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O CRIMINOSO OU ANTISSOCIAL PREDETERMINADO: A BUSCA PELA IDENTIFICAÇÃO E NEUTRALIZAÇÃO DO INDIVÍDUO ANTES DE PRATICAR O FATO POR MEIO DE ARGUMENTOS BIOLÓGICOS, NEUROCIENTÍFICOS E ESTATÍSTICOS

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Academic year: 2020

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O CRIMINOSO OU ANTISSOCIAL PREDETERMINADO:

A BUSCA PELA IDENTIFICAÇÃO E NEUTRALIZAÇÃO

DO INDIVÍDUO ANTES DE PRATICAR O FATO POR

MEIO

DE

ARGUMENTOS

BIOLÓGICOS,

NEUROCIENTÍFICOS E ESTATÍSTICOS

THE PREDETERMINED CRIMINAL OR ANTI-SOCIAL: THE SEARCH FOR IDENTIFICATION AND NEUTRALIZATION OF THE INDIVIDUAL BEFORE PRACTICING THE FACT THROUGH

BIOLOGICAL, NEUROSCIENTIFIC AND STATISTICAL

ARGUMENTS

Humberto Souza Santos1 Universidade do Estado do Rio de Janeiro

João Paulo Orsini Martinelli2 Universidade Federal Fluminense José Danilo Tavares Lobato3 Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro Resumo

O presente trabalho tem por objetivo expor algumas ideias desenvolvidas pelas ciências naturais para a determinação da personalidade criminosa e os conflitos com a ciência jurídica. O principal ponto de discussão é a existência do livre arbítrio e de circunstâncias que possam condicionar o comportamento humano. Essa discussão

1 Doutorando em Direito Penal na UERJ. Mestre em Direito Penal pela UCAM.

Bacharel em Direito pela UFRJ. Advogado.

2 Professor Doutor de Direito Penal da UFF. Pós-Doutor em Direito pela

Universidade de Coimbra, Portugal. Doutor e Mestre em Direito Penal pela USP. Advogado.

3 Professor Doutor de Direito Penal da UFRRJ. Pós-Doutor em Direito pela

Universidade de Munique, Alemanha. Doutor em Direito Penal pela UGF. Mestre em Direito Penal pela UCAM. Bacharel em Direito pela UFRJ. Defensor Público.

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sempre influenciou e ainda influencia o embate entre livre arbítrio e determinismo, especialmente com os modernos estudos da neurociência.

Palavras-chave

Livre arbítrio. Determinismo. Criminologia. Neurociência. Abstract

The present article has the objective of exposing some ideas developed by the natural sciences for the determination of the criminal personality and the conflicts with the law science. The main point of discussion is the existence of free will and circumstances that can condition human behavior. This discussion has always influenced and still influences the clash between free will and determinism, especially with modern neuroscience studies.

Keywords

Free will. Determinism. Criminology. Neuroscience.

1. Introdução

Uma das maiores pretensões totalitárias de todos os tempos, talvez o grande sonho dos “combatentes” contra o crime e condutas antissociais em geral, é a de neutralizar um sujeito antes que ele venha a praticar um comportamento considerado delituoso. Tal aspiração traz em si algo de ocultista ou sobrenatural e chegou a ser abordada nesse sentido no filme estadunidense Minority Report, de 2002, em que paranormais são responsáveis por visualizar antecipadamente quem praticará crimes, de modo que o sujeito identificado é desde logo punido antes que o delito venha a ser cometido. O que poderia ser considerado um desejo de controle legado à esfera psíquica das intenções frustradas nunca realizáveis, visto que profundamente dependente de adivinhações do futuro e outros poderes telecinéticos,

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tem desafiado sua evidente irracionalidade e se manifestado no discurso repressor como algo não só a ser levado a sério, mas verdadeiramente buscado. Inúmeros reflexos disso podem ser citados, como a declaração de um deputado federal do Estado do Paraná, relator do Projeto de Emenda Constitucional n. 171, que prevê diminuição da idade limite à menoridade para 16 anos, de que “um dia, chegaremos a um estágio em que será possível determinar se um bebê, ainda no útero, tem tendências à criminalidade, e se sim, a mãe não terá permissão para dar à luz”4 e, também, as críticas sofridas por uma decisão da 1ª Vara da Infância, da Juventude e do Idoso da Capital do Estado do Rio de Janeiro, em sede de habeas corpus, que somente afirmara a obviedade, num Estado de direito, de que a polícia não poderia apreender adolescentes a caminho das praias sem que estivessem em flagrante delito,5 o que motivou declarações do Secretário de Segurança Pública do Estado do Rio de Janeiro no sentido de que: “Se a polícia atua, abusa do poder, se não atua está prevaricando. Conseguiram constranger a polícia”6 e, por sua vez, a emissão de uma nota pelo próprio Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, em tom de justificação: “o ato do juiz da 1ª Vara da Infância, Juventude e Idoso da Comarca da Capital não tem o condão de impedir a atuação da PMERJ, que pode abordar, apreender ou praticar qualquer outro ato, nos limites da lei”.7 4 http://brasil.elpais.com/brasil/2015/07/22/politica/1437595865_499214.html 5 http://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/2015/09/pm-e-proibida-de-apreender-jovens-caminho-da-praia-do-rio-sem-flagrante.html 6 http://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/2015/09/beltrame-afirma-que-policia-esta-constrangida-para-coibir-arrastoes.html 7 http://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/2015/09/habeas-corpus-da-defensoria-nao-proibe-pm-de-abordar-menores-diz-tj.html

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Assim, mesmo diante da impossibilidade de se prever o futuro, o objetivo de se predeterminar delinquentes manifesta-se mais vivo do que nunca. Se, por enquanto, parece distante o dia em que a política de neutralização de indesejados recorrerá à paranormalidade para concretizar sua obsessão preventiva, o mesmo não se pode dizer de outras ferramentas que, ironicamente sob o manto da racionalidade científica, tem pretendido justamente suprir a ausência do poder de vidência. As mais conhecidas, que tem dominado tal vertente “Minority Report” da política-criminal, são, sem dúvida, aquelas que se desenvolvem em torno de argumentos biológicos, neurocientíficos e estatísticos, cuja relevância tem sido crescente e merece a breve abordagem que se fará nesse estudo.

2. O criminoso ou antissocial predeterminado com base em argumentos biológicos: a eugenia clássica e a nova neurocriminologia

O emprego de argumentos de natureza biológica, sob um discurso pseudocientífico para identificar o delinquente nato, pode ter seu início creditado justamente a um estudioso das artes sobrenaturais. Em finais do século XVI, o ocultista, astrólogo e alquimista italiano GIOVANNI BATTISTA DELLA PORTA desenvolveu estudos baseados em fisiognomia, uma das áreas da medicina de tradição oriental, em que pretendia, a partir de traços da face humana e do desenho craniano, analisar a personalidade das pessoas. Os resultados a que sustentou ter chegado influenciaram o filósofo e teólogo suíço JOHAN KASPAR LAVATER a defender, no século XVIII, que o comportamento dos indivíduos e sua propensão para ações agressivas ou dissimuladas poderiam ser distinguidos através da fisionomia de seu rosto. Assim, segundo LAVATER, quem tem olhos e boca distorcidos possui avareza sórdida e forte vilania, de modo que nenhum de seus

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músculos ou feições é capaz de expressar benevolência ou sensibilidade, o que significa que precisa se esforçar para manter sua alma por trás de uma máscara de hipocrisia.8

Essa busca por uma relação entre aparência física e características de personalidade levou, por sua vez, ao desenvolvimento, no início do século XIX, de uma pseudociência denominada frenologia. O maior impulso da frenologia deveu-se ao médico alemão FRANZ JOSEPH GALL, segundo o qual seria possível identificar características de personalidade e tendência criminosa do indivíduo através do formato de sua cabeça. De acordo com GALL, o cérebro é o centro de todas as sensações, o sensorium commune,9 e o órgão exclusivamente responsável pelos instintos, propensões, sentimentos e talentos, além das qualidades afetivas e morais e das faculdades intelectuais.10 O formato da cabeça, em sua opinião, é importante por ser resultado de influência cerebral, isto é, tem sua forma devida ao desenvolvimento do cérebro por inteiro ou de algumas de suas partes.11 GALL sustentava que existem indivíduos com irresistível propensão para roubar, incinerar, matar ou, ainda, excessivamente lascivos,12 cuja cabeça mede dezessete polegadas de circunferência e se contam onze polegadas da origem do nariz até o occipital foramen,13 osso da região central da fossa posterior do

8 LAVATER, The pocket Lavateror the science of physiognomy: to which is added,

an inquiry into the analogy existing between brute and human physiognomy, from the Italian of Porta, 1817, p. 85.

9 GALL/SPURZHEIM. Untersuchungen ueber die Anatomie des Nervensystems

ueberhaupt, und des Gehirns insbesondere, 1809, p. 5.

10 GALL, On the functions of the brain and of each of its parts, vol. II, 1835, p. 106. 11 GALL, On the functions of the brain and of each of its parts, vol. II, 1835, p. 202. 12 GALL, On the functions of the brain and of each of its parts, vol. II, 1835, p. 219. 13 GALL, On the functions of the brain and of each of its parts, vol. II, 1835, p. 219.

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neurocrânio. Em tal cabeça existiria metade da massa cerebral correspondente a uma cabeça medindo vinte polegadas de circunferência e treze a quatorze de distância do nariz até o occipital foramen, mas conteria três vezes mais cérebro do que a de um indivíduo imbecil de primeira classe.14 Já uma cabeça que meça entre dezoito e dezoito e meio polegadas de circunferência possui dimensões pequenas, embora não seja incompatível com o regular exercício das faculdades intelectuais.15 Ela indicaria uma lamentável mediocridade, um espírito servil de imitação, credulidade, superstição, toda a espécie de sensibilidade que por ninharia passa da alegria a lágrimas, julgamentos falhos, extrema dificuldade de discernir relações de causa e efeito, necessidade de autocontrole e, frequentemente, o que para GALL é uma circunstância feliz, poucos desejos.16 Em meados do século XIX, MARIANO CUBÍ Y SOLER, linguista e pedagogo espanhol, adepto entusiasmado da frenologia, afirmava, com base nos estudos de GALL, que havia uma região cerebral sobre o orifício auditivo responsável pela propensão humana de matar, que seria ampla e volumosa no crânio dos homicidas.17 Da mesma maneira, sustentava existir uma região do cérebro responsável pela disposição de enganar, que, quando tornava a cabeça do indivíduo avolumada na região da temporal, conferia-lhe ímpeto de praticar trapaças e ardis.18

No entanto, o grande mestre dessa tendência, responsável por sistematizá-la e desenvolvê-la em detalhes minuciosamente

14 GALL, On the functions of the brain and of each of its parts, vol. II, 1835, p. 219. 15 GALL, On the functions of the brain and of each of its parts, vol. II, 1835, p. 219. 16 GALL, On the functions of the brain and of each of its parts, vol. II, 1835, p. 219. 17 CUBÍ Y SOLER, Sistema completo de frenolojía, con suas aplicaziones al adelanto

i mejoramiento del hombre, individual i sozialmente considerado, 1844, p. 164.

18 CUBÍ Y SOLER, Sistema completo de frenolojía, con suas aplicaziones al adelanto

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positivistas, foi o médico, antropólogo, médico e jurista CESARE LOMBROSO. Ao longo da segunda metade do século XIX, LOMBROSO defendeu que os fenômenos criminológicos poderiam ser entendidos por meio de fatores biológicos e, influenciado por teses fisiognomicas e frenológicas, sustentava a existência da figura de um criminoso nato, um ser humano diferenciado, caracterizado por sinais particulares, em especial estigmas físicos e psíquicos, que poderiam, inclusive, ser verificados na fisionomia de animais, como, por exemplo, nos olhos de sangue do tigre e da hiena, próprios dos assassinos.19 Segundo LOMBROSO, as medidas do formato da calota craniana explicariam a condição de assassinos, criminosos passionais, ladrões, epilépticos, loucos ou saudáveis,20 tendências essas que se reforçariam por anomalias na crista frontal, na têmpora, nos ossos nasais, no osso occipital, em fissuras na órbita inferior, dentre outras.21 LOMBROSO também defendeu que tendências criminais poderiam ser encontradas conforme a medida do cumprimento dos dedos das mãos, desproporcionais em todos os delinquentes,22 a presença de pés planos e sindactilia,23 além de outras deformidades.24 Além dessas características físicas, também seria possível identificar características

19 LOMBROSO, L’uomo delinquente in rapporto all’antropologia, alla

giurisprudenza ed alle discipline carcerarie, volume primo, 1896,p. 24

20 LOMBROSO, L’uomo delinquente in rapporto all’antropologia, alla

giurisprudenza ed alle discipline carcerarie, volume primo, 1896,p. 135-159.

21 LOMBROSO, L’uomo delinquente in rapporto all’antropologia, alla

giurisprudenza ed alle discipline carcerarie, volume primo, 1896,p. 159-178.

22 LOMBROSO, L’uomo delinquente in rapporto all’antropologia, alla

giurisprudenza ed alle discipline carcerarie, volume primo, 1896,p. 229.

23 LOMBROSO, L’uomo delinquente in rapporto all’antropologia, alla

giurisprudenza ed alle discipline carcerarie, volume primo, 1896,p. 234.

24 LOMBROSO, L’uomo delinquente in rapporto all’antropologia, alla

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psíquicas como uma diminuída sensibilidade à dor,25 o que explicaria

o fato de criminosos comumente se tatuarem,26 agirem com

instabilidade,27 vaidade,28 crueldade29 e se envolverem com jogos de azar e bebidas.30

Aluno de LOMBROSO, o também italiano ENRICO FERRI concordava com a existência de um tipo antropológico de criminoso, que se apresentaria como um conjunto de caracteres orgânicos, de modo que as linhas e as expressões da fisionomia seriam realmente decisivas.31 A anormalidade na estrutura e forma óssea do crânio e do corpo seriam apenas complementos do núcleo central constituído pela fisionomia, especialmente os olhos e a mandíbula.32 Mas FERRI sustentava que, ao lado desses fatores biológicos e físicos, também fatores sociais poderiam explicar a existência de práticas criminosas.33 FERRI considerava parcialmente verdadeira a análise biológica da delinquência, mas não suficiente e completa, pois não bastaria para explicar a gênese natural do delito em todas as categorias de

25 LOMBROSO, L’uomo delinquente in rapporto all’antropologia, alla

giurisprudenza ed alle discipline carcerarie, volume primo, 1896,p. 388.

26 LOMBROSO, L’uomo delinquente in rapporto all’antropologia, alla

giurisprudenza ed alle discipline carcerarie, volume primo, 1896,p. 393.

27 LOMBROSO, L’uomo delinquente in rapporto all’antropologia, alla

giurisprudenza ed alle discipline carcerarie, volume primo, 1896,p. 447.

28 LOMBROSO, L’uomo delinquente in rapporto all’antropologia, alla

giurisprudenza ed alle discipline carcerarie, volume primo, 1896,p. 448.

29 LOMBROSO, L’uomo delinquente in rapporto all’antropologia, alla

giurisprudenza ed alle discipline carcerarie, volume primo, 1896,p. 457.

30 LOMBROSO, L’uomo delinquente in rapporto all’antropologia, alla

giurisprudenza ed alle discipline carcerarie, volume primo, 1896,p. 461-464.

31 FERRI, Sociologia criminale, 1900, p. 144. 32 FERRI, Sociologia criminale, 1900, p. 144. 33 FERRI, Sociologia criminale, 1900, p. 161.

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delinquentes nem por qual razão precisa e fundamental em certos indivíduos essa ou aquela condição de anormalidade biológica chega a determinar o delito, enquanto em outros determina a loucura, o suicídio ou somente uma inferioridade orgânica e psíquica.34

De acordo com FERRI, os delinquentes poderiam ser subdivididos em cinco categorias fundamentais. A primeira, dos loucos, que seriam os delinquentes afetados por alguma forma evidente e clínica de alienação mental.35 A segunda, dos natos, formada por aqueles que vivem no mundo do crime por uma necessidade orgânica e congênita de adaptação orgânica e psíquica e, uma vez assimilado o estado crônico do delito, são incorrigíveis e degenerados como as outras categorias de delinquentes habituais, mas que antes de se entregarem à criminalidade poderiam ter sido salvos por instituições preventivas e por um ambiente menos viciado.36 A terceira, a dos delinquentes habituais, que seriam aqueles sobre os quais recai uma inevitável incorrigibilidade, tomados por características das mais baixas camadas antissociais e selvagens.37 A quarta, a dos delinquentes acidentais ou de ocasião, que seriam aqueles em cuja constituição prevalece características das camadas mais sociáveis e civilizadas, mas que, em virtude de um impulso extraordinário, seriam sufocadas, quase como uma erupção vulcânica, por características das mais profundas camadas sociais.38 A quinta, a dos delinquentes passionais, nos quais o que determina o delito seria mais o impulso da ocasião do que uma

34 FERRI, Sociologia criminale, 1900, p. 174. 35 FERRI, Sociologia criminale, 1900, p. 219. 36 FERRI, Sociologia criminale, 1900, p. 219. 37 FERRI, Sociologia criminale, 1900, p. 191. 38 FERRI, Sociologia criminale, 1900, p. 200.

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tendência inata, um ímpeto extraordinário de uma paixão, um furacão psicológico que alcança o ponto de se fazer transcender o delito.39

Também aluno de LOMBROSO, o magistrado italiano RAFFAELE GAROFALO, ao qual se atribui o pioneirismo do uso da expressão “criminologia”, reforçou a busca por um tipo natural de criminoso. GAROFALO defendia a existência de crimes naturais, considerados atos moralmente repugnantes em qualquer época e lugar,40 e a identificação do criminoso nato a partir de fatores antropológicos, que se complementariam por anomalias psíquicas e transmissões hereditárias de propensões criminosas.41 Segundo GAROFALO, seria indiscutível a existência, nos assassinos, de uma predominância de saliências supraorbitais fortemente desenvolvidas, de zigomas largamente separados, que se revelariam “uma característica comum de certas raças inferiores, como a dos malaias”, além de testas contraídas, excessivo comprimento da face em relação ao crânio e desmedido tamanho das mandíbulas.42

Tais teses de cunho biológico-antropológico desenvolvidas para a identificação do criminoso ou antissocial natural misturaram-se a ideias afins que pregavam eugenia, leis antimiscigenação, racismo, darwinismo social, cujo ápice foi atingido com a ascensão ao poder do fascismo e do nazismo entre as décadas de 1920 e 1930. FERRI, apesar do passado socialista, tornou-se um árduo defensor de Benito Mussolini e também GAROFALO destacou-se como um grande apoiador das políticas fascistas. A derrota dos Estados fascistas e nazistas na Segunda Guerra Mundial abalou a ideia de um criminoso ou antissocial biologicamente identificado por uma estética

39 FERRI, Sociologia criminale, 1900, p. 219. 40 GAROFALO, Criminology, 1914, p. 3-53. 41 GAROFALO, Criminology, 1914, p. 65-135. 42 GAROFALO, Criminology, 1914, p. 70-71.

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fisionômica e racial, mas não a interrompeu. Por meio de esterilizações forçadas de criminosos, marginalizados e doentes mentais, o objetivo de evitação da existência de seres indesejados permaneceu ao redor do mundo. E também reacendeu a ambição da velha frenologia de identificar o criminoso ou antissocial biologicamente predeterminado a partir das características de seu cérebro. Isso com apoio numa nova abordagem, que se pretende relacionada a um dos campos de maior prioridade da medicina ocidental pós-guerra: a neurociência.

O ponto de partida da predeterminação neurobiológica do criminoso ou antissocial é a negação de qualquer espécie de livre-arbítrio do indivíduo. De acordo com GERHARD ROTH, um desses principais defensores, é uma ilusão o sentimento de que a formação da vontade e a decisão de ação são livres, ou seja, de que não são formados por causas, mas por motivos, de modo que, em princípio, outra decisão poderia ser tomada. Isso porque, embora os processos de consciência exerçam um papel importante na ponderação de alternativas e suas consequências, eles não são decisivos. A formação da vontade e a decisão de ação são essencialmente determinadas por meio de processos inconscientes submetidos ao controle das memórias da experiência no sistema límbico. Assim, para ROTH, tudo o que fazemos acontece à luz da experiência passada, consciente e inconsciente. Ele afirma que a memória da experiência do sistema límbico desenvolve-se desde o corpo da mãe de uma maneira altamente individual e algumas vezes idiossincrática, o que explica porque alguns de nossos próprios comportamentos parecem altamente racionais, enquanto outros não são inteiramente compreensíveis. E mesmo as diversas decisões que pressupõem um processo longo de ponderação consciente são tão pouco livres quanto as decisões rápidas, o que significa que não é possível controlar voluntariamente quais são

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e em que momento os argumentos e contraargumentos nos chegam aos sentidos.43

ADRIAN RAINE, por sua vez, afirma que a evolução tornou a violência e o comportamento antissocial um modo de vida lucrativo para uma pequena minoria da população. Isso porque, segundo RAINE, a capacidade para más ações antissociais pode, em parte, ser entendida com referência à biologia evolutiva e é a partir de essenciais mecanismos evolutivos que as diferenças genéticas ajudam a moldar o que ele chama de anatomia da violência.44 RAINE sustenta que a influência genética para o crime foi comprovada em estudo de grupos de bebês adotados que cresceram em ambientes completamente diferentes e nunca tiveram contato com os pais biológicos. Tal estudo teria demonstrado que os descendentes de pais biológicos criminosos seriam mais propensos a se tornarem criminosos quando adultos do que os descendentes de pais não criminosos.45 RAINE explica que em tomografia realizada por ele em cérebros de 41 homicidas, foram encontradas significantes reduções no metabolismo de glicose do córtex pré-frontal, que levam, no plano das emoções, à perda de controle sobre partes evolucionariamente mais primitivas do cérebro, como o sistema límbico, responsável por emoções como raiva e fúria; no plano comportamental, à irresponsabilidade e quebra de regras; no plano da personalidade, à impulsividade, à perda do autocontrole, à inabilidade para apropriadamente mudar ou inibir comportamentos.46

Já segundo NIKOLAS ROSE o Judiciário ainda defende as ficções não genéticas e não psiquiátricas do livre arbítrio, da

43 ROTH, Das Problem der Willensfreiheit aus Sicht der Hirnforschung, 2007, p.

90-91.

44 RAINE, The Anatomy of violence: the biological roots of crime, 2013, p. 24. 45 RAINE, The Anatomy of violence: the biological roots of crime, 2013, p. 56-57. 46 RAINE, The Anatomy of violence: the biological roots of crime, 2013, p. 76-78.

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autonomia de escolha e da responsabilidade pessoal não porque o discurso jurídico considera isso uma explicação científica dos determinantes da conduta humana, mas porque julga necessário proceder como se o fato tivesse sido praticado por razões relacionadas a noções predominantemente de ordem moral e política. A tendência do pensamento jurídico, em sua opinião, parece ser cada vez mais a ênfase na inescapabilidade da responsabilidade moral e da culpabilidade. ROSE sustenta que, nesse contexto, o argumento da biologia é apropriado para exercer seu mais significativo impacto não por meio de manobras de advogados de defesa, mas na determinação da sentença. Se a conduta social está indelevelmente inscrito no corpo do agressor, não é a mitigação da pena que é requerida, mas a pacificação a longo prazo do indivíduo irremediável em nome da proteção pública, mesmo que isso signifique a rejeição de muitas regras de considerações jurídicas, como a referente à proporcionalidade entre crime e pena.47 ROSE sustenta que a nova biologia do controle não trata de focar em grupos raciais ou subgrupos de população, como era feito na primeira metade do século XX, mas de identificar o “risco” entendido em termos clínicos, ou seja, à medida que indivíduos de certos grupos podem carregar um elevado risco por condições específicas que não se referem ao controle de grupos de população em massa, mas com a identificação de indivíduos específicos em que a predisposição biológica e familiar pode, em certas condições sociais ou de desenvolvimento, levar a uma conduta social ou antissocial. 48

Tanto as teses clássicas, focadas em manifestas digressões

47 ROSE, The biology of culpability: pathological identity and crime control in a

biological culture, 2000,p. 13.

48 ROSE, The biology of culpability: pathological identity and crime control in a

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raciais e eugênicas, quanto as modernas, que difundem um discurso arrimado ao funcionamento cerebral e à genética hereditária, levaram ao desenvolvimento de diferentes propostas de neutralização do indivíduo biologicamente indesejado. O conteúdo dessas propostas, basicamente voltado para impedir uma suposta decadência da espécie humana, é o que se examina no tópico seguinte.

2.1. As propostas de neutralização do criminoso ou antissocial biologicamente predeterminado, da eugenia clássica à nova neurocriminologia

A noção de que existem seres humanos biologicamente inferiores, difundida com status científico entre o século XIX e a metade do século XX, originou desde propostas caricatas de “aperfeiçoamento” da humanidade até leis cruéis de segregação e eugenia que visavam neutralizar e extinguir seres humanos inaptos a uma sociedade superior. O antropólogo e matemático inglês FRANCIS GALTON, que criou o termo eugenia, chegou a sugerir que a reprodução humana, a exemplo do que já acontecia com cachorros e cavalos, fosse orientada à formação de uma raça de homens altamente talentosos por meio de casamentos judiciosos durante várias gerações consecutivas.49 Essa ideia de povoar o planeta de uma raça superior, mediante uma espécie de “haras” humano (denominada eugenia positiva), foi desdobrada pelos seguidores de GALTON no objetivo de se evitar cruzamentos indesejáveis que pudessem levar à degeneração (chamada eugenia negativa), cujo sucesso alcançado no início do século XX promoveu o estabelecimento de instituições e leis que

49 GALTON, Hereditary genius: an inquiry into its laws and consequences, 1892, p.

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propunham medidas como esterilização, segregação, restrição a casamentos e adoção, que pudessem extinguir a longo prazo a existência de degenerados.

Nos Estados Unidos, onde as teses de GALTON tiveram grande repercussão, foi aprovada no ano de 1907, no Estado de Indiana, a primeira lei a autorizar a esterilização forçada de criminosos habituais, incorrigíveis ou condenados por crimes específicos, como estupro; além de epilépticos, insanos e idiotas sob custódia de instituições estatais. Em apenas dez anos, entre 1907 e 1917, leis semelhantes já eram adotadas por mais quinze estados diferentes. Em 1927, a lei de esterilização compulsória de criminosos e doentes mentais do Estado da Virgínia teve confirmada sua constitucionalidade em julgamento da

Suprema Corte, no caso Buck vs. Bell, ocasião em que foi lançado o

famoso argumento do juiz Oliver Wendell Holmes de que “três gerações de imbecis é suficiente”.50 Com suporte financeiro, político e científico de instituições estadunidenses, como a Instituição Carnegie e a Fundação Rockfeller,51 defensores de teses eugênicas se propagaram pela Europa e fundaram organizações como a alemã Instituto Kaiser Wilhelm de Antropologia, Genética Humana e Eugenia, célula da política de eugenia nacional-socialista. Leis de esterilização compulsória de criminosos e doentes mentais foram, à época, sucessivamente aprovadas, por exemplo, no Cantão de Vaud, na Suíça, em 1928, na Dinamarca, em 1929, na Suécia e na Noruega, em 1935, e, as mais radicais, na Alemanha, após a chegada de Adolf Hitler ao poder, em 1933.

50 KEVLES, In the name of eugenics: genetics and the uses of human heredity, 1986,

p. 100-111.

51 Sobre o incentivo de instituições dos Estados Unidos para a prática de eugenia na

Alemanha nacional-socialista, BLACK, War against the weak: eugenics and America’s campaign to create a master race, 2012, p. 348-391.

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Em 14 de julho de 1933, apenas seis meses depois de seu início, o regime nacional-socialista implementou a Lei para Prevenção de Doenças Hereditárias, que previa a esterilização compulsória em massa de deficientes mentais, esquizofrênicos, maníaco-depressivos, portadores de Coreia de Huntington, epilépticos, portadores de deformações hereditárias, surdos, cegos hereditários e, opcionalmente, alcoólatras.52 As esterilizações forçadas tiveram início em 1º de janeiro de 1934 e somente neste primeiro ano atingiram 56.000 pessoas.53 Em 1934, o Código Penal alemão foi modificado pela Lei sobre o Delinquente Habitual Perigoso, que implementou medidas de “custódias de segurança”, propostas desde o final do século XIX pelo penalista FRANZ VON LISZT, que permitiam manter o delinquente habitual, uma vez cumprida sua pena, em um centro de trabalho por tempo indeterminado, além da esterilização e castração dos delinquentes sexuais. Calcula-se que, entre 1934 e 1944, mais de 17.000 pessoas foram internadas em campos de concentração em razão desta lei, de onde não saíram mais com vida.54 Em 1935 foram anunciadas as Leis de Nuremberg: a Lei da Bandeira do Reich, a Lei da Cidadania do Reich e a Lei da Proteção do Sangue e Honra Alemães, que previam a segregação racial e proibiam união matrimonial, coabitação, relações sexuais e outras espécies de relacionamentos entre alemães e membros de raças inferiores, principalmente judeus, mas também negros e ciganos. Em 1944 foi apresentada a redação final do Projeto de Lei sobre os Estranhos à Comunidade, que considerava

52 BLACK, War against the weak: eugenics and America’s campaign to create a

master race, 2012, p. 370.

53 BLACK, War against the weak: eugenics and America’s campaign to create a

master race, 2012, p. 375.

54 MUÑOZ CONDE, Edmund Mezger y el Derecho penal de su tiempo, 2003, p.

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estranho à comunidade quem, por sua personalidade ou condução de vida, bem como extraordinários defeitos de compreensão ou de caráter, fosse incapaz de cumprir com suas próprias forças as exigências mínimas da comunidade do povo; que, em atitude de rechaço ao trabalho levasse uma vida inútil, dilapidadora ou desordenada, molestasse os outros ou a comunidade, ou por inclinação à mendicância, à vagabundagem, ao trabalho ocasional, praticasse pequenos furtos, fraudes ou outros delitos menos graves, ou em estado de embriaguez provocasse distúrbios ou, por essas razões, infringisse gravemente seus deveres assistenciais, ou, por seu caráter associal ou agressivo, perturbasse continuamente a paz da generalidade, ou, por sua personalidade ou forma de condução de vida revelasse que sua mente se dirigia à prática de delitos graves (delinquentes inimigos da comunidade e delinquentes por tendência), os quais estariam submetidos a medidas como colocação à disposição da polícia, esterilização, castração, pena por tempo indeterminado e de morte.55 Além das milhões de pessoas exterminadas por motivos étnicos, é estimado que, entre os anos de 1934 e 1945, por volta de 400.000 foram esterilizadas e 200.000 exterminadas por motivos eugênicos não étnicos, entre criminosos e portadores de doenças genéticas ou irreversíveis.56

Apesar da derrota da Alemanha nacional-socialista na Segunda Guerra Mundial, medidas eugênicas não foram abandonadas. Esterilizações forçadas por motivos de crime, doença ou etnia continuaram a acontecer em diversos países. Nos Estados Unidos, até o ano de 1979, mais de 60.000 pessoas foram esterilizadas à força,

55 MUÑOZ CONDE, Edmund Mezger y el Derecho penal de su tiempo, 2003, p.

193-202.

56 BACHRACH, In the name of public health — Nazi racial hygiene, 2004, p.

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20.000 apenas no Estado da Califórnia, a maior parte de ascendência

mexicana,57 mesmo estado em que até o ano de 2010 equipes médicas

de presídios continuavam a coagir presas a realizar cirurgias de ligação de trompas.58 Entre os anos 1935 e 1976, 62.000 pessoas foram compulsoriamente esterilizadas na Suécia por pertencerem a raças consideradas inferiores ou a classes marginalizadas em geral59 e, por mais de três décadas, vigorou uma lei, declarada inconstitucional apenas em 2013, que obrigava à esterilização pessoas que pretendessem se submeter à cirurgia de transgênero.60 No Peru, entre os anos de 1990 e 2000 foram esterilizadas forçadamente, por meio de coação ou logro, mais de 270.000 mulheres pobres e indígenas.61 Assim, o objetivo de evitar a futura existência de seres humanos indesejados, com o aniquilamento da capacidade de procriação daqueles já existentes, permaneceu vivo até os nossos dias.

Entretanto, se as propostas derivadas da eugenia tradicional buscam resultados massivos por meio da extinção coletiva de grupos indesejados, seja por seu genocídio, seja pelo impedimento da futura existência de seus filhos, a abordagem que busca apoio nas

57 STERN, Sterilized in the name of public health - Race, immigration, and

reproductive control in modern california, 2005, p. 1128-1138.

58

https://www.washingtonpost.com/blogs/govbeat/wp/2014/09/26/following-reports-of-forced-sterilization-of-female-prison-inmates-california-passes-ban/

59 PRED, Even in Sweden – Racisms, racialized spaces, and the popular geographical

imagination, 2000, p. 115.

60

https://www.psychologytoday.com/blog/genetic-crossroads/201301/sweden-repeals-forced-sterilization-transgender-people

61 GUTIÉRREZ BALLÓN, El caso peruano de esterilización forzada. Notas para una

cartografía de la resistencia, 2014, in:

http://www.aletheia.fahce.unlp.edu.ar/numeros/numero-9/dossier-de-genero/el- caso-peruano-de-esterilizacion-forzada.-notas-para-una-cartografia-de-la-resistencia.

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neurociências adota um discurso de medidas de neutralização de futuros criminosos de tonalidade pretensamente individual, com base em específicas características neurológicas apresentadas pelo cérebro do delinquente ou antissocial biologicamente predeterminado. ADRIAN RAINE sugere um programa, denominado por ele de “Programa LOMBROSO (“Legal Offensive on Murder: Brain Research Operation for the Screening of Offenders”), em que propõe que todo jovem de 18 anos seja submetido a um escaneamento do cérebro e a um teste de DNA. Aqueles cujo resultado indicar propensão para futura criminalidade devem ser aprisionados por tempo indeterminado. RAINE afirma que o “Programa LOMBROSO” seria um avanço em relação ao atual sistema judicial, que funciona com tendências raciais, por ser inescrupulosamente objetivo e dirigido por dados, o que deixariam contentes tanto libertários civis quanto líderes de minorias.62

NIKOLAS ROSE, por sua vez, sustenta que delinquentes reais ou potenciais devem ser confinados não como membros de uma subpopulação defeituosa ou uma raça degenerada, cuja reprodução deve ser cerceada, mas como indivíduos intratáveis e inaptos a governar eles mesmos de acordo com as normas civilizadas de uma sociedade liberal de liberdade.63 Segundo ROSE, uma vez identificados indivíduos geneticamente “sob risco”, intervenções para reduzir o perigo podem, então, ser iniciadas, como psicofarmacologia, terapia de genes, habilidades na gestão de vida, reestruturação cognitiva. Assim, com a concepção do controle do crime como saúde pública, novas possibilidades de controle se abrem para a utilização de tais técnicas de

62 RAINE, The Anatomy of violence: the biological roots of crime, 2013, p. 364-365. 63 ROSE, The biology of culpability: pathological identity and crime control in a

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minimização de risco em conexão com concepções biológicas sobre os fundamentos do comportamento violento ou antissocial. ROSE afirma que, de maneira distinta da antiga eugenia negativa, a biologização contemporânea de identidades de risco em nome da saúde pública oferece aos criminólogos biológicos um papel de profissionais terapeutas, terapeutas para indivíduos e para a sociedade em si mesma.64

2.2 Análise crítica da predeterminação biológica de criminosos ou antissociais defendida pela eugenia clássica e pela nova neurocriminologia

A eugenia clássica, com seu objetivo de desenvolvimento da superioridade genética e aniquilação de indesejados, foi o motor de uma tragédia cuidadosamente planejada e executada de coisificação do ser humano. Por isso, é um escândalo que traços de suas ideias tenham sobrevivido até a atualidade. O argumento de aperfeiçoamento racial e social motivador de sua aplicação manifestamente nega ao indivíduo a condição de pessoa digna de direitos existenciais mínimos e lhe submete a um nível de dominação semelhante ao exercido sobre animais. No entanto, o custo histórico do extermínio e da mutilação de capacidades reprodutivas de milhões de seres indesejados para evitar impurezas raciais, doenças genéticas, existência de futuros criminosos, antissociais, pobres e marginalizados, não foi suficiente para tornar a eugenia prática intolerável de política pública. Não raro surgem propostas de políticos, veículos midiáticos e opinadores genéricos, de empregar a esterilização em massa de mulheres de classes vulneráveis

64 ROSE, The biology of culpability: pathological identity and crime control in a

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como método de prevenção ao crime e à pobreza, embora não se tenha notícia de lugar nenhum do mundo em que se tenha conseguido acabar com o crime e a pobreza por meio da extinção de grupos indesejados. Ainda que sem referir a argumentos assumidamente racistas, como na primeira metade do século passado, tais abordagens reproduzem o mesmo objetivo distópico: a formação de uma sociedade limpa, sem a incômoda presença existencial de seres degenerados.

E também o discurso de identificação individual do futuro criminoso ou antissocial não com base em seu grupo étnico ou social, mas em suas características neurológicas, não difere das velhas pretensões totalitárias. O ponto do qual parte, o abandono da noção de livre arbítrio em favor de um determinismo biológico, está mais próximo de mais uma posição política do que se sua pretendida “neutralidade” científica. Tanto quanto o complexo de reações neurológicas, também é possível comprovar que sujeitos normais em circunstâncias normais possuem a capacidade, por meio da vontade consciente, de controlar os impulsos e decidir o que se prefere. Os dados neurobiológicos que a autodenominada neurocriminologia apresenta não permitem afastar desde logo um pressuposto de liberdade de decisão que consista, em verdade, na capacidade adquirida progressivamente durante o processo de maturidade, educação e socialização que torna o indivíduo, graças à capacidade racional de motivação e autocontrole, dono de seus próprios atos, no limite do humanamente factível, em vez de um mero joguete das circunstâncias, dos impulsos inconscientes e de outros fatores condicionantes. Isso a não ser que aconteçam condições ou circunstâncias anormais que impeçam ou perturbem tal capacidade de vontade consciente. Por outro lado, também é sabido que, mesmo em casos clinicamente graves, o domínio dos próprios atos e o controle dos impulsos e emoções profundas podem ser adquiridos paulatinamente por meio do uso de medicamentos ou substâncias, bem como técnicas

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de ajuda psicofisiológica como, por exemplo, terapias,

condicionamento comportamental, yoga, meditação ou introspecção.65

Por isso, é no mínimo precipitado adotar o reducionismo de um determinismo biológico condutor do comportamento humano, pois o ser humano ainda pode ser considerado o único ser capaz de controlar seus instintos e estabelecer seu comportamento de acordo com valores.66 E mesmo que pesquisas neurobiológicas concluam que a última decisão de ação ocorre por meio da inconsciente memória emocional da experiência, o chamado sistema límbico, de um até dois segundos antes do indivíduo percebê-la como sua decisão consciente, falta a demonstração de que a consciência humana não exerce influência sobre a formação desse mensurável processo neurológico.67

Mas não só o pressuposto, também os argumentos utilizados para justificar as propostas medidas de neutralização contra futuros criminosos ou antissociais são inconsistentes. Eles partem de uma insuperável confusão entre crime e violência, que ignora que nem todo crime é violento, mas, ao contrário, a imensa maioria dos tipos penais não envolve violência, e que nem todo comportamento violento pode ser considerado crime, como, por exemplo, aqueles realizados em lutas marciais (MMA, boxe), esportes de alto grau de contato físico (rugby, futebol), condutas sexuais (sadomasoquismo), práticas religiosas (autoflagelação), exercícios militares, etc. Assim, como crime e violência não são conceitos necessariamente relacionados, mesmo a se partir de uma alegada neutralidade científica, a mera apresentação de dados supostamente demonstrativos de eventuais tendências a ações violentas não justifica a predeterminação de um indivíduo como

65 LUZÓN PEÑA, Libertad, culpabilidad y neurociencias, 2012, p.36. 66 HAFT, Strafrecht Allgemeiner Teil, 2004, p. 118.

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criminoso. Áreas do conhecimento como a psiquiatria e a psicologia estudam comportamentos humanos violentos ao menos desde que foram fundadas sem que isso tenha necessariamente significado a pretensão de adivinhar quem será um futuro delinquente ou antissocial e neutralizá-lo antes da prática de fatos que se supõe que serão cometidos. Não há razão, a não ser o puro desejo totalitário, para, por meio da neurociência, ambicionar-se algo nesse sentido. Ainda que fosse adotada a absurda proposta de neutralização de indivíduos com tendências violentas, isso não levaria ao paraíso livre de crimes defendido pelos neurocriminólogos, pois a prática de crimes com emprego de violência corresponde a apenas uma pequena parcela dos fatos considerados delituosos praticados cotidianamente. E, caso se chegue ao delírio de propor testes que revelem tendências à ambição, à vaidade, ao egoísmo, à busca por dinheiro, fama, poder, etc., para justificar a neutralização de futuros praticantes de crimes não violentos, será preciso neutralizar uma população inteira, com exceção de alguns poucos abnegados, desde o pacífico vizinho da porta ao lado, o comerciante da esquina, o grande empresário, até líderes políticos e professores universitários que viajam o mundo propondo fórmulas mágicas para coisificar seres humanos e satisfazer plateias pouco afeitas à dignidade do outro.

3. Reflexões necessárias: a neurociência como instrumento de

controvérsias entre o livre-arbítrio e o determinismo

As novas tecnologias aplicadas às ciências naturais, especificamente em estudos empíricos, tendem a modificar o panorama da análise da culpabilidade por meio de estudos que questionam, cada vez mais, a existência do livre-arbítrio. Os estudos de neurociência possibilitam estudar a constituição do cérebro, sua

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estrutura e seu funcionamento, para alcançar uma condicionante que possa interferir no comportamento individual. Há uma espécie de embate entre as ciências jurídicas, de natureza normativa, e as ciências naturais, cujo empirismo permite constatar fenômenos orgânicos capazes de interferir no comportamento humano. Deve-se ter em mente que os métodos de pesquisa da neurociência são completamente diferentes do método normativo: enquanto o jurista presume a liberdade de agir, o neurocientista faz experimentos para confirmar ou negar o livre-arbítrio. Fica claro que não se pode ignorar o avanço das ciências naturais no estudo do comportamento humano68. Entretanto, a justiça penal não pode ficar “travada” pelas controvérsias “humano-biológicas”, como explica HASSEMER. Para o autor, a justiça penal deve “avaliar se alguém é ou não imputável, se agiu dolosa ou culposamente, se circunstâncias mitigadoras em sua personalidade o favorecem. [...] não pode postergar suas decisões até o fim da controvérsia sobre o livre-arbítrio, o que pode durar décadas ou séculos”.69 Formaram-se, basicamente, duas linhas de compreensão das neurociências com o direito penal. Apesar de ser pacífico o reconhecimento de que as ciências naturais afetam a compreensão da liberdade de agir do ponto de vista jurídico, há compatibilidade entre os preceitos das neurociências e das concepções de culpabilidade. JAKOBS, por exemplo, reconhece os resultados da neurociência, não obstante, sua concepção normativa de culpabilidade não é afetada. Para o autor, há uma distinção entre os conceitos de indivíduos e pessoas: os indivíduos são os seres humanos na sua essência, portadores do livre-arbítrio, enquanto as pessoas são portadoras de

68 MARTINELLI, João Paulo Orsini; BEM, Leonardo Schmitt de. Lições

fundamentais de direito penal, 2017, p. 660.

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obrigações e direitos e se constituem a partir dos papéis dos obrigados e daqueles que detêm o direito – a responsabilidade.70 Prossegue

afirmando que “uma pessoa é responsável pela suficiente fidelidade

ao direito – e para essa relação hermético-normativa não é necessário nem livre-arbítrio, nem é perturbada por causalidade física das atividades cerebrais ou das determinações psíquicas

voluntárias ou involuntárias”.71 Desse modo, uma sociedade

normativamente estruturada mantém uma relação com as pessoas,

não com os indivíduos. As pessoas são os destinatários

comunicativamente construídos de direitos e obrigações, e a neurociência investiga indivíduos, não a sociedade constituída por pessoas.72

Em conclusão, extrai-se que um conceito normativo de culpabilidade pouco é afetado por conclusões empíricas da neurociência. De maneira semelhante, MORSE reconhece um problema sobre o livre-arbítrio que não se encontra na lei. O problema genuíno do livre-arbítrio é metafísico e muitas vezes engendra confusão. Refere-se se os seres humanos possuem a capacidade ou o poder de agir por causas que não estão além de si mesmos, referindo-se à liberdade da vontade. A importância de ter esreferindo-se poder ou capacidade resulta da polêmica crença de existir a possibilidade de responsabilizar genuinamente as pessoas. Resolver o problema da vontade livre teria implicações profundas para as doutrinas e práticas de responsabilidade, mas, no momento, o problema não desempenha nenhum papel apropriado na lei e a neurociência não pode resolvê-la em nenhum caso. O direito penal aborda problemas genuinamente

70 JAKOBS, Indivíduo e pessoa..., 2012, p. 34. 71 JAKOBS, Indivíduo e pessoa..., 2012, p. 38. 72 JAKOBS, Indivíduo e pessoa..., 2012, p. 40.

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relacionados com a responsabilidade, incluindo a consciência, a formação de estados mentais, como a intenção e o conhecimento, a capacidade de racionalidade e compulsão, mas nunca aborda a presença ou ausência do livre-arbítrio libertário. Na verdade, se a responsabilidade criminal é devidamente compreendida, o livre-arbítrio deixa de ser fundamental.73 Para HASSEMER, neurocientistas discutem entre si aproximadamente como os penalistas fazem, o que tem, por sua vez, uma consequência importante para a justiça penal e para a ciência penal. Discutem entre si sobre abordagens e sobre resultados, e às vezes corrigem ou amenizam suas opiniões anteriores. Não se vislumbra um fim da controvérsia entre determinismo e livre-arbítrio, nem parece que se deseja alcançá-la.74 Os neurocientistas desenvolvem conhecimentos que, caso sejam corretos e adequados, retiram a base de uma boa parte de nossas suposições sobre o direito penal e seu mundo, e as reações da ciência jurídico-penal são correspondentes a isso. Os penalistas ficam divididos e perplexos diante dos neurocientistas porque não participam de seus trabalhos de pesquisa. Acontece que os resultados dessas pesquisas chegam aos penalistas, que, por sua vez, tentam apontar quais as consequências que geram para o direito penal75. Enfatiza HASSEMER que cada ciência tem seus objetos, métodos e instrumentos: os penalistas não se tornarão neurocientistas e não podem com eles dialogar; os penalistas não são participantes das pesquisas da neurociência, são apenas recipientes de seus resultados76. Finaliza o autor concluindo que não existe conhecimento suficiente à fundamentação de decisão no sentido de

73 MORSE, Neuroscience, Free Will, and Criminal Responsibility, 2015, p. 252. 74 HASSEMER, Winfried, Neurociências e culpabilidade em direito penal, 2013, p.

213.

75 HASSEMER, Neurociências e culpabilidade em direito penal, 2013, p. 215. 76 HASSEMER, Neurociências e culpabilidade em direito penal, 2013, p. 216.

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que uma pessoa poderia ter agido de outro modo na situação concreta. Considerando-se, ainda, o radicalmente limitado conceito de verdade processual e acrescentando-se as distorções de descoberta da verdade no processo penal real, além da praxis de acordos com frustração sistemática da busca da verdade, fica evidente que a possibilidade de verificação do poder agir de outro modo é um autoengano do penalista. Categorias de exclusão da culpabilidade são constelações nas quais o direito penal e as ciências empíricas sobre as pessoas se tocam, ou se atravessam. O campo dessas categorias está aberto no futuro. Seu objeto é o resultado de desenvolvimentos a longo prazo nas ciências empíricas, mas também da decisão penal sobre a relevância de tais desenvolvimentos para a imputação da culpabilidade.77

STRENG afirma que a consciência realista e introspectiva a respeito a nossos processos de tomar decisões, bem como nossa liberdade de tomá-las, está exposta a dúvidas, por exemplo, através de experimentos nos quais foram provocadas ações das pessoas envolvidas por estímulos de determinadas zonas do cérebro, quer dizer, ações originadas organicamente. A consciência de liberdade aponta que a pessoa que age livremente tem a capacidade de reagir no marco de sua autodireção perante mensagens externas, ou seja, há uma capacidade de perceber as dimensões da realidade e as exigências sociais. Por isso, pode-se qualificar a sensação de liberdade como um “elemento dinamizante” ou uma “determinante dinâmica” do comportamento humano. Em vista do potencial das sensações de liberdade, que enriquecem as determinantes de tomar decisões mediante aspectos da realidade e especificamente por meio de exigências normativas, parece legítimo exigir das pessoas um esforço para tomar decisões conforme a norma. Com a consciência da decisão livre, os cidadãos aceitam que

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eles próprios e seus concidadãos são sancionados por infrações à

norma.78 Há uma corrente que reconhece expressamente a

“compatibilização” entre neurociências e direito penal, desde que o indivíduo possa fazer algo diferente do que faz, quando a decisão de agir dependa da própria pessoa e quando não houver qualquer

coação.79 DEMETRIO CRESPO adota uma concepção de

“compatibilização humanista”, segundo a qual os conhecimentos das neurociências permitiriam uma revisão dos aspectos subjetivos da dogmática jurídico-penal. O autor reconhece que os novos conhecimentos podem trazer novas hipóteses de inimputabilidade e semi-imputabilidade e restringir o uso de penas ao incentivar a adoção de medidas alternativas aos castigos tradicionais80. Enfim, os estudos de neurociências podem ser de grande utilidade ao direito penal, especialmente no reconhecimento de novas situações em que a pena seja dispensável e no incentivo a novas modalidades de consequências jurídicas de ato ilícito. Essencial é não permitir que essas informações sejam utilizadas para antecipar punições de “prováveis” criminosos e tomar todas as cautelas para não se instalar um direito penal do autor em detrimento do direito penal do fato. Qualquer novo conhecimento deve ser utilizado em favor da preservação das liberdades individuais.

4. O criminoso ou antissocial predeterminado com base em

argumentos estatísticos: a política criminal atuarial

78 STRENG, Franz. Investigación del cerebro, libertad volitiva y derecho penal de la

culpabilidad, 2013, pp. 213-214.

79 RUBIA VILA, Francisco J. La cuestión de la libertad humana desde las

neurociencias, 2014, p. 132.

80 DEMETRIO CRESPO, “Compatibilismo humanista”: una propuesta de

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O objetivo de identificar predisposição a comportamento criminal ou antissocial por meio da estatística remonta ao astrônomo, matemático, estatístico e sociólogo belga LAMBERT ADOLPHE JACQUES QUÉTELET. Sem reconhecer que características biológicas ou fisionômicas pudessem exercer um papel relevante, QUÉTELET defendia que a propensão criminal, segundo o demonstrado por dados estatísticos, tornava-se mais intensa de acordo com a idade, especialmente por volta dos 25 anos;81 com o gênero, mais forte no masculino, de modo que para cada mulher criminosa existiriam quatro homens;82 com o clima, visto que o grande número de delitos contra pessoas aconteceriam no verão;83 e com a profissão, pois indivíduos com profissões mais independentes cometeriam mais crimes contra pessoas, enquanto trabalhadores e classes domésticas estariam mais propensos a praticar delitos contra o patrimônio.84 Em relação à educação, QUÉTELET sustentava que, conforme a estatística, saber ler e escrever não necessariamente significaria uma instrução moral e poderia, inclusive, servir de ferramenta à conduta delituosa,85 assim como a pobreza não necessariamente direcionaria o indivíduo ao crime,86 pois o homem não praticaria crime porque é pobre, mas quando rapidamente passa de uma situação de conforto para uma de

miséria.87 Além disso, segundo QUÉTELET, à medida que são

analisados os níveis superiores das camadas sociais e,

consequentemente, de educação, é possível encontrar uma cada vez

81 QUETELET, A treatise on man and the development of his faculties, 1842, p. 95. 82 QUETELET, A treatise on man and the development of his faculties, 1842, p. 95. 83 QUETELET, A treatise on man and the development of his faculties, 1842, p. 95. 84 QUETELET, A treatise on man and the development of his faculties, 1842, p. 95. 85 QUETELET, A treatise on man and the development of his faculties, 1842, p. 95. 86 QUETELET, A treatise on man and the development of his faculties, 1842, p. 95. 87 QUETELET, A treatise on man and the development of his faculties, 1842, p. 95.

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menor quantidade de mulheres condenadas em relação aos homens, enquanto que, conforme se desce aos mais baixos níveis, os hábitos de ambos os sexos se assemelham uns aos outros cada vez mais.88

No entanto, embora o levantamento de dados estatísticos relacionados à criminalidade não fosse mais uma novidade, sua utilização como instrumento de neutralização de futuros criminosos ou antissociais tornou-se um movimento intenso a partir do estudo de ROBERT M. FIGLIO, THORSTEN SELLIN e MARVIN E.

WOLFGANG sobre delinquência juvenil, realizado no ano de 1972.89

Nesse estudo, os autores adotaram uma lógica de aproximação longitudinal de acordo com o ano de nascimento, conhecida como “birth cohort study”, que pretendia identificar de maneira comparativa as características dos delinquentes, considerados aqueles com alguma espécie de passagem formal pela polícia, a partir da classificação de seus perfis ou tipos segundo a frequência e gravidade dos fatos registrados.90 A mais importante das conclusões a que chegou foi a de que quase cinquenta e dois por cento de toda a criminalidade juvenil podia ser atribuída exclusivamente a um grupo de reincidentes crônicos, os “chronic recidivists”, que correspondia à somente seis vírgulas três por cento de todos aos investigados.91 Esse resultado, como explica MAURÍCIO DIETER, levou FIGLIO, SELLIN e WOLFGANG a acreditar que a descrição do perfil dos membros dessa minoria mais perigosa permitiria elaborar estratégias preventivas de

88 QUETELET, A treatise on man and the development of his faculties, 1842, p.

95-96.

89 DIETER, Política criminal atuarial– a criminologia do fim da história, 2012, p. 94. 90 FIGLIO/SELLIN/WOLFGANG, Delinquency in a Birth Cohort, p. 13-24, apud

DIETER, Política criminal atuarial– a criminologia do fim da história, 2012, p. 95.

91 FIGLIO/SELLIN/WOLFGANG, Delinquency in a Birth Cohort, p. 88-91, apud

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grande utilidade,92 num contexto em que a identificação dos jovens tendentes a se transformar em criminosos de carreira estava condicionada à prévia descoberta dos fatores que determinavam a formação de carreiras criminosas.93 A pesquisa apontou que o risco de um jovem praticar um crime, denominado “fator k”, dependia principalmente de três variáveis, quais sejam, 1) a idade em que teve o primeiro contato com a polícia, 2) a natureza da infração praticada e 3) a cor da pele ou raça, sendo o mais determinante o primeiro, que revelava que a chance de um jovem voltar a praticar um delito era diretamente proporcional ao tempo de associação com o sistema de justiça criminal, enquanto o de importância mais relativizada o último, a respeito do qual os autores reconheciam o tratamento desigual dispensado aos adolescentes negros pela polícia como efeito do racismo.94 Assim, concluíram que o mais racional seria privilegiar ações que simplesmente retirassem os menores reincidentes crônicos da sociedade pelo maior tempo possível, sem se preocupar com sua reinserção social,95 mas observaram, também, inconsistência na expectativa de delitos mais graves relacionados à quantidade de crimes praticados pelo indivíduo, o que indicava a necessidade de prognósticos de risco mais dinâmicos do que os disponíveis e de cautela quanto a todos os reincidentes, não somente os classificados como de alto risco, além de recomendarem o fim de critérios de justiça

92 DIETER, Política criminal atuarial– a criminologia do fim da história, 2012, p. 96. 93 BLUMSTEIN/COHEN/ROTH/VISHER (Orgs.), Criminal Careers and “Career

Criminals”, p. ix, apud DIETER, Política criminal atuarial– a criminologia do fim da história, 2012, p. 96.

94 FIGLIO/SELLIN/WOLFGANG, Delinquency in a Birth Cohort, p. 174-243 apud

DIETER, Política criminal atuarial– a criminologia do fim da história, 2012, p. 97.

95 FIGLIO/SELLIN/WOLFGANG, Delinquency in a Birth Cohort, p. 244-255, apud

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específicos para adolescentes, ou seja, de um sistema normativo próprio para a infância e juventude, bem como que se mudasse o paradigma da não-intervenção, devendo a internação ser tida como regra depois do terceiro registro de crime mais grave.96

A metodologia do “birth cohort”, expõe DIETER, foi adotada em todos os grandes centros de Criminologia, enquanto a existência de uma suposta parcela de reincidentes crônicos entre os adolescentes americanos acabou por ser naturalizada pela comunidade acadêmica de tendência punitivista, como ocorreu, por exemplo, no trabalho de DONALD J. WEST e DAVID P. FARRINGTON, em que se anunciou que o conceito de caráter delinquente se tornara estatisticamente demonstrado97 e se empreendeu esforços para descobrir as causas da delinquência juvenil sob uma perspectiva etiológica-individual focada no processo de formação da personalidade, o que os levou a liderar duradoura pesquisa nesse sentido, publicada na Inglaterra e popularmente conhecida como “Cambridge Study in Delinquent

Development (CSDD)”.98 FARRINGTON buscou antecipar a

caracterização da tendência criminosa reduzindo permanentemente a idade daqueles submetidos à pesquisa e, em trabalho que resumia as quatro décadas de investigação do “CSDD”, publicado em 2003, concluiu que era possível prever com relativa segurança o perfil de risco para carreiras criminosas em crianças entre oito e dez anos de

96 FIGLIO/TRACY/WOLFGANG, Delinquency Careers in Two Birth Cohorts, 1990,

p. 273-298.

97 FARRINGTON/WEST, The Delinquent Way of Life, p. 160, apud DIETER,

Política criminal atuarial– a criminologia do fim da história, 2012, p. 99.

98WEST, Present Conduct and Future Delinquency, p. 135-149; WEST, Who

Becomes Delinquent?, p. 186-208; FARRINGTON/WEST, The Delinquent Way of Life, p. 140-174, apud DIETER, Maurício Stegemann. Política criminal atuarial– a criminologia do fim da história, 2012, p. 99.

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idade desde que presentes seis fatores: a) comportamento antissocial, isto é, crianças descritas como agressivas, desonestas ou problemáticas, em especial na escola; b) hiperatividade e déficit de atenção, c) baixa inteligência e fraco rendimento escolar, d) contato com membros da família ou pessoas muito próximas com histórico de criminalização, e) família de baixa renda, numerosa ou em condições ruins de moradia e f) disciplina parental deficiente, em razão de autoritarismo ou negligência, constatado objetivamente pela análise da roupas e higiene pessoal dos menores, além de outros indicadores.99

E, como explica DIETER, a conveniência da proposta de incapacitação seletiva contra criminosos de carreira logo fez com que os limites de sua aplicação à delinquência juvenil fossem ultrapassados em direção à criminalidade adulta, em especial para respaldar a instituição carcerária e a racionalização econômica das políticas públicas que a legitimava,100 sendo um dos primeiros estudos nesse sentido o trabalho de MARK A. PETERSON e HARRIET B. BRAIKER “Who Commits Crimes”, publicado em 1981, cujos dados foram retirados de informações prestadas por presos, em que se associava suas respostas e características aos delitos pelos quais haviam sido condenados.101 Nesse trabalho ficou concluído que existiam duas classes de criminosos, quais sejam, os eventuais e os habituais, sendo que estes últimos foram classificados conforme a frequência na prática delituosa e considerando a informação de que os cerca de oito por

99 FARRINGTON, Key Results from the First Forty Years of the Cambridge Study in

Delinquent Development, p. 148-150, apud DIETER, Política criminal atuarial– a criminologia do fim da história, 2012, p. 99.

100 DIETER, Política criminal atuarial – a criminologia do fim da história, 2012, p.

101.

101 PETERSON/BRAIKER, Who Commits Crimes, p. 5-13, apud DIETER, Política

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cento mais ativos neste grupo eram responsáveis por aproximadamente sessenta por cento do total de crimes, o que aconselhava a incapacitação desta minoria como medida eficiente, no que toca ao custo-benefício, para reduzir os índices gerais de criminalidade, especialmente os de caráter patrimonial.102 Os integrantes desse grupo poderiam ser identificados entre indivíduos adultos com as seguintes características: a) jovens, b) usuários de drogas, c) já criminalizados, sobretudo se já no início da adolescência, d) sem estabilidade de emprego ou moradia, e) que incorporaram o papel social de bandido, f) com aspirações sociais incompatíveis com a própria renda e g) que têm como prioridade o benefício possível do ilícito sobre a possibilidade de serem apanhados pelo Estado.103 Por outro lado, reconheceu-se o problema de que a maioria desses atributos não chegava ao conhecimento dos agentes do sistema de justiça criminal devido a proibições normativas determinadas pelos princípios do devido processo legal e da proteção da intimidade, o que fazia com que os prognósticos de risco elaborados somente sobre os dados objetivos disponíveis nos autos de processos criminais não se mostrassem igualmente confiáveis.104

A descrição das características desses criminosos habituais entre a população adulta foi intensificada pelo trabalho de PETER W. GREENWOOD “Selective incapacitation”, escrito em 1982 direcionado à classe política dos Estados Unidos, em que se recomendava que esses critérios fossem incorporados às sentenças

102 PETERSON/BRAIKER, Who Commits Crimes, p.165-168, apud DIETER, Política

criminal atuarial– a criminologia do fim da história, 2012, p. 102.

103 PETERSON/BRAIKER, Who Commits Crimes, p. 43-150, apud DIETER, Política

criminal atuarial– a criminologia do fim da história, 2012, p. 103.

104 PETERSON/BRAIKER, Who Commits Crimes, p. 172-189, apud DIETER,

Referências

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