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Crítica textual e representação dramática

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Academic year: 2021

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Universidade de Lisboa

Faculdade de Letras

Crítica Textual e Representação Dramática

Marta Eveleen Swan Antunes Nogueira

Dissertação

Mestrado em Linguística

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Universidade de Lisboa

Faculdade de Letras

Crítica Textual e Representação Dramática

Marta Eveleen Swan Antunes Nogueira

Dissertação orientada pelo Prof. Doutor João Dionísio

Mestrado em Linguística

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Resumo

O objectivo desta dissertação é fazer uma reflexão teórica e prática sobre uma possível relação entre a Crítica Textual e a representação dramática. Apesar de esta actividade, de carácter efémero e transitório, não ser um objecto comum da Crítica Textual, a percepção da natureza e importância do produto textual dela resultante pode contribuir para mudar o seu estatuto perante disciplinas filológicas. O texto dramático, registado num suporte material fixo, é transformado pelo actor num “texto representado” registado num suporte ao mesmo tempo material e imaterial, o seu corpo e emoções. Este novo texto, a sua tradução e concretização do que é sugerido pelo texto-fonte, é a etapa final de um processo criativo que se inicia na mente do autor e sujeita o texto dramático a transformações, adaptações e evoluções pela mão de diversos participantes. O texto produzido pelo actor poderá assumir, assim, uma importância idêntica à do texto dramático de onde provém ou até ter um impacto mais forte do que este último.

A legitimidade da abordagem da representação dramática pela Crítica Textual foi avaliada através da exploração dos conceitos de “texto” e “representação dramática”, bem como da consideração de traços de certas escolas ou correntes da Crítica Textual que pareceram adequadas à abordagem aqui defendida. Em seguida propôs-se um modelo teórico e prático, baseado na reflexão anterior, e que foi testado com um exemplo real, a adaptação do texto dramático Um Eléctrico Chamado Desejo, do dramaturgo Tennessee Williams, pelo encenador e realizador Elia Kazan, com o actor Marlon Brando.

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Dados os resultados obtidos, sugere-se que o “texto representado” possa ser considerado uma área de estudo especializada digna da atenção da Crítica Textual, nos termos em que foi exposta neste trabalho. A consideração de um texto em termos mais latos do que os habitualmente levados em conta pela Crítica Textual tradicional poderá abrir o seu campo de estudo a outras entidades até agora não contempladas. O texto produzido pelo actor poderá ser uma delas.

Palavras-Chave: crítica textual, texto, representação, representação dramática, actor

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Abstract

The aim of this dissertation is to offer a theoretical and practical reflexion on a possible relationship between the subject of Textual Criticism and dramatic acting. Although this activity, because of its ephemeral and transient nature, is not a common object of interest of Textual Criticism, the perception of the nature and importance of the textual product resulting from it may contribute to change its status within filological fields of study. The dramatic script, registered on a fixed and physical document, is transformed by the actor into an “acted text” registered both in a physical and intangible way, his or her body and emotions. This new text, its translation and substantiation of what is suggested by the source-text, is the final stage in a creative process which begins inside the mind of the author and subjects the dramatic text to transformations, adaptations and developments carried out by several players. The text produced by the actor may, thus, assume an identical value to that of the dramatic script from which it developed, or even produce a higher impact.

The legitimacy relating on the approach to dramatic acting by Textual Criticism was evaluated through the analysis of the concepts of “text” and “dramatic acting”, as well as through the consideration of several principles postulated by certain schools of thought stemming from Textual Criticism that support the approach explored in this work. Following this, we proposed a theoretical and practical model, based on that reflection, which was tested using a case study, the adaptation of the dramatic script of A Streetcar Named Desire, written by playwright

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Tennessee Williams and adapted to the stage and film by Elia Kazan, with actor Marlon Brando.

According to the results obtained, it is suggested that the “acted text” may be considered a specialized field deserving the attention of Textual Criticism, in the terms in which it was explored in this dissertation. The consideration of a text in broader terms than those by which traditional Textual Criticism usually addresses any textual entity may broaden the field of study of this subject to other recordable forms ignored so far. The text produced by the actor may be one of them.

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Agradecimentos

Foi uma viagem empolgante, às vezes surreal, quase sempre divertida, sempre trabalhosa e de certeza que valeu a pena.

A todos os professores do Mestrado de Linguística do ano lectivo de 2010-2011, com quem aprendi tantas coisas novas e interessantes: Prof.ª Doutora Amália Mendes, Prof.ª Doutora Iris Hendrickx, Prof.ª Doutora Rita Marquilhas, Prof.ª Doutora Sónia Frota, Prof. Doutor Fernando Martins, Prof. Doutor Ivo Castro, Prof. Doutor João Dionísio e Prof. Doutor Michel Généreux.

A todos os meus colegas de Mestrado, muito especialmente à Beatriz, à Carla, à Carlota, à Isabel, à Maria Bela, à Sílvia e à Wanessa, pela sua alegria, simpatia, apoio e cumplicidade. Foi bom estar entre as meninas.

Ao meu irmão Filipe, por toda a paciência e por toda a paciência.

À minha mãe Aileen, por todo o amor, bondade, alegria, generosidade e sacrifício. I will always miss you. Hasta luego.

Ao meu orientador, Prof. João Dionísio, por todo o apoio, paciência, experiência, sabedoria e sentido de humor. Sem ele, não teria conseguido. Agradeço-lhe ter-me apoiado nesta minha pequena loucura.

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Por último, dedico esta tese a todos os actores, mas especialmente ao genial Marlon Brando. Tenho a certeza de que seria o primeiro a admoestar-me por estar a perder tempo com o que ele próprio considerava a profissão mais inútil do mundo. Esta tese é a minha modesta forma de discordar de si, Senhor Brando. Obrigada por todos os momentos sublimes.

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Índice

Introdução ... 1

Capítulo I – Definição de Texto ... 9

Capítulo II – Definição de Representação Dramática ... 33

Capítulo III – Estado da Arte ... 75

Capítulo IV – Proposta ... 101

Conclusão ... 159

Anexos ... 165

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Introdução

To grasp the full significance of life is the actor's duty, to interpret it is his problem, and to express it his dedication.

Marlon Brando

A actividade de representação dramática tem sido ignorada ou evitada pela Crítica Textual por razões diversas. O trabalho de representação é por natureza efémero e por isso o seu registo é uma acção complexa, que apresenta dificuldades evidentes. Os objectivos desta tese são propor precisamente uma reflexão sobre a pertinência de a representação dramática ser objecto de estudo da Crítica Textual, bem como sugerir modos para a sua análise e fixação por esta disciplina.

A Crítica Textual dedica-se à edição e ao estudo da transmissão do texto, sendo o “texto” considerado nestes termos como fixo ou fixável num formato escrito. Tradicionalmente a Crítica Textual existe para restituir textos que não se encontram num estado fiável; ou para determinar uma configuração textual que corresponda à última intenção atestada do autor, quando sobrevivem documentos autógrafos; ou, ainda, através da Crítica Genética, para conhecer o processo criativo de uma obra escrita, documentando todas as fases da redacção desde os primeiros rascunhos até à sua forma final manuscrita ou editada.

Desde logo várias questões podem ser levantadas relativamente a alguns dos conceitos atrás referidos: o que é que pode ser considerado um texto?, que condições precisam de ser observadas para que se possa falar de um autor?, os documentos autógrafos são sempre apenas físicos ou materiais?, ou, o que

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acontece quando a forma textual escrita não é a principal forma que o autor escolheu para representar o seu “texto”, mas apenas uma escolha necessária por questões práticas?

Poderemos afirmar que o interesse do crítico textual recai sempre sobre textos que por uma razão ou outra assumiram uma determinada importância na sociedade. Neste sentido, será legítimo perguntar também se os únicos textos que podem assumir essa importância são os registados por escrito, ou se poderão existir outras possibilidades.

O texto produzido a partir do texto dramático que o precede, o texto produzido e representado por um actor em cena, inclui-se na reflexão sobre o significado de todos estes conceitos. A representação dramática tem um carácter criador e veicular que a torna um assunto de reflexão afim das questões que dizem respeito quer à edição, quer à transmissão de texto. Poderá, assim, o contributo que o actor oferece na manipulação do texto dramático ter um potencial para se constituir como objecto privilegiado da Crítica Textual? O actor não é um mero fantoche do texto, da personagem, do autor, ou sequer do encenador. Ele é um leitor e também um intérprete, que exerce uma actividade complexa e criativa, moldando o texto dramático e participando, por isso, na elaboração da identidade da obra em causa.

De que forma estas questões têm sido abordadas no âmbito da Crítica Textual? O Estado da Arte poderá lançar luz na procura de respostas fundamentadas às perguntas atrás expostas. Poderá também auxiliar na procura de direcções coerentes, a partir da reflexão sobre as tentativas precedentes de tratar esta matéria. Por isso, este trabalho dará conta do modo como a questão tem sido

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encarada por bibliografia relevante, quer no campo da crítica genética, quer no campo da crítica textual anglo-americana.

Como explicam Almuth Grésillon, Marie-Madeleine Mervant-Roux e Dominique Budor [Grésillon, Mervant-Roux & Budor, 2010: 5-18], no que toca à Crítica Genética francesa, o binómio Texto/Cena fixou-se durante a década de 1970, altura em que o estudo do trabalho teatral se definiu contra o estudo do texto. Na década de 1980 esse antagonismo foi suavizado e o objecto da Crítica Genética diversificou-se, adaptando-se a novos campos da criação, como a arquitectura, os escritos científicos, as artes plásticas ou o cinema. No entanto, os primeiros cruzamentos entre a metodologia genética e o teatro eram confusos, sem relação nítida entre si e com objectivos muito distintos – uns viam na genética uma forma de abordar a escrita dramática numa perspectiva dinâmica e pragmática, outros tentaram entender como “o texto” tornado ferramenta de trabalho se podia reintegrar no campo das artes do espectáculo, outros ainda adoptaram os princípios genéticos tradicionais à génese textual no teatro, continuando a considerar o texto como um elemento estático e distinto dos outros elementos. Finalmente na década de 1990 o binómio Teatro/Cena tornou-se objecto de abordagem crítica convergente. Formou-se então um movimento no interior da crítica genética que olhava o teatro como um objecto teoricamente apaixonante – à poesia e prosa, detentoras de um estatuto inquestionável, desejaram juntar também o drama e os seus objectos derivados. Estabeleceu-se que o verdadeiro elemento permanente não é o texto, mas sim o movimento entre a escrita e o gesto, antes, durante e após a representação. Passou a existir uma complementaridade entre uma primeira genética “à francesa” ou “europeia”, que explora os processos de criação cénica fortemente ancorados no

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estudo dos manuscritos, e uma outra genética desenvolvida sobretudo no Canadá e no mundo anglófono – os estudos performativos (ou “performance studies”), que se funda exclusivamente no estudo das representações sucessivas de uma peça.

Estabeleceram-se as principais dificuldades da investigação no âmbito dos estudos teatrais – como anotar e depois transmitir processos de criação que são ao mesmo tempo reservados e públicos?, como conservar práticas que implicam e engendram efeitos tão diferentes?, como registar uma arte tão efémera? Os primeiros estudos de génese teatral demonstraram que na análise dos primeiros traços correspondentes à fase de concepção titubeante de um projecto ainda apenas de autor, podem já surgir figuras de actores que coloriram a obra de forma

decisiva, as suas invenções inspirando também o encenador. Assiste-se ao

aparecimento de binómios (por ex., autor/encenador) e trinómios (por ex., autor/encenador/actores) artísticos mais ou menos estáveis, onde as decisões não são individualizadas. Todos esses episódios semi-colectivos ou interpessoais contribuem para a elaboração do espectáculo, por vezes para a escrita, reescrita ou adaptação do próprio texto. A efemeridade da representação teatral torna a sua arquivagem ainda mais necessária do que nas outras artes, mas também mais problemática. O Congresso da SIBMAS (Société internationale des bibliothèques et des musées des arts du spectacle) de 2008 concluiu que “Para reconstruir a experiência de uma representação que ocorreu, é fundamental utilizar captações do espectáculo, testemunhos orais e outras técnicas.”

Adicionalmente, de forma mais generalizada e não especificamente direccionada aos estudos teatrais, têm surgido algumas outras abordagens decorrentes da imagem socializada do autor, nomeadamernte as defendidas por

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Jerome McGann (1983) e D. F. McKenzie (1984). Estas, não tendo como objecto de estudo privilegiado a temática aqui explorada, ainda assim demonstram potencialidades de adaptação a uma área que se caracteriza precisamente por uma socialização evidente de métodos, processos e relações de funcionamento.

Esta tese tentará ainda proporum conjunto de parâmetros para uma possível análise e fixação do texto representado pelo actor, levando em conta as conclusões produzidas pela reflexão que a antecede. O modelo sugerido será testado passo a passo através da sua aplicação a um caso real e concreto, uma vez que este trabalho, além da parte histórico-doutrinal, contém outra parte que visa sugerir caminhos práticos concretizáveis.

A tese encontra-se organizada em quatro partes distintas. No Capítulo I serão abordadas as questões relativas ao conceito de “texto”. Chama-se a atenção para o facto de os textos não se esgotarem em artefactos culturais muito reconhecidos que costumam ser o objecto de interesse da Crítica Textual; de que poderão existir outros sujeitos, para além dos autores tradicionais, que produzem texto; de que podem existir também outros suportes não materiais sobreviventes ao autor; e de que nem sempre o formato escrito será a principal forma de inscrição de um texto. No Capítulo II serão analisados os significados de “representação” e “representação dramática”, bem como o conceito proposto de “texto representado”, as suas características e diferenças relativamente ao texto dramático. Tentar-se-á demonstrar que estes dois tipos de texto são diferentes, constituindo-se como etapas claramente distintas num processo criativo do qual participam por vezes outros agentes para além do seu autor inicial. No Capítulo III

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dar-se-á conta das correntes de estudo que podem servir de legitimação teórica deste trabalho, bem como de alguma bibliografia relevante sobre esta matéria. Tentar-se-á ainda perceber o peso que têm as abordagens especificamente direccionadas para o estudo da representação dramática nos estudos teatrais. Finalmente, no Capítulo IV será proposto o referido modelo de análise e fixação do texto produzido pelo actor, com base em alguns modelos já existentes e que foram adaptados para este efeito.

Este trabalho insere-se no âmbito do Mestrado em Linguística, de cujo plano curricular fez parte a disciplina de Crítica Textual.

A metodologia seguida constará da reflexão apoiada em bibliografia sobre o tema e os conceitos em discussão, recenseamento da produção bibliográfica dedicada ao objecto de reflexão, realização de síntese crítica, aplicação de modelos de análise da crítica textual à representação dramática e apuramento de vantagens e desvantagens desses mesmos modelos.

Apesar de serem utilizados diversos exemplos do trabalho de actores em produções teatrais de diferentes épocas, privilegiou-se um caso em particular, o da encenação e posterior adaptação cinematográfica da peça Um Eléctrico Chamado Desejo do dramaturgo norte-americano Tennessee Williams, encenada e posteriormente realizada por Elia Kazan e protagonizada em ambos os casos pelo actor Marlon Brando. Vários motivos estiveram na base desta escolha:

• o dramaturgo colaborou activamente quer na encenação da peça, quer

posteriormente na sua adaptação ao cinema;

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• esta peça e a sua adaptação cinematográfica constituiram marcos

importantes do ponto de vista cultural e histórico: um autor e um encenador colaboraram activamente um com o outro, quebrando a tradição habitual para a época em que o autor entregava um script finalizado para encenação e deixava de ter qualquer controlo sobre o seu texto; pela primeira vez actores formados na então recente escola do Método de Stanislavski participaram numa encenação e produção fílmica de grande difusão;

• a participação de um actor com o grau de talento, recursos e qualidades

inatas amplamente comprovados que Marlon Brando apresenta, nesta produção em particular, permite analisar de forma aprofundada e muito completa o nível de contribuição que o trabalho de um actor pode oferecer ao texto que representa.

Relativamente à política de citações utilizada neste trabalho, elas são por vezes reproduzidas na sua língua original e noutros casos optou-se pela tradução para o português. Esta decisão prendeu-se com dois motivos: sempre que possível, procurou manter-se a citação na língua original, de forma a reduzir ao máximo a perda de informação e/ou de sentido que por vezes ocorre na tradução de uma língua para outra; nos casos em que se optou pela tradução, isso deveu-se ao facto de a citação surgir inserida num parágrafo de língua portuguesa, o que, a manter-se a língua original, poderia provocar estranheza.

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Capítulo I

Definição de Texto

L'oeuvre se tient dans la main, le texte dans le langage. Roland Barthes, “Théorie du Texte”

A disciplina da Crítica Textual nasceu com o objectivo de restaurar, reconstruir ou preservar textos que por alguma razão foram ou são considerados importantes para a sociedade. Tradicionalmente os únicos textos que parecem preencher estes requisitos são textos registados num formato escrito. Isto prende-se por um lado com razões práticas – maior facilidade de estudo e fixação – e, por outro, com a manutenção de uma tendência enraizada na hegemonia que o poder textual tem gozado no mundo ocidental desde os primórdios do aparecimento da escrita. Mas poderão caber na definição de texto outros formatos diferentes do registo escrito? E poderão existir outros, para além dos autores tradicionais, capazes de produzir textos que justifiquem interesse da Crítica Textual? Estarão neste caso os dois objectos de estudo deste trabalho: o texto produzido em cena e o seu representante – o actor. E mesmo se conseguirmos responder afirmativamente a estas perguntas, teremos ainda de avaliar a pertinência da sua consideração pela Crítica Textual. Essa prende-se com questões que dizem respeito a conceitos como autoridade, variantes e intenção autoral.

Por que motivo um texto se torna importante ou, por outras palavras, que características ou circunstâncias determinam a sua importância do ponto de vista da

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Crítica Textual? Por que motivo os estudiosos de Alexandria quiseram preservar o texto de Homero, por exemplo, e não um texto escrito por um anónimo grego contemporâneo do poeta? Poderemos afirmar que a importância de um texto pode ser avaliada ou qualificada pelo grau de penetração que esse texto teve na sociedade contemporânea ou posterior. Assim, um texto quer-se preservado ou restaurado não apenas por ser um texto, mas precisamente por não ser um texto qualquer. Dito por outras palavras, a consideração de um texto pela Crítica Textual acontece mais por causa daquilo que o segue do que por aquilo que o precede, o que significa que habitualmente apenas a posteriori ele tem relevância para aquela disciplina. Daqui decorre que os efeitos que um determinado texto provoca no mundo que o rodeia, costumam fazer parte intrínseca da acepção da sua legitimidade para se tornar objecto da Crítica Textual.

Habitualmente, porém, os únicos textos assim considerados no âmbito desta disciplina são os compostos por signos escritos e transmitidos em suportes materiais preservados em maior ou menor grau através do tempo, corpos fixos e estáticos, que podem ser consultados as vezes que se desejar. A razão prende-se fundamentalmente com motivos de ordem prática - por norma, a compreensão de um texto e a sua análise tornam-se mais facilitadas se ele estiver escrito num suporte que nos seja acessível ao longo do tempo, uma vez que desse estado dependem uma série de operações que não seriam possíveis apenas através da sua audição ou memorização. O texto escrito pode ser consultado, revisto, analisado indefinidamente. É possível regressar a ele as vezes necessárias e ter a certeza de que se encontra exactamente no mesmo estado em que o deixámos. E esta característica é essencial para a realização do trabalho do crítico textual. Mas a

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predominância e a autoridade conferidas à comunicação escrita durante boa parte da história do mundo também residem no centro desta preferência. Ela é claramente demonstrada na definição de texto apresentada por um dos mais conceituados filólogos italianos, Aurelio Roncaglia (que adopta uma definição de P. Ricoeur]: “uma expressão ou conjunto de expressões fixadas pela escrita” [Roncaglia, 1974-75: 23].

No entanto, se analisarmos o percurso do conceito de texto, vemos que historicamente ele tem sofrido um desenvolvimento agitado, como explica Louis Hay no seu artigo “Does ‘Text’ Exist?” [Hay, 1988], iniciando-se por um período longo de estabilidade que foi seguido mais recentemente por uma fase de algumas mutações. Na Idade Média, por volta do século XIII, a palavra “textus”, que significava “tecido”, transformou-se na palavra “texto”, com o significado actualmente aceite do termo, ou seja, “1 - conjunto das palavras de um autor, em livro, folheto, documento etc. (p.opos. a comentários, aditamentos, sumário, tradução etc.); redacção original de qualquer obra escrita; 2 - conjunto de palavras citadas para provar alguma ideia ou doutrina; 3 - trecho ou fragmento de obra de um autor. Ex.: o t. analisado era de Graciliano Ramos; 3.1 - passagem da Bíblia que se toma para servir de tema ou assunto de um sermão” [Houaiss, 2001].

No início da Idade Moderna este significado tinha permanecido inalterado. Na edição de 1786 do dicionário da Academia Francesa, é definido como “les propres paroles d'un auteur, considérées par rapport aux notes, aux commentaires, aux gloses”, sendo fornecido o seguinte exemplo: "Le texte de l'Ecriture Sainte. C'est le texte pur et formel. Restituer un texte." São, assim, distinguidos dois campos contrastantes: o texto (as palavras do autor) e a glosa (notas, comentários). Esta

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definição prevaleceu inalterada até ao século XX, tendo sido atestada em diferentes dicionários de referência ao longo dos tempos, em termos semelhantes: dicionário alemão Adelung – “As palavras de um autor, em oposição à sua interpretação”, dicionário de Charles Richardson na Grã-Bretanha - "A composition in writing, opposed to the notes or annotations.”, Pierre Larousse - "Propres paroles d'un auteur par opposition aux commentaires.”, o Wörterbuch dos Irmãos Grimm – “o texto (“ ‘Ur’-text” no original), em oposição aos comentários ou interpretações: no sentido estrito de referências a versos.”; até 1964, onde se pode ler na entrada do Grand Larousse - "Propres termes qu'on lit dans un auteur, une loi (par opposition aux commentaires)"[apud Hay, 1988: 66-67].

Até esta altura, apenas as palavras escritas de um autor eram consideradas texto, sendo as notas e comentários realizados posteriormente a esse texto excluídos da definição. O primeiro dicionário a marcar a diferença, na medida em que “escrito” seria requisito necessário, mas não suficiente, terá sido o francês Le Robert, onde em 1966 é incluída a expressão “obra literária” na definição e é utilizado “um texto bem escrito” como exemplo [apud Hay, 1988: 67]. Isto é, para o ser, não basta que um texto seja constituído pelas palavras do seu autor, elas têm para além disso de se apresentar como um corpo unificado (a obra) e ainda deterem uma determinada qualidade, passível de ser avaliada favoravelmente numa escala de valores. Esta definição, no entanto, agravava a noção clássica de texto “puro, formal” e oposto, por um lado, a qualquer outra coisa que não fosse texto (as notas, comentários, ou o que foi designado posteriormente por Michel Arrivé como pós-texto [apud Hay, 1988: 68] ) e, por outro lado, considerando ainda apenas textos registados num formato escrito.

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É nesta altura, por volta da década de 70, que surge também a abordagem da Crítica Genética, que lida com os mecanismos da produção textual e a actividade do sujeito que escreve testemunhada em manuscritos de autor, passando a ocupar-se daquilo que designou como pré-texto (mais do que do texto propriamente dito), ou seja, de todos os estádios anteriores ao texto final, que nem sequer eram considerados nas definições atrás apresentadas – no entanto, o seu objecto de estudo continua a centrar-se fundamentalmente nos manuscritos de autores, mantendo por isso a exclusividade da figura do autor.

Na mesma década, a definição de texto começou a alterar-se, apesar de que as definições divergentes da canónica parecem não ter sido transportadas para instrumentos de referência comuns, como se vê pela definição apresentada no dicionário Houaiss, atrás mencionada.

Se consultarmos a definição apresentada por Halliday e Hasan ela mostra-nos que um texto poderá ter um significado muito mais lato do que a definição inicial dada por Roncaglia apenas um ano antes:

[Um termo] usado em linguística para referir qualquer passagem– oral ou escrita, de qualquer comprimento, que forma um todo unificado […]. Um texto é uma unidade da língua em utilização. Não é uma unidade gramatical, como uma proposição ou frase, e não é definida pelo seu tamanho […]. Um texto é mais bem definido como uma unidade semântica; uma unidade não de forma mas de significado. [Halliday e Hasan, 1976: 1-2]

Também a definição de Hatim e Mason [1990], mais recente, parece alargar o campo de formatos possíveis: “Um conjunto de funções comunicativas

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mutuamente relevantes, estruturadas de forma a alcançar um objectivo retórico global.”

Ou seja, e de acordo com estas duas definições, um texto não tem necessariamente de respeitar nenhum tipo de formato, extensão ou conteúdo específicos, nem de ser produzido exclusivamente por um autor, desde que se apresente como uma unidade de significado minimamente organizada. Poderemos, nesse caso, determinar quais os critérios que têm de ser respeitados para atingir essa organização mínima. De acordo com de Beaugrande e Dressler [1981], aquilo que torna um texto um todo unificado e significativo, em vez de um mero conjunto de palavras e frases não relacionadas, são os seguintes Seis Padrões de Textualidade:

1. Conectividade - Interdependência semântica de ocorrências textuais, através

de

a. Coerência ou conectividade conceitual – relação que se estabelece entre as partes de um texto, criando uma unidade de sentido (através de ordem de apresentação, relações espacio-temporais, causalidade, etc).

b. Coesão ou conectividade sequencial - ligação, nexo estabelecido entre as partes de um texto, mesmo que não seja aparente (através de gramática, léxico, sintaxe).

2. Intencionalidade - intenção de expressar, transmitir ou informar. De acordo com o objectivo do texto, assim o seu autor escolherá a forma como o vai escrever.

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3. Aceitabilidade - disposição por parte do receptor (leitor) de aceitar um texto que tem relevância para si.

4. Situacionalidade - os elementos presentes no texto devem estar de acordo com a situação à qual o texto se refere. Exemplo: Num cartaz com o objectivo de pedir silêncio aos frequentadores de uma biblioteca, não fará sentido utilizar expressões como “Chiuuuu!” (a não ser que a direcção da biblioteca se paute pela utilização de um conceito humorístico na comunicação com os seus utentes).

5. Intertextualidade - relação de um texto com outros textos que constituem a experiência compartilhada pelo autor e pelo receptor.

6. Informatividade - quantidade de informações novas ou inusitadas no texto,

que criam um maior interesse no seu receptor.

Pelo atrás exposto, a definição clássica de texto apresentada por Roncaglia parece restritiva. Caberão na definição também outras formas de inscrição ou transmissão de um texto, para além da escrita. Um discurso oral pode ser considerado um texto, assim como um diálogo entre duas pessoas, a representação de uma cena teatral ou até uma simples palavra, como “Silêncio”. Poderemos utilizar exemplos concretos de modo a demonstrar de forma mais clara como textos não escritos podem ser considerados na mesma categoria dos textos escritos e como a importância de textos assim produzidos justifica um registo e, adicionalmente, a atenção do crítico textual.

Fará tanto sentido preservar um registo do discurso escrito de Martin Luther King “I Have a Dream”, como um registo do discurso que o mesmo King proferiu

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nos degraus do Lincoln Memorial, em Washington, a 8 de Agosto de 1963? Qual é a diferença? A diferença é considerável, pois o discurso escrito era apenas um conjunto de rascunhos sem nenhuma versão finalizada (tendo algumas das secções sido utilizadas por King em Detroit, dois meses antes), e que o reverendo foi proferindo e tecendo de forma improvisada. A secção que repete uma série de frases começadas com a expressão “I have a dream” foi introduzida de forma espontânea, quando a cantora Mahalia Jackson gritou a King do meio da multidão “Tell them about the dream, Martin!". Foi nessa altura que King abandonou os papéis e começou a improvisar precisamente a parte do discurso que lhe deu o título e o tornou num momento decisivo do Movimento Norte-Americano dos Direitos Cívicos e no discurso considerado o mais emblemático do século XX por estudiosos de comunicações públicas [Branch, 1989]. Se hipoteticamente em 1963 não houvesse nenhum tipo de gravação do discurso oral, o único registo do discurso de King que teria sobrevivido estaria nos tais papéis que o reverendo rascunhou e que não dão conta do verdadeiro discurso que marcou de facto a história. Porque aquilo que o torna marcante é precisamente o facto de ter permanecido registado, sim, mas num outro suporte mais variado e também infinitamente mais precário do que o registo escrito – a memória dos ouvintes presentes – e de ter influenciado o seu pensamento e as consequentes mudanças sociais e políticas ocorridas. O texto escrito a partir do texto dito oralmente pode nem sequer ter registado elementos fundamentais daquele, criando-se desta forma um desajuste entre a mensagem que é transmitida quando lemos o texto e a mensagem que é transmitida quando esse texto foi ouvido – o leitor do texto

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escrito não estará a tomar conhecimento do verdadeiro texto que provocou tais consequências.

O que acontece, nesse caso, quando não dispomos de um precioso auxiliar de registo multimédia? Poderemos afirmar que o texto produzido e logo desaparecido chegou sequer a sê-lo? Deparamo-nos desde logo com uma dificuldade acrescida de estudo – qualquer análise apenas pode ser realizada no imediato, operação que, obviamente, reduz de forma drástica o êxito relativamente à obtenção de quaisquer conclusões fidedignas e consensuais. Marcel Proust, na obra Em Busca do Tempo Perdido cria precisamente uma situação deste género, ao colocar a personagem “Marcel” assistindo a uma peça de teatro e lamentando o facto de lhe ser impossível imobilizar cada inflexão da actriz, cada expressão da sua fisionomia, de forma a poder perceber o que nela havia de belo – “mas já a actriz mudara de lugar e deixara de existir o quadro que eu gostaria de estudar.” [Proust, 2003: 25-26] Todavia, o facto de esse registo não existir ou ser de difícil captação, não implica, como já se viu, que um texto não tenha sido produzido e, por consequência, inscrito culturalmente de alguma forma. Ele existiu, ainda que fugazmente, e mesmo que ninguém tenha estado presente para o registar por escrito, houve quem o tivesse “registado” na sua memória – o público (“Marcel” ficou comovido com a actriz e essa sensação, ainda que provocada por algo fugaz, ficou registada na sua mente de forma permanente). E a partir do momento em que esse público existiu, o texto foi recebido e ficou registado de alguma forma imaterial, passou a ter uma existência, de duração variável é certo, mas que justifica um registo material.

O que os exemplos apresentados procuram igualmente ilustrar é que outros sujeitos, como um orador público ou um actor, por exemplo, podem produzir

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textos. Procuram ainda mostrar que a forma escrita de um texto poderá não ser a única ou sequer a sua mais fidedigna representação e a sua correspondente e primeira forma oral ou audiovisual poderá assumir-se de maior importância histórica, porque mais fidedigna. Até mesmo certos textos que conhecemos actualmente apenas no seu formato escrito começaram por ser em tempos longínquos transmitidos oralmente, como é o caso de um dos principais objectos de estudo da Crítica Textual, os textos bíblicos [Rhoads, 2010: 157]. Originalmente produzidos e transmitidos de forma oral e mais tarde registados através da escrita, suscitaram uma infinidade de controvérsias sobre a dúvida relativamente à concordância entre o que foi dito, o que foi ouvido e o que acabou por ser registado por escrito. Assim, por vezes a forma escrita pode não ser a forma principal de inscrição de um texto, mas apenas uma convenção utilizada por questões práticas, com a finalidade de auxiliar à sua memorização e preservação. Este facto, no entanto, é muitas vezes ignorado, confundindo-se essa forma convencional com a sua forma primordial de inscrição e, consequentemente, a única considerada para análise e fixação/preservação. Como afirma Osório Mateus, em “Especificidades do texto dramático”, referindo-se ao caso específico da representação dramática:

Definitivamente, é apenas o texto que se pode conservar em bom estado; nunca a representação por inteiro. E a consequência cultural será inevitavelmente a conhecida sacralização ascendente do texto, que um tempo não relativizado fará aparecer como “intocável”, face à representação de uma noite, efémera e hiper-“tocável”. [Mateus, 2002: 110]

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O texto dramático e os seus desdobramentos

O texto dramático, em análise neste trabalho, é precisamente um texto produtor de outros tipos de texto que se desviam do seu registo escrito inicial. Esses outros registos incluem um conjunto de modos de transmissão variados: oral, visual, emocional, etc. Não são textos escritos e fixados num qualquer suporte material, pois a sua inscrição é de outra ordem. São textos que muitas vezes sobrevivem apenas durante escasso tempo, a duração de uma cena ou da representação dramática de uma peça inteira. Por outro lado, alguns deles são textos produzidos por outros que não os seus autores “oficiais”, os que deram início a essa génese textual e que a registaram no seu formato escrito. Estão neste caso os actores que, como será explicado de forma detalhada no capítulo seguinte, poderão ser considerados eles próprios produtores daquilo que chamarei “texto representado”, em oposição ao texto dramático que lhe serve de base. Aquele, apesar de não permanecer fixo para poder ser consultado mais tarde, ainda assim foi o produto de uma determinada intenção momentânea do(s) seu(s) autor(es) e, para além disso, permanece, de uma forma ou de outra, na memória dos que a ele assistiram. Essa memorização, por sua vez, produz efeitos nos seus diversos públicos (espectadores, críticos, historiadores, etc), cuja importância em nada fica a dever à provocada pelos seus congéneres redigidos e que fará parte essencial da construção da identidade póstuma da obra, das características que a tornam única no universo de todas as outras obras de arte semelhantes a ela, daquilo que a poderá tornar precisamente objecto de interesse para fixação. Ou seja, a intenção pode ser momentânea, mas o efeito poderá não sê-lo, ou antes, o efeito de uma intenção momentânea poderá ser mais duradouro do que a intenção que o causou.

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Por exemplo, se um determinado actor realizar um acto improvisado durante a representação de uma peça (ver caso descrito no próximo capítulo ocorrido com o actor Michael Londsdale durante a representação da peça A Amante Inglesa, de Marguerite Duras), esse acto improvisado, de natureza profundamente efémera e possivelmente até irrepetível em alguns casos, poderá permanecer na memória de quem assistiu à peça nessa noite em particular e ser responsável por uma construção diametralmente distinta daquela realizada por um outro espectador na noite seguinte, que não tenha assistido ao mesmo exacto acto de improviso.

Poderemos, nesse caso, afirmar que o texto dramático será o pré-texto do texto produzido na sua respectiva representação, uma espécie de mapa para a acção, como afirma John Harrop [apud Zarrilli, 2002: 18], e que o texto publicado depois da estreia da peça será o pós-texto da representação, uma espécie de resumo detalhado daquilo que aconteceu. Mas que nunca traduzirá exactamente o que se passou no palco.

Neste caso, será legítimo perguntar: não se deverá fixar também o “texto representado”? Qual dos dois, o texto dramático ou o “representado”, traduz de forma mais aproximada a intenção do seu autor? Ou, como diz Osório Mateus em “Teatro e literatura”:

O texto impresso depois de uma acção mostra o que pode, compensa e informa quem não foi espectador. É reflexo transitivo, memória para leitor. Uma vez instalado, é trabalhável de várias formas. Num tempo em que o teatro escasseia, fica disponível como receita, partitura ou romance e permite o fingimento de reprodução. Parece representável e pode voltar para o teatro. Mas é preciso dar conta de que há inversão de marcha e não confundir modelos com formas virtuais. [Mateus, 2002: 216]

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Considere-se, por exemplo, a multiplicidade dos textos dramáticos nascidos das peças de Shakespeare pelas escolhas ou alterações realizadas durante as suas encenações ou adaptações cinematográficas. Alan Gibbs explica o caso das conhecidas versões Quarto e Folio da peça Rei Lear de Shakespeare, em que se verifica que não são estas que determinam a forma como ela é apresentada, ao contrário do que muitos críticos textuais pensariam. Na prática, diz Gibbs, os encenadores costumam encontrar aquilo que resulta através dos ensaios e não por seguirem doutrinalmente a versão Quarto ou Folio. Como exemplo, tome-se a encenação de David Richman, que, apesar de se ter baseado na versão Quarto (em que as últimas palavras são da personagem “Albany”), decidiu dar as mesmas últimas palavras a “Edgar”, como na versão Folio, exclusivamente porque o actor que representava a personagem as interpretou de uma forma muito mais forte do que o actor que representava “Albany”. Ou seja, mais do que o texto dramático de base, pode o “texto representado” pelo actor determinar as escolhas dos encenadores, parecendo deter neste caso maior autoridade. Por outras palavras, a escolha de uma ou de outra variante autoral pelo encenador pode não ser determinada pela maior autoridade autoral que na sua opinião uma delas detenha sobre a outra, mas sim pela maior eficácia de um actor relativamente a outro na criação de “texto representado” que é produzido a partir delas. Sabemos que a versão Quarto é considerada por alguns críticos como aquela que foi baseada no manuscrito do autor e que a versão Folio é considerada como uma posterior revisão cénica da versão Quarto, parecendo ser de menor autoridade, porque apenas em parte autoral. Mas isso parece não interessar tanto a Richman como a interpretação

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mais ou menos eficaz que os seus actores lhe dão e que é o seu guia para a escolha da versão Quarto, incluindo elementos da versão Folio [Gibbs, 2003: 8-9].

Na realidade, a importância da distinção entre texto dramático e “texto representado” prende-se precisamente com conceitos de autoridade e intenção final, que deveremos analisar de forma mais aprofundada, antes de prosseguir. De acordo com a definição dada por Bernard Beugnot, a autoridade de um texto é o

grau de confiança que podemos conferir a um estado do texto – manuscrito, dactiloscrito, versão mediatizada, impressa – tendo em conta a sua origem, os seus modos de transmissão, o seu suporte, etc. A autoridade de um estado é determinante para a escolha de um texto de base. [Beugnot, 1988: 71]

Para o caso em estudo neste trabalho, o que se propõe é determinar com exactidão se aquele que é considerado o autor “oficial” do texto em análise é de facto o autor da totalidade desse texto, ou se existiram outros intervenientes que

partilharam essa autoria, nomeadamente o actor ou actores responsáveis pela

representação dramática daquele, tendo produzido texto também detentor de autoridade. Ou seja, se o texto dramático publicado e o respectivo “texto representado” correspondem a uma e mesma vontade.

Por outro lado, a intenção final é, de acordo com Bowers-Tanselle [Bowers, 1964 e Tanselle, 1995], a última vontade expressa pelo autor desse texto, habitualmente aquela que fica registada no último manuscrito redigido pelo próprio, em oposição à primeira impressão da obra, que, de acordo com a posição daqueles autores, pode apresentar erros ou alterações tipográficas imputáveis a terceiros. Novamente no caso deste trabalho, o que importa é perceber se houve intenção final e onde ela se

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encontra matrializada de facto, ou seja, qual das versões do texto em análise é que o seu autor considerou como a que apresentava as condições suficientes para poder representar essa intenção – o texto de facto publicado ou o “texto representado”. Porque o texto publicado pode ser apenas uma aproximação possível ao “texto representado”, ou seja, uma alternativa reconhecida pelo próprio autor como necessária e prática, mas não considerada ideal. E neste ponto estamos a falar em termos relativamente latos, desprezando propositadamente alterações que possam ter ocorrido a um nível textual que chamaremos microscópico, como a supressão de um signo, por exemplo.

Utilizando um exemplo específico julgo poder clarificar melhor estas questões: não nos interessa para o caso se Tennessee Williams se esqueceu de colocar uma vírgula no seu manuscrito final da peça Um Eléctrico Chamado Desejo (considerando que a ausência ou presença dessa vírgula não altera o sentido da respectiva frase, mas apenas a sua ordem gramatical), mas interessa-nos saber se na versão cinematográfica da peça, e com o consentimento de Tennessee Williams, em vez de se ouvir apenas um gato a miar na cena em que “Stanley” conhece “Blanche”, tal como está escrito e editado na versão publicada da peça [Williams, 2009: 15], o actor Marlon Brando acrescentou um miado produzido por si próprio [Kazan, 1993], apesar de esta adição não ter ficado registada na versão impressa e publicada do texto da peça. Do mesmo modo, também nos interessa saber se o actor preencheu as partes silenciosas da sua presença com atitudes, gestos e expressões que não existiam indicadas sequer por didascálias no texto escrito e que não foram acrescentadas no texto impresso e publicado. Isto é, e de acordo com o conceito de intenção final atrás exposto, sabemos que tanto o exemplo específico do miado

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como todas as outras adições de “texto representado” por parte do actor, fizeram parte da intenção final do seu autor, uma vez que ele acompanhou a produção da peça, e devem por isso constar nalgum tipo de registo que delas dê conta (o que acontece neste caso em particular, pois existe o filme). Porque existe uma clara diferença entre um e o outro texto. De facto, como explica Brenda Murphy, Williams apresentou à produtora Irene Selznick um texto finalizado para que esta o submetesse à direcção de Kazan. Williams assistiu aos ensaios fundamentalmente como um observador passivo, realizando revisões menores ao texto sempre que Kazan lhe pedia. O cenário, por exemplo, fora concebido por Jo Mielziner sob a direcção de Kazan e ambas as versões publicadas do texto incluíam descrições desse cenário, bem como os gestos, movimento e acção introduzidos por Kazan em conjunto com os actores. No entanto, a “versão de leitura” (“reading version” no original) que Williams preparou para publicação pela editora New Directions, continha menos pormenores relativos a este tipo de informação específica do que a “versão representada” (“acting version” no original) preparada directamente a partir do texto dirigido à encenação para a editora Dramatists Play Service [Murphy, 1992: 3].

Assim, será possível admitir que em certos casos poderá ser conferida, erroneamente, a maior autoridade a um estado do texto anterior às intenções finais do seu autor, partindo-se do princípio que estamos a considerar variantes de um texto como novas etapas da sua génese, mediante a utilização de uma escala graduada que nos permita estabelecer uma hierarquia coerente. Ou seja, que estamos a seguir o percurso de um texto através das suas diversas etapas de “avant-texte”, até atingirmos um estádio finalizado, e que estamos a considerar

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famílias de variantes em sentido lato ou “campanhas de alterações”. No exemplo dado anteriormente, a variante em que o actor acrescenta elementos ao texto fará parte de uma família de variantes ou de uma nova campanha de alterações mais importante do que aquela em que o autor realizou alterações do mesmo tipo da supressão da vírgula por esquecimento. Primeiro, porque o género de variantes descrito inicialmente poderá alterar profundamente o percurso do texto e resultar numa intenção final muito diferente da anterior, e depois porque o responsável por essa família de variantes foi outro diferente do autor “oficialmente” reconhecido como tal. Para além disso, porque essas adições e a forma como são formuladas podem também alterar profundamente o modo como o público da peça reagirá e os traços identitários que estabelecerá para a julgar, a partir da forma recepcionada.

A ilustração do que acabou de ser exposto através de um diagrama explicativo, poderá clarificar melhor essa exposição:

Esquema 1

Se o autor A pretendia veicular uma mensagem X, mas se no decorrer da análise realizada aos efeitos da sua obra se determina que o que um certo público B inferiu foi uma mensagem Y, é preciso perceber o que aconteceu entre a veiculação da

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mensagem X e a recepção da mensagem Y, para que X se transformasse em Y e se existiram outros elementos entre A e B responsáveis pela transformação de X em Y. Por outro lado, é preciso também determinar com exactidão se o texto C criado pelo autor A manteve as intenções X ou se, no decorrer da sua transformação em outro texto não escrito adaptado de C, X se transformou em Y, mas C se manteve fixo em C e foi dessa forma impresso e publicado, sem se transformar num texto E transportando a mensagem Y, o que poderia nesse caso levar a uma deturpação do entendimento da obra e do(s) seu(s) autor(es).

Tomando novamente o caso da peça Um Eléctrico Chamado Desejo, de que o actor Marlon Brando foi um dos protagonistas, se lermos o texto dramático escrito por Williams e assistirmos à representação desse mesmo texto por Brando, preservada na sua versão cinematográfica, a apreensão que temos da personagem “Stanley Kowalsky” interpretada pelo actor é distinta da personagem registada na versão de leitura impressa e publicada da peça (independentemente da edição consultada, pois as diferenças existentes entre as várias edições são pormenores não directamente relacionados com as particularidades aqui em análise). Este caso concreto é um bom exemplo porque não ocorreram alterações significativas ao texto escrito por Tennessee Williams na encenação da peça, por um lado; e, por outro, o próprio autor participou activamente na encenação do seu texto, colaborando com o encenador Elia Kazan. Portanto o que ocorre neste caso específico é que entre o texto C que veicula uma mensagem X e a recepção da mensagem Y pelo público B da peça encenada, intervém um elemento, o actor D, que utilizando o mesmo texto C provoca no público B uma transformação da mensagem X em Y. Esta transformação poderá ocorrer em dois planos, um

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involuntário e outro voluntário, mas para o caso basta-nos dizer que pelo menos um deles, o involuntário, ocorre sempre. Ou seja, mesmo que não exista intenção por parte do autor ou mesmo do actor, de trabalhar o texto, essa alteração ocorre sempre a um nível mínimo, pelo simples facto de aquele estar a ser encenad0 e representado (como será explicado mais detalhadamente no capítulo seguinte).

Assim, por uma questão de rigor, se quisermos determinar de quem é a autoridade do texto e em qual das suas etapas reside a intenção final do seu autor, teremos de chegar aos intervenientes que foram responsáveis pelo texto que chegou em cada instância ao público e às partes do texto que, por intervenção daqueles, foram submetidas a alterações. Isto é, o texto C que se encontra publicado pode não ser o único ou sequer o texto mais importante a fixar e preservar, mas sim um hipotético texto E, que, afinal, de hipotético nada tem, e que foi aquele que na realidade, apesar de totalmente efémero, foi recepcionado pelo público durante a encenação da peça ou o visionamento do filme (caso em que não será efémero), e permaneceu na sua memória, constituindo-se como parte da identidade da obra. Ou seja, a Crítica Textual deverá ter um papel clarificador sobre qual das versões é realmente responsável por essa identidade, uma vez que a versão de “texto representado” poderá não apenas concretizar o que estava em potência no texto, como ir mais além e acrescentar o que não existia no texto.

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Esquema 2

A determinação de E é fundamental para a análise crítica de C, uma vez que se esta variante for ignorada, uma edição de C poderá representar uma suposta e falaciosa intenção final de A anterior à intenção final do autor.

No caso específico do texto dramático, teremos assim de admitir que existe um contexto em seu redor e que aquele não funciona por si só, dependendo em maior ou menor grau de uma série de elementos extratextuais para veicular uma determinada mensagem. Decorre disto que a intenção final do autor de um texto dramático que participa da sua encenação apenas poderá ser estabelecida após a sua fixação num determinado momento da produção posterior a todo o trabalho realizado no decorrer dos ensaios, uma vez que ele se constitui até à sua estreia

representada como um texto constantemente aberto a alterações,

melhoramentos, cortes, ajustes, etc. Essa fixação, por outro lado, ocorre sempre

num determinado ponto do processo, caso contrário cada representação seria

completamente diferente da anterior e não é isso que acontece. Existe sempre um

estádiofinal desejável até à estreia da peça e pelo menos uma intenção expressa de

que ele seja mantido nas suas sucessivas representações (mesmo que depois na prática isso acabe por nunca ser respeitado de forma tão rígida). Assim, teremos de

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admitir que o texto produzido pela representação poderá em alguns casos ser aquele que traduz de forma mais aproximada a intenção final do seu autor.

É possível, por isso, concluir que, para além de ser legítimo, fará também sentido a Crítica Textual debruçar-se sobre estas formas textuais imateriais. Por um lado, porque geralmente essas formas textuais estão sempre directamente relacionadas com um texto escrito de onde provêm ou, inversamente, a que deram origem, o que as torna legitimamente parte da lista de itens que poderão ser analisados pelo crítico textual - como refere Jerome McGann, embora não especificamente a propósito do texto representado:

Many persons besides the author are engaged in these events, and the entire process constitutes the life of an important social institution at the center of which is the literary work itself (the “work” being a series of specific “texts”, a series of specific acts of production, and the entire process which both of these series constitute). For the textual critic, all phases and aspects of these matters are relevant. [McGann, 1983: 52]

E, por outro lado, deveremos admitir que os processos da Crítica Textual possam e devam acolher a análise de formatos textuais não tradicionais, acompanhando a panóplia multidisciplinar que as sociedades desde sempre utilizaram como veículo de transmissão cultural.

Pretendeu-se demonstrar que a importância que a Crítica Textual confere a um texto se prende com questões que extravasam muitas vezes a sua forma de apresentação. Para ser considerado texto e para ser considerado objecto de estudo

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desta disciplina, um texto não tem forçosamente de existir numa forma fixa, inscrito num qualquer suporte. Pode assumir uma variedade eclética de formatos, apresentações ou modalidades de uso da língua, desde que se constitua como uma unidade de significado, contendo no interior das suas fronteiras todos ou pelo menos a maioria dos seguintes elementos de estruturação textual: conectividade conceitual e sequencial, intencionalidade, aceitabilidade, situacionalidade, intertextualidade e informatividade. Pode também ser produzido por outros sujeitos que não têm necessariamente de ser considerados autores no sentido tradicional do termo – oradores, actores, por exemplo. Estas outras formas podem inclusivamente assumir-se como as formas primordiais de um texto, nos casos em que partem de um texto-base prévio como acontece na representação dramática, e aquelas que o representam de modo mais completo. E, nestes casos, a sua forma escrita parece constituir-se apenas como uma convenção prática que auxilia na sua memorização e preservação. Há inúmeros exemplos históricos de textos orais ou audiovisuais que assumiram uma enorme importância a diversos níveis e que não dependem da forma escrita para exercerem algum tipo de influência na sociedade.

Poderemos, nesse caso, alargar os limites de um texto no âmbito da Crítica Textual para formas não escritas, apesar de essas formas serem de análise mais difícil, o que não pode ser impeditivo da sua consideração por esta disciplina. O facto de não existir um registo não implica que esse texto não tenha sido produzido e não tenha deixado marcas. Cabem neste âmbito o texto dramático e o seu correspondente “texto representado”, objectos de estudo deste trabalho. A socialização destes textos, o facto de serem manuseados por mais do que um interveniente deixa espaço para inúmeras pegadas textuais e algumas delas podem

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não pertencer ao seu autor. Nestes casos, a natureza da autoridade e das intenções finais de um texto poderá ter de ser reequacionada. As circunstâncias que abrem ou flexibilizam o texto são demasiado complexas e produzem efeitos demasiado interessantes para poderem ser ignoradas ou consideradas como secundárias a todo o processo que é objecto da Crítica Textual.

Tal operação poderá não ser fácil, mas a sua inclusão obedece a critérios intimamente relacionados com os principais objectivos da disciplina - a determinação da autoridade de um texto, a determinação das intenções finais do seu autor e a consideração de todas as variantes importantes concernentes ao percurso da existência de um texto.

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Capítulo II

Definição de Representação Dramática

When [actors] are talking, they are servants of the dramatist. It is what they can show the audience when they are not talking that reveals the fine actor.

Cedric Hardwicke

De forma a entendermos todas as características da relação entre um texto e a sua representação dramática, precisamos de determinar em primeiro lugar o que está implícito na actividade de representação. Para isso deveremos definir em termos latos o significado deste conceito, tentando perceber em que consiste a representação textual e, subsequentemente, a representação dramática de um texto. Uma vez realizada esta análise, poderemos então prosseguir para uma descrição das especificidades que caracterizam esta actividade e em que termos ela é utilizada pelo seu representante, ou seja, o actor, para produzir “texto representado”. Finalmente, teremos ainda de definir claramente as características do “texto representado” e em que aspectos ele se distingue do seu congénere dramático, de onde habitualmente provém. Esta distinção permitir-nos-á determinar se de facto o “texto representado” é distinto do texto dramático e se se pode constituir como uma etapa mais avançada de um processo, podendo em alguns casos documentar de modo mais forte e mais fidedigno a intenção final do seu autor.

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Consultando a etimologia da palavra “representação” vemos que ela provém do latim “repraesentare”, que significa “apresentar”, “colocar diante de” [Harper, 2001-2012] ou de “repraesénto,as,ávi,átum,áre”, que significa “apresentar”, “estar presente”, “comparecer” [Houaiss, 2001]. O termo “representação” designa uma entidade que está por outra entidade, ou seja, existe um representante que está por outra coisa, o representado, chamando-se representação à relação estabelecida entre estes dois elementos. Fernando Gil refere precisamente que em todas as formas de representação uma coisa se encontra no lugar de outra, e que “representar” significa ser o outro de um outro que a representação, num mesmo movimento, convoca e volta a convocar. Assim, o representante é um duplo do representado [Gil, 1992: 12]. Por princípio, e considerando esta definição em termos latos, qualquer coisa pode representar qualquer outra coisa, se bem que geralmente o representante seja escolhido por estar mais acessível do que o representado.

Aquilo que se pretende representar textualmente está ausente ou não se encontra disponível no mundo exterior. É impossível apresentá-lo tal e qual é produzido mentalmente, numa primeira instância. Deveremos encontrar substitutos ou duplos que desempenhem essa tarefa da forma mais aproximada possível – os signos. De acordo com a definição de Umberto Eco, um signo é:

tudo aquilo que pode ser tomado como substituindo significativamente outra coisa. Esta outra coisa não precisa necessariamente de existir ou estar realmente em algum lugar no momento em que um signo o representa. [Eco, 2003]

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Os signos duplicam as características do que se pretende transmitir, mas utilizam atributos diferentes, específicos do meio a que pertencem. A sua complexidade também varia, embora seja justo afirmar que a sua eficácia não tem de estar exclusivamente relacionada com aquela, mas também com o talento ou habilidade de quem deles fará uso. Assim, por exemplo, um simples parágrafo composto apenas por signos escritos pode representar de forma mais eficiente o que se pretende transmitir do que um filme complexo repleto de signos de naturezas variadas.

De acordo com Peirce, um signo pode ser definido como um Meio para a comunicação de uma Forma. O signo encontra-se numa relação tripla, para o seu Objecto que o determina e para o seu Interpretante que ele determina. Forma não é algo de concreto mas uma característica incorporada no objecto que se pretende comunicar, como um hábito, uma “regra de acção”, uma “disposição” ou um “potencial real”, ou seja, o facto de algo acontecer sob determinadas condições [Aguiar e Queiroz, 2010: 4]. Seja qual for o signo, ou sistema de signos escolhido, partilhará sempre determinadas características: encontra-se presente, por contraste com a intenção que está ausente no interior da mente do seu autor; será uma cópia do seu representado, no sentido de que será sempre uma instância produzida num momento posterior; por outro lado, e por contraste, nunca será uma sua cópia perfeitamente exacta, por mais aproximado que o seu autor consiga torná-lo, pois nenhum signo exterior ao sujeito pode ser idêntico a uma intenção – esta é imaterial, os signos nem sempre o são e, mesmo quando são, continuam a pertencer a sistemas distintos; finalmente, terá sempre a capacidade de alterar aquilo que o originou, acrescentando, suprimindo ou modificando as suas

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características iniciais, mesmo quando a intenção é torná-lo o mais próximo possível, pelo simples facto de ter uma natureza diferente. Os signos podem adquirir, por outro lado, características variantes: a sua natureza; a sua forma; a sua complexidade; a sua proximidade do sujeito que o escolhe; o seu grau de participação ou de consciência na actividade para a qual é escolhido.

Sejam quais forem as características dos signos utilizados na representação, importa reter que não se trata de uma mera substituição, pois o objectivo será sempre o de tentar reproduzir o pretendido da forma mais aproximada possível. Ou seja, não basta que o representante esteja disponível, ele tem também de se adequar à sua tarefa e ainda cumpri-la de forma eficaz.

O que distingue, nesse caso, a representação textual da representação dramática? Desde logo a sua complexidade no que diz respeito à variedade de signos utilizados. No primeiro tipo de representação utilizamos apenas um tipo de signo – o verbal. Este deverá ser capaz de representar de forma completa todas as características e detalhes do que se pretende transmitir. No entanto, essa representação textual apresenta, por outro lado, um limite – ela continua a ser imaterial, ou seja, os signos descrevem ou sugerem algo que está a acontecer num mundo imaginário, não produzem de facto essa acção no mundo real. Poderemos dizer que a representação textual depende em grande medida da capacidade imaginativa do seu receptor. É como se os signos servissem como uma espécie de guia pormenorizado para despoletar a imaginação do leitor, mas esta tem de funcionar de algum modo, caso contrário poderemos concluir que os signos falharam na sua tentativa de representação do que pretendem veicular. Por outro lado, a representação textual pode mais facilmente, por princípio, ser realizada

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apenas pelo próprio autor, precisamente porque exige o domínio de um único tipo de signo – o verbal. Por último, tanto o representado como o seu representante são instâncias que não possuem consciência de que estão, respectivamente, a ser representadas e a representar, para além de que ambos são produzidos pelo mesmo sujeito.

Por seu lado, a representação dramática de um texto é, em primeiro lugar, uma actividade mais complexa, pois utiliza uma maior variedade de signos – o seu representante, o actor, faz uso de diferentes tipos de componentes físicos (materiais) e mentais (imateriais) para desempenhar a sua tarefa – entre os quais a oralidade, a gestualidade, o movimento, as emoções. Em segundo lugar, os signos utilizados são também mas não apenas signos não-verbais, ou seja, o que ocorre é uma tradução intersemiótica, tal como definida por Roman Jakobson – a interpretação de signos verbais utilizando signos de sistemas não verbais [Jakobson, 2000: 2]. A tradução intersemiótica é um processo constituído por várias camadas. Por exemplo, da literatura para a dança, as camadas linguísticas (ritmo, prosódia, sintaxe) são traduzidas para dinâmica de movimento, organização do espaço, luz, guarda-roupa, cenografia, etc. Por esse motivo, não existe uma correlação directa entre as diversas camadas dos dois sistemas de signos, que possuem naturezas diferentes, o que dificulta a tarefa de análise comparativa entre um e o outro, obviamente [Aguiar e Queiroz, 2009: 3]. Em terceiro lugar, a representação dramática não é imaterial, uma vez que se materializa sempre no corpo do seu representante, ao invés dos signos escritos – o receptor não tem de imaginar tudo, pois esse trabalho é em boa parte realizado por outro. Em quarto lugar, este tipo de representação não é habitualmente, por princípio, realizada pelo

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