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Casando em segredo: um estudo sobre os casamentos de consciência, Bispado do Rio de Janeiro, século XIX

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Casando em segredo: um estudo sobre os casamentos de

consciência, Bispado do Rio de Janeiro, século XIX

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Alessandra da Silva Silveira♣♣

Palavras-chave: casamento de consciência; concubinato, século XIX; Rio de Janeiro.

Resumo

O Bispado do Rio de Janeiro vivenciou na primeira metade do século XIX o chamado

Casamento de Consciência ou Casamento Oculto. Tal cerimônia era realizada sem os

procedimentos habituais, os Banhos, por casais que viviam em concubinato há vários anos. De tal modo, os casais faziam petições de casamento diretamente ao bispo para que seus casamentos fossem realizados em absoluto sigilo. O seu conteúdo era, portanto, ocultado dos paroquianos, já que a publicidade necessária aos proclamas não era cumprida. A fonte onde consta o Casamento de Consciência, um livro com vinte e um registros, embora pequena, pode revelar inúmeros traços que marcaram a família no Bispado do Rio de Janeiro, na primeira metade do século XIX. A origem geográfica, as motivações que teriam levado estes indivíduos a se casar, o tempo que envolvia estas relações, entre outros assuntos, serão tratados neste trabalho.

Trabalho apresentado no XIV Encontro Nacional de Estudos Populacionais, ABEP, realizado em

Caxambú-MG - Brasil, de 20-24 de Setembro de 2004.

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Casando em segredo: um estudo sobre os casamentos de

consciência, Bispado do Rio de Janeiro, século XIX

∗∗

Alessandra da Silva Silveira♣♣

O Bispado do Rio de Janeiro vivenciou, na primeira metade do século XIX, o chamado Casamento de Consciência ou Casamento Oculto. Realizado em segredo, neles os noivos se casavam sem as formalidades habituais. Os Banhos, processos pré-nupciais cuja função era verificar os dados dos nubentes como o nome, a filiação, o local de batismo, a freguesia onde haviam residido nos últimos seis meses para que pudessem ser considerados aptos ao matrimônio, não ocorriam no casamento de consciência. A ocultação residia justamente neste ponto. Os banhos deveriam ser públicos. O objetivo era evitar que as pessoas se casassem quando existissem entre elas algum tipo de impedimento canônico. Assim, a publicidade deste processo tornou-se necessária. Sob graves ameaças, os fregueses deveriam denunciar tais complicações durante este período. Apesar do segredo que envolviam estes casamentos, a Igreja os consideravam válidos. Diferentemente do casamento clandestino, o de consciência tinha validade perante a Igreja. O primeiro era realizado sem os banhos, testemunhas e sem petição ao bispo. Um pároco desprevenido era pego pelos noivos e praticamente obrigado a realizar a cerimônia. O segundo tipo, embora, realizado, sem os banhos habituais, contava com testemunhas, já que a ausência delas constituía motivo de anulação matrimonial.

Bons motivos tinham aqueles que se casavam secretamente. A própria compreensão dos termos casamento de consciência ou oculto está ligada à justificativa dada pelos nubentes. Eles omitiam um segredo que não deveria ser revelado: o fato de serem todos eles concubinos havia anos. Culturalmente comum, mas pouco querido pela Igreja, o concubinato era uma situação indesejável. Muitos casais assim viviam. Mas não queriam ser descobertos neste delito. Por razões que veremos adiante, em um dado momento de seus do ciclos de vida resolviam se casar. As justificativas morais e religiosas eram as mais usuais. Sob a alegação de um “despertar da consciência”, estes noivos acreditavam estar remediando possíveis transgressões à moral e à religião, representadas pelo concubinato em que viviam. Só o matrimônio cristão poderia lhes salvar de tantos males. Mas apesar destas justificativa

Os registros de casamentos de consciência estudados neste capítulo encontram-se em um livro específico para este ato. Talvez seja o único exemplar existente no Brasil.3 Dirigido ao Bispo, o seu conteúdo não deveria, em nenhuma hipótese, vir ao conhecimento público. Com livro de assentos próprio, o casamento oculto era registrado por um escrivão, um pároco de confiança do casal, normalmente. As circunstâncias em que o casamento estava sendo realizado eram sempre lembradas.

Foram poucos os registros desta natureza: apenas vinte e um. Realizados entre os anos de 1818 e 1852, em todos eles havia um elemento comum, que era a presença do concubinato entre os presentes. A análise da fonte nos permitiu pensar alguns valores que caracterizavam este tipo de matrimônio. Um deles estava ligado ao próprio desejo de manter em segredo o sacramento. Culturalmente, o casamento colocava o indivíduo em uma posição

Trabalho apresentado no XIV Encontro Nacional de Estudos Populacionais, ABEP, realizado em Caxambú-MG - Brasil, de 20-24 de Setembro de 2004.

Doutoranda em História Social, Departamento de História, IFCH -UNICAMP.

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de certo destaque na sociedade. Era através dele e por ele, que muitos negócios eram feitos e desfeitos. É possível que alguns casais que gozavam da fama, boa diga-se já, de casados não desejavam perder esta condição junto ao grupo social ao qual estavam inseridos. A força deste segredo era tal que os reverendos da Igreja em que costumavam frequentar, e até mesmo os próprios filhos desconheciam. Este foi o caso do português José Antônio Nunes e de Rosa Maria das Iluminações, que encontravam-se

“[...]concubinados há vinte e três anos com fama de casados [...]e que os filhos desconhecem o estado dos pais”.4

Construímos uma tipologia dos envolvidos em tais casamentos, apesar do pequeno número da amostra (21 casos). A origem geográfica dos nubentes foi a primeira delas. O local de batismo e a naturalidade dos indivíduos eram mencionados no registro. Separamos os noivos em duas categorias: os naturais, que eram originários de freguesias do Bispado do Rio de Janeiro; migrantes/imigrantes: originários de outros bispados da colônia ou de outros países (cf. quadro 1).

QUADRO 1

Origem geográfica dos nubentes, por local de batismo e sexo

Origem

geográfica Homens % Mulheres % Naturais M igrantes/Imigrante Não identificados 4 14 3 19.0 66.8 14.2 8 6 7 38.0 28.6 33.4 Total 21 100.0 21 100.0

Fonte: Livro de casamentos de consciência ou ocultos, 1818-1852, ACMRJ.

Dos 21 registros disponíveis, foi possível saber a origem para 18 do sexo masculino e 14 para o feminino (cf. quadro 1). Entre os homens predominavam o grupo formado pelos imigrantes/migrantes -14 casos (66.7%)- contra apenas 4 casos (19.0%) de nascidos na região. O desequilíbrio em termos de origem geográfica foi, contudo, menor entre as mulheres. Foram 8 (38.0%) casos de mulheres nativas e 6 (28.6%) de oriundas de fora do Bispado do Rio de Janeiro (cf. quadro 1).

Dentre os imigrantes, chamou a atenção a presença de franceses, italianos e de dois argentinos. O restante do grupo de estrangeiros era formado por portugueses, originários de Coimbra, do Porto, de Lisboa e da Ilha da Madeira. Como migrantes internos destacamos os que vinham da Bahia e de Pernambuco. Entre as mulheres destacaram-se, igualmente, as imigrantes portuguesas e a migrantes de regiões menos prósperas no século XIX, como Santa Catarina e Minas Gerais.

Os dados demográficos mostraram um desequilíbrio entre os casais de acordo com as suas origens geográficas. Este dado implicava na presença de um casal em que pelo menos

4

Livro de casamentos de consciência ou ocultos, 1818 -1852, Arquivo da Cúria Metropolitana do Rio de Janeiro (ACMRJ), p.42.

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um dos cônjuges era forasteiro. E este era, em geral, o homem. Foi o caso do francês Pedro Florentim Rambert, filho legítimo de Pedro Rambert e Dona Elizabeth Sehiel. Nascido em 1805, vivia concubinado há anos com Luísa Maria da Conceição que, como o concubino, era filha legítima de Leonardo Pereira de Azevedo Coutinho e de Maria Ignácia de São José. Representantes estatisticamente mais comuns da mesma situação foram os casais Anacleto José Pereira da Silva, português, concubinado com Dona Ana Francisca da Costa e Silva e Francisco Corrêa Vidigal, também português, sendo este de Coimbra, que vivia amancebado com Ana de Jesus Maria, natural da freguesia de São José, Rio de Janeiro.

Estes jovens imigrantes solteiros, se dirigiam às áreas coloniais, possivelmente, para melhorar as suas condições materiais de existência. Padrão de imigração semelhante ocorreu em Londres e Paris, nos séculos XVII e XVIII. Louis Henry afirmou que nas duas cidades a população mantinha-se às custas da migração. Tratavam-se de homens

[...]jovens e solteiros e que como na Inglaterra, não eram empurrados para a cidade por causa da fome endêmica ou de guerra, como iria acontecer mais tarde, mas que, ao contrário, tinham deixado o campo por livre iniciativa, para melhorarem a sua situação. (SENNETT, 2001:71-72).

Desligados de outras relações, estes jovens que vinham de áreas, relativamente, distantes dirigiam-se a Paris e a Londres. Nós não temos absoluta certeza se os imigrantes dos nossos dados chegaram ao Rio de Janeiro sozinhos. No entanto, trabalhos sobre a imigração portuguesa para as áreas coloniais mostraram um padrão semelhante ao anterior. Jovens portugueses deixavam a terra natal em busca de melhores condições de vida. Em geral, não tinham laços afetivos mais estreitos. Vale ressaltar que a presença de casados que se concubinavam ou se casavam pela segunda vez, mesmo quando o primeiro cônjuge ainda estava vivo, o que os tornavam bígamos, foi um elemento importante na história da imigração portuguesa para o oriente e para o Brasil.

No universo dos casamentos ocultos dois casos nos chamaram a atenção por fugirem à tendência anterior. Nas duas situações, ambos os cônjuges eram estrangeiros. O primeiro casal era formado pelos franceses Alexandre Felix de Montsserat e Angelique Etienne Rose. Eram originários da freguesia de Notre Dame, Provance. O segundo casal era formado pelos argentinos Anastácio d’Oca e Micaela Gonsales, ambos de Buenos Aires. O fato dos dois casais serem originários da mesma região pode significar que viviam em concubinato no seu país de origem. Em conjunto resolveram vir para o Brasil, o que demostra uma raridade em termos de imigração e migração no período.

A existência de um forasteiro ajuda a explicar, em parte, o concubinato longo e o casamento tardio destes casais. Estes justificavam a “extrema pobreza” para o fato de viverem amancebados há anos. Este foi o caso do Primeiro Tenente da Armada Nacional, Alexandre José Fernandes, natural de Diamantina, Minas Gerais. Concubinado com Bernardina Rosa Fernandes, natural do Rio de Janeiro, pediu autorização especial ao bispo para se casar com ela. Amancebados há vinte anos e pais de quatro filhos, justificaram que

[...]passando-se como casados na opinião da maior parte das pessoas, e como os oradores pelo seu estado de pobreza não tinham podido realizar o seu consórcio por falta de meios, cuja atenção tem eles tido muitas vezes achando-se porém agora o orador empregado no Arsenal de

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Marinha, tendo morada e serventias necessárias, e além disso com algum acréscimo no seu ordenado desejavam efetuar o seu consórcio.5

Pensando no ciclo de vida do casal, pode-se afirmar que eles tiveram uma trajetória marcada por uma ascensão social. Possivelmente, a sua inserção em um círculo social mais exigente, a Armada Nacional, onde o matrimônio era valorizado nas relações entre os seus pares, os tenha levado a formalizar a união de anos. Sem dúvida, tal relação era estável, mas o casamento representava uma certa distinção que o concubinato não conferia.

Não foi possível saber em que círculos sociais todos estes nubentes frequentavam. A hipótese de que tiveram uma trajetória pessoal e familiar marcada por dificuldades econômicas, mas que com a inserção em ocupações mais favoráveis foram vencidas é plausível e nos ajuda a explicar, em parte, o casamento tardio e secreto destes noivos. A preocupação em ocultar o estado concubinário foi comum a todos os registros. Alegavam que “viviam em forma de casados” e, talvez mesmo por isso, não poderiam comprometer uma imagem já consolidada em seus círculos sociais. O casal Antônio José Godinho da Cruz e Rita Maria da Conceição, por exemplo, não desejavam

“[...] que o seu pároco de Santa Rita soubesse, pois temem ser descobertos [quanto ao concubinato e ao casamento oculto[...]”.6

Segredo ainda maior guardavam o português José Antônio Nunes e a viúva Rosa Maria das Iluminações. Havia vinte e três anos concubinados, quando resolveram se casar. Nem mesmo os seus filhos conheciam o verdadeiro estado matrimonial dos pais.7

O adultério e a disparidade de religião foram duas outras razões alegadas para os longos concubinatos. Anacleto José Pereira da Silva, natural de Portugal, abandonou a mulher e veio para o Brasil. Contraiu matrimônio com Dona Ana Francisca da Costa e Silva, solteira, natural de Santa Catarina, ainda

“[...]durante o vínculo do primeiro[...]”.8

A mulher em Portugal, dona Francisca Matildes da Silva Paiva, foi julgada morta pelo marido, quando se casou em segundas núpcias, em 1831. Pelo menos foi o que ele alegou. O português alegou ter agido com “boa fé”, quando se casou com dona Ana Francisca. Não temos registro de como este caso chegou ao conhecimento das autoridades eclesiásticas. Uma denúncia é a provável resposta. Em todo o caso, a situação terminou de modo favorável para Anacleto. A Igreja considerou o seu delito como adultério. Escapou da acusação de cometer o terrível crime de bigamia, passível de prisão pelo Tribunal do Santo Ofício da Inquisição. Conseguiu que o seu segundo matrimônio fosse revalidado, em 1844, com a presença habitual de duas testemunhas e pôs fim a esta história.9

5

Livro de casamentos de consciência ou ocultos, Arquivo da Cúria Metropolitana do Rio de Janeiro, 1818-1852, (ACMRJ), p.42. 6 Idem, p.32. 7 Idem, p. 37. 8

O casamento de consciência de Anacleto José Pereira da Silva com Dona Ana Francisca da Costa e Silva ocorreu em 2 de novembro de 1844. Foram testemunhas o Ministro Manoel José de Siqueira Rocha e Domingos do Espírito Santo.

9

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A disparidade de religião, enquanto elemento definidor de um concubinato, ocorreu entre o italiano Carlos André Vedova, genovês de Capo Grosso, filho legítimo de Guido Domenico Vedova e Dona Elizabeth Vedova. Em 1851, fazia apenas dois anos que ele havia chegado ao Rio de Janeiro. Não sabemos há quanto tempo, mas já neste ano encontrava-se concubinado com ela. A católica Elizabeth, em 5 de Dezembro de 1851, é que tomou a iniciativa de pedir ao bispo um casamento oculto. Segundo ela, encontrava-se

“[...]grávida [e] desejava sair do estado pecaminoso em que tem vivido validando o seu consórcio com o orador a fim de legitimar a futura prole[...].”10

Ela justificou duas razões para o seu concubinato a

“[...]extrema pobreza” e o “impedimento cultus disparitas , em razão de ser ele orador protestante e ela oradora católica e romana [...].”11

O casal conseguiu o esperado casamento. As Constituições Primeiras do

Arcebispado da Bahia proibiam o casamento entre pessoas, cujos credos eram diferentes

proibiam o casamento entre um católico e um infiel. O obstáculo levou o casal a pedir dispensa da disparidade de culto para poder se casar.12

A maioria dos casais declarava os motivos pelos quais viviam em concubinato há anos. A preocupação em justificar o casamento tardio e oculto ocorreu em 16 casos (cf. quadro 2).

QUADRO 2

Razões alegadas para os casamentos de consciência ou ocultos

Razões No. %

Alegadas 16 76.1 Não Alegadas 5 23.9 Total 21 100.0

Fonte: Livro de casamentos de consciência ou ocultos, 1818-1852, ACMRJ.

Com base nas justificativas dos nubentes, criamos uma tipologia das motivações para o casamento oculto. As dividimos em quatro grandes grupos, a saber: 1) razões morais ou religiosas; 2)presença de doenças ou perigo de vida; 3)ausência de recursos para realização do matrimônio; 4)desejo de legitimar os filhos (cf.quadro 2A).

10

Livro de Casamentos de consciência ou ocultos, 1818-1852, ACMRJ, p.72v.

11

Idem, p. 72.

12

As Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia foram elaboradas no século XVIII e representaram as decisões do Concílio de Trento no Brasil.

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QUADRO 2 A

Tipologia das razões dos casamentos de consciência

Razão No. %

Religiosa/moral Doença/perigo de vida Falta de recursos para casar Desejo de legitimar os filhos Não Identificada 10 4 1 1 5 47.6 19.1 4.7 4.7 23.9 Total 21 100.0

Fonte: Livro de casamentos de consciência ou ocultos, 1818-1852, ACMRJ.

Os argumentos morais ou religiosos foram os mais comuns, totalizando 10 (47.6%) dos registros (cf. quadro2 A). Nestes casos, a associação entre viver em pecado e em concubinato eram habituais. Esta postura não nos espantou. Artifício retórico ou real arrependimento, estes concubinos precisavam convencer através das palavras o Bispo das suas reais intenções em mudar de estado matrimonial. Assim, a confissão dos pecados os ajudaria a expiar as culpas e alcançar o perdão da autoridade eclesiástica. Tomemos um exemplo. Em 17 de novembro de 1849, Eloy José Alves, concubinado com Fortunata Maria Angelina, afirmou em sua petição que o casamento de consciência o qual se candidatava representava uma saída para

“[...]se desviar do caminho pecaminoso, por isso procura o seu pastor para o encaminhar seguro com as doutrinas de Jesus Cristo.”13

O fato de “viver conforme a religião” foi outra justificativa utilizada pelos concubinos. Este era o caso do sargento Guilherme Francisco Cláudio, lotado na Fortaleza de São João da Barra, concubinado com Felismina Maria do Espírito Santo. Em 16 de setembro de 1852 dirigiu uma petição ao bispo afirmando que ele e a concubina

[...]têm vivido amancebados já há anos [...]e de quem já teve filhos, e que deseja pelo futuro viver conforme manda a Santa Religião Católica Romana, mas como passa em público por ser legitimamente casado, e não querendo manchar o seu crédito, nem o de sua companheira por isso pede a Vossa Excelência Reverendíssima haja por bem autorizar o Reverendo Capelão da dita Fortaleza a receber os suplicantes em casamento de consciência[...] .14

13

Livro de Casamentos de consciência ou ocultos, 1818-1852, ACMRJ, p. 60.

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Mas foram o medo da punição divina e o desencargo da consciência as razões mais frequentes usadas por aqueles que recorriam ao casamento de consciência. Católicos arrependidos de anos de “fornicação” temiam comprometer a salvação de suas almas. Tomemos mais outro exemplo. O já citado Anastácio Montes d’Oca, argentino, natural de Buenos Aires, concubinado a também argentina, Michaela Gonsales, afirmou em sua petição, em 5 de Dezembro de 1850, que

“[...]para tranquilizar a sua consciência e não mais arriscar a sua salvação desejava unir-se em legítimo matrimônio com a sobredita Michaela.”15

Se nos exemplos anteriores a ligação de concubinato e pecado foi apenas mencionada, neste punha-se em risco crenças profundas da catolicidade. O medo do inferno acabava aparecendo nestas situações. Não sabemos se realmente tinham internalizado este temor. Mas importa é que estes sujeitos souberam usar os mecanismos culturais, aos quais estavam expostos, para convencer a autoridade competente o quanto estavam arrependidos dos seus pecados.

O fato de encontrar-se “em perigo de vida” também justificava o casamento de consciência. Este foi o caso de 4 (19.1%) casais em questão. Estes indivíduos estavam acometidos por uma doença grave, que os ameaçava de morte. Francisco Coelho de Aguiar e Dona Mariana Joaquina são exemplo disto. Em 15 de Março de 1849, dirigiram uma petição ao Bispo. Nela, Francisco afirmou que

[...]era natural da Ilha Terceira, e morador nesta Corte na freguesia de Santa Rita, desde a menor idade em que veio da pátria, achando-se hoje com avançada idade de sessenta e seis anos, que ele vive há perto de trinta anos em estado de pecado com Dona Mariana Joaquina da Conceição, natural da Ilha de São Miguel, donde veio também em menor idade de cuja mulher tem um filho, além de outros falecidos e como tem passado ao conhecimento de várias pessoas por casado não tem tratado de o fazer do direito; e como presentemente se acham tanto o suplicante como a suplicada em estado de grave enfermidade, desenganados pelos médicos, desejando neste caso, tranquilizar as suas consciências e esperando a morte a cada momento, por isso [...].16

Só uma cultura, cujos elementos eram assustadores para os homens e mulheres imersos nela, uma vez que a possibilidade da “não salvação da alma” fazia parte dela, justificaria a mudança deste estado conjugal. O corpo doente, a idade avançada para os padrões da época e o medo da proximidade da morte, principalmente, os levavam a legitimar a relação marital. Habilmente explorada pelo clero e temida pela população, este temor serviu como limite para a mudança do estado matrimonial. Conseguiram se casar em 23 de Março de 1849. 15 Idem, p.71. 16 Idem, p.56.

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A possibilidade da morte, representada pela doença grave, levava o indivíduo a se preocupar inclusive com o destino e com a herança da prole ilegítima.17 Manoel Antônio de Souza e sua concubina, a portuguesa Guilhermina Cândida de Jesus, de trinta e dois anos, ilustram esta afirmação. Pai de quatro filhos, Manoel alegou, em 23 de Março de 1849, em petição dirigida ao bispo que

“[...]quer casar-se com a mesma senhora, já por ter vivido sempre com ela, como tal, e mesmo par ligar interesses de seus inocentes filhos [...] [grifo nosso]”.18

No período colonial, o casamento dos pais implicava na legitimação dos filhos. Embora incertos, estes interesses, provavelmente, estavam ligados à sucessão patrimonial. Sobre esta questão Eliane Cristina Lopes, em pesquisa sobre a ilegitimidade em São Paulo colonial, mostrou que

[...]os legados, por sua vez, possuíam diferenciações segundo as Ordenações. Havia assim os bens comuns, conseguidos pelo esforço e trabalho individual e as terras cedidas pela Coroa, os chamados feudos ou morgados. A natureza da filiação, entretanto, determinava a facilidade ou as restrições impostas ao alcance desses tipos [...]” (LOPES, 1998: 226).

O direito português, representado pelo Código Filipino, previa que o filho natural participasse da herança paterna. Filhos espúrios, ou seja, adúlteros, incestuosos ou sacrílegos, tinham outros obstáculos a vencer quando o assunto era candidatar-se à herança paterna. O problema não se limitava a isto. Em uma sociedade profundamente hierarquizada como a portuguesa e a colonial, o mesmo problema era tratado de forma diferente para diferentes pessoas. A condição social e jurídica dos envolvidos era um dos elementos definidores do acesso, mais ou menos fácil, à herança paterna. Filhos de “homens sem condição”, os peões, tinham, via de regra, mais facilidade para obter a herança. Legitimados pelo casamento, como foi o caso dos filhos de Manoel Antônio e Guilhermina Cândida, tinham mais obstáculos. Os espúrios e os filhos de nobres e outras categorias, foram os que mais tiveram problemas neste sentido. Mas, no geral, os ilegítimos tinham acesso ao patrimônio dos pais, fosse pelo casamento destes, fosse por um processo judicial.

A prevenção de futuras brigas entre os herdeiros legítimos e legitimados também levava os pais a se casarem ou legalizarem a sua situação perante a justiça. Rosa Maria da Iluminações estava concubinada com Antônio Nunes há vinte e três anos, em 1745, quando o casal resolveu se casar. Rosa Maria, porém, era viúva. Com Duarte Cláudio, o falecido marido, teve um filho, que acabou criado pelo concubino. Tudo estaria perfeito se Rosa Maria não tivesse tido mais três filhos com Antônio Nunes. Segundo a sua petição ao bispo, a publicidade do casamento lhes traria danos, tanto morais, quanto familiares, pois

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[...]desde que se juntaram em concubinato [pois]tiveram sempre como casados e reconhecidos por todas as autoridades e na sociedade até onde tem chegado e por isso ocorria infâmia ao suplicante se o seu casamento fosse feito com todas as solenidades [...] e os três filhos ignoram o estado dos pais [...].19

Nem os filhos, nem o grupo social o qual estavam inseridos conheciam o verdadeiro estado conjugal dos dois. Apenas o reverendo Manoel Martins conhecia o problema. Por isto, foi designado por Antônio Nunes para realizar o seu matrimônio com toda a discrição necessária.

As razões morais e religiosas tinham um grande peso na decisão de se casar secretamente. Mas não deveriam ser as únicas. Como vimos, o cuidado com os interesses dos filhos pesava nestas circunstâncias. A história de Rosa Maria e Antônio Nunes pode exemplificar esta situação. Infelizmente, não dispomos de informações sobre a vida material deles, mas algumas hipóteses nos ajudaram a entender melhor esta história. Rosa Maria já tinha um filho legítimo quando se concubinou com Antônio Nunes. Provavelmente, enquanto meeira do casal, trouxe para a nova relação os bens deixados pelo falecido marido. Nem sempre os filhos recebiam a parte que lhes cabia na herança. Os menores, sempre tutelados, precisavam alcançar a idade de vinte e cinco anos, quando se dava a maioridade civil, para terem o direito à herança paterna. A emancipação e o casamento anterior a esta idade acabavam com este problema. Se isto não ocorresse, os bens ficavam sob a custódia de um tutor, nem sempre a mãe, exceto quando o pai assim o determinava por escrito.20 Estes fatos não nos parecem impossíveis de terem ocorrido nesta história. Rosa Maria pode ter levado os bens a que tinha direito como meeira do casal para a constituição de uma nova família. Com o passar dos anos, esta herança teria se diluído na criação de novos filhos e provimento da família. Se o concubinato fosse divulgado por ela, principalmente pelo filho primogênito, a situação do casal poderia se complicar. O que estava em jogo não era só a “infâmia”, a que seriam subjugados se flagrados no crime, mas um padrão econômico conseguido, em parte, graças à herança de um membro da família. Conseguíamos visualizar melhor esta possibilidade com uma base empírica um pouco maior, o que torna-se difícil em um artigo. De qualquer modo, concluímos que o casamento, neste caso, teve a função de legitimar os filhos e colocá-los em igualdade jurídica. Pais prevenidos evitavam discussões futuras entre os filhos.

O desejo de garantir o sobrenome ao filho ilegítimo foi outra razão alegada por um dos casamentos de consciência. O português Manuel Rabelo e sua concubina, Jacinta Maria de Lemos, natural da Bahia ilustram este caso. Concubinos há dezesseis anos e pais de dez filhos, quando resolveram se casar . Viviam na freguesia da Candelária e nesta igreja batizaram nove dos dez filhos; o caçula, ainda estava por batizar, na ocasião do casamento. Manoel parecia temer os rigores das leis divinas. Segundo a petição, realizada em 29 de Agosto de 1850, Manuel Rabelo afirma que

“[...]querendo tirar-se do pecado, e dar um nome àqueles ditos seus filhos, deseja casar-se com a dita Jacinta Maria de Lemos[...]”.21

19

Idem, p.37.

20

Tentamos localizar no Arquivo Nacional (RJ) o inventário post-mortem e o testamento do marido de Rosa M aria. Infelizmente, não obtivemos sucesso. Os documentos nos ajudariam concluir com mais precisão esta história.

21

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Os escassos elementos presentes neste registro dificultam uma conclusão mais profunda. Possivelmente o desejo de legitimar o filhos, o que lhes garantiria o uso do sobrenome paterno, tenha influenciado na decisão de casarem. Outra hipótese nos ocorreu. Raramente, os padres anotavam o nome do pai nos assentos de batismo ilegítimos. Às vezes, nem o da mãe era registrado. A Igreja os denominavam de “filhos de pais incógnitos”, embora, os padres, os padrinhos e a comunidade local soubessem quem eram eles. A reforma do assento de batismo ocorria quando os pais se casavam. Na condição de legitimados, os padres retificavam o registro. O nome dos pais era incluído e, sobretudo, a condição de filho exposto ou natural desaparecia.

A discrição do casamento de consciência requeria uma estrutura física para que isto de fato ocorresse. Assim, a existência de um local específico para realização da cerimônia tornou-se preocupação entre os envolvidos. Uma igreja, um oratório particular ou a própria casa dos noivos foram locais mencionados para este fim. No quadro 3 pode-se verificar que 6 casais (28.6%) desejaram um local reservado; 3 (14.2%), eram indiferentes ao local, pois citaram a igreja que frequentavam com um possível local para a realização da cerimônia (cf. quadro 3). Devemos tomar cuidado com estes números, pois na grande maioria – 12 (57.2)- dos registros não houve menção sobre o possível local do casamento. Os outros registros, embora sejam poucos, oferecem pistas sobre a importância da escolha do local da cerimônia de casamento de consciência.

QUADRO 3

Local da cerimônia segundo a petição do nubente

Local da cerimônia No. % Oratório particular Igreja local Não Identificado 6 3 12 28.6 14.2 57.2 Total 21 100.0

Fonte: Livro de casamentos de co nsciência ou ocultos, 1818-1852, ACMRJ.

Se o objetivo era manter em sigilo o casamento, um local desconhecido do público se fazia necessário. O caso de Eloy José Alves e Fortunata Maria Angelina exemplifica este caso. Em 26 de Outubro de 1849 estavam concubinados há vinte e quatro anos. Na petição dirigida ao bispo, que só foi transcrita para o livro de assentos em 07 de novembro de 1849, Eloy afirmou que o casal sofreria

“[...]total descrédito em sua reputação porque todos o tem como casado com a suplicante há muito tempo”.22

22

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A perda da honra foi o principal motivo associado à exigência de um local reservado para o casamento. Em uma sociedade em que, culturalmente, o casamento era valorizado, expor outras formas de convívio marital, implicava em danos à reputação. Eloy e Fortunata Maria obtiveram sucesso quanto ao seu pedido e casaram-se em 17 de Novembro de 1849, às oito horas da manhã, na Matriz de Nossa Senhora da Ajuda da Ilha do Governador.23

O isolamento da cerimônia não implicava, contudo, na proibição de todos os olhares. Em 22 de Abril de 1845, Francisco Antônio de Medeiros, exposto, batizado na Freguesia de Irajá e Marciana Bernarda de Menezes, filha legítima do Capitão Manoel Joaquim de Menezes e de Dona Bernarda Maria da Conceição, por exemplo, suplicaram ao Reverendíssimo Bispo, que este permitisse que o seu casamento fosse realizado em um oratório particular. Pediram, então, um:

“[...]sacerdote de sua confiança para assistir o matrimônio em oratório aprovado na sobredita freguesia de Irajá onde temporariamente assistem”.24

A solicitação foi aceita. O cônego José Antônio da Silva Chaves os casou na residência de um grande senhor da freguesia de Irajá , local de origem do noivo, como consta abaixo:

[...]aos dezesseis dias do mês de janeiro de mil oitocentos e quarenta e cinco às cinco horas da tarde na casa do capitão Wenceslau Cordovil de Siqueira Mello, subdelegado desta freguesia de Nossa Senhora da Apresentação de Irajá, perante ele e o tenente coronel Francisco Xavier do Amaral, testemunhos abaixo assinados celebrei o matrimônio contraído em face da Igreja por palavras presentes pelos contraentes Francisco Antônio de Medeiros, exposto na casa do capitão José Antônio de Medeiros, natural e batizado nesta freguesia de Irajá e dona Marciana Bernardina de Menezes[...].25

O caso anterior permite concluir que havia possibilidade realizar o matrimônio longe dos olhares e mexericos dos vizinhos. Só esteve presente, quem de fato poderia estar. Poucos amigos testemunharam o ato, o que possibilitou ao casal resguardar a honra e a posição de casados já conquistados.

Vale ressaltar alguns elementos do exemplo anterior. O noivo era exposto na casa de um capitão e se relacionava com pessoas influentes do local. É possível que a discrição do casamento, representada pela cerimônia em oratório particular, fosse privilégio de poucos concubinos. A posse de uma capela em casa estava condicionada a uma grande propriedade. Possivelmente, o casal não estava neste grupo social, mas enquanto exposto na casa de um capitão, poderia ser agregado a uma destas famílias. Ter relações com pessoas influentes e poderosas economicamente possibilitava, de fato, a discrição que o casamento de consciência exigia. 23 Idem, p.60. 24 Idem, p.34. 25 Idem, p.34.

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Se o sigilo total sobre o casamento de consciência estava condicionado à posição social e às relações do indivíduo, é possível que concubinos menos favorecidos, não tivessem a privacidade respeitada. O caso de Alexandre José Fernandes e Bernardina Rosa Fernandes, concubinos há vinte anos, comprova a nossa hipótese. Mais modestos que o casal anterior, na petição que dirigiram ao Bispo, pediram que a cerimônia fosse realizada em qualquer oratório particular. Pouco exigentes, rogaram ao bispo que qualquer

[...]reverendo sacerdote, que for do agrado de sua excelência para assistir, e os receber em matrimônio, em qualquer capela ou oratório aprovado, ainda depois da Ave-Maria, atendendo não haver meios para apresentarem, principalmente, a oradora decentemente de dia, e lavrando-se o aslavrando-sento no livro dos casamentos de consciência na comarca eclesiástica[...].26

As condições materiais do casal devem ter influenciado no seu pedido. A cerimônia de casamento era, em geral, cara para boa parte da população. Embora não disponhamos de informações a respeito, o casamento de consciência fora de um recinto oficia, deveria ser ainda mais. A ausência de uma “vestimenta adequada” à cerimônia, ilustra o nosso argumento.

A escolha do reverendo que realizaria o matrimônio foi outra característica deste tipo de cerimônia. Em 7 (33.3%) casos, localizamos este tipo de pedido ao bispo (cf. quadro 4). Em alguns exemplos, o padre local era a única pessoa que conhecia o estado do casal. Os relatos sugerem que os padres acabavam participando do processo matrimonial. Nomeados como pessoas de confiança pelos nubentes, estes religiosos estavam aptos a realizar tal tarefa.

QUADRO 4

Pedido de reverendo nos casamentos de consciência

Tipo de reverendo de acordo com o pedido dos nubentes

No. % Reverendo particular Qualquer padre Não Identificado 7 1 13 33.3 4.7 62.0 Total 21 100

Fonte: Fonte: Livro de casamentos de consciência ou ocultos, 1818-1852, ACMRJ.

Em geral, não era o pároco da freguesia em que os nubentes moravam o escolhido para fazer o casamento. Desfrutando da fama de casados, estes casais escondiam o fato até mesmo deles. O medo do flagrante e da censura prevalecia nestes casos. E este foi o de Antônio Godinho da Cruz e de Maria da Conceição Teixeira. Em 3 de Fevereiro de 1845, escreveram ao bispo afirmando que:

26

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[...]como os suplicantes temem serem descobertos, se o seu Reverendíssimo pároco for quem os [...]ajunte em Matrimônio, suplicam a graça[...] de conceder licença ao Reverendo Manoel Martins Ferreira para os unir em Matrimônio[...].27

Fazer o assento do matrimônio de consciência em livro próprio constituiu uma preocupação para alguns nubentes. Se a discrição existiu quanto aos processos habituais, o local da cerimônia e o reverendo que a realizaria, a anotação do registro deveria seguir as mesmas regras. Este foi o caso de Manoel Francisco de Aguiar e Joana Maria da Conceição. Em 04 de Agosto de 1847, na petição que dirigiram ao bispo, disseram que

[...]pelo estado de mancebia em que vivem há anos temem a morte, que é infalível a todos e as consequências da sua vida pecaminosa e para assegurarem a salvação de suas almas querem casar um com o outro, mas por motivos justíssimos os quais o suplicante vocalmente expendeu a Vossa Excelência, desejam ser recebidos na forma de consciência, e que o assento de deu consórcio fosse lançado no livro para isso destinado na Câmara Eclesiástica do Bispado, por isso com humilde respeito pedem a Vossa Excelência do Bispado, se digne autorizar um Reverendo sacerdote desta corte para assistir ao Matrimônio dos suplicantes, que se propões a jurarem não haver entre eles impedimento algum que obste a se casarem valida e licitamente[...][grifo nosso].28

Enfim, o caso ilustra o quanto a preocupação com o sigilo era um elemento importante para a compreensão destes casamentos. A publicidade revelaria um fato que ninguém desejava: o concubinato em que viviam. Quebrar o seu sigilo implicava na perda da honra conquistada graças a um suposto casamento e em perseguições vindas da própria Igreja, através, por exemplo das visitas episcopais.29

Os casamentos de consciência permitem resgatar um elemento importante do concubinato: a sua estabilidade. Nos próximos capítulos retomaremos esta questão. No atual ele nos importa porque todos estes concubinatos acabaram se transformando em uniões legítimas, situações que raramente encontrávamos.

O tempo em que viviam concubinados foi nomeado pela metade dos casais (cf. quadro 5). Nenhum deles teve menos do que 8 anos de convivência marital (cf. quadro 5). Em termos gerais, as relações eram bastante duradouras. Havia, inclusive, casos de 30 anos de convívio, o que contraria a imagem do concubinato como fortuito e instável no tempo (cf. quadro 5). 27 Idem, p.32. 28 Idem, p.48. 29

Em uma pesquisa em andamento , tese de doutorado, estamos trabalhando com uma fonte, as visitas pastorais, ainda pouco exploradas no Brasil. Esta documentação mostra o esforço da Igreja, tanto no período colonial, quanto no século XIX, de disciplinar o clero e os fiéis. Comportamentos desviantes como o concubinato tiveram um peso fundamental na efetivação destas visitas. Casais concubinados sofriam as perseguições e punições cabíveis nestes casos.

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QUADRO 5

Duração, em anos, das relações concubinárias, visto pelo livro de casamento de consciência

Duração

(em anos) No. %

30 24 23 20 17 16 9 8 Não Identificado 1 1 2 1 1 1 2 12 4.7 4.7 9.6 4.7 4.7 4.7 9.6 57.3 Total 21 100.0

Fonte: Livro de casamentos de consciência ou ocultos, 1818-1852, ACMRJ.

Um dado interessante nos chamou a atenção no casamento de consciência: a averiguação das informações sobre os nubentes. Nos matrimônios convencionais havia, como já dissemos, os processos de Banhos. Elementos da vida dos noivos, tais como a filiação, o local de batismo, o de moradia, as idades e a existência de impedimentos eram anotados nele. No casamento de consciência isto não ocorria. Nem por isso a Igreja se eximia de averiguar a vida do nubente. Só que tudo era feito de uma forma sigilosa. A finalidade era sempre a mesma: evitar um matrimônio inválido. A diferença entre os dois processos dizia respeito à publicidade e o tempo para a averiguação. Nos banhos convencionais, imperava a morosidade e a publicidade; no casamento de consciência, ao contrário, a rapidez e o segredo. Nestes eram gastos, em média, só dez dias.30

Das petições de casamento de consciência nos interessou um aspecto especial: a filiação dos nubentes. O dado indica a legitimidade deles. As categorias “legítimo” e “ilegítimo”, comuns em assentos paroquiais, estiveram presentes. Quase a metade dos nubentes era legítima - 47.7 dos homens e 52.3% das mulheres- (cf. quadro 6). Nenhum deles foi anotado como ilegítimo. Dois noivos (9.5% dos homens) eram expostos. Ambos foram criados por pessoas casadas (cf. quadro 6).

30

O registro de casamento de Eloy José Alves e de Fortunata Severina Maria Angélica exemplifica esta situação. Fizeram o requerimento ao Bispo em 26 de outubro de 1849, mas oficialmente só em 7 de novembro de 1849 é que o pedido foi trasladado para o livro de Casamento de Consciência. Casaram-se dez dias depois, 17 de novembro do mesmo ano.

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QUADRO 6

Legitimidade dos nubentes segundo os seus batismos

Legitimidade segundo

o batismo Homens % Mulheres % Legítimo Ilegítimo Exposto Não Identificado 10 - 2 9 47.7 - 9.5 42.8 11 - - 10 52.3 - - 47.7 Total 21 100.0 21 100.0

Fonte: Fonte: Livro de casamentos de consciência ou ocultos, 1818-1852, ACMRJ.

É possível que a decisão de se casar, depois de anos de concubinato, estivesse ligada ao resgate de uma tradição familiar: a valorização do casamento. Que os limites econômicos e sociais tenham influenciado a longa permanência do concubinato entre os nubentes, é situação que ninguém duvida. Mas que o modelo familiar, representado pelo matrimônio legítimo, também tenha exercido uma pressão para estes casais, é uma situação que podemos pensar. Relações maritais, que não fossem as do matrimônio, eram indesejáveis. Dentro de um contexto cultural, em se valorizava o sacramento do matrimônio, deixar o estado de concubino e passar para o de casado, parecia ser uma boa opção. Estas regras funcionavam da mesma forma na família de origem. Casar-se significava estar de acordo com a família a qual haviam se originado.

A estabilidade dos concubinatos como verificamos anteriormente, corrobora a nossa hipótese. O padrão familiar representado pelo casamento legítimo, pela estabilidade da relação, pela presença de filhos, pelo compartilhamento de uma casa, acabava sendo imitado. As relações eram tão consolidadas e este padrão tão desejado, que os próprios nubentes temiam “perder a fama de casados” a qual haviam conquistado.

Conclusão

A mudança da natureza destas relações, de concubinárias à sacramentadas, deve ser compreendida, inclusive, dentro de um contexto social mais amplo. A melhoria das condições materiais, a influência exercida pelos padrões da família de origem e do grupo de convívio, cujo matrimônio representava um sinal de distinção social, as questões culturais representadas pelo anseio da salvação da alma e estar de acordo com as normas religiosas, contribuíram para a transformação do concubinato em um casamento. De tal modo, afirmamos que o matrimônio de consciência estava ligado a dois processos que se imbricavam: legitimar um casamento de fato e celebrar um processo de ascensão social, cujo matrimônio legítimo era um dos seus símbolos.

Bibliografia

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Referências

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