RBMFC
Case Report
Um generalista entre a barbárie e a célula
One Family Doctor in between
the barbarian and the cell production
Fernando A. M. Flora1
Palavras-chave: Conflito (Psicologia); Programa Saúde da Família.
Key Words: Conflict (Psychology); Family Health Program.
1Médico generalista, Secretaria Municipal de Saúde, Prefeitura de Belo Horizonte, Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil.
Resumo
É feita uma análise sociopsicanalítica institucional de um conflito, na prática do PSF, em três níveis: no 1º nível, a rebeldia de jovem negra, desempregada e o generalista servidor do Estado; no 2º, a dinâmica de grupo da equipe ou “célula” do PSF; e, no 3º, a política compensatória sociodemocrática.
Abstract
A conflict institutional socio-psychoanalytic analysis, in practical usage in levels: 1stlevel , the unemployed black youth rebel behavior
Desde minha dissertação em Saúde da Família, meu foco de interesse tem sido a comunicação e a dinâmica de
grupo na prática da equipe1,2(Anexos I e II). O lugar do
ge-neralista, em um microcosmo como um pequeno Centro de Saúde margeando uma favela, faculta uma percepção privilegiada das contradições em jogo no social. Toda crise revela o vetor principal do campo de forças atuantes num dado momento. Relatemos um conflito (aparentemente) simples. Uma cliente jovem, no início de uma primeira con-sulta, queixa-se de sofrer de dor abdominal crônica. Em seu relato, conta que já foi diagnosticada uma úlcera gas-troduodenal. O médico lhe pede se pode buscar, em casa (mora perto), o exame que teria feito num hospital. Para sua grande surpresa, o pedido irrita a usuária, que o agride verbalmente e rompe a relação social. Logo depois, o gene-ralista reporta o fato à parceira da equipe, que o denigre em reunião de trabalho, ampliada com a gerente.
Façamos uma “sociopsicanálise institucional”,
técnica criada por Gérard Mendel3desses eventos
sequen-ciais. Esclarecemos que este método tem o grande mérito de articular o fato social, o fato psíquico individual e a or-ganização (ou a instituição).
Procuremos descrever, sucintamente, o contexto onde se desenrolaram estes fatos. O ator social generalista é novato no cenário. A equipe do PSF tem uma história de grupo de sete anos, com a saída recente do médico que es-tava desde o início. A gerente é a chefe do centro de saúde há nove anos. A favela é o “habitat” dos excluídos do siste-ma (desempregados, aposentados, trabalhadores do merca-do informal etc.).
A jovem cliente é negra, tem 20 anos, está desem-pregada e pertence a uma família com membros delinquen-tes. Pode-se dizer que sua conduta espelhou o modelo
inter-nalizado de uma subcultura delinquente4. Uma vez que está
fracassando em sua integração na sociedade, sua saída con-siste em aderir a um con-sistema de crenças e valores reativo à cultura dominante. Desempregada, apesar de ter Ensino Médio, é um barril de pólvora prestes a explodir ante a menor fagulha (frustração mínima). Um médico, de cor branca, fornece o pretexto ideal: a raça dominante
respon-sável pelas suas agruras. É óbvio que o Ensino Médio não a educou, restringindo-se a lhe proporcionar um diploma - sabe-se lá de que qualidade...
O Centro de Saúde é uma organização do aparelho de estado. Significa modernização, no sentido de um míni-mo de regras burocráticas, para uma população que vive numa situação de anomia. Uma subclasse social a quem foi barrado o acesso à cultura, à informação, à educação. A moça dá uma demonstração explícita da barbárie em que vive. Não se trata de julgamento de valor. Trata-se do triste retrato de nossa realidade.
Em contraste, a equipe de PSF é o último rebento da reestruturação produtiva do sistema capitalista,
denomi-nada funcionamento em célula ou toyotista5. Inscreve-se,
nesta modalidade de trabalho, o ardil do autocontrole pelos próprios assalariados e o risco de um de seus membros tornar-se o “capataz” dos outros. Assim, as tradicionais día-des opostas - médico/enfermeira, masculino/feminino, bur-guês/proletário - são ativadas, e encontra-se uma forma de inversão nestas equações, de desforra no imaginário. A competição camufla a sede de poder.
É uma situação repleta de riscos para o generalista recém-chegado. Sabe-se que a atitude do grupo (a coletivi-dade dos usuários e dos profissionais) é que constrói o con-senso social em torno do poder curativo do médico. É no registro do imaginário que sua imagem se consolida, mais
que em seus sucessos e fracassos terapêuticos na prá- tica6.
Aprofundemos a inserção deste recorte no todo da sociedade. Na esfera macrossocial, está em curso uma política compensatória de caráter sociodemocrático. O PSF é um dos “pontas-de-lança” desta opção política. Significa, concretamente, que as equipes estão no “olho do furacão” das contradições sociais e, portanto, sob tensão (estresse) constante. Senão, vejamos: o morro é território de moradia da camada mais pobre da cidade. Ela possui estratégias de sobrevivência legais e ilegais (tráfico). Como seu nível de instrução é baixo ou nulo (analfabetismo), seus empregos formais são de “braçais”, domésticas, porteiros etc. É alto o nível de desemprego (“exército industrial de reserva”); muitas famílias vivem da aposentadoria do ancião ou do
inválido. Outras partem para ocupações informais, do tipo venda de produtos artesanais, costura, marmita, confeitos etc. O tráfico, como “corrida ao ouro”, vai ao encontro da violência e de todo o cortejo da grave deterioração co-munitária que implica.
Em cunha, no alto do morro, a pequena organiza-ção do estado oferece atenorganiza-ção primária para uma populaorganiza-ção que acumula doenças da exploração econômica e da pobre-za. Este encontro é necessariamente atravessado por tensão e conflitos constantes. E há pouca perspectiva a curto (e a longo prazo?) de melhoria desta situação, uma vez que está ligada ao desenvolvimento de um país com uma estrutura social das mais iníquas do planeta (concentração de renda) e que ocupa um lugar satélite (dependência) na ordem do
sistema capitalista mundial7.
Tomar consciência do lugar e do ambiente pode contribuir para nossa adaptação e para as estratégias de ação. O pessimismo teórico não deve nos impedir de agir com otimismo.
Referências
1. Flora FAM. Um generalista na frigideira. Rev. Atenção Primária à Saúde. 2007 jul-dez; 10 (2): 221-2.
2.Um generalista no meio do povo. Revista de Atenção Primária à Saúde. v.10 nº2 jul/dez 2007, p. 223-4.
3. Mendel G. La Sociopsychanalise Institutionnelle In: L´intervention institutionnelle. Paris: Petite Bibliothèque Payot; 1980. p.234-302.
4. Escobar AS. Sociedade e Violência. In: Leal CB, Piedade JH orgs.Violência e Vitimização: a face sombria do cotidiano. Belo Horizonte: Del Rey; 2001. p.19-34. 5. Mello e Silva L. Trabalho e reestruturação produtiva: o desmanche da classe. In: Oliveira F, Rizek CS. orgs. A Era da Indeterminação. São Paulo: Boitempo; 2007. p.71-100. 6. Lévi-Strauss C. Anthropologie structurale. Paris: Plon; 1974. p.183-203.
7. Fernandes F. Sociedade de Classes e Subdesenvolvimento. 2 ed. Rio de Janeiro: Zahar; 1972. 268 p.
Anexo 1
Entre Dois Mundos
Todo o coletivo do Centro de Saúde ficou estressa-do com a ameaça de morte de um usuário endereçada a uma enfermeira. Vejamos a sequência dos fatos.
O paciente, Sr. D (inicial fictícia), é um adulto de meia idade, empregado formalmente, em pequena empre-sa, como operário qualificado e conhecido por ser proble-mático como usuário. No episódio em questão, teria ido de manhã ao serviço de urgência oftalmológico, devido a “dores nos olhos”. No acolhimento, seus sintomas não fo-ram considerados agudos, e ele foi referenciado para o Centro de Saúde para marcação de consulta especializada de rotina. No final do dia compareceu ao Centro de Saúde com a demanda de um atestado de saúde para o dia. Quan-do isto lhe foi negaQuan-do, o sr. D se enfureceu, disse que ia que-brar a Unidade e, lendo o cartaz que avisava sobre desacato a funcionário público, afirmou que, se a polícia fosse chama-da, poderia até ser preso, mas “quando solto iria matar um”, e personalizou citando o nome de uma enfermeira -quem até havia elogiado anteriormente. Um ato de fala de-ve ser tomado ao pé da letra, donde a gravidade da crise instalada na unidade de Atenção Primária à Saúde.
Este Centro de Saúde tem uma localização privile-giada no que concerne à sua acessibilidade. Acha-se encra-vado na margem de uma “vila”, eufemismo para favela. Atende majoritariamente a uma população pobre e, simul-taneamente, a uma clientela de melhor nível socioeconô-mico. Esta periferia é habitada, como de praxe, pelos excluídos do mercado de trabalho e dos descendentes dos escravos da antiga sociedade agrária. A população está sob tensão entre dois mundos sociais: de um lado uma cultura
híbrida (tradicional/moderna)1e de outro, a da “cidade
ile-gal” (dos negócios ilícitos)2. No primeiro caso, praticam-se
os padrões de sociabilidade e as regras de reciprocidade habituais, mas, no segundo, trata-se de conhecer os códigos do crime, a lei da natureza, as regras do jogo paralelo. Muitas vezes, o mesmo ator social pode transitar nos dois mundos: é um bom cidadão, pai de família, tem emprego, joga fu-tebol, vai aos cultos e também frequenta o mundo das
sombras do tráfico de drogas.
Este parece ter sido o caso no episódio que esta-mos analisando. O Sr. D trouxe para o Centro de Saúde, que funciona numa cultura “oficial”, um comportamento típico do mundo “bandido”. O que vale é a violência, a in-timidação, a ameaça, a eliminação do outro. Daí o traumatis-mo causado no imaginário institucional por esta confusão de contextos.
A crise foi contornada por meio de uma conversa ao “pé do ouvido” entre o desviante e um funcionário do Centro de Saúde, que também mora na vila e o conhecia de longa data.
Restabeleceu-se o precário equilíbrio entre o disposi-tivo estatal e a comunidade pauperizada.
Referências Anexo 1
1. Fernandes F. O negro no mundo dos brancos. 2 ed. rev. São Paulo: Global; 2007.
2. Oliveira F, Rizek CS. org. A era da indeterminação. São Paulo: Boitempo; 2007.
Anexo 2 Intrigas
“A força mais destrutiva do universo é a fofoca” Luís Fernando Veríssimo
O sistema de saúde público constitui um segmento socialista numa sociedade de capitalismo tardio periférico, o Brasil. O médico, um profissional liberal de classe média no capitalismo pré-monopolista, incorporou-se à classe tra-balhadora na medicina socializada. Uma vez estabelecido este contexto geral, gostaríamos de apresentar um estudo
de caso de dinâmica de grupo1na percepção do
protagonis-ta.
Comecemos por analisar a relação do generalista com o grande Grupo, composto por aproximadamente 2.200 famílias da área de abrangência da equipe de Saúde da Famí-lia.
Em nossa prática como generalista, surpreende-nos
a “medicalização” de problemas de saúde de caráter socio-psicológico. Em vez da compreensão, da escuta pela equipe das dificuldades dos clientes, opta-se pela receita de diazepí-nicos. Com isso, fabricam-se toxicômanos menores, uma vez que ocorre uma prescrição indiscriminada de tranquili-zantes e hipnóticos (distribuídos como a fluoretação da água...). É um procedimento tão rotineiro de controle social, que podem faltar outros medicamentos, mas nunca os cal-mantes!
O generalista procurou desestimular este hábito pa-tológico. Era preciso romper com a passividade e que os indivíduos se assumissem como agentes de ação política. A ideia era que por meio do apoio mútuo, da solidariedade comunitária, as pessoas parassem de fugir da realidade pela adicção. Foi aí que se deparou com uma enorme resistência à mudança e se pode sentir toda a força de uma mulher do povo, com liderança negativa. Com efeito, a Sra. J., sentindo-se frustrada com a possibilidade de ter de abandonar suas “pílulas azuis mágicas”, agrediu-o verbalmente numa reunião da ESF com a comunidade.
Lévi-Strauss2ensina-nos, estudando tribos
primiti-vas, que é na atitude do coletivo que se desenha a imagem do grande curandeiro, muito mais do que no ritmo dos seus sucessos ou fracassos. A questão fundamental está, portan-to, na relação do curandeiro com o Grupo. Quando não atende a determinadas exigências do coletivo, está em risco de perder o consenso social em torno de si.
A Sra. J. era moradora da parte mais pobre da co-munidade e, consequentemente, a mais ressentida com suas
condições de vida. O filósofo Nietzsche3descreveu a
psi-cologia do ressentimento: “eu sofro, alguém tem a culpa”. A vingança, sob forma de intrigas, é “o supremo alívio, o narcótico a todos os que sofrem”. Ela conseguiu deformar a imagem do generalista em sua vizinhança.
Seu poder de contaminação chegou até a enferma-gem. Trata-se agora de examinar a dinâmica do pequeno grupo, o da equipe de Saúde da Família. Parece-nos que a cultura dos profissionais da saúde pode ser rotulada de au-toritária (embora dissimulada) e de paternalista. No meu en-tender, as auxiliares de enfermagem e as agentes
comunitá-rias de saúde identificam-se mais com os pacientes, por pertencerem à mesma classe social. Na situação concreta, houve uma aliança informal entre uma parte da equipe e o grupo de pacientes insatisfeitos com a demanda de diazepí-nicos não atendida.
A vocalização do ressentimento encontrou na com-petição dentro da equipe de SF o combustível de que neces-sitava.
Referências Anexo 2
1. Cartwright D, Zander A. Dinâmica de Grupo: Pesquisa e Teoria. São Paulo: Herder; 1967. 1033p.
2. Lévi-Strauss C. Le sorcier et sa magie. In: Anthropologie structurale. France: Librairie Plon; [1974]. p.183-204. 3. Nietzsche FW. A Genealogia da Moral. São Paulo: Moraes; 1985. 113 p.
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