes, da ideologia e

16 Por razões éticas, as entrevistadas foram diluídas num único caso, anônimo, e rotuladas simplesmente de paciente; porém cuidou-se para que tal não distorcesse os dados.

A reprodução do texto elaborado, a pedido, por uma paciente encontra-se no Anexo 02.

18 Por vezes muito sutil, há diferença entre um e outro. Mas os doentes dos nervos têm crises rápidas e intensas, manipulam seus medicamentos e nunca foram internados. Já os doentes psiquiátricos, ao contrário, não têm muito domínio sobre si mesmos, têm histórias de internações anteriores. Embora suas crises possam

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da pratica médica, entre outros, proponho que três vias de interpretação sejam tomadas para entender o nervoso no contexto da comunidade do Campeche19: primeiro, tomá-lo como um recurso das mulheres, pois embora algumas de suas manifestações possam ser aceitas nos homens como parte de seu temperamento, nas mulheres constituem a expressão da perda de controle sobre si mesmas e, então, uma resposta desviante; depois, entendê-lo como linguagem social e como ato ou cena de um drama social; e, finalmente, como forma dissimulada de exercer violência. Esse tripé interpretativo já permite que se perceba o caráter

variável e contraditório dos nervos-enquanto tlichê üu como drama individual e/ou social20

assinalado por Davis (1981).

Abordou-se também o fenômeno nervos a partir das possibilidades terapêuticas, através das quais pode-se evidenciar melhor a problemática do atendimento médico para'esses casos e as dificuldades da Biomedicina ao fazê-lo.

Assim, a partir das narrativas de doenças, contadas por mulheres reconhecidas em seu meio como sofredoras dessa afecção, introduzo uma discussão sobre a questão de gênero, saúde, violência e nervos, e faço uma reflexão sobre a forma de como a Biomedicina vem abordando essa problemática e sobre a contribuição que pode receber da Antropologiai Essa contribuição não se prende apenas ao tema desta pesquisa, mas sim à atuação médica em geral. Nesse sentido, e para esta finalidade específica, nervos será tomado apenas como um caso exemplar, entre outros tantos que poderiam ter sido escolhidos.

Tendo como referencial a proposta de Van Schaik (1989) para avaliar a produção sobre

ser raras, são intensas e duram um largo período de tempo, durante o qual precisam ser cuidados mais intensamente por familiares e por especialistas, perdendo muito mais sua autonomia.

19Enfatizo que estas vias de interpretação parecem apropriadas para o contexto estudado. Souza, Duarte, Sheper-Hughes, Rozemberg, para falar apenas de abordagens dos nervos no Brasil, mostram que a polifonia e a polissemia desse fenômeno têm especificidades ligadas ao grupo social e neste a outras condições, como gênero ou trabalhador.

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nervos, situo meu trabalho, no que diz respeito aos casos e à sua interpretação, como ligado à

linha hermenêutica, enquanto que a discussão da postura biomédica e a de gênero e nervos prendem-se mais a uma postura crítica. Da primeira posso exaltar a vantagem de favorecer a evidenciação da etiologia e compreender a determinação sociocultural da doença, como

ressaltam Davis e Guamaccia (1981, p. 5). Já na opção crítica, que no meu entendimento não

exclui uma fase preliminar de caráter interpretativo, pretendo tirar as sugestões de natureza mais pragmática voltadas à postura e à prática médicas.

O INDIVÍDUO FRENTE A SEU SOFRER

Evocando a explicação proposta por Kleinman (1984, p. 146) para as manifestações psicossomáticas entre os chineses, pode-se dizer que nervos, a nível pessoal, representa um conjunto de manifestações decorrentes de fenômenos psicobiológicos que, através do que ele chama de processo cognitivo, sofrem a influência cultural, uma vez que neste campo é que são percebidos, rotulados, explicados e avaliados os agentes_ estressantes. Esse crivo, culturalmente determinado, pelo qual passa a experiência pessoal, define, então, como ela vai se manifestar. Ou seja, vai daç-lhe as feições típicas e específicas de cada cultura, conferindo-lhe a singularidade que se pretende explicitar aqui. Esse processo cognitivo, com sua feição cultural particular, explica porque o que é percebido como estressante em uma cultura pode não sê-lo em outra. Kleinman mesmo exemplifica essa diferença citando Hsu, que demonstrou que a percepção de problemas intrapsíquicos, quando

20 Drama social diz respeito aos acontecimentos da vida social, vivenciados de forma dramática tanto pelo indivíduo quanto por seu grupo, aos conflitos diários e sua negociação, que podem vir a ser expressos de várias formas, uma das quais pode ser através da doença ou de sintomas (nota da autora).

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contrapostos aos familiares, é diferente entre chineses e norte-americanos. Os primeiros valorizam os problemas familiares em detrimento dos intrapsíquicos, ao passo que o contrário ocorre com os americanos. A decorrência dessa peculiaridade cultural é o maior número de estresses provocados por problemas familiares entre aqueles, e de intrapsíquicos entre os últimos.

Costa (1987), em artigo sobre a doença dos nervos, afirma ser esse tipo de sofrimento uma forma cultural, específica de certos indivíduos em camadas de baixa renda, de reagirem a desestruturações no que ele chama de identidade psicológica. Para ele, esta doença é tudo aquilo que o sujeito experimenta, sente, interpreta como sendo eu. Resulta de um sistema de representações, distintos entre si porém articulados, em que cada um se refere ao modo como o sujeito se liga ao universo sociocultural. E mais: a definição dessa identidade, a partir desses sistemas de representação social, portanto, acaba assumindo um caráter normativo, donde a impressão de universalidade e a aparência de naturalidade com que acaba se revestindo. Estas características, por fim, lhe conferem maior poder coercitivo sobre o sujeito, colocando-o na situação desviante sempre que essa identidade psicológica , (socialmente determinada) é posta em questão, sofre rupturas ou vivência conflitos, justamente porque tem um valor coercitivo muito grande. Como esse desvio é percebido como um sofrimento diferente daquele- de origem orgânica e, também, diferente dos outros conflitos da vida relacionai do dia-a-dia, é reconhecido pelo próprio paciente como psíquico e recebe denominações como doença dos nervos, ataque, sistema ou estado de nervos, nervos

ou nervosismo. Por originar-se de um conflito identificatório, originado na esfera psicológica,

esse sofrimento é então assimilado à doença. E, ainda, os nervos, segundo esse autor, funcionariam como unidades excitáveis e capazes de voltar ou não a um equilíbrio homeostático após a excitação; no segundo caso provocariam o ataque ou a crise de nervos.

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Falando-se de um quadro de fundo indiscutivelmente emocional como o de

nervos, certamente se observará neste trabalho a lacuna deixada pela ausência de uma análise

de caráter mais individual. Porém, não foi a tal tipo de abordagem que ele se voltou, não havendo, nesse movimento, propósito de desmerecê-la, senão a intenção de desenvolver outra reflexão, cujo resultado pudesse ser sobreposto à primeira, enriquecendo-a. Interessava aqui considerar que o fato psíquico cuja manifestação externa é o nervoso, se desenvolve a partir de um indivíduo inserido num meio social onde os fatos de sua vida, como Durkhéim (1982) há muito já assinalou, não se fazem do nada e nem para nada. Eles acontecem a partir de um substrato social e a ele devem ser referenciados .

Impunha-se, portanto, descobrir como a resposta individual ao estresse (que é socialmente determinado) se articulava com o social e o cultural, e como, através dessa articulação, o indivíduo poderia dizer aos circunstantes que seu limite pessoal foi alcançado e a realidade social tem de ser mudada para que ele sobreviva.

\ Deixando aos psicólogos a tarefa de analisar o nervoso do ponto de vista dos mecanismos internos e de suas manifestações individuais, procurei atuar no contexto mais amplo em que qualquer enfermidade ou distúrbio comportamental de um sujeito só pode ser compreendido em relação à rede de interações nas quais ele vive e atua, e onde a compreensão e a acepção da doença são mais abrangentes do que na Biomedicina, por isso a opção pela Antropologia.

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PO R QUE ESSE OLHAR ANTROPOLÓGICO SOBRE UMA QUESTÃO DE SAÚDE?

Não há sociedade onde a doença não tenha uma dimensão social, e deste ponto de vista, a doença, que é também a mais íntima e a mais individual realidade, nos fomece um exemplo concreto de ligação entre percepção individual e simbólico social (Augé21, 1986, p. 82).

Muito embora o conteúdo subjacente às ações e questões ligadas à saúde e ao cuidado

t

médico permitam uma leitura do que elas expressam, dos significados sociais que podem ser reveladores das relações sociais sobre as quais elas se formam e que, ao mesmo tempo refletem, a Biomedicina, mesmo em sua versão mais aberta à problemática social, que é a Epidemiologia, pouco explica sobre o sofrimento (a singularidade e a estranheza de sentir-se doente) e, menos ainda, sobre as incontestáveis possibilidades culturais de compreender os fenômenos ligados à saúde e à doença, sobretudo no campo simbólico

^ ^ __ _ _____ .... J

Por outra lado, o interesse, dos antropólogos sempre privilegiou, ainda que por vezes apenas no relato, aspectos sobre alimentação, cuidados corporais, plantas medicinais, concepção, morte, diagnóstico-das doenças, especialistas de cura (leigos ou religiosos), etc. Desde Rivers, médico e um dos pioneiros da pesquisa de campo na Antropologia, preocupado com a Medicina Primitiva no início do século, passando por nomes como Clements, Ackernecht (que também era médico e tem sido considerado o pai da Antropologia Médica nos Estados Unidos), desenvolveu-se um campo que uns chamam de Antropologia Médica, Antropologia daDoença ou dá Saúde22.

~21 As citações de referências bíbliográficas cujo original encontra-se em Inglês ou em Francês, como neste caso, foram traduzidas livremente por mim.

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Adoto a denominação Antropologia da Saúde, entendendo que ela designa com mais propriedade o vasto campo que abriga o estudo da saúde (reconhecimento do estado de saúde, formas de preservá-lo, alimentação, sono, interações ambientais, etc.) e da doença (sistemas etiológicos e terapêuticos, significados e usos sociais da doença, saúde e doença como processo, etc.), evitando o reducionismo que parece implícito na abordagem da Antropologia da Doença que, ao enfatizar a doença, abandona a abrangência que pode estar contida no campo da saúde. Da mesma forma, como Antropologia Médica submete o seu objeto ao paradigma biomédico, e, desta forma, o reduz ainda mais, já que os limites da fisiopatologia biomédica, com certeza, não contemplam integralmente a pluralidade, a diversidade e a interligação entre os múltiplos aspectos e peculiaridades que marcam a vida humana.

Estudiosos da área da Saúde já têm demonstrado preocupação com essas limitações do conhecimento produzidas pelo modelo biomédico, como por exemplo Minayo, que a elas se refere mencionando a miopia frente ao social e a falha no recorte da realidade a ser

estudada, produzidas pelo apego ao tratamento, quantitativo dado ao fenômeno saúde/doença

e pela abordagem anatomofisiológica da Medicina, próprios da Epidemiologia clássica, a partir da qual podem se produzir restrições a uma compreensão mais abrangente do processo saúde/doença. Sintetizando a informação trazida pelos estudos antropológicos de Mauss (1974), de Lévi-Strauss (Introdução à obra de Mauss, 1974) e de Douglas (1971), ela mostra que os fenômenos ligados à saúde e à doença informam sobre:

a) a visão de mundo do grupo social;

b) as atitudes coletivas face a infelicidade dominadora;

c) o rompimento do indivíduo com as normas e regras de sua sociedade, freqüentemente traduzidas em códigos morais e religiosos;

d) o encontro do homem com o aue considera infeliz-e alienante em sua sociedade (Minayo, 1991 p.234).

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Assim, representações23 e práticas, condicionando-se reciprocamente, determinam o processo saúde/doença, o que, na perspectiva da construção social24, não pode ser definido por si só, mas apenas como um processo socialmente determinado, tanto por condições físicas e coordenadas biológicas quanto pelas modalidades de relações sociais e pelos códigos definidos historicamente pelas comunidades sociais, nas quais os sujeitos inserem e modulam sua individualidade.

Nessa perspectiva, a doença não se restringe a um fato clínico, antes é um fenômeno sociológico:

[a doença] exprime hoje e sempre um acontecimento biológico e individual e uma angústia que pervaga o corpo social, confrontado com as turbulências do homem enquanto ser total. À medida que cristaliza e simboliza as maneiras como a sociedade vivência coletivamente seu medo da morte e seus limites frente ao mal, a doença importa tanto por seus efeitos imaginários: ambos sâo reais do ponto de vista antropológico. A doença è uma realidade construída e o doente é um personagem real (Minayo, op. cit p.233) (sem grifos no original).

Dentro desse referencial de construção, social e de conteúdos simbólicos, é mais ou menos óbvio que se tome saúde/doença, ou o que se lhe relaciona, como capazes de portar ou de constituir mensagens compreensíveis para o grupo social no qual se originam. Quer dizer, o corpo, sadio ou doente25 {Ferreira, 1994), tantoTjuanto as ações destinadas a manter a saúde ou curar a doença, representam, por si só, inscrições simbólicas passíveis de leitura por aqueles que dominam os seus códigos. Rodrigues (1975, p.93)lembra que as mensagens corporais representam uma linguagem, fazendo da capacidade de pensá-las, exprimi-las e identificá-las um fato eminentemente social, donde o limitado sucesso das posturas que restringem a compreensão da doença ao biológico, como é o caso da Biomedicina.

23 Tomo de empréstimo a Grimberg o conceito de representações sociais como sendo os processos inter- relacionados de perceber, categorizar e atribuir sentido a alguma coisa.

^Baseada em Berger (1985), entendo construção social como a interferência dos fenômenos sociais sobre a objetivação dos processos e significações subjetivas graças às quais é construído o mundo intersubjetivo do senso comum.

25 Pensando saúde como processo, não deveria ser tão categórica dizendo: sadio ou doente, mas utilizo esses termos apenas como um recurso de retórica.

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Portanto, para pensar as causas da doença é preciso pensar, necessariamente, a cultura e a sociedade e, estendendo a compreensão da doença como experiência, analisar o significado para o próprio doente e para os que o cercam, buscando as implicações clínicas da relação entre a doença e a cura, e entre a sociedade e a cultura.

Decorre dessa forma de compreender que os cuidados com a saúde constituem, um sistema comparável a outros sistemas culturais (parentesco, linguagem, etc.), inseridos no contexto cultural através dos significados simbólicos que contêm e que se apóiam em modelos, de interações interpessoais e em instituições sociais. Inclui em sua compreensão de sistema de saúde26 os esquemas de compreensão sobre as causas das doenças, normas para ação, cenários sociais nos quais as ações acontecem, status e papéis socialmente legitimados, interação, instituições envolvidas no reconhecimento e no tratamento das doenças. Doença e cura, pacientes e curadores, e a s relações sociais, são então tomados como componentes essenciais desse sistema no qual a realidade simbólica é a chave para a conexão entre a realidade social e os processos psicofisiológicos, na atuação destes sobre o organismo e, conseqüentemente, sobre o processo saúde/doença.

Enfatizando a- ligação entre a doença e a sociedade, pela apreensão dos significados sociais expressos através dos conteúdos simbólicos inseridos na doença e nas expressões semânticas a ela correlacionadas, mostra ainda a especificidade cultural do adoecer. Com isso aponta para uma diferença do enfoque biomédico, para o qual a doença

26 Sistema de saúde,-segundo Kiemman(1984,p.24), é o sistema simbólico ancorado em um arranjo peculiar das instituições sociais e modelos de inter-relação pessoal; é a totalidade das inter-relações que ocorrem era toda cultura, da doença, a resposta a ela, a experiência individual de adoecer e o tratamento e as instituições correlatas. Modelos e crenças explicativos da doença, normas que determinam a escolha e a avaliação d a tratamento, status, relações de poder, interação e instituições fazem parte do mesmo. Pacientes e curadores são componentes básicos desses sistemas, bem como a doença e o processo de cura. Eu acrescentaria, num viés sanitarista, que o entendimento do que é saúde e tudo que se relaciona com a sua preservação são componentes essenciais desse sistema.

(27)

seria uma entidade universal, ao passo que para a Antropologia, ao contrário, a cultura determina a doença e a forma de adoecer, resultando daí racionalidades diversas para uma e

1 outra:

Nesta perspectiva [a de haverem duas racionalidades distintas, para as Ciências Naturais e para as Ciências da Cultura], as ciências naturais se caracterizariam epistemologicamente em estabelecer nexos de causalidade entre os fenômenos. A sua racionalidade seria explicativa e determinista. Em contrapartida, as ciências do espírito procurariam delinear possibilidades de compreensão, inserindo-se no campo textual imantado pelo sentido. A sua racionalidade seria Hermenêutica, indicando, pois, de fato e de direito, os saberes da interpretação (Birmam, 1991, p. 14) (grifos no original).

O campo da Antropologia da Saúde se. apóia, portanto, em uma dupla base: por um lado, na Biomedicina, da qual retira os modelos para a compreensão dos fenômenos biológicos ligados ao fenômenos orgânicos do adoecer (um apoio, portanto, nas ciências naturais); e, por outro lado, na Antropologia (quer dizer, na ciência social), através da qual procura as implicações, culturais e sociais do mesmo fenômeno. Suas explicações surgem dessa tentativa de aproximação entre biologia e cultura, ou seja, da interação entre a natureza e a intervenção humana sobre ela, da qual resulta saúde e/ou doença.

A Antropologia Social, via Antropologia da Saúde, pode trazer a sua contribuição e, indiretamente, atuar sobre os serviços- de saúde, facilitando as vias de integração e as abordagens interdisciplinares, graças à ampliação da compreensão desse processo. Porém, abordar antropologicamente a questão da saúde/doença não implica no abandono das dimensões biopsicológicas e econômico/políticas desse processo, mas, sim, no entendimento que os homens as operam por meio de processos ideológicos baseados na experiência pessoal e grupai, em crenças, percepções, atitudes e práticas, histórica e socialmente dadas. Ou seja, no reconhecimento de que o que a pessoa sente é percebido, valorizado, manipulado de acordo com a sociedade da qual ela faz parte, como atesta a presença, na literatura antropológica e mesmo médica, de inúmeros exemplos de diferenças no suportar a dor ou certos sofrimentos, no satisfazer necessidades fisiológicas básicas, como a fome ou até

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mesmo o defecar (e.g. Douglas, 1966; Harris, 1988 ).

Na Antropologia da Saúde, duas correntes ganharam proeminência nos últimos anos; uma, que privilegia as explicações da doença a partir do seu entendimento como-uma

experiência e a sua compreensão no campo simbólico, que é a hermenêutica; a outra, a

corrente crítica, traz à discussão como as questões de poder e seus desdobramentos podem perpassar o campo da saúde.

A primeira retém dos pioneiros, Rivers e Ackernecht, a noção de Medicina na cultura e a da etiologia como uma porta de entrada muito importante para se entender os procedimentos diagnósticos e terapêuticos; da Etnociência, dos anos 50, valoriza a . relativização da Biomedicina, o reconhecimento da existência das outras medicinas e sua inserção num contexto cultural mais amplo; e, finalmente, apropria-se da tendência dos ecologistas ao holístico e ao reconhecimento do fenômeno saúde/doença como processo (e, como tal, sujeito à dinâmica social que envolve aspectos sociais, econômicos, ambientais, políticos, etc.). A Antropologia da Saúde, finalmente, busca no campo simbólico (e desenvolve-se paralelamente a ele) e na hermenêutica uma compreensão de saúde/doença como experiência plena de significados para o próprio doente e para aqueles que o cercam. Nessa linha, os autores apropriam-se dos conceitos incorporados a partir do estudo de rituais e símbolos, como os de trabalhos de Tumer (1981), e daqueles desenvolvidos a partir de uma postura hermenêutica na Antropologia, como os de Geertz (1989).

Já a postura crítica procura ampliar a discussão além do significado inscrito no campo simbólico, agregando-lhe o questionamento advindo de uma análise conjuntural que se aproxima mais da Sociologia, da Economia e da Política. Assim é que correntes teóricas mais ligadas ao marxismo, por exemplo, desenvolvem mais pesquisas de natureza crítica,

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especialmente no campo da saúde. Essa corrente busca uma aplicação mais direta do conhecimento que desenvolve, no campo da práxis.

NERVOS NA LITERATURA ANTROPOLÓGICA

(Seja dentro ou fora da assistência à saúde, nervos como uma queixa emicamenle derivada e culturalmente construída^ popular, variável e de múltiplos usos, transcende a mente, o corpo e a cultura e é.melhor compreendida através da investigação e análise antropológica^ (Davis e Guarnaccia, 1981 p.2) ( sem grifos no original).

Quanto à sintomatologia, o nervoso, em nosso meio, se aproxima muito do susto e das descrições de outras síndromes, como mau-olhado e encosto. Por essa semelhança sintomática que possuem, sugerem que são. modalidades culturalmente específicas de respostas a um mesmo problema: o estresse social, seja ele explicado em termos puramente socioculturais, como tento fazer, ou aprofundado na interação desse com as considerações de caráter psicológico sobre rompimentos ou conflitos da identidade psicológica, por agravos de natureza relacionai.

. Porém, não é a mesma a opinião de Bamett, que estudou nervos num povoado peruano; ali, a autora encontrou diferenças entre susto e nervos, sendo que estes são problemas femininos e ligados à menojpausa.

A historiadora Susan-Cayleff mostra uma revisão conceituai de nervos, gênero e neurastenia, enfocando principalmente a produção médica norte-americana e a abordagem psicológica e suas implicações. Enfatiza a questão de nervos como um problema ligado ao gênero e aos papéis femininos. Cayleff (1988 p. 1200) evidencia historicamente que o

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Alexander Walker, Woman physiologically considered...27, repetiu crenças familiares sobre vulnerabilidade nervosa da mulher - que era pensada como regra de sua natureza e de toda ação. Walker, com sua noção de suscetibilidade nervosa, na época, estava em sintonia com outras disciplinas -Neurologia/Medicina/Psiquiatria/Psicologia.

O assunto tem suscitado muitas publicações, exclusivas ou não, no mundo todo, sejam elas artigos, números especiais de revistas, tais como o número 12, do volume 26 do prestigioso periódico Social Science & Medicine, ou livros como aquele que Davis e-Low lideraram a publicação: Gender» health and ilness: the case of nerves.

No Brasil, o Conselho Nacional de Pesquisa (CNPq) patrocinou a pesquisa de Duarte que resultou na publicação de um volume intitulado Da vida nervosa nas classes

trabalhadoras urbanas. Sintomatologia e determinantes psicossociais semelhantes têm sido

descritas, em outras culturas, como síndromes de denominação diversa, porém, em muitos aspectos, superponíveis aos nervos, como é o caso da ligação com os papéis femininos, por exemplo: o desconforto do coração, relatado por Good (1957), entre mulheres iranianas. Observou que a aflição do coração no Irã, tal como o nervoso entre nós, ora é sintoma, ora é doença, ora é causa de outras doenças, porque a estrutura, a construção cultural da doença não é monolítica, ao contrário, pode conter variações individuais de classe, de gênero e de circunstâncias.

A propósito de imigrantes gregas em Quebéc, Lock (1987, p.87-103) discorre sobre nervos, nostalgia, honra, papéis relacionados a gênero e-cuidados médicos, destacando as dificuldades encontradas pelos médicos em tratar do problema por causa do

desconhecimento da cultura de origem dessas mulheres . .

-27 Cayleff refere-se aqui à obra de Walker, publicada em. 1844, por Langley, em New York: Woman physiologically considered, as to mind, morais, terezaage, matrimonial slivery, infidelity and divorce.

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Low (1985 p. 187), a respeito de nen>ios na Costa Rica, diz que nervos aí é um modo culturalmente aceitável de apresentação de distresse para a família e praticantes de Medicina. Em relação a uma revisão que faz do tema, aponta semelhanças nos sintomas relatados por vários autores, em diversos locais, aos quais são atribuídos significados culturais específicos, mostrando que também há semelhança.

Em 1989, Dona Davis e Setha Low organizaram uma sessão intitulada Health,

Culture and the Nature of Nerves, no American Anthropological Association Meetings. Do

evento resultou a publicação de um número especial do Medicai Anthropology, do qual alguns artigos serão comentados a seguir.

Davís relata seus achados sobre nervos entre pescadores de uma comunidade de New Foundland, Canadá, mostrando que entre eles nervos tem um caráter variável, abrangendo um largo espectro de queixas psicossomáticas, bem como emoções, padrões morais e visão de mundo. Diz que o fenômeno reflete a conexão entre biologia, psicologia, sociedade e cultura, tomando-se uma expressão da honra pessoal e coletiva. Como um símbolo central, nervos simboliza o poder coletivo e individual do caráter dessa comunidade, e marca um senso emergente de identidade étnica. Para ela, as mulheres em suas crises de

nervos reafirmam seu pertencimento à comunidade e aos seus valores, fazendo delas um

discurso legitimador, fortemente ligado à cosmologia.

Na mesma publicação, Lock comenta o trabalho de Davis, referindo-se agora ao

poder ligado ao seu uso, destacando as diferenças entre o significado do termo quando usado

por aqueles que detêm autoridade e os que não a têm, enfatizando que os oprimidos usam o termo nervos atribuindo-lhe um significado mais forte e potencialmente mais poderoso do que aquele definido pela simples apropriação do vocábulo com sua ligação anatômica e definição científica. Lock chama a atenção para a importância de aceitar o plano metafórico como parte

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do processo de cura e, mais ainda, como ferramenta no desenvolvimento de uma consciência política. Para ela, o profissional de saúde ou o trabalhador social não pode combater toda a injustiça em nossa sociedade, mas pode aprender a levar a sério todo o sofrimento, mesmo quando ele não tem base orgânica.

Em outro artigo, Davis, juntamente com Guarnaccia, acentua a ocorrência universal do fenômeno nervos com uma especificidade de apresentação definida por cada cultura. Além disso, salientam que é um derivado êmico, popular, variável, constituindo-se numa queixa com variados propósitos, que transcende a mente, o corpo e a cultura, e que sua melhor compreensão é obtida através do estudo antropológico. Os mesmos autores, agora em associação com DeLaCancela e Carillo, a partir de um estudo clínico, abordam ainda a problemática entre imigrantes latinos nos Estados Unidos, ligando o fenômeno nervos à ira e à dor resultantes da desagregação familiar e do processo migratório. Inserem nervos em esferas de poder microfamiliar e no contexto estressante da migração.

Já Dunk (1989, p. 29 a 45), ainda no mesmo encontro, trata da ocorrência de

nevra no Canadá, entre mulheres gregas, qualificando a ocorrência como expressão de

distresse social ocasionado por condições pobres de trabalho, baixos salários e relações de gênero na comunidade grega. Concordando com Low, também classifica nevra como sintomas interpretados culturalmente. Destaca que a falha em perceber este fato induz à medicalização e á atribuição do rótulo de doente crônico ao paciente .

Entendendo nervos como uma síndrome definida* culturalmente, para as pessoas de língua espanhola provenientes do Caribe e residentes nos Estados Unidos, e preocupados com o diagnóstico, Oquendo, Horwarth e Martinez (1992, p.376), valendo-se de sua experiência clínica, propõem uma coleção de critérios biomédicos para se definir um caso, os quais aparecem no ANEXO 03.

(33)

N a França, Fainzang (1995, p. 109-125) aborda a problemática dos nervos associada ao alcoolismo, levantando as representações associadas, independentemente da possível explicação médica relacionada à intoxicação crônica pelo álcool.

Em nosso meio, alguns trabalhos curriculares, como os de Figueiredo (1979), de Mombelli (1992) e de Soya (1994), levantam a problemática de nervos ou de DNV28, em diferentes regiões do País: Rio de Janeiro, Santa Catarina e Paraná. Dentro dos limites de sua realização, eles trazem, entretanto, a informação sobre a ocorrência comum de nervoso em usuários de serviços públicos de saúde e a impotência dos mesmos em dar suporte conveniente aos doentes; da abordagem inadequada, provocada pelo despreparo médico, e seu efeito imediato, que é a exagerada medicalização^rOutros, como por exemplo o de Cereser (1996)e o de Cartana (1988), em dissertações de Mestrado, discorrem sobre temas diversos ligados à saúde e abordam pontualmente o sofrimento de nervos, evidenciando sua ocorrência em comunidades gaúchas, no primeiro caso, e na própria Ilha de Santa Catarina, no segundo. Estudando a comunidade da Costa da Lagoa, esta encontrou os nervos como uma doença de grande incidência, tanto entre homens como entre, mulheres, cuja sintomatologia varia desde simples alterações no humor até a doença da loucura, estando relacionada a um modelo etiológico multicausal, que, no caso das mulheres, se relaciona aos ciclos menstruais, parto etc. Ou seja, a fatos ligados à condição feminina. Pelaez (1989), também entre mulheres da Ilha, observa correlação de mesma, ordem, dentro do fenômeno da recaída pós-parto. Cereser destaca ainda o papel do nervos na gênese ou na manutenção dos estados hipertensivos .

28

DNV = distúrbios neurovegetativos. A crise de nervos freqüentemente é registrada assim em -prontuáriosmédicos.

29 Por -medicalização entendo a aplicação exaustiva de recursos -da prática -médica, envolvendo procedimentos diagnósticos e terapêuticos, especialmente o uso de medicamentos, que nem sempre se justificam dada a natureza do problema que é trazido ao médico. Como é o caso dos nervos, em que um sofrimento de natureza psicossocial, definido dentro de parâmetros culturais, recebe cronicamente drogas de ação psicotrópica e efeitos deletérios, num indiscutível processo de iatrogenia, como este trabalho demonstra.

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Numa discussão sobre o papel da representação social do conceito de trabalho, do valor atribuído a ele e a constituição da identidade como identidade do eu, Jacques

I (1995)explora a dinâmica da interação entre a instância psíquica (individual) e a experiência laborai (coletiva). Analisa os distúrbios psíquicos agrupados como doença dos nervos e a sua relação com a identidade de trabalhador.

Abordando a questão dos nervos no Brasil, em trabalhos de maior profundidade, destacam-se Duarte, Souza, Rabelo e Alves, Scheper-Hughes, Rozemberg, Costa e Rebhun.

Souza (1983), em um número especial de uma publicação do Ministério da Saúde, dedicado à área de saúde mental, discorre sobre a doença dos nervos como uma estratégia de sobrevivência à exploração e à opressão das classes trabalhadoras. Sua análise baseia-se em entrevistas de segurados do sistema oficial de seguridade social, que se encontravam em processo de reabilitação profissional. A autora observa então que a falência desse processo, pelas dificuldades determinadas pelo mercado de trabalho, gera sentimentos de fracasso e de exploração, que resulta no aparecimento de sintomas nervosos. Enfatiza sua vinculação com o desenvolvimento industrial, a crescente urbanização e as diferenças sociais

e culturais geradas por esse processo.

Duarte (1986, 1987^ 1.993 e 1994) é, sem dúvida, o autor que acumula a maior reflexão sobre o tema em nosso País. Complexa, sua obra não pode ser comentada em poucas palavras, e, menos ainda, por uma neófita, como é o presente caso. Portanto, pontuo alguns aspectos da mesma, que inclui a análise teórica, passa pela construção social da pessoa moderna, pela discussão das relações da modernidade com a classe trabalhadora, pela busca de representações do nervoso na cultura literária e sociológica do século XIX e início do século XX, e faz a crítica à produção teórica norte-americana sobre nervos, e introduz a noção de alterações físico-morais.

(35)

Scheper-Hughes (1992) aborda a questão da qualificação da fome e da miséria como doença, através da categoria nervos e sua conseqüente medicalização. Rozemberg também discorre na mesma linha, criticando a medicalização de um problema social ao apresentar a problemática de nervos entre lavradores, o favorecimento da manutenção do nervoso como fenômeno individual e da cronificação dos casos pelo uso abusivo de calmantes.

Rebhun(1993), estudando casos de nervos entre mulheres trabalhadoras do interior do Nordeste brasileiro, observou que esse diagnóstico pode estar associado à ira ou à ansiedade, e que elas podem provocar alterações nos papéis sociais, usando os nervos para mudar o comportamento social dos outros em situações nas quais as mulheres, de- outra maneira, teriam limitado controle.

Numa perspectiva psicanalítica fortemente contaminada pela Antropologia, Costa aborda a problemática dos nervos como elemento construtor da identidade do se lf (eu). O mesmo ocorre com os trabalhos de Rabelo e Alves na Bahia.

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A PESQUISA DE CAMPO

PERIPÉCIAS D E UMA MÉDICA (PRETENDENTE A) ANTROPÓLOGA EM CAMPO, OU A SUBJETIVIDADE DA AUTORA NA PESQUISA

Eu mesmo fui procurar meus sofrimentos quando socorri mortais (Ésquilo, In Prometeu acorrentado, 1968,p.25).

Aceitei da P roP Jean Langdon a sugestão de trabalhar com os nervos porque em minha experiência anterior, como clínica geral30, e na observação informal no Campeche já notara a sua relevância para as mulheres. Porém, não percebi logo de início a complexidade da empreitada que assumia. Sim, porque logo me vi numa pesquisa de fronteiras muito maleáveis, tanto no que diz respeito á relação objeto/sujeito, pesquisador/pesquisado (que me situava ora aqui ora acolá), quanto ao que se relaciona ao tema: afinal, nervos, como dizem os médicos, não é nada; mas, como sentem os pacientes, é tudo na vida da gente...

Residia já há dois anos no Campeche quando resolvi tomá-lo como campo de-minha pesquisa. De início, vivendo simplesmente como moradora, tive oportunidade de conviver com muitos nativos, o que acabou se mostrando muito importante, como um dos elementos facilitadores, tanto como um passe para entrar nas casas quanto para que eu pudesse saber do

30

Exerci atividades como médica, clinica geral e como sanitarista, em Curitiba, PR, de 1980 a 1994, em vários serviços e em consultório particular, e o problema dos nervos era trazido à consulta com freqüência

(37)

que as mulheres falavam nas suas queixas. Outra vantagem foi poder confrontar, seguindo a velha e boa lição de Malinowski, o que me diziam com o que de fato faziam. A prudência dessa recomendação se mostrou de valor em mais de uma ocasião.

Como moradora, minha experiência se mostrou muito interessante: vinda de Curitiba, conhecida, entre outras características, pela reserva de seus moradores, deparei-me aqui com nativos extremamente hospitaleiros, prestativos, dispostos a logo fazer amizades e, como um deles mesmo qualificou: o pessoal daqui às vezes é muito invasivo, vai entrando pela tua

casa, impondo a sua amizade mesmo que tu não queiras...

Essa atitude hospitaleira foi facilitada em relação a mim pelo fato de ser viúva, ter duas filhas pequenas vivendo comigo, ou seja, constituir uma família que se ajusta a um padrão semelhante ao deles, o que já não ocorreu com meus colegas de Mestrado que também moraram um tempo no mesmo bairro, Embora seja relativamente comum por aqui, de uns tempos para cá, que rapazes e moças estudantes morem juntos, em repúblicas, isso ainda causa estranheza entre os nativos, o que ficou bem- evidente por ocasião dos cortejos do Divino31, quando a minha casa sempre foi visitada e as dos meus colegas não, embora a comitiva passasse em frente das mesmas.

Moradora por um tempo, pesquisadora ao fim da estadia, confesso que me senti por vezes realmente muito mais invadida do que invadi a vida delas, mesmo a das pacientes entrevistadas.

Volto às questões sujeito/pesquisador, problemática que já aparecia na ambigüidade da qual me constituí: médica e, agora, antropóloga de campo; mulher, porém pesquisadora; paciente de eventuais crises de nervos, mas também observadora das crises alheias...

31 Um grupo de moradores, os zeladores da bandeira do Divino, visitam as casas levantando fundos para realizar a festa anual. Saem paramentados com opas vermelhas e brancas, carregando a bandeira vermelha,

(38)

Paradoxalmente, isso não se constituiu problema, e, sim, me trouxe a permissão para adentrar nas histórias e vidas das nervosas: só te conto isso porque tu és minha amiga e porque tu és

uma médica ... Ou então: tu entendes, posso falar contigo dessas coisas porque tu és uma mulher como eu.

Antes de iniciar a pesquisa, vi-me um dia numa situação delicada, em que a ambigüidade médica/amiga ficou muito clara: uma das minhas amigas, que já me chamara várias vezes para atender seu marido que passara mal, acordou-me num domingo muito cedo, dizendo: queria ver se podes fazer um favor para mim, sei que tu podes, tens o carro,- mas

não sei se tu vais querer. Colocadas assim as coisas, não me restava outra saída senão atendê-

la, além disso devia-lhe32 uns favores e já havia sido acordada mesmo. Perguntei-lhe onde queria ir, disse que ao Morro das Pedras, encontrar o marido que para lá fora de madrugada. No meio do caminho a conversa me fez entender qual era a situação: ela ia tentar flagrá-lo numa suposta tentativa de adultério. Fiquei sem saber o que fazer: ela, reafirmando a confiança na minha colaboração e testemunho; e eu, tentando achar um jeito de me safar e escapar de ser testemunha contra meu paciente, situação absolutamente não-recomendada nos alfarrábios médicos! Talvez por distração, provocada pelo conflito em que me encontrava, não controlei bem a direção e o carro encalhou num atoleiro. Tivemos de buscar socorro na vizinhança e a investigação foi interrompida, livrando-me por pouco de uma situação que certamente geraria muita confusão. Ela voltou muito frustrada para casa, ele chegara muito antes, obrigando-a assim a inventar uma desculpa para ter saído tão cedo num domingo, já que ela sempre lhe pede permissão para sair. Claro que ela disse que eu lhe pedira que me acompanhasse a um local onde eu pretendia ir, e que ela não teve como negar o meu-pedido...

encimada por uma pomba de prata, e um recipiente, também de prata, finalmente ornamentado: a coroa do Divino, para receber os donativos. Ver ANEXO 04, documentário fotográfico do Campeche.

(39)

Parece que ele engoliu as suas desculpas.

Desdobramentos da balbúrdia de identidades apareciam também quando a própria pesquisa oscilava e pendia para a clínica33, cujo exercício evitei assumir durante o trabalho de campo, mas que, com alguma freqüência, me jogou a posições mais apropriadas a uma profissional da velha tradição de médica da família e de conselheira familiar. Outras situações já me levaram a assumir simplesmente o espaço próprio das amizades, muito embora fosse

tempo de trabalhar.

Ainda na elaboração do projeto, uma certa inibição tomou conta da aprendiz de antropóloga: imaginei-me constrangida se começasse por esmiuçar redes sociais- que poderiam me levar diretamente às pacientes e, mais constrangida ainda, chegando às suas casas para indagar de uma entidade tão fluida quanto os nervos e, por causa deles, ir4ogo pedindo que me expusessem sua intimidade!

Então, o hábito epidemiológico34 se impôs e planejei pedir passagem por intermédio de uma enquete (ANEXO 05) sobre os medicamentos disponíveis em casa, percorrendo os domicílios dos nativos, apresentando-me como médica, perguntando se tinham medicamentos de qualquer tipo em casa, para que eram utilizados, quem prescrevera, etc. Achava que através desses dados obteria pistasde casos de nervosos e poderia puxar conversa sobre isso.

Seguindo minha própria proposta original, iniciei a enquete. Entretanto, ocorreu o que já me fora advertido a respeito dos perigos dessa via35, uma vez que o tema é muito

/

envolvente para uma sanitarista, e logo me vi tentada a aprofundar as questões a respeito. Só

33

Clínica é entendida aqui como a prática médica de examinar um paciente, estabelecer um diagnóstico e um prognóstico e prescrever um tratamento ou, ao menos, opinar sobre uma conduta já definida por outro médico.

34

Refiro-me aqui à utilização de questionários e enquetes quantitativas, tão comuns na pesquisa epidemiológica

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